Degustação - Parabélum

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Copyright ©2011 by Gilmar de Carvalho Editora

Albanisa Lúcia Dummar Pontes Secretária Administrativa Telma Regina Beserra de Moura Direção de Arte Suzana Paz Projeto gráfico e editoração eletrônica Thaís dos Anjos Capa Alexia Brasil Assessora de Comunicação Mariana Dummar Pontes Preparação de Texto Ana Mello Revisão Vessillo Monte (Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem prévio consentimento da autor.)

texto estabelecido conforme o novo acordo ortográfico da língua portuguesa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carvalho, Gilmar de Parabélum / Gilmar de Carvalho -- 2. ed. -Fortaleza: Armazém da Cultura, 2010 ISBN: 978-85-63171-06-1 1. Ficção brasileira I. Título.

10-12098

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura brasileira

869.93

Todos os direitos desta edição reservados ao Armazém da Cultura Rua Jorge da Rocha, 154 – Aldeota Fortaleza – Ceará – Brasil CEP: 60150.080 Fone/Fax: (85) 3224.9780 Skype: armazem.da.cultura Site: www.armazemcultura.com.br E-mail: armazemdacultura@armazemcultura.com.br Este livro utiliza papel que segue as leis ambientais de proteção à natureza.


Para

Juarez Barroso



“Si vis pacem, para bellum”

Ditado latino anônimo

“Só me entrego é na morte / de parabelum na mão”

Sérgio Ricardo


Sumário 11 20 24 28 32 37 42 47 52 57 62 66 71 74 79 84 88 92 95 101 106 108 111 114 119 124 129

Apresentação - O herói e seus espelhos Anunciação A descrição do firmamento O nascimento do herói Adoração dos magos Apresentação no templo A matança dos inocentes Entre os doutores Pais e filhos pródigos Entre doutores - 2 Tentações Início da vida pública O herói diante do espelho A travessia do deserto Iniciação Sobre os heróis Reza forte Os quatro cães do professor A formação do bando A aparição da mulher Paz e espada Sanfona e bandônion A primeira ceia A velha que dançou com o mandacaru A ocupação de Mossoró O delegado que virou cavalo A passagem do rei


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Em Juazeiro Perseguição pelas forças legais A casa de J. Matias Fernandes O anjo Sermão póstumo do padre Cícero O pecado solitário Réveillon Confirmação Entrada triunfal na cidade A expulsão do templo Os dias de ira As possibilidades do voo A reformulação do bando A bandeira negra A multiplicação dos pães e dos peixes Guarânia A última ceia Flagelação Tentações revisitadas No cárcere Primeiras versões para o desaparecimento do herói Versão escrita no exílio Outras versões Nova versão do rosto Últimas versões Cronologia Biografia do autor


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Apresentação *João Silvério Trevisan, um dos mais importantes escritores brasileiros, é paulista, autor de Devassos no paraíso, Ana em Veneza, Livro do avesso, entre outras obras fundamentais. Escreve também para cinema e teatro.


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O herói e seus espelhos (Parabélum e o romance pós-moderno brasileiro)

Por João Silvério Trevisan*

A década de 1970 viveu uma agitação nas artes que suportava o

ônus rebelde dos anos 60. Assim como estes não foram totalmente libertários, aquela não foi apenas reagente, mas, certamente, os 60 ofuscaram os 70. No Brasil, muitas produções do período pós sessentista restam no limbo da desmemória nacional. É o caso do romance Parabélum que, lançado em 1977, sofreu de outras duas desvantagens históricas: foi publicado fora dos grandes cen­tros editoriais (em Fortaleza), e numa edição do autor. Resultado: sofreu, por mais de três décadas, todos os tipos de ausência que um autor pode lamentar. Lido hoje, permite um resgate legítimo do período, mas também ilumina o caminho do que nos faltou – até nos depararmos com a mesmice contemporânea. De fato, durante a experiência de sua leitura é difícil não ficar boquia­berto. Aos olhos de hoje, sua explosão de desobediência e incon­formismo provoca surpresa. Naquele ponto dos anos 70, estávamos longe do trator mercadológico e dos desencantos da modernidade que nos rondam na atualidade. A liberdade criativa fazia parte do cardápio de necessidades tanto quanto o arroz com feijão. De imediato, há no ar um cheiro de iconoclastia que nos remete não apenas à antiga Padaria Espiritual cearense, mas ao frescor do pró­prio modernismo brasileiro – agora atualizado na sua fase pós. Quando, já na abertura, Parabélum se anuncia como “um projeto de romance”, esse é o primeiro dos muitos sinais de que estamos diante de uma criação pós-

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moderna, com a obra se construindo e desconstruindo ininterruptamente ante os olhos leitores. Aí se encontram evidências de um romance de paradoxos: fala-se em anunciação, em evangelho e – olho na desconstrução! – em “romance da caatinga”. Juntam-se na mesma cena o sagrado e seu processo de desvestimento, para reciclar a linguagem literária e o regionalismo. Utilizando todo tipo de arrojo, a narrativa persegue a saga mítica e parece remeter a um faroeste nordestino, para compor “um projeto de romance sobre estas guerrilhas nacionais”, nas palavras do narrador. O elemento pós não remete apenas às rupturas e esgarçamentos narrativos, mas ao embaralhamento de conceitos, típico das indaga­ções posteriores ao esgotamento da modernidade literária. De fato, o tom ensaístico inserido na ficção coloca em discussão o próprio con­ceito de romance, alargando o caminho inaugurado pelas vanguardas da primeira metade do século 20. Abre-se espaço para o romancista também pensador. E assim estamos adentrando o universo do romance ensaio: o narrador, tornado arauto do pós tudo, proclama nosso mer­gulho na crise e chega a se redefinir, ironicamente, como “o último autor” escrevendo “um texto romântico sobre o ultimo herói.” O romance anuncia o nascimento de um improvável herói libertador, que contém traços históricos de Lampião, mas pode ser um misto de Jesus, Moisés, Ícaro, Che Guevara, padre Cícero, Zumbi dos Palmares ou o Jerônimo dos folhetins de rádio e, de repente, até mesmo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Supostas passagens da vida de Lampião mimetizam-se em episódios evangélicos: depois da anunciação, adora­ção dos reis magos e entronização no templo, o herói é chamado a uma nova multiplicação dos peixes, em Juazeiro. Numa tessitura bíblica, ele se apresenta como um reticente Jesus, levado pelos pais José e Maria em fuga para a cidade grande, onde habitam uma favela, e a matança dos inocentes deve-se à fome e ao alto índice de mortalidade infantil. Ao mesmo tempo, os reis magos chegam na boleia dos caminhões, como peregrinos esperando a volta de dom Sebastião. Herói não convicto, Lampião se assume bandido e se declara consentidamente mau e perverso, em petardos de alta densidade poética: “Fui um anjo e conspirei contra o Senhor e trago um sinal de perigo impresso nas asas douradas”. Mas não se pense


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nem de longe numa biografia ou história baseada no personagem histórico. Tudo é falsificado, nesse universo de papel crepom e flores de plástico. Lampião pode se apresentar como um super-herói de HQ ou como um personagem de cordel, ao lado de Carlos Magno e dos doze pares de França. Mas pode converter-se sim­plesmente num boneco de teatro de mamulengo exibido nas praças públicas. Sua entrada triunfal de regresso à cidade natal tem ramos de oliveira sacudidos pelo povo, mas revela-se uma encenação com extras contratados para preencher a multidão. Enquanto um leão banaliza-se em mero leão da Metro, o super-herói sobrevoa a cidade com sua capa metálica e sofre de alergia à fumaça tóxica. A violência multi­plica-se até a ironia: o anjo exterminador, que aparece fugido e chei­rando mal, é violentado e exterminado. Mais ainda: Lampião, o falso herói, ora crápula, ora santo, chega a assumir a construção do próprio romance e, na condição de crítico de si mesmo, proclama a necessi­dade de ser personagem dúbio numa literatura carente de heróis. Essa é a saga de misturas heterodoxas que Parabélum arti­cula em chave pós, numa mistura desavergonhada, ao abordar o herói que é anti-herói, mas também um novo mito nascido da cul­tura de massa que invadiu os mitos arcaicos do continente nordes­tino. Assim, vai se tecendo um épico que parafraseia o bíblico a partir da aridez da caatinga. A narrativa soa na voz de um taumaturgo, e sua estilística recupera o timbre de profetas arquetípicos, em civilizações e gerações outras: “Urdiremos a teia soltando a baba como as aranhas ou escavando fossos como as formigas tendo a disciplina das abelhas.” Mas com certeza trata-se de um taumaturgo que perdeu o dom dos milagres: não consegue mais multiplicar peixes nem tirar água das pedras. Agora, as igrejas (ou governos) distribuem comida, no grande espetáculo de pão e circo. O herói já não tem mais razão de ser. A ele só restaram as dúvidas: confirma-se a fase do pós tudo. Muitas vezes a narrativa, em tom evangélico, se contrapõe a si mesma, na contramão dos fatos bíblicos – como no capítulo “A última ceia”, que se estrutura à base de negações: os pés não devem ser lava­dos, não haverá beijo do traidor, o pão não se transubstanciará nem o vinho vai virar sangue, nenhum sacramento será instituído. A própria narra-

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tiva não é parábola: a ceia mata a fome de verdade, mas é a última porque nela se servirá veneno ao herói. Na verdade, a própria ceia é uma negação de si mesma: não passa de mais uma encenação. Não se espere leitura fácil nem leveza descompromissada. Há muita aspereza nesta narrativa distante do naturalisticamente cor­reto que grassa no romanceiro contemporâneo – levantemos as mãos aos céus! Nela eclode por toda parte a mesma vocação para trans­gredir. A estrutura narrativa raramente obedece à linearidade, com idas e vindas, pulos e intromissões absurdas, num tecido mítico à base de afirmações que se negam a seguir. O próprio narrador pode se dar ao luxo de não ter certezas, “na imprecisão de nosso vocabulá­rio de poesia”, e os fatos narrados sofrem hipóteses várias. Tudo é excessivo. Os diferentes mitos se cruzam, com ecos do Ulisses de Homero e o de Joyce, consubstanciados num mesmo diapasão. Veja-se o capítulo “Entre os doutores, 2”, à base de perguntas e res­postas (que eu próprio iria usar mais tarde, no meu romance Vagas notícias de Melinha Marchiotti, tributário da mesma fonte joyciana, mas influenciado também pela leitura de Parabélum). Na construção estilística, diferentes recursos técnicos comple­ xificam o foco narrativo. Usa-se de maneira radical o discurso indi­reto livre, com muitas vozes sobrepostas. Num mesmo capítulo, o foco circula de voz em voz e o narrador em 3ª pessoa recebe intro­missões em 1ª pessoa: dos reis magos, de uma Medeia intempestiva ou do herói várias vezes transmutado. Em diversos episódios da vida de Lampião, o personagem toma de assalto o discurso do narrador e refaz parte do relato em voz pessoal. A sintaxe é então dilacerada, podendo criar dramaticidade nas rupturas: “porão inimizade entre a serpente e sua descendência que também significa os que têm olhos e apesar e os que têm ouvidos e que no entanto e os que têm boca”. Cria-se uma fragmentação que remete aos romances mais ferozes do alemão Hubert Fichte, especialmente Ensaio sobre a puber­dade, de 1974 (que só chegaria ao Brasil na década seguinte). Mas o texto pode também adquirir uma elegância convicta e clássica, ainda que indomada, por sua intrincada elaboração discursiva e grande densidade poética. Confirma-se a cada passo tratar-se de um


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“romance da linguagem”, que traz ressonâncias de outro ícone da moderna literatura brasileira: Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. O texto é invadido por todo tipo de contaminação. Citações de jornais da época de Lampião são inseridas no corpo da narra­tiva, sem indicação, como parte da costura ficcional – às vezes dei­xando evidência apenas na grafia antiga, como no capítulo “A pas­sagem do rei”. A complexidade se adensa com uma saraivada de referências culturais. Até citações cinematográficas interferem na narrativa: “a câmera acompanhou meu passeio (traveling) e minha reflexão”. Comparece o grande western sertanejo de Glauber Rocha, em composições eisensteinianas, mas também Godard dá as caras: abaixo o espetáculo barato de uma historinha com começo, meio e fim. Lampião confessa que matou um pai de família, mas não foi ao cinema, como no filme de Júlio Bressane. E um revolucionário conta que aprendeu a assaltar bancos depois de ter visto a peça O assalto, de José Vicente, famosa na época. O disparate faz parte dos recursos ficcionais: no capítulo “Perseguição pelas forças legais” detalha-se a ocupação inexistente de uma cidade por Lampião, e uma batalha é narrada sempre no condicional, deixando claro que a luta nunca ocorreu – talvez numa irônica referência à mítica compulsória da insurreição nordestina, na tradição euclidiana. Se o herói é incerto, quem seria o narrador? “Sou Jeremias deste império. Vim aqui demarcar os limites do meu não-ser e cho­rando procurar o herói”. Muitas vezes o narrador assume o próprio papel do herói, ora um Che Guevara andarilho pelo continente, ora um Luís Carlos Prestes em sua grande marcha nacional, no anseio de expulsar os vendilhões do templo capitalista. Nessa condição, articu­lam-se supostas conspirações políticas, que mimetizam ironicamente as posturas antiimperialistas da década de 70: os mercadores do templo são os colonizadores do Terceiro Mundo. Naqueles dias de ira, o narrador-herói participa de batalhas de rua contra a polícia, ati­rando coquetéis molotov e correndo das bombas de gás lacrimogê­neo, ou cantando de mãos dadas “quem sabe faz a hora”. Mas não se tome nada ao pé da letra: o bando revolucionário se desfaz e foge, como uma caravana de “artistas perplexos perseguindo Aquarius”, ou melhor, a estrela do oriente. A caravana torna-se uma escola de samba e é negra a bandeira do abre-alas. No

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lugar da pistola parabelum, “empunharam uma guitarra dissonante”. Surgem ecos do tropicalismo, e parece ouvir-se a voz de Mário de Andrade conclamando Macunaíma a integrar o grupo dos novos bandeirantes que partem de uma outra São Paulo, através de um Tietê carregado de esgotos e não mais em busca de esmeraldas, agora fabricadas sin­teticamente. O desbravador Fernão Dias “agoniza e olha o céu de nossa desesperança”. Enquanto Barrabás é libertado num programa de auditório, faz-se a pergunta: “E não lutávamos pela instauração de uma nova ordem?” Sente-se no ar a revolução e ao mesmo tempo a nostalgia dela, numa celebração da inocência para sempre perdida, porque para os personagens “o oriente é não ter horizonte”. Assimilou-se a ideia da morte como um ritual de libertação. De novo, ecos de Caetano Veloso: “Não temos tempo de temer a morte.” Claro que, em se tratando da década de 70, o escracho com­parece em grande estilo, enchendo o romance de disparates e bufo­narias. Oswaldianamente, o personagem esculhamba a si mesmo e ao seu criador. Incorpora o crítico iconoclasta e analisa duramente a obra que está sendo escrita: ironiza as pretensões do autor e reclama da estrutura que “rompe com toda a lógica e com a crono­logia, num romance sem clímax e sem carpintaria”. Classifica o livro como um amontoado de “grafites desesperados”, de malaba­rismo verbal pretensioso, que cai “no conto da metalinguagem”. E tudo isso – ironiza ele – apesar dos seis anos de psicanálise. Parabélum persegue uma estrutura polifônica. Com sua cas­cata de referências das mais diversas áreas, cria um fluxo narrativo em que os fatos se acumulam livremente, muitas vezes sem se encadearem, conduzidos apenas por uma lógica “mítica”. E é isto o que mais importa: tecer a mitologia de um Nordeste imerso nas contradições entre o arcaico e o moderno – numa espécie de superação de Os sertões. De modo que em Parabélum se evidencia aquilo que Joseph Campbell flagrou de modo iluminado: são os poetas que criam os mitos da atualidade e os acrescentam aos mitos arcaicos. Pode-se dizer que, para além da litera­tura, Gilmar de Carvalho tece uma sofisticada teia antropológica. No seu desenlace, a narrativa abre-se num leque de inúmeras versões para o desaparecimento do herói – que, entre outras, pode ir parar


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num terreiro de umbanda ou desfilar num concurso de fantasias de carnaval (na categoria “originalidade masculina”) com o chapéu de cangaceiro e a parabelum de nove tiros. Seu paradeiro gera especulações, por se tratar de um herói multifacetado: “meu rosto é um espelho que reflete todos os rostos que foste capaz de ver”. No final, tudo se revela um falso épico, e o escracho assume a cena, com a apresentação de um hilariante inventário negativo da história até a década de 70. Assim, nosso herói não foi Lampião, não desfilou no bloco de Madame Satã, não destruiu Hiroshima, não disputou o título de Rainha do Rádio, não foi baleado em Dallas, não fez parte da Jovem Guarda e nem dirigiu O cangaceiro. Ou seja, algo que faria inveja ao Oswald de Andrade de Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João Miramar. Parabélum é um romance para paladares literários apura­dos, capazes de sincronizar seus inúmeros momentos de epifania. Seu percurso está marcado por minas explosivas: o leitor precisa pisar com cuidado, bem em cima do pino detonador, para saborear as explosões poéticas constantes, de caráter sempre imprevisto. Trata-se de um romance guerreiro, que investe contra as regras da literatura regiona­lista e recodifica a linguagem. Não por acaso o personagem proclama: “estou sempre lutando, embora digam que a causa é perdida”. Como signo máximo, remete-se à pistola de Lampião: uma parabelum 97, fabricada em 1918, referenciada ao provérbio latino: si vis pacem, para bellum (“se queres a paz, prepara a guerra”). Quer dizer, uma arma histórica, com vocação profética e carisma revolucionário para ins­taurar a quebra de parâmetros – tal como o jovem camponês nor­destino que um dia se rebelou contra o assassinato do pai e virou cangaceiro. A pistola metaforiza a missão do escritor, considerando que “a função da literatura é tirar o sono”, como diz o narrador. Não se tenha dúvida: com Parabélum, Gilmar de Carvalho instaurou um verdadeiro “ovo da serpente” contra o conceito (para consumo) de “literatura nordestina” mas também no seio da litera­tura brasileira em geral. E o que aconteceu com ele desde então? Nada. Não por problemas do ovo, mas por mera omissão do abomi­nável homo culturalis brasileiro que já cansamos de ver sabotando a história deste país não através da calúnia ou do mal-entendido mas simplesmente do silêncio.

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Pouco se procura, menos ainda se revela, pois o conformismo nacional prefere repetir à exaustão as obvieda­des consagradas e os medalhões. Ouçam o silêncio pesado da histó­ria literária do Brasil e verão cadáveres empilhados de obras-primas que foram sufocadas. Como é o caso deste Parabélum. Gilmar de Carvalho usava o dom da profecia, quando soltou o grito de uma geração: “Dirão que somos românticos porque somos insensatos e imolamos nossa juventude”. Ou, mais ainda: “O rapaz morto sou eu quando esquecerem meu nome na crônica desses dias de ira.” Agora, Parabélum ressuscitou em sua terceira década de ausência. Está de novo ao alcance dos eleitos – para “cantarmos hosanas diante da bandeira negra”. O leitor que mergulhar nesta aventura descobrirá que foi escolhido para uma das mais radicais experiências da literatura brasileira contemporânea. Estou falando de literatura como forma de desassossego. E por acaso haveria outra vocação possível para a verdadeira literatura, aquela compro­metida com a Poesia?


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Anunciação

Era uma vez e aquela seria a região onde nasceria o homem, per­

sonagem e fio condutor desta narrativa. A tessitura destes relatos pretende ser um projeto de romance. Ou um evangelho, poderão dizer. Um romance da caatinga apesar de todas as denúncias e do filão mesmo, segundo os críticos. É necessário pôr um radinho de pilha na história e reciclar a linguagem de uma literatura que se pretende enraizada na alma vertical de um povo não escolhido. Qual o sentido da figura do libertador? Catalisação das promes­sas ou cansaço de luta. O libertador se consubstancia no gesto grandi­ loquente de personagem de história tal como escrita nos compêndios adotados pela rede oficial de ensino. Foi assim que aprendemos a glo­ rificar os heróis e a decorar as datas. Porque cada fato aconteceu num dia preciso e determinado e esses dias são feriados. Mas um drama­turgo alemão já falou sobre heróis e países e da necessidade de colocá-los sobre o pedestal, etc., no texto de uma peça distanciada. O libertador: como se uma pessoa pudesse carregar e detonar o processo ainda no tempo de um culto à personalidade que já começa a dar sinais de cansaço. Somos as últimas estrelas. Escrevo o último livro sobre um herói e sou o último autor. Heróis e histórias serão coletivos.


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Não foi a princesa Isabel quem libertou os escravos? Hoje ela é samba-enredo e destaque de um carnaval apoteótico. Por que o libertador não pode ser um só? Como nas sagas. Este é um texto romântico sobre o último herói. Galante & guerrilheiro ou uma canção de amigo. Levar a palavra às últimas consequências e anunciar que esta é a região da crise. As profundas contradições levam a crer que aqui explodirá o movimento. É preciso estudar a região e mantê-la sob controle. A libertação é uma fantasia e muitos libertadores já foram escolhidos antes. Também: a esperança de libertação poderia ser uma artima­nha para manter o jugo. E catalisar o potencial de agressividade. Exemplo: a violência nos grandes estádios e os três dias de fuga. Esperar pelo libertador pode ser uma maneira de nada fazer e jus­tificar. Mas quem vai restaurar o reino e expulsar o invasor? Uma questão de interpretação. Nós é que devemos formar os que farão a exegese e a leitura das escrituras. O que temos a nosso favor é a clareza da profecia que fala daquele que vai nascer e será rei, o prometido. E se é um que vai nascer, convém esperá-lo e não apressar a detonação. Ele estará sendo gerado? Ou então podemos anunciar um nascimento por ano. E depois desmasca­rar o usurpador do trono e da esperança de revolução. Se conse­guirmos provar a falsa identidade, a fragilidade e o embuste, lan­çaremos o povo contra o escolhido num espetáculo anual de linchamento e crucificação. É necessário que o povo espere. As profundas contradições se aliam ao rigor das condições climáticas, etc. Geralmente eles buscam duas saídas. Mas é preciso reforçar o caráter cordial do homem deste país e insistir que as mudanças têm sido feitas sem derramar o sangue preservado da anemia no Santo Graal. (Exames feitos por laboratórios altamente especializados provaram que é sangue e não tinta o que jorrou da chaga no ombro da estátua. E, portanto, fomos idólatras.) Pergunta: quais são suas esperanças. Resposta: a salvação eterna. O enigma é o paradoxo porque o povo esperava uma redenção. Curioso falar de outra vida quando nos falta pão à mesa. Chega até a ser ironia

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se estamos condenados e nos vêm falar de morte como se fosse libertação. Mas então era pra isso que viria o libertador? Os romanos estão dentro de nossas casas e já comemos nos triclínios o pão ázimo e dormido. O libertador foi prometido quando da queda, dizem. Ele é aquele que vai redimir e conduzir o povo. As molduras aguardam impacientes o rosto do novo herói. Entronizaremos o ídolo nas salas de jantar e lavaremos nossas mãos. Depois diremos, ai de ti e daremos as costas para a cidade assassina. Ou se virássemos estátuas de sal não poderíamos escre­ver sobre essas coisas e sobre o que virá depois. Porque se cumpriu o ciclo e é chegado o momento de anunciar o personagem. Ele virá e, depois da morte, voltará. E desde que uma serpente tentou a mulher e fomos expulsos de um jardim de parábola esperamos. Porque sucessivos profetas anun­ciam. E não é bom que estejam fazendo previsões sobre o desen­cadear da violência ou reafirmando a inevitabilidade da luta armada. Um dia o povo desmascara a promessa e elege um con­dutor pondo por terra o sonho de um libertador. Uma possibilidade: a de ele chegar e já ter sido, como um sonho. Ou de não ser reconhecido e aceito e como tal figurar nos livros e na tradição oral como promessa não cumprida. Ou como a eterna expectativa e para isso examinariam cada criança e seriam preenchidos tantos livros A vida do bebê quantos fossem os frutos. E acompanhariam cada trajetória para adivinhar a linha torta da rebeldia e insubmissão. E assim detectar a liderança porque na ver­dade o libertador era miragem e fogo fátuo e impostura. Um libertador que possa saciar nossa fome de libertação. A que nós nos comprometemos: a reinventar a vida e pautá-la segundo as escrituras. Porque a missão daquele que vem depois é testemunhar e confirmar o que foi previsto. E o que foi previsto: um libertador anunciado seria concebido de acordo com os ideais de cavalaria. Um dos doze pares de França, personagem de um romance e disposto a lutar por seu povo. Escudo, lança e rosa vermelha, guerreiro. Outra possibilidade: o libertador seria a reencarnação de um rei sumido nas areias do deserto na luta contra os mouros, cristão.


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Encantado (aprisionado) sob as dunas ou nas formações rochosas, seu castelo. Ainda: o rei bondoso. O povo jura que viu um anjo sobrevoando a cidade e cantou. O Senhor fez em mim maravilhas, esse o salmo. O anjo teria anunciado que uma virgem daria à luz um menino num programa de televisão. Mas como, se eu não conheço varão? Os médicos não tardaram a explicar um tipo de gravidez muito raro. Naquela tarde foi composta uma ora­ção depois muito difundida na língua do invasor daquela nação. O anjo teria errado de cidade ou feito uma aterrissagem for­çada. Ou todo aquele povo teria sonhado com a anunciação porque era época da semeadura e o chão precisava de uma semente de vida. Segundo versículo – Um homem descreveu nos limites de sua casa a chegada de um anjo. E fugiu da paternidade futura em nome do milagre e da promessa passada. O libertador é o que não foi gerado. Mas não digais essas coisas até o instante da ressurreição. O povo temeu cada gemido e se cobriu de cinza ante a ame­aça do aborto. Cada criança era um redentor nos sonhos. E gêmeas seriam as duas cabeças da cobra esmagada no jardim. Que ainda rasteja por este mesmo chão de decadência. Os romanos estão dentro de nossas casas e substituíram nosso deus por estatuetas de gesso, réplicas das esculpidas em mármore. E passamos a adorá-las e em seu nome compusemos cânticos heréticos. Sabemos que não nascerá o menino que geramos. Porque o inva­sor escolheu dentre os nossos para prepostos e também porque teme­mos a libertação. Passar-se-ão séculos até que se cumpram as escrituras e possamos retirar o arame farpado que foi a coroa do flagelo. Qual o sentido de um personagem múltiplo? Impossibilidade da síntese ou o herói descreve todas as trajetórias possíveis. Ou então é de um herói coletivo que queremos falar e desde já o anun­ciamos em todas as línguas. E ele está dentro de cada um de nós e se éramos estéreis. Agora, geramos uma possibilidade de luta. O que se pretendeu: anunciar um caminho que se vai preparar.

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A descrição do firmamento

Eu temi a noite porque senti o peso das estrelas e no escuro tentei

conquistá-las. Um dia me ensinaram: orientação pelas estrelas. Mas eu só me perdi de ti quando fora dos limites da cidade imaginei o planetário reduzido a uma bandeira de cetim. E também quando J. Matias Fernandes enunciou o nome dos planetas conhecidos e os planetas eram: Lua, Estrela de Davi, Estrela da Manhã, Marte. Uma laranja e uma chama exemplificavam os movimentos, a terra do sol. Copérnico revisited: o mestre apreendeu o sentido de uma estrela numa gota de lágrima. E contestou a proposição heliocêntrica. A terra é um paquete, o mestre falou que nunca tocará em nenhum porto. E traçou um oito horizontal no terreiro da casa, o infinito da navegação. E disse que o vento inflava as velas na impossibilidade do itinerário. Ou que a nau insensata obedecia a um farol intermitente: o sol e seus raios fúlgidos. Nos perfilamos para o hino nacional no desfecho da lição de astronomia. Era preciso saber a posição dos astros e antecipar a previsão para o amanhã e revestir de brilho a definição ambígua do agouro. Por exem­ plo: amanhã um homem partirá sem rumo e sem retorno. Também a estrela se esqueceu de pousar sobre a casa no instante da morte que é o


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início de um ciclo de desfazimento e retomada do adubo nas margens de um rio seco. As casas que ocupamos e o perigeu no declínio da traje­ tória. Soprará um vento de terra e o grão se alojará no olho esquerdo. Na schola, o mestre aprendeu que o eclipse é um instante de tédio e que uma estrela cai quando se lança ao abismo e à aventura de alternar caminhos e rotas. J. Matias Fernandes apontou para Pólux e a verruga cresceu na extremidade do dedo indicador. A noite era um esfarinhado de brilho como os cacos de um espelho que se quebra na antevisão de um rosto partido. Os olhos do mes­tre também faiscavam de medo porque ele ousara abrir as portas de uma odisseia de noites incontáveis. A lente se ajustou ao meu olho direito e explodiu a cintila­ção. Talvez eu me reencontrasse nas nebulosas ou a Via Láctea informasse que a redoma fora partida e que a estrela não se espeta na abóbada do negror. Eu me enrosquei nos anéis de Saturno e naveguei no espaço comum do sonho como asteroide. Porque o signo de salomão era uma estrela e pendia sobre o meu peito como tantas vezes eu pendi sobre o teu corpo que era uma constelação e precisei como uma persa o decanato do teu sofrimento. United Flying Object: disse a Maria Preta que dentro dos dis­cos vêm os homens chamados kung fu. Eles imitam os filmes de fic­ção científica e rodopiam metálicos nas proximidades de Redenção conforme saiu na tevê. E chupam todo o sangue da gente como morcego-vampiro. E também dão gargalhada de bruxa e têm só um olho e uma espingarda. E queimam o corpo todo e ainda deixam uma tatuagem na palma da mão: uma estrela de seis pontas. E toda casa tem um anjo na porta para impedir o extermínio e o pesadelo. As estrelas formam um labirinto com múltiplas saídas, disse o professor. Uma delas é o teu coração, uma chama e o fio que te conduz por esta vida inconsequente. Uma estrela marcou o início da idade de peixes. Quantas estrelas indicaram o aquário? Um ponto de luz no recorte do teu olho, faísca. A esperança da captura. Lança tua rede e pesca o Cruzeiro do Sul ou traça um mapa do que consegue desvendar teu olho principal. Saiba que são grãos de areia da tua descendência neste espaço que transtorna tua compreensão. O infinito é a medida que o homem não manipula com a sonda de sua percepção. Nenhuma fantasia é capaz

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de contorná-la e envolvê-la como presente e papel de celofane. Ele é continente e conteúdo na dimensão da loucura. Refaça sua lógica e seus limites de homem. Ultrapasse o contorno de sua razão concatenada, cruze a fronteira e o escorpião dará o bote do sonho provável. Em que percorreremos a estrada de Santiago, o leite derramado que não chora­ remos em cada gota que floresceu e se tornou estrela de conto de fadas ou o alimento negado a Júpiter. Navegaremos por este céu, disse o professor, enquanto polia a esfera armilar sobre a plata­forma dos voos imaginários. Herschel, por exemplo, foi o Colombo e não partiu de Palos com o sextante e o círculo mural do êxtase e do medo. Mas traçou novas cartas ou com o olho desarmado é possível detectar o contorno da teia com que tentam me envolver e me capturar. Essas coisas disse o professor escancarando a boca e me mostrando um céu sem estrelas na noite das palavras e das metáforas. Antes tínhamos escalado a imaginação e transposto o meridiano permitido para a especulação sobre as estrelas. Você pede que eu fale sobre as estrelas. O mestre me entregou um caleidoscópio. E eu compreendi que poderia ter tantas estrelas quanto quisesse porque bastava girar o cilindro de cartolina e dentro da face das três lâminas de cristal engendraria uma galáxia. E tam­bém eu perguntaria como situar um personagem sob um céu todo estrelado? Ou o que fazer diante de um céu que me extasia e capitulo porque não sou capaz de amar. E de entender e ouvir estrelas de um poema parnasiano. E também de arquitetar este móbile de equilíbrio que se fez a si mesmo. Até que na revisão da mitologia as estrelas fossem espermatozóides de uma polução noturna de um herói abis­mado com o escuro desta rotunda. Ou a divagação de um escritor que se recusa a impor a seus personagens um cotidiano sem fuga. As luzes da cidade podem ser estrelas. É um planetário às aves­sas, disse o professor e me conduziu até o alto da torre. Estrelas suspen­sas em postes de concreto que formavam uma constelação disforme. Poderíamos compensar a falta de estrelas com fogos de artifício por­que precisamos da noite. E assim prepararíamos um cenário de fic­ção e de ciência. Lembre-se que as estrelas serão arrastadas no apo­calipse e se precipitarão sobre a terra e uma delas: Absinto, a que torna as águas amargas. Essas coisas estão escritas, disse o profes­sor. E me negou a


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luneta e ameaçou ferir meus olhos e eu me imaginei reinando sobre Tebas e na escuridão depois do monó­logo. Então, ele me ofereceu um microscópio e eu enumerei as outras estrelas e compreendi que o infinito cabe nos limites de um átomo. Essa é a nova astronomia ou a parábola da nossa descendência. No início foi criado o luzeiro e depois o observatório. Destrinchamos, geômetras, as relações de causa e efeito até que alguém se propôs a desencadear a sucessão dos crepúsculos. Um dia na vida pode ser a odisseia de incontáveis dias na proposta de uma cronologia a partir da conquista. Içamos o luzeiro como a luminária mágica e elegemos o cometa: facho e apoteose de uma circum-navegação. Ou miragem e inconsistência de gases como um pavão de espelhos. Forçar um personagem a refletir sobre sua condição a partir da observação de um céu de anil. E a questionar sobre a imutabili­dade desse sistema diante do transitório de uma inquisição sem­pre renovada. Imaginar uma terra estática no moto-contínuo das órbitas e da engrenagem de rodas dentadas. O se saber não-centro e esperar a próxima alvorada ou adiar a serenata de uma conquista ansiosa. Também o saber que o homem é capaz de refletir e conhecer essas relações e descobrir os mundos. Precisar distâncias e compreender grandezas. E também ida­des em função do brilho. É necessário que recorramos às lentes que nos despertam para uma realidade: põem fim à névoa. Como a areia e o cuspe do milagre abri os olhos e dei graças. Até que me falaram dos cemitérios de estrelas e dos séculos que dura o esmaecimento da luz até que sejamos informados de que. O firmamento não se des­creve como não se descreve um corpo na eterna mutação de corpos e células. E na imprecisão de nosso vocabulário de poesia.

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O nascimento do herói

O herói nasceu na noite, como no escuro se revelam fotogra­

fias. E a película banhada nas imersões de sais dos livros antigos de alquimia ganhou contorno e a face do herói seria impressa no escuro e se não fosse o escuro aquele filme teria sido velado. E não se mostraria agora a barba do herói. E também no escuro a câmera foi aberta e só no escuro subsistia aquele segredo. De um instante do homem que se captou, estático. Muito antes de o herói nascer se fizeram sentir os primeiros sinais naquela casa. Alguém viu um anjo rondando a porta e nin­guém sabia se era a anunciação ou o extermínio do primogênito ainda no ventre. Inútil o anúncio se as trombetas estavam enferru­jadas e se as carnes da mãe não escondiam o fruto. O filho boiava no quarto escuro e todos sabiam que uma criança nos seria dada. O filme documentava o corpo do herói e os andrajos e a selva. E seu rosto estava picado e os ferrões dos insetos desfigura­vam seu rosto de anjo. O herói tinha uma boina que poderia ser marrom. Que a cor fica por conta da policromia das primaveras que antevemos. E um close mostrava a região perfurada e estilha­ços de sangue ou a carne dilacerada. Como sua mãe exausta e o último vestígio de dor antes do nasci-


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mento e as carnes também estavam dilaceradas. Mas agora era a morte numa folha de jornal e na área da fotografia esmaltada: dezoito por vinte e quatro centí­metros quadrados de traição. A mãe teria cantado hosanas. Que filho nascerá do meu ven­tre? Nascerá um herói que vai combater moinhos de ventos, como Quixote. E sua Dulcineia será o continente. E padecerás muitas dores. Sete espinhos de cardeiro transpassarão teu coração como a uma almofada de renda. E tu te encontrarás com ele no documen­tário exibido pela televisão, um levantamento da vida do herói. Uma canção será composta e falará de frutos e folhas. E um dentre nós escreverá sua vida, segundo um evangelho que ele não soube e foi o luto que inspirou estas coisas que estão sendo escritas. No princípio havia toda a clareira e o acampamento. Porque o herói era também cigano e pandeiros com moedas e fitas eram sinais de suas andanças nas vísceras quéchuas de serpentes. E as trilhas des­ciam dos cumes gelados e se perdiam na água, nas águas. O Senhor fez em ti maravilhas, mulher. E sofres as dores que outras teriam afastado como o cálice. E na banca de revistas con­templarás teu filho morto e não poderás retirá-lo do cadafalso. Em que latitudes escondem seus despojos? És a Pietà negada e sofres tua dor sozinha, se não quiseres também sumir na madrugada da espera. Teu marido tinha por ofício lavrar madeiras e derrubar toras de árvores seculares, devastando as florestas onde o filho seria abatido. Não foi dele o lírio que floresceu no teu útero? Como, se eu conheço varão e se meu homem deseja meu corpo e se eu aceito (o macho e também o corpo) e se nos encontramos na cama e se somos feras (legião é o nome secreto do prazer) e se o fogo nos arde e não nos consome antes do explodir? Contrário ao número dos habitantes do lugar, virão homens de longe. Anos depois esses homens catarão teu filho na selva e convencerão os fracos para que o delatem por trinta dinheiros. Espalharão mentiras e tramarão nas cortes. A estação de rádio diz sobre a marcha e não chegou o momento da morte. Antes é preciso capturar o diário da campanha e saber dos seus passos que o heli­cóptero já informou e sobrevoa a copa das árvores. E batem a cla­quete: a morte do herói. E as últimas palavras não foram ditas nem forjadas como as de persona-

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gens das tragédias de teatro porque o herói era humano. E gemeu no último instante. Não encontrarão lugar para dormir. É sempre assim no tempo das romarias quando os caminhões trazem muita gente de todo lugar e a cidade arma-se como um circo de lonas e muitos acampam. Enquanto outros alugam cômodos nas casas desertas. E vocês ficaram no meio da noite, no escuro. O herói esteve no escuro do quarto. E foi mais um varão encontrado e contado pois a des­cendência do homem será numerosa como as partículas do átomo. E a fome exterminará a décima parte e será cruel como a tortura. O flagelo será o abandono na selva. E os espinhos que ron­dam teu corpo te coroam? Rei dos homens que se levantam e erguem sua voz nos muros das lamentações e empunham armas e avançam no cerco, nas trincheiras da indiferença. Mil vidas tives­ses? Um sinal no céu teria indicado teu nascimento, uma conjun­ção de sol e lua plena. Anos depois o herói contemplaria um eclipse e acompanharia com medo a evolução do círculo de som­bra sobre a superfície refletida de luz. Catorze países são as estações de tua via-crúcis. Transpuseste os limites da retaliação e do drama comum. Dividiremos este conti­nente para que ele sucumba, elos soltos de uma cadeia de séculos. E Tordesilhas traça o meridiano da primeira conquista que outras virão e padeceremos no deserto. O herói vislumbrou a promissão e era o homem que deveria assumi-la. Porque outros heróis nasceram antes dele em noites escuras. E outros heróis morreram esquarteja­dos em páginas de romantismo e de história e se há necessidade de heróis que seja esse o nosso. E o nome do homem morto quem pre­cisará enunciar diante do mundo? Seu rosto depois esteve nos pos­terpoemas e impresso em silk-screen nas camisas brancas. Até que a polícia vasculhou os supermercados e as gráficas clandestinas em busca da matriz daquele ultraje. E nas catacumbas encontrou o nome do herói e um símbolo registrado nas paredes, o signo de salomão e a palavra de ordem: a um herói não se mata impunemente. A morte do herói foi anunciada muitas vezes, e aquele filme que passaram na televisão e aquela foto publicada pelo jornal pode­riam ser truques. E um sósia do herói poderia ter sido morto. Porque ao povo


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não foi dado o direito de escolher Barrabás e o carrasco não lavou as mãos antes do aplauso. O herói é o fruto dilacerado e a semente da violência plantada no cume da cordilheira-espinhaço. Porque um herói renasce dos índices e vence as interdições e ao terceiro dia revive na memória de seu povo e nas histórias e cantorias.

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C Francisco Sousa

Biografia do autor Gilmar de Carvalho


Nasceu em Sobral (1949), Ceará. Dois anos depois, mudou-se com a família para Fortaleza. Estudou com os jesuítas. Prestou vestibular para direito (Universidade Federal do Ceará, UFC), em 1967. Outro vestibular, em 1969, o levou ao Curso de Comunicação Social da UFC. Foi quando começou a fazer literatura. Nesse mesmo ano, foi levado pela jornalista e professora Adísia Sá para escrever crônicas no jornal cearense Gazeta de Notícias (1927 / 1972). Estreou com Pluralia tantum, em 1973, apresentado por Juarez Barroso e Mário Pontes. Parabélum, primeiro e único romance, viria em 1977. Depois, publicou Resto de munição (1982); Queima de arquivo (1983); Buick frenesi (1984); e Pequenas histórias de crueldade (1987). Teve quatro textos para teatro encenados pela Cooperativa de Teatro e Artes e pelo grupo Balaio, todos com direção de Marcelo Costa. Ingressou no magistério superior em 1984, na UFC, e foi cuidar de sua produção acadêmica, deixando de se dedicar à literatura e ao teatro.




O texto desta obra está conforme o Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa (2008). Este livro foi composto em Minion, corpo 12/15. O miolo foi impresso em papel pólen soft 80g/m2 e a capa em papel triplex 350g/m2. Editado pelo Armazém da Cultura em 2011. Impresso pela Gráfica LCR.




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