Desenvolvimento Sustentável, Democracia e Política Exterior num Mundo em Transformação

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Jamile Bergamaschine Mata Diz Jorge Lasmar Liziane Paixão Silva Oliveira (Organizadores)

Desenvolvimento Sustentável, Democracia e Política Exterior num Mundo em Transformação AUTORES Amael Notini Moreira Bahia Anderson Vichinkeski Teixeira Bárbara De Cezaro Beatriz Souza Costa Clara Cardoso Machado Jaborandy Daniel Amin Ferraz Danny Zahreddine Fábio Albergaria de Queiroz Fernanda R. P. de Moraes

Guilherme Di Lorenzo Pires Guilherme Lopes da Cunha João Paulo Allain Teixeira Jorge M. Lasmar Leonardo Coelho Assunção Santa Rita Liziane Paixão Silva Oliveira Lucas Carlos Lima Marcelo M. Valença Maria Luiza S. Batista

Marinana Andrade e Barros Monique Sochaczewski Peterson Ferreira da Silva Raquel Fabiana Lopes Sparemberger Rashmi Singh Renata Mantovani de Lima Valmir César Pozzetti


Desenvolvimento Sustentável, Democracia e Política Exterior num Mundo em Transformação



JAMILE BERGAMASCHINE MATA DIZ JORGE LASMAR LIZIANE PAIXÃO SILVA OLIVEIRA (Organizadores)

Desenvolvimento Sustentável, Democracia e Política Exterior num Mundo em Transformação

Belo Horizonte 2021


CONSELHO EDITORIAL Álvaro Ricardo de Souza Cruz André Cordeiro Leal André Lipp Pinto Basto Lupi Antônio Márcio da Cunha Guimarães Antônio Rodrigues de Freitas Junior Bernardo G. B. Nogueira Carlos Augusto Canedo G. da Silva Carlos Bruno Ferreira da Silva Carlos Henrique Soares Claudia Rosane Roesler Clèmerson Merlin Clève David França Ribeiro de Carvalho Dhenis Cruz Madeira Dircêo Torrecillas Ramos Edson Ricardo Saleme Eliane M. Octaviano Martins Emerson Garcia Felipe Chiarello de Souza Pinto Florisbal de Souza Del’Olmo Frederico Barbosa Gomes Gilberto Bercovici Gregório Assagra de Almeida Gustavo Corgosinho Gustavo Silveira Siqueira Jamile Bergamaschine Mata Diz Janaína Rigo Santin Jean Carlos Fernandes

Jorge Bacelar Gouveia – Portugal Jorge M. Lasmar Jose Antonio Moreno Molina – Espanha José Luiz Quadros de Magalhães Kiwonghi Bizawu Leandro Eustáquio de Matos Monteiro Luciano Stoller de Faria Luiz Henrique Sormani Barbugiani Luiz Manoel Gomes Júnior Luiz Moreira Márcio Luís de Oliveira Maria de Fátima Freire Sá Mário Lúcio Quintão Soares Martonio Mont’Alverne Barreto Lima Nelson Rosenvald Renato Caram Roberto Correia da Silva Gomes Caldas Rodolfo Viana Pereira Rodrigo Almeida Magalhães Rogério Filippetto de Oliveira Rubens Beçak Sergio André Rocha Sidney Guerra Vladmir Oliveira da Silveira Wagner Menezes William Eduardo Freire

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora. Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2021. Coordenação Editorial: Fabiana Carvalho Produção Editorial e Capa: Danilo Jorge da Silva Imagem de Capa: Moshe Harosh (Pixabay.com) Revisão: Responsabilidade do Autor 338.981 D451 2021

Desenvolvimento sustentável, democracia e política exterior num mundo em transformação /[organizado por] Jamile Bergamaschine Mata Diz, Jorge Lasmar [e] Liziane Paixão Silva Oliveira. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021. 315 p.

ISBN: 978-65-86138-60-3 ISBN: 978-65-86138-66-5 (E-book) Vários autores.

1. Desenvolvimento sustentável. 2. Democracia. 3. Política exterior. 4. Sustentabilidade ambiental. 5. Pandemia – Covid-19. 6. Relações internacionais. 7. Ordem internacional – Pós-Covid-19. I. Diz, Jamile Bergamaschine Mata (Org.). II. Lasmar, Jorge (Org.). III. Oliveira, Liziane Paixão Silva (Org.). IV. Título.

CDD – 338.981 CDU – 338.1(81) Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700

Matriz Av. Nossa Senhora do Carmo, 1650/loja 29 - Bairro Sion Belo Horizonte/MG - CEP 30330-000 Tel: (31) 3031-2330

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Autores

AMAEL NOTINI MOREIRA BAHIA É acadêmico de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, com período de estudos na Université de Paris I – Pantheón Sorbonne. Membro pesquisador do Stylus Curiarum – Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais UFMG/CNPq. Contato: amaelnotini@hotmail.com ANDERSON VICHINKESKI TEIXEIRA Doutor em Direito pela Universidade de Florença/IT. Pós-Doutor em Direito Constitucional pela mesma Universidade. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Membro permanente do Colegiado de Docentes do Doutorado em Direito da Universidade de Florença/IT. Membro agregado internacional do Instituto Multidisciplinar Alimena da Universidade da Calabria/IT. Professor visitante do Instituto de Ciências Jurídicas e Filosóficas da Sorbonne. Membro Permanente da Association Française de Droit Constitutionnel. Professor visitante da Universidad de la Republica do Uruguay e do Mestrado em Direito das Relações Internacionais da Universidad de la Empresa/Uruguay. Advogado e consultor jurídico. BÁRBARA DE CEZARO Doutoranda em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bolsista CAPES. Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Professora de Direito das Faculdades Integradas São Judas Tadeu/Porto Alegre e da Uniritter/ Porto Alegre. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RS. Advogada. BEATRIZ SOUZA COSTA Pós doutora em Direito pela Universidade de Castilla-La Mancha/Espanha; Doutora em Direito Constitucional pela UFMG; Mestrado em Direito Constitucional pela UFMG. Pró-Reitora de Pesquisa da Escola Superior Dom Helder Câmara e professora do PPGD da ESDHC. CLARA CARDOSO MACHADO JABORANDY Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Professora do programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado em Direitos Humanos da UNIT. Líder do Grupo de Pesquisa – Direitos Fundamentais, novos Direitos e evolução social. CNPq. VII


DANIEL AMIN FERRAZ Mestre em Direito Empresarial, Universidade de Coimbra, Portugal; Doutor em Direito Internacional, Universidad de València, Espanha; Pesquisador Convidado, OMC – Organização Mundial do Comércio, Genebra, Suíça, 2004; Professor Titular PPGD UniCEUB, Brasília, DF; Advogado. DANNY ZAHREDDINE Diretor do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas. Doutor em Geografia pelo Programa de Pós Graduação Tratamento da Informação Espacial (PUC Minas) e professor do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais (PUC Minas). Líder do Grupo de Pesquisa Oriente Médio Magreb – CNPq (GEOMM). FÁBIO ALBERGARIA DE QUEIROZ Doutor em Relações Internacionais - Universidade de Brasília (UnB) e Professor Adjunto da Escola Superior de Guerra (ESG). Email: fabioaq@hotmail.com FERNANDA R. P. DE MORAES Mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento, PUC, Goiás; Doutoranda em Direito e Políticas Públicas, UniCEUB, Brasília, DF; Professora na UniGoiás; Analista Jurídico – Assistente de Desembargadora, TJGO. GUILHERME DI LORENZO PIRES Doutor em Relações Internacionais pela PUC Minas. GUILHERME LOPES DA CUNHA Doutor em Economia Política Internacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor Adjunto da Escola Superior de Guerra (ESG). Email: guilhermelopes11@hotmail.com JOÃO PAULO ALLAIN TEIXEIRA Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq). Cumpriu período de pesquisa pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Combra (CES), Portugal (2018). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2005) Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2000). Master em Teorias Criticas do Direito pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (1998). Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE. Professor do curso de graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP. Líder do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais REC - CNPq. JORGE M. LASMAR Dean of Post-Graduate Studies at Faculdades Milton Campos and Professor of International Relations at PUC Minas, Brazil. He holds a PhD in International Relations from the London School of Ecomomics and Political Science, LSE. LEONARDO C. ASSUNÇÃO SANTA RITA Post-Graduate student in the Department of International Relations at PUC Minas, Brazil. VIII


LIZIANE PAIXÃO SILVA OLIVEIRA Doutora em Direito pela Universidade d’Aix-Marseille III, Mestre em Direito pela UnB, Professora Permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do UniCEUB, Estágio Pós-doutoral na UnB (2017-2018), Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Políticas Públicas e Inovação – CNPq. LUCAS CARLOS LIMA É professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito Internacional e Direito da União Europeia pela Università degli Studi di Macerata, com períodos de pesquisa na University of Cambridge e no Max Planck Institute for International Dispute Settlement. Visiting researcher na University of Copenhagen. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG. Contato: lclima@ufmg.br. MARCELO M.VALENÇA Doutor em Relações Internacionais (2010) e bacharel em Direito (2003) pela PUC-Rio. Professor da Escola de Guerra Naval. Contato: marcelo.valenca@gmail.com MARIA LUIZA S. BATISTA Maria Luiza Siqueira Batista is a master’s student at PUC Minas, specializing in the research line “Intelligence, Strategy and Counterterrorism”. Her research interests include international security and conflict, feminist theories, and terrorism and political violence. Ms. Batista’s master’s dissertation is titled, ‘Brides and Bullets: Understanding the Role(s) of Women in the Islamic State’ and studies how shifts in the status of the Islamic State have impacted the way(s) in which women both participate in, and are represented by, the group. The work applies discourse analysis to an original dataset constructed by codifying the group’s English-language online magazines, including Dabiq and Rumiyah. MARINANA ANDRADE E BARROS Doutora em Direito Internacional pela Université Paris 1 – Sorbonne e em Relações Internacionais pela PUC Minas. Professora de Relações Internacionais do UNI-BH e de Direito do Centro Universitário Una. MONIQUE SOCHACZEWSKI Doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV (2012). Contato: moniquesgoldfeld@gmail.com PETERSON FERREIRA DA SILVA Doutor (USP), mestre (Programa de Pós-graduação San Tiago Dantas – UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e bacharel (USP) em Relações Internacionais. Especialista em Gestão Pública (FESPSP) e professor da Carreira do Magistério Superior Federal na Escola Superior de Guerra (ESG). RAQUEL FABIANA LOPES SPAREMBERGER Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do IX


Rio Grande do Sul (1995). Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande FURG. Professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora dos cursos de graduação e do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP/ RS. Grupo de Pesquisa: Diireito, decolonialidade e estudos subalternos- FMP-RS. RASHMI SINGH Associate Professor of International Relations at PUC Minas and a High Research Productivity Fellow at CNPq (Level 2). She holds a doctorate from the London School of Economics and Political Science (United Kingdom). She is co-founder and co-director of the Collaborative Research Network on Terrorism, Radicalization and Transnational Crime (TRAC); an Anniversary Fellow at the Handa Center for the Study of Terrorism and Political Violence (CSTPV), University of St. Andrews (Scotland, UK); an Associate Editor of Perspectives on Terrorism, and; on the editorial boards of various academic journal including International Journal of Conflict and Violence and International Politics. Dr. Singh has served as a member of the World Economic Forum’s Global Agenda Council of Terrorism (2013–2014). She continues to be a consultant, trainer and teacher for various government agencies, international and military organizations and has previously worked with NATO, the Scottish Police, the London Metropolitan Police, The Royal Military Academy at Sandhurst, the George C. Marshall European Center for Security Studies, The British Home Office, the German Armed Forces, the Brazilian Federal Police and the Brazilian Military Police. Dr. Singh is an area specialist focusing on terrorism, counter-terrorism and political violence in the Middle East and South Asia. RENATA MANTOVANI DE LIMA Advogada, Doutora em Direito Público com pesquisa na Universidade de Pisa-Itália. Professora da Graduação e Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de Itaúna/MG. Reitora da Universidade Vale do Rio Verde – UninCor. VALMIR CÉSAR POZZETTI Pós- Doutorando em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara; Pós Doutor em Direito pela Università degli Studi di Salerno/Itália; Doutor em Direito Ambiental e Biossegurança pela Université de Limoges/França.

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Sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................................... XV Capítulo 1

CRISE AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO SÓCIOECONÔMICO: UMA AGENDA DEMOCRÁTICA PARA O SÉCULO XXI Raquel Fabiana Lopes Sparemberger; João Paulo Allain Teixeira........................... 1 Capítulo 2

GUIANA FRANCESA E PANAMAZÔNIA: A IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DO BIOMA PARA A SUSTENTABILIDADE ALIMENTAR E AMBIENTAL DO PLANETA Valmir César Pozzetti; Beatriz Souza Costa.............................................................. 15 Capítulo 3

A OBRIGAÇÃO DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL NO DIREITO INTERNACIONAL Lucas Carlos Lima; Amael Notini Moreira Bahia................................................... 38 Capítulo 4

REFLEXÕES ACERCA DOS IMPACTOS DA CRISE DE COVID-19 NA REGULAÇÃO DO TRABALHO: DA NECESSIDADE DE REGULAÇÃO TRANSNACIONAL DAS NOVAS TECNOLOGIAS Anderson Vichinkeski Teixeira; Bárbara de Cezaro.................................................. 59 Capítulo 5

DEBATENDO A PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA NO SISTEMA INTERNACIONAL: TEORIZAÇÕES LEGITIMADORAS E CRÍTICAS Marinana Andrade e Barros...................................................................................... 76 XI


Capítulo 6

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA E CRISE SANITÁRIA NO BRASIL: O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Clara Cardoso Machado Jaborandy; Liziane Paixão Silva Oliveira....................... 98 Capítulo 7

A POLÍTICA EXTERIOR BRASILEIRA NA ADOÇÃO DO ESTATUTO DE ROMA Renata Mantovani de Lima...................................................................................... 121 Capítulo 8

AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E TERRORISTAS NA ERA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO Daniel Amin Ferraz; Fernanda R. P. de Moraes...................................................... 145 Capítulo 9

INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE SEGURANÇA, DESENVOLVIMENTO E DEFESA NACIONAIS: PRINCIPAIS CONCEITOS E ABORDAGENS Peterson Ferreira da Silva........................................................................................... 166 Capítulo 10

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA, MULTILATERALISMO E SAÚDE: ALGUMAS REFLEXÕES Marcelo M.Valença; Monique Sochaczewski.............................................................. 185 Capítulo 11

COVID-19: MUCH MORE THAN A PUBLIC HEALTH RISK Rashmi Singh; Maria Luiza S. Batista..................................................................... 203 Capítulo 12

RELAÇÕES INTERNACIONAIS, POLÍTICA E DEMOCRACIA EM TEMPOS DE PANDEMIA: OS IMPACTOS DA COVID-19 PARA A ORDEM INTERNACIONAL Guilherme Di Lorenzo Pires; Danny Zahreddine...................................................... 233 Capítulo 13

REDESENHOS E NOVOS CONTEXTOS: UMA ANÁLISE PROSPECTIVA SOBRE A CONFIGURAÇÃO DA ORDEM INTERNACIONAL PÓS COVID-19 Fábio Albergaria de Queiroz; Guilherme Lopes da Cunha....................................... 254 XII


Capítulo 14

CLASH OF GENERATIONS: THE NEW CORONAVIRUS PANDEMIC AND INTERNATIONAL CRISIS MANAGEMENT Jorge M. Lasmar; Leonardo Coelho Assunção Santa Rita........................................ 273

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Apresentação

Esta obra é resultado direto das atividades realizadas pela Rede de Pesquisa “Integração, Estado e Governança” e, também, das atividades da Cátedra Jean Monnet Direito UFMG, refletindo, portanto, as pesquisas realizadas pelos seus membros, bem como professores e especialistas convidados. A diversidade dos ensaios aqui reunidos reflete a própria diversidade da rede que congrega instituições de ensino e pesquisa nacionais e estrangeiras tais como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de Itaúna (UIT), Faculdades Milton Camos, Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) no Brasil, Universidad de Alcalá de Henares e Universidad Castilla-La Mancha na Espanha, Università degli Studi di Perugia na Itália, Universidade de Lisboa e Universidade Europeia de Lisboa em Portugal, entre outras. A concretização desta obra deu-se graças ao generoso financiamento tanto da Comissão Europeia no âmbito da Cátedra Jean Monnet da UFMG, Projeto (565401-EPP-1-2015-1-BREPPJMO-CHAIR) quanto do Centro de Excelência Jean Monnet, Projeto (611700-EPP-1-2019-1-BR-EPPJMO-CoE). Os artigos apresentados na presente obra tratam de aspectos relevantes vinculados ao desenvolvimento sustentável, política exterior e democracia em tempos de profundas transformações trazidas não só pela pandemia, mas também pelas alterações econômicas, sociais, políticas e culturais nos quatros cantos do mundo, o que demanda por parte dos pesquisadores uma análise das relações internacionais a partir de uma crise sem precedentes. Desta forma, os capítulos debatem aspectos contemporâneos trazidos pelo cenário anteriormente mencionado, buscando imbricar desenvolvimento como parte inerente do componente quíntuplo já estabelecido pelos Objetivos do Desenvolvimento XV


Sustentável (ODS) no marco da Organização das Nações Unidas (ONU) com a política externa e a vertente democrática que deve prevalecer ante qualquer situação mas, em especial, naquela onde prevalece as transformações advindos de uma crise imprevisível, como a trazida pelo COVID-19. Abordando questões como a complexidade advinda da agenda internacional e sua correlação com a sustentabilidade, a necessidade de compreender a importância do Pan-Amazônia diante da catastrófica calamidade em que tal território se encontra e a imperatividade observância do mais alto nível de proteção fixado pelos instrumentos internacionais, o difícil tema do licenciamento ambiental e sua previsão normativa internacional, a regulação do mercado de trabalho diante do contexto pandêmico e seus influxos sobre a precariedade laboral que já vinha sendo, paulatinamente, instaurada assim como temas relacionados a aspectos de política exterior e democracia que afetam, indubitavelmente, a conformação de uma “suposta” (e ainda não bem definida) ordem global. Temas que se coadunam com a dialogicidade e o pragmatismo amparado pela defesa permanente e inconteste da democracia, seja no espectro internacional como nacional, como abordado numa perspectiva das teorizações legítimas e do papel da jurisdição brasileira ante a crise sanitária. Lado outro, o olhar que se deve estabelecer-se também para a dinâmica internacional, concebida como uma política de Estado voltada para as relações entre os múltiplos atores internacionais, em sinergia com os condicionamentos estruturais derivados da pandemia. Notadamente, uma visão que se estende desde o campo das questões penais transfronteiriças, cujo cerne volta-se ademais para o multilateralismo e sua proclamada (ainda que não comprovada nem empiricamente refutada) derrocada. Como se pode analisar uma política pública cuja perspectiva deveria concentrar-se no fortalecimento das associações e alianças, fundadas na cooperação internacional, especialmente em cenários de crise? Os artigos apresentados, em um caráter claramente transdisciplinar, objetivam trazer à tona a discussão premente entre defesa nacional, segurança, estratégia avalizados pela obrigatoriedade revisão das velhas fórmulas que já não cabem neste chamado “novo mundo.” Pretende-se, portanto, contribuir para que a discussão sobre a crise sanitária não se atenha tão-somente a uma perspectiva isolada do desenvolvimento sustentável, das políticas públicas (especialmente a externa), bem como da democracia, valor esse que tangencia e deve fundamentar, como já se disse toda e qualquer ação, por parte de quaisquer dos sujeitos, sejam eles públicos e privados, nacionais ou internacionais. Finalmente, deve-se enfatizar-se que as pesquisa aqui reunidas apresentam um conjunto importante para a compreensão do mundo em que XVI


vivemos e ao apresentar as investigações de professores e pesquisadores nacionais e estrangeiros, contribui para a consolidação desse programa de pesquisa no Brasil e na Europa. Belo Horizonte e Brasília, dezembro de 2020.

JAMILE BERGAMASCHINE MATA DIZ Coordenadora do Centro de Excelência Jean Monnet e da Cátedra Jean Monnet UFMG. Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do PPGD da Universidade de Itaúna. Professora do PPPGD da ESDHC e da FDMC/MG. Doutora em Direito Público/ Direito Comunitário pela Universidad Alcalá de Henares - Madrid. Mestre em Direito pela UAH, Madrid Master en Instituciones y Políticas de la UE UCJC/Madrid. Email: jmatadiz@yahoo.com.br.

JORGE MASCARENHAS LASMAR Coordenador Geral de Pós-Graduação das Faculdades Milton Campos bem como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da PUC Minas. Possui doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science (LSE). Atualmente é Diretor de Assuntos Jurídicos da Associação Internacional de Estudos de Segurança e Inteligência (INASIS), Coordenador Regional (Brasil) da Terrorism Research Network (TRI) e membro da Comissão de Certificação Profissional em Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (CPLD-FT, IPLD).

LIZIANE PAIXÃO SILVA OLIVEIRA Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Doutora em em Direito pela Universite Paul Cezanne Aix-Marseille 3 (2012). Professora titular do Centro Universitário de Brasília e professora titular da Universidade Tiradentes. Advogada. E-mail: liziane.oliveira@ceub.edu.br.

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CAPÍTULO 1 CRISE AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO SÓCIOECONÔMICO: UMA AGENDA DEMOCRÁTICA PARA O SÉCULO XXI Raquel Fabiana Lopes Sparemberger João Paulo Allain Teixeira

1 INTRODUÇÃO Dentre os desafios que a quadra contemporânea tem nos convidado a refletir talvez seja a crise ambiental a mais rica em possibilidades analíticas. Tanto mais se não perdermos de vista as intrínsecas conexões do tema com a perspectiva sócio-econômica cujos reflexos a relação com o ambiente suscita. Como testemunho desta realidade a emergência dos efeitos decorrentes do crescente desmatamento das florestas tropicais, as mudanças climáticas, o aquecimento global, e o contexto recente da pandemia provocada pela COVID-19 que colocam em xeque a construção do modelo civilizatório dominante. A proposta do presente ensaio busca oferecer parâmetros para a reflexão sobre os contornos da ideia de desenvolvimento no contexto de uma crise que pode ser evidenciada em múltiplas dimensões. Partimos aqui do pressuposto de que a crise contemporânea desdobra-se em múltiplas camadas entrelaçadas e interconectadas com efeitos reciprocamente estabelecidos. Nesse sentido, a dimensão politica (da qual decorre a ascensão nacionalpopulista global), a dimensão econômica (da qual decorre o esgotamento dos recursos naturais e a financeirização do capital) e a dimensão social (da qual decorre a precarização das condições de vida em escala global) da crise são elementos em relação de recíproca implicação e potencialização.


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As perspectivas democráticas para o Século XXI envolvem um esforço crítico endereçado ao desvelamento das bases da estruturação econômica fundada ordinariamente no acúmulo de capital e seus efeitos na qualidade de vida global. 2 DESENVOLVIMENTO, LIBERDADE E DEMOCRACIA O desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Esse enfoque contrasta com visões mais restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvolvimento como crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. Se a liberdade é o que o desenvolvimento promove, então existe um argumento fundamental em favor da concentração desse objetivo abrangente, e não em algum meio específico ou em alguma lista de instrumentos especialmente escolhida (SEN, 2000). O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de provação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância excessiva de Estados repressivos. Em síntese, a ausência de liberdade vincula-se a pobreza econômica, a carência de serviços públicos e assistência social, além das restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade. A liberdade é central para o desenvolvimento por duas razões: a) a razão avaliatória: a avaliação do progresso tem de ser feita verificando-se primordialmente se houve aumento da liberdade das pessoas; b) a razão da eficácia: a realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição de agente das pessoas. (SEN, 2000, p.18). A condição de agente livre e sustentável emerge como sendo fundamental do desenvolvimento. A livre condição de agente não só é em si uma parte constitutiva do desenvolvimento, mas


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também contribui para fortalecer outros tipos de condições de agentes livres. A importância de considerar a liberdade o principal fim do desenvolvimento pode ser ilustrada com o seguinte exemplo: no contexto das visões mais restritas do desenvolvimento, como crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) ou industrialização, frequentemente se pergunta se determinadas liberdades políticas ou sociais, como a liberdade de participar ou as oportunidades de receber educação básica são ou não conducentes ao desenvolvimento. Ressalta-se que esses elementos estão entre os componentes constitutivos do desenvolvimento, pois contribuem indiretamente para o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) ou para a promoção da industrialização (SEN, 2000). Não se pode esquecer que um número imenso de pessoas em todo o mundo é vítima de várias formas de privação de liberdade. Fomes coletivas continuam a ocorrer em determinadas regiões, além do pouco acesso a serviços de saúde, saneamento básico ou água tratada, considera-se ainda a carência de oportunidades de educação e emprego remunerado, negação a política e aos direitos civis básicos. Ademais, ao julgar-se o desenvolvimento econômico não é adequado considerar apenas o crescimento do PNB ou de alguns outros indicadores de expansão econômica global. Faz-se necessário, considerar o impacto da democracia e das liberdades políticas sobre a vida e as capacidades dos cidadãos. Os direitos políticos e civis dão às pessoas a oportunidade de chamar a atenção para as necessidades gerais e exigir a ação pública apropriada. Essa é uma parte do papel de democracia e das liberdades políticas (SEN, 2000). Desenvolver e fortalecer o sistema democrático é um componente essencial do processo de desenvolvimento. A importância da democracia reside em três virtudes distintas: 1) sua importância intrínseca, como a capacidade de participação social e política; 2) suas contribuições instrumentais, como as reivindicações de necessidades econômicas; 3) seu papel construtivo, como na compreensão das necessidades econômicas em um contexto social.


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Nenhuma avaliação da forma de governo democrático pode ser completa sem considerar cada uma dessas virtudes (SEN, 2000). A desigualdade tem um papel importante no desenvolvimento das fomes coletivas e outras crises graves. Na verdade, a própria ausência de democracia é uma desigualdade de direitos e poderes políticos. Porém, as fomes coletivas e outras crises desenvolvem-se graças a uma desigualdade severa. Os mais diversos problemas sociais são importantes no processo de desenvolvimento como liberdade, pois envolve o aumento da segurança e da proteção usufruídas pelos cidadãos. Essa relação é constitutiva e instrumental. O desenvolvimento se produz quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou. Este somente se efetiva quando a acumulação conduz á criação de valores que se difundem na coletividade. A ciência do desenvolvimento preocupa-se com dois processos de criatividade. O primeiro diz respeito á técnica, ao empenho do homem de dotar-se de instrumentos, de aumentar sua capacidade de ação. O segundo refere-se ao significado de sua atividade, aos valores com que o homem enriquece seu patrimônio existencial (FURTADO, 2008). É específico da civilização industrial o fato de que a capacidade inventiva humana haja sido canalizada para a criação de técnicas, ou seja, para abrir novos caminhos ao processo de acumulação, o que explica a formidável força expansiva dessa civilização. E também explica que, no estudo do desenvolvimento, o ponto focal dominante haja sido a lógica da acumulação. Deve-se perceber que os principais obstáculos à passagem da modernização ao desenvolvimento propriamente dito cimentava-se na esfera social. O avanço da acumulação nem sempre produziu transformações nas estruturas sociais capazes de modificar significativamente a distribuição de renda, pois produziu nas regiões periféricas efeitos totalmente diversos, como a marginalização social. Salienta-se que a qualidade de vida nem sempre melhora com o avanço da riqueza material, pois se percebe que em vários


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segmentos populacionais, embora conheçam uma significativa elevação do seu nível de vida material, continuam prisioneiros de estreitos padrões culturais. A reflexão sobre esses temas conduziu a uma visão crítica dos modelos de desenvolvimento que vinham sendo preconizados a partir dos anos 50. Esses modelos se fundam na idéia de que a lógica da acumulação, no nível do sistema de forças produtivas, deve prevalecer sobre o conjunto de fatores que conformam o processo social. Quando se refere a nossa identidade cultural, o que temos em conta é a coerência de nosso sistema de valores. Esse é o círculo maior que deve abarcar a política de desenvolvimento, tanto econômico como social. Somente uma clara percepção da identidade pode dar sentido e direção aos esforços da sociedade em mudar o presente e construir um futuro mais igualitário as diferentes comunidades (FURTADO,2008). Não se pode confundir desenvolvimento com crescimento econômico, que constitui apenas uma das suas contradições, porém não suficiente. Apenas haverá verdadeiro desenvolvimento onde existir um projeto social subjacente. O desenvolvimento depende da cultura, não pode se limitar unicamente aos aspectos sociais e econômicos, ignorando as complexas relações da sociedade humana e a evolução da biosfera. O desenvolvimento deve ser socialmente includente, ambientalmente sustentável e economicamente sustentado no tempo, de maneira a não comprometer o futuro da humanidade. Postula-se a necessidade de buscar um novo paradigma científico, capaz de substituir o industrialismo, o crescimento econômico, socialmente perverso que se alimenta das desigualdades sociais crescentes. Até o início dos anos 60, não se sentia ainda a necessidade de distinguir desenvolvimento de crescimento econômico, pois as poucas nações desenvolvidas eram as que se haviam tornado ricas pela industrialização. Por outro lado, havia os países subdesenvolvidos que


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permaneciam pobres, nos quais o processo de industrialização era mínimo ou nem havia começado. O gênio inventivo do homem foi canalizado para a criação técnica, o que explica sua extraordinária capacidade expansiva. E é esse quadro histórico que se deve atribuir o fato de que a teoria do desenvolvimento tenha ficado circunscrita à lógica dos meios, tendendo a se confundir com a explicação do sistema produtivo que emergiu com a civilização industrial. No entanto, o desenvolvimento deve ser entendido como processo de transformação da sociedade, não só em relação aos meios, mas também aos fins. Alguns analistas em meados dos anos 70 acreditavam que o progresso material levaria à melhoria dos padrões sociais; para outros a relação parecia mais complexa, pois o jogo político intervinha, fazendo com que o crescimento tomasse rumos diferenciados, com vários efeitos na estrutura social. Mas todos concordavam que desenvolvimento era sinônimo de crescimento econômico. Após surgir o primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano (1990), o panorama era diferente. O crescimento da economia passara a ser entendido por muitos analistas como elemento de um processo maior, percebera-se a importância de refletir sobre a natureza do desenvolvimento que se almejava, que as políticas de desenvolvimento deveriam ser estruturadas por valores que não seriam unicamente aqueles que informam a dinâmica estritamente econômica (VEIGA, 2006). 3 O AMBIENTE EM PERSPECTIVA SÓCIO-ECONÔMICA: INDUSTRIALISMO VERSUS ECOCENTRISMO A atividade econômica relacionada à produção industrial, é resultado do processo de desenvolvimento, principalmente que vem ocorrendo nos últimos anos, o que traz profundos impactos sobre a biosfera, na medida em que o homem investe em habitação, transporte, agricultura e indústria. Salienta-se que a maior parte do crescimento econômico se deu à custa de recursos naturais retirados


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de florestas, solos e mares. Trata-se aqui de refutar a simplificação malthusiana para a crise ambiental e buscar a raiz que a sustenta (FRIEDMAN, 2020). Assim, não é o aumento populacional a razão da crise ambiental, mas o modelo de política econômica adotado como padrão de desenvolvimento. Em meados dos anos 70 não poucos analistas acreditavam que o progresso material levaria à melhoria dos padrões sociais; para outros a relação parecia mais complexa, pois o jogo político intervinha, fazendo com que o crescimento tomasse rumos diferenciados, com vários efeitos na estrutura social. Mas todos concordavam que desenvolvimento era sinônimo de crescimento econômico. Após surgir o primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano (1990), o panorama era diferente. O crescimento da economia passara a ser entendido por muitos analistas como elemento de um processo maior, percebera-se a importância de refletir sobre a natureza do desenvolvimento que se almejava, que as políticas de desenvolvimento deveriam ser estruturadas por valores que não seriam os da dinâmica econômica (VEIGA, 2006). A atividade econômica relacionada à produção industrial, é resultado do processo de desenvolvimento, principalmente que vem ocorrendo nos últimos anos, o que traz profundos impactos sobre a biosfera, na medida em que o homem investe em habitação, transporte, agricultura e indústria. Salienta-se que a maior parte do crescimento econômico se deu à custa de recursos naturais retirados de florestas, solos e mares. A vida natural, em meio a sua contradições e perplexidades, mostra-se generosa e energizante enquanto não sucumbir a um processo de predatória sistemática, causada por um de seus agentes privilegiados – o homo sapiens. A lógica do paradigma da consciência homem-sujeito/natureza-objeto – alçou o homem acima da natureza, fazendo-o julgar-se no direito de dominá-la e explorá-la como se inesgotável fosse a fonte natural de recursos (CORRÊA e BACKERS, 2006).


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A partir do surgimento de diferentes movimentos ambientalistas, houve a definição de uma nova visão, que se pode definir como o homem centrado no planeta como sua morada, ou seja, a visão ecocêntrica, baseada numa ética ambiental1. Essa nova filosofia ecocêntrica e a conscientização fazem com que o ser humano passe a se preocupar com suas ações, entendendo que ele faz parte da natureza, que é possível sobreviver em harmonia com os demais seres vivos. Desta forma desenvolverá uma visão holística do mundo, trazendo a necessidade de desenvolver uma conduta ética com a Natureza, formando uma real ligação entre homem-natureza. Entende-se que é com a visão ecocêntrica que o ser humano passa a entender a sua atuação e responsabilidade para com os demais seres vivos, pois contrapõe a visão antropocêntrica que só incentivou a degradação ambiental. Vive-se atualmente um processo de desenvolvimento desequilibrado, com a valorização excessiva do princípio do mercado, ou seja, do desenvolvimento a qualquer custo. Há uma crise do paradigma de desenvolvimento atual diante dos problemas que, através dele vêm surgindo ao longo dos anos. A dominação da natureza pelo homem, conduziu uma exploração excessiva e despreocupada dos recursos naturais, causando o surgimento de diferentes problemas ambientais. Essa dominação é fruto do capitalismo, que além de ser um modo de produção global, também é um processo social, econômico, político e cultural de amplas proporções, complexo, contraditório e avassalador. O modo capitalista de produção influencia, modifica, elimina ou recria todas e quaisquer formas de organização com que 1

As correntes da ética ambiental são o antropocentrismo e o ecocentrismo. Sendo o antropocentrismo relacionado ao pensamento ou a organização que faz do homem o centro do universo, em que redor gravitam os demais seres em papel meramente condicionado. Enquanto que o ecocentrismo está relacionado às preocupações científicas, políticas, econômicas e culturais voltadas para o planeta Terra considerado casa comum, ou seja, um sistema vivo (MILARÉ, 2004).


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entre em contato. Com isso, surge à competição entre os capitais, a conquista por novos mercados e, a busca de lucros que provocam a dinamização das forças de produtivas gerando processos de acumulação e centralização de capitais (BATISTA, 2020; SOARES, 2004). Tudo passa a ser influenciado pelas regras capitalistas que, estão fundadas em políticas neoliberais (economia de mercado). Neste universo está a questão ambiental, que luta contra as questões econômicas e políticas, fundadas na lucratividade, na produtividade, no consumo, no mercado, ou seja, na busca pelo lucro ilimitado, base fundamental. O neoliberalismo que surge a partir da globalização, trazendo consigo suas políticas neoliberais, afetam de sobremaneira o meio ambiente, pois é o fio condutor da linha de atuação do atual modelo de desenvolvimento econômico (BATISTA, 2020). Com o neoliberalismo, o Estado deve limitar-se ao papel de preservador da ordem política e econômica. Mas, nas sociedades democráticas contemporâneas o neoliberalismo atua, e sua postura é inaceitável por autores das áreas humanas, destacando-se a degradação ambiental em prol do desenvolvimento econômico. De fato, o que agita a cena social e política é o desemprego, a desigualdade crescente, a exclusão. Na verdade se passou de uma economia planejada para uma economia de mercado, com objetivos econômicos, sociais e nacionais. Em relação à política de proteção ambiental, os países que emergirem nesse processo deverão resistir a vontade de ter ganhos econômicos e sociais a curto prazo, admitindo em seus territórios a entrada de empresas predatórias de recursos naturais. A questão ética que impõe fronteiras entre o capitalismo e o socialismo vem do dilema sobre a natureza e o papel da desigualdade: enquanto o pensamento liberal, proveniente de Locke, naturaliza a desigualdade social, vendo a diferença entre ricos e pobres como resultado das diferenças inatas entre os seres humanos, o pensamento socialista, com sua matriz em Rousseau, encara a divisão social entre ricos e pobres como uma conseqüência espúria de uma apropriação


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da natureza, transformada em patrimônio protegido por cercas, e, através desta, da apropriação do esforço despendido pelo trabalho alheio (SOARES 2004). A crise ambiental que se vive reflete a crise deste modelo de sociedade urbano-industrial que potencializa valores individualistas, consumistas, antropocêntricos, além das relações de poder que provocam dominação e exclusão, não apenas nas relações sociais como também nas relações sociedade-natureza. Entretanto, permanece a lógica de mercado, ou seja, a acumulação e concentração de capital para nações restritas, agravando desta forma as desigualdades sociais. Com o poder capitalista surgiram novas tecnologias, as quais causaram enorme impacto social e ambiental. Isto se concretiza nos países em geral, onde a opção de desenvolvimento marcante é o modelo que busca o crescimento econômico, com a concentração de renda, exclusão social e um padrão produtivo massacrante dos recursos naturais. (SOARES, 2004). A idéia de desenvolvimento de uma nação sempre esteve vinculada à idéia de progresso, e crescimento econômico sempre foi considerado como o único caminho para uma nação crescer e tornarse desenvolvida. Contudo, essas idéias começam a ser questionadas, pois se observa que o êxito do crescimento não reduz os índices de pobreza, sendo que o econômico sempre esteve afastado do social, aumentando desta forma as desigualdades sociais e a exclusão social. As causas da degradação ambiental nos países são conseqüências das estruturas predominantes de poder, seja capitalista, socialista ou comunista. Muitos dos problemas de destruição de recursos e do desgaste do meio ambiente resultam de disparidades no poder econômico e político. Salienta-se que meio ambiente e desenvolvimento não são desafios separados, estão interligados. O desenvolvimento não se mantém se a base de recursos ambientais se deteriora. Por sua vez, o meio ambiente não pode ser protegido se o crescimento econômico não levar em consideração as conseqüências de uma destruição ambiental global.


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A relação do comércio e do meio ambiente deve ser analisada quanto à liberalização desenfreada do comércio, que passa por cima de tudo, inclusive das questões ambientais. Isso tudo dentro de um contexto globalizado neoliberal, onde se entende que o planeta é algo visto como domínio comercial, sem limites, que permite a troca de mercadorias sem contenção e sem qualquer dimensão social, territorial e ética (SOARES, 2004). A resolução da crise ecológica é difícil e complexa. Os problemas ambientais são efeitos do modelo de desenvolvimento econômico dominante que se legitima atendendo as demandas de consumo da população, e que por sua vez continua aumentando dentro de um planeta com capacidade de sustentação limitada. Desta forma, a política ambienta entendida em sentido amplo, não pode ser separada de uma discussão dos valores mais profundos que regem a sociedade humana. Depois da quantidade de informação divulgada por ocasião de diferentes conferências envolvendo vários temas ambientais, não há dúvida que se não modificar o atual modelo de desenvolvimento econômico e não se produzir uma aproximação entre critérios ecológicos e processos econômicos, a espécie humana corre sérios riscos de sobrevivência em médio prazo. A ecologia exige que a Terra seja considerada como um bem comum e, em conseqüência que a humanidade encontre valores de convergência global. A importância do ambientalismo na política mundial, consiste em tornar amplamente visível a necessidade de mudança, de ajuste entre a realidade, as conseqüências e as expectativas (VIOLA e LEIS, 1995). 4 UMA AGENDA AMBIENTAL PARA O SÉCULO XXI Contrariando o otimismo neoliberal, comprova-se que, enquanto no nível econômico aumenta a ordem, por meio de uma melhor utilização dos recursos existentes na escala global, no nível sócio ambiental se favorece a desordem e prejudica a governabilidade,


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dado o aumento da degradação ecológica do planeta, muito além da capacidade dos governos de controlá-la. Percebe-se que o livre comércio favorece a circulação mundial de tecnologias e indústrias poluentes, assim como de resíduos tóxicos que já saturam o meio ambiente local e mundial. Essa situação produz a poluição ambiental, além de permitir que os atuais sistemas produtivos ganhem tempo antes de assumir seus limites e seus custos ecológicos. Se o mercado fosse realmente um sistema livre, por intermédio de seus mecanismos, poderiam ser corrigidos os problemas ambientais que os avanços tecnológicos geraram no passado, mas dificilmente poder-se-ia evitar que a tecnologia evoluísse de acordo com critérios de maximização de lucros e, portanto produzisse novos danos ambientais. O mercado é o elemento mais importante de transformação de nossa época, e não se trata, portanto, de suprimi-lo, mas de controlar seus efeitos. A dinâmica da sociedade moderna é governada por um duplo movimento de difícil equilíbrio: o movimento da expansão continua do mercado, que possui como objetivo o predomínio de valores materiais e de uma razão instrumental; e o contra movimento destinado a frear e regular o mercado, o qual tem como objetivo a proteção do homem e da natureza e supõe a preservação e promoção de valores éticos e espirituais. O desenvolvimento sustentável não é propriamente um princípio do direito ambiental, mas traduz um conjunto de valores ancorados em condutas relacionadas à produção, para que o resultado seja a compatibilização da apropriação dos recursos naturais com sua manutenção e construção de um bem-estar. Em outras palavras, o princípio, para sua realização, necessita da concretização dos valores e diretrizes próprios do direito ambiental, ao desenvolvimento social e econômico, à equidade e ao bem-estar. Nesse sentido, parece oportuno vislumbrar uma agenda para o Século XXI orientada para um conjunto de práticas voltadas à proteção ambiental. Isso implica em grande medida na superação do individualismo que está na base do modelo exploratório consagrado


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pelo padrão civilizatório moderno. Em termos concretos, importa considerar as perspectivas voltadas para a desnaturalização do estímulo ao acúmulo de capital como única alternativa econômica (LÖWY, 2020) além de enfatizar iniciativas voltadas à educação ambiental (JACOBI, 2020). Para a cidadania do futuro, importa o estabelecimento de uma crítica ao modelo produtivo vigente e o estabelecimento de engenharias sociais aptas a estabelecer limites para a economia de mercado. A proposta converge para a consagração de modelos de formação e produção de conhecimento que enfatize a compreensão do risco inerente aos efeitos das diversas possibilidades de relacionamento da sociedade com o ambiente. Para tanto, importa enfatizar o aspecto sustentabilidade e considerar os limites da atividade econômica a partir da ampliação do espectro conceitual da ideia de desenvolvimento transbordando esta categoria para a dimensão do bem-estar coletivo. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Erika. Crise Econômica e crise ambiental: desenvolvimento e reestruturação produtiva (in)sustentável. Dispnível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2015/iseminariointernacionalposgraduacaoemcienciassociais/1.-erika-batista.pdf Acesso em 21/08/2020. CORRÊA, Darcísio e BACKES, Elton. Desenvolvimento sustentável: em busca de novos fundamentos. In: Raquel Fabiana Lopes Sparemberguer e Jayme Paviani (orgs). Direito ambiental: um olhar para a cidadania e sustentabilidade planetária. Caxias do Sul: EDUCS, 2006. FRIEDMAN, Michael. Crise Climática: o problema é o capitalismo, não a democgrafia. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2017/08/criseclimatica-meio-ambiente-demografia-capitalismo/ Acesso em 21/08/2020. FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. São Paulo: Zahar, 2008.


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JACOBI, Pedro. Educação Ambiental, Cidadania e Sustentabilidade. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cp/n118/16834.pdf Acesso em: 21/08/2020. LÖWY, Michael. Crise ecológica, crise capitalista, crise de civilização: a alternativa ecossocialista. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ccrh/v26n67/a06v26n67.pdf Acesso em 21/08/2020. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 3.ed. São Paulo: Campanha das Letras, 2000. tradução SOARES, Reni Aparecida de Araújo. Proteção ambiental e desenvolvimento econômico – conciliação. 22.ed. Curitiba: Juruá, 2004. VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável: o desafio do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. VIOLA,. Eduardo J. e LEIS, Hector R. A evolução das políticas ambientais no Brasil, 1971-1991: do bissetorialismo preservacionista para o multissetorialismo orientado para o desenvolvimento sustentável, in Daniel Joseph Hogan e Paulo Freire Vieira (Orgs.). Dilemas Socioambientais e Desenvolvimento Sustentável. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.

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CAPÍTULO 2 GUIANA FRANCESA E PANAMAZÔNIA: A IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DO BIOMA PARA A SUSTENTABILIDADE ALIMENTAR E AMBIENTAL DO PLANETA Valmir César Pozzetti Beatriz Souza Costa

1 INTRODUÇÃO O Bioma Amazônico possui uma grande biodiversidade de fauna, flora, e potencial aquífero. Ele é localizado geograficamente na linha do Equador, a biodiversidade da região é inestimável, no tocante ao potencial econômico, e principalmente, ambiental. Por ser uma floresta frágil e, ao mesmo tempo inóspita, de mata densa e fechada, seu acesso é extremamente difícil, o que não impede sua devastação, tendo em vista os inúmeros recursos ainda não conhecidos que o bioma possui; seja no âmbito lacustre (piscicultura e algas fluviais), da fauna ou da flora, além dos conhecimentos tradicionais associados, cuja propriedade pertence aos originários povos amazônicos. A Amazônia consiste no espaço territorial que envolve os 08 (oito) países da América e o território ultramarino da França, os quais possuem a floresta amazônica como parte de seu território: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, as duas Guianas [Guiana (ex-Inglesa) e Suriname (ex-Holandesa), Peru, Venezuela e a Guiana Francesa (atual território ultramarino da França).


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Essa aérea é denominada de “Grande Amazônia”2, que por sua vez é também chamada de PanAmazônia. A origem do nome “Pan”, vem do latim e significa “todo”. Com o objetivo de proteger e explorar esse bioma, os países amazônicos se uniram, com exceção das França, e firmaram o TCA - Tratado de Cooperação Amazônica. Nesse Tratado, a França não tem participação, o que excluiu o seu território ultramarino das negociações e decisões ocorridas no âmbito do TCA. Entretanto, o território da Guiana Francesa possui 100% de floresta amazônica. Além da biodiversidade, ainda desconhecida, a floresta presta serviços ambientais ao planeta, serviços esses, de extrema importância para a manutenção do clima planetário. Desta forma, o objetivo desta pesquisa é o de analisar esses serviços ambientais para responder à seguinte problemática: de que forma o bioma amazônico contribui para a sustentabilidade alimentar e ambiental do planeta? A justificativa desta pesquisa se deve ao fato de que a região amazônica precisa ser olhada com “olhos de ver”, e que não só os países que fazem parte da Panamazônia necessitam se preocupar e esforçar no mister de manter a sua perenidade. Entretanto, a França, que possui um território ultramarino dentro desse espaço amazônico também deve contribuir para a manutenção do equilíbrio ambiental, com a conservação de suas florestas, de forma sustentável. O fato de a Guiana Francesa não ter assinado o TCA – Tratado de Cooperação Amazônica, não é motivo para que a mesma não envide esforços para proteger e evitar a devastação desse bioma, ao mesmo tempo frágil e imponente. Pelo contrário, a França deve ser considerada nesse processo e unir forças com a Panamazônia e realizar atos necessários para a proteção da floresta. 2

Segundo Araújo da Silva (2015, p. 43), a Grande Amazônia “é formada por um sub-bloco localizado no coração do nosso continente que busca espaço e significância geopolítica e econômica, a Amazônia multinacional, a Grande Amazônia ou PanAmazônia, formada por expressivas porções territoriais de Brasil, Venezuela, Guiana, Suriname, Colômbia, Equador, peru e Bolívia”. Insta destacar que o autor exclui desse sub-bloco, chamado Panamazônia, o território ultramarino da França, a Guiana Francesa.


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A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa será a do método dedutivo; quanto aos meios a pesquisa será bibliográfica, com auxílio da doutrina e legislação; quanto aos fins, a pesquisa será qualitativa. Assim sendo, é importante destacarmos o contexto histórico de formação da Guiana Francesa, bem como a origem do bloco de países que passaram a formar a Panamazônia. 2 ORIGENS DA GUIANA FRANCESA E SUAS RELAÇÕES COM A ANAMAZÔNIA A Guiana Francesa é o último resquício formal da dominação europeia na América do Sul. É ainda um estado não soberano, pouco conhecido. Está situada na América do Sul, fazendo fronteira terrestre com o Suriname e com o Brasil, através do Estado do Amapá. Foi colonizada pelos franceses no séc. XVII, utilizando trabalho escravo africano; disputou espaços geográficos com os holandeses, em 1.664, e com os portugueses. Os franceses possuíam especial interesse pelas minas de ouro descobertas no Amapá e o conflito se estabeleceu a partir desse interesse. Nesse sentido, Toledo esclarece que (2016, p. 185): Em 1.713 foi assinado o Tratado de Utrecht entre Portugal e França, por meio do qual os monarcas absolutistas, João V e luís XIV, demarcaram definitivamente os limites fronteiriços entre as colônias de Guiana Francesa e Brasil. Por meio daquele instrumento, atendeu-se ao propósito português de definir que o Oiapoque seria, a partir de então, o marco divisor entre os domínios português e francês. [...] contudo, o Tratado de Utrecht não pos fim às pretensões franceses de ocupar as terras do Amapá, especialmente após a descoberta de jazidas de ouro naquela região em, fins do séc; XIX (SILVA; RUCKERT, 2009). Em busca de ouro e trabalho no setor produtivo, houve uma intensa ocupação da Guiana Francesa por parte de imigrantes europeus e asiáticos (SERGES, 2009).


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Assim, o interesse dos franceses em avançar suas divisas pelo território do Amapá, ainda no Brasil Colônia era evidente. Entretanto, em 1.900, já estado independente, o Brasil e a França, submeteram-se à decisão arbitral do presidente da Suíça, o qual atribuiu ao Brasil a soberania definitiva da região, objeto do conflito, demarcando o território francês e o brasileiro. Entretanto, as descobertas do ouro do Amapá, atraiu diversos europeus e asiáticos que migraram para a Guiana francesa e ingressaram em terras brasileiras, a fim de explorar o ouro e, novamente a França manifestou seu interesse nas terras brasileiras e, segundo Silva e Ruckert (2009), citado por Toledo (2016, p.187), o Tratado de Paris, de 1981 põe fim à querela através do parágrafo 1º. do artigo 1º: Artigo 1º - (omissis) § 1º - a linha de delimitação marítima, inclusive a da plataforma continental, entre a República Federativa do Brasil e a República Francesa, ao largo do Departamento da Guiana, fica determinada pela linha loxodrômica, que tem o azimute verdadeiro de quarenta e um graus e trinta minutos sexagesimais, partindo do ponto definido pelas coordenadas de latitude quatro graus, trinta minutos e cinco décimos Norte e de longitude cinquenta w um graus, trinta e oito minutos e dois décimos Oeste. Esse azimute e essas coordenadas são referidos ao Sistema Geodésio Brasileiro (datum horizontal – Córrego Alegre).

Nessa ordem de ideias, compreendemos que o Tratado pos fim a qualquer litígio, estabelecendo as áreas limítrofes entre os dois países; o que para o Brasil foi de suma importância, dadas as riquezas ambientais e naturais da região. É importante destacar que o território francês é diminuto e, segundo Cavlak (2017, p. 11-12):


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[...] a Guiana Francesa é um território pouco conhecido, tanto para a américa do Sul como do Estado à qual pertence, a França. De superfície fraca e com um povoamento insignificante (250.000 habitantes oficialmente, como uma cidade do interior brasileiro), têm, porém, duas características que fizeram sua fama: o terrível presídio que existiu de 1.852 a 1.946, [...], e o centro europeu de lançamento de foguetes de Kourou, maior base espacial para satélites comerciais.

E continua Cavlak (2017, p. 12) destacando que “a Guiana Francesa está bem conhecida dos amapaenses, paraenses e maranheses, que constituem agora, entre 10 e 15% da população deste território francês, devido a seu alto padrão de vida que é quase o maior do subcontinente e do Caribe [...]”. Nesse sentido há que se destacar que o alto padrão de vida dos franco-guianenses atrai brasileiros que entram na Guiana para exploração da floresta e minérios. E a falta de fiscalização ou legislação adequada ao Bioma, coloca em risco o meio ambiente amazônico. Ao contrário da Guiana Inglesa que se separou do Reino Unido em 1.966 e o Suriname que se tornou independente dos países baixos em 1.975, segundo Cavlak (2017, p. 13), “a Guiana Francesa ainda se mantém ligada à França porque sempre manifestou desejo de ficar pertencendo à França”. Nesse sentido Covlak (2017, p. 13) esclarece que a Guiana francesa “experimentou, portanto, um outro tipo de descolonização, não pela separação da metrópole colonial, mas pelo contrário, reforçando a integração a ela, desfrutando de leis trabalhistas e das redistribuições do Estado francês e agora, da comunidade Europeia”. Os franceses ocuparam a Guiana por volta de 1.626, disputaram-na com o Brasil, ingleses e holandeses; entretanto, se garantiu como colônia da França em 1.946, onde foi descolonizada sem independência e segundo Granger (2007, p. 27), ”perdeu o status colonial para se tornar uma França de fato”. Houveram muitos conflitos entre Brasil e França, pela posse do território, o que acabou


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sendo amenizado pela construção da ponte binacional por cima das águas do Oiapoque, concluída em 2.011 e inaugurada em 2.017. Segundo Covlak (2017, p. 15), a Guiana Francesa “até janeiro de 2.016 tratava-se ao mesmo tempo de um Departamento e uma Região Francesa de Ultramar - DROM, substituído pelo estatuto de CTOM – Coletividade Francesa de Ultramar- Collectivité Territoriale d’ Outre Mer”. Pois bem, é importante destacar que a região física onde a floresta amazônica está presente é denominada de “Panamazônia, e este termo significa “toda a Amazonia”. O termo “pan” vem do latim, que significa” todo, toda”; e esta palavra originou o prefixo da palavra “pan americano”, a qual surgiu de uma proposta de Simon Bolívar, assim que as colônias latino americanas se tornaram independentes O objetivo da proposta de Bolivar, do Panamericanismo, seria o de unir todas as américas (norte, central e sul), com o propósito de firmar um intercâmbio comercial e de cidadãos, para fortalecer as relações dos povos que habitavam as Américas. Entretanto, essa proposta sofreu resistência dos franceses e ingleses que defenderam-se, alegando desvantagens para suas expansões comercias. Contemporâneamente, o termo “pan-americano” se restringe apenas às referências de jogos, ideologias e tribos menores. Assim, quando se descobriu o potencial de riquezas naturais da floresta amazônica, e a cobiça de outros povos começou a pairar sobre essas riquezas, surgiu a necessidade de proteção destas, a benefício dos povos que a ostentam em seus territórios. Dessa forma, objetivou-se criar mecanismos de proteção dessas riquezas e, para tanto, o termo “Panamazônia” surge. Entretanto, como a Guiana Francesa ainda é considerada “colônia” da França (embora por ela denominada de território ultramarino), sem qualquer autonomia, a mesma não foi incluída no bloco de países que forma a Panamazônia, até mesmo porque sua população tem perfil diferente da população dos demais países do seu entorno, a começar, por exemplo, pelo poder aquisitivo. Nesse sentido, Tura (2009, p.p) esclarece que:


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A Pan-Amazônia envolve os países que têm a floresta amazônica em seu território. Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, as Guianas e o Suriname, além do Brasil. O movimento social se apropriou desse conceito como sendo um conceito de luta desses povos. Porque a Amazônia não é só uma questão física e geográfica, mas são povos que enfrentam os mesmos problemas de viverem e sobreviverem numa das últimas reservas de floresta tropical úmida no mundo, e também uma das últimas reservas dessa biodiversidade. Os países da Pan-Amazônia sofrem grandes pressões de setores empresariais, uma série de interesses econômicos pelas riquezas materiais do lugar, seja minério, madeira, biodiversidade. A Pan-Amazônia é uma categoria de luta e a construção de uma identidade para a luta.

Importante destacar que, segundo Araújo da Silva (2015, p.47), como a floresta amazônica se estende por 08 países e um território ultramarino, esse percentual está assim dividido: “Bolívia: 6,2%; Brasil: 64,3%; Colômbia:6,2%; Equador: 1,5%; Guiana: 2,8%; Guiana Francesa: 2,1%; Peru: 10,1%; Suriname: 1,1% e Venezuela: 5,7%”. É importante destacar que, embora a área brasileira represente 64,3% desse total, não se pode desprezar a importância da cobertura florestal diminuta nos demais países, porque a região está na linha do Equador, onde incide os raios solares de forma abundante e, na ausência da cobertura vegetal, a região sofrerá a desertificação. Dessa forma, cada área de cobertura vegetal importantíssima para a preservação e conservação da manutenção da água na região, e equilíbrio do clima, no planeta. A floresta amazônica brasileira está presente nos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grossos e pequena parte do Maranhão. É importante destacar que esta pesquisa foi desenvolvida no sentido de verificar uma aproximação e enfatizar a importância da Guiana Francesa, para a Sustentabilidade Ambiental. Muita embora ela possua apenas o percentual de 2,1% da floresta amazônica, a


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Guiana Francesa não faz parte do TCA – Tratado de Cooperação Amazônica, o que traz uma preocupação no tocante à proteção do espaço comum do bioma, de forma unificada. 3 O BIOMA AMAZÔNICO AGROECOLÓGICA

E

SUA

IMPORTÂNCIA

A floresta amazônica abriga inúmeras formas de vida e, dentre essas, a maior parte delas ainda não é conhecida pela ciência. Assim, permitir o ingresso humano nesses espaços, sem o devido estudo de impacto ambiental, sem cuidados apropriados de coleta de análise de material, sem os conhecimentos sobre as formas de vida que habitam esse espaço é temerário porque coloca em risco a proteção ambiental e a vida de todos os seres humanos e, ainda, a biodiversidade nela existente. Nesse sentido o IBF – Instituto Brasileiro de Florestas (2020, p.p) destaca que: A água é um importante componente em um ecossistema. Isto porque a água é fundamental para a vida. No caso da floresta amazônica, a água doce é abundante: trata-se da maior bacia hidrográfica do planeta. Seu principal rio é o Amazonas, que possui mais de mil afluentes (rios menores que nele deságuam), é o mais largo do mundo e grande responsável pelo desenvolvimento da floresta. (gn)

Já no tocante à fauna, o IBF (2020, p.p) esclarece que “Pesquisas indicam que na Amazônia existem cerca de trinta milhões de espécies animais. Dá para acreditar? E isso porque nem todas as espécies foram encontradas e estudadas pelos cientistas. Lá existem alguns animais que ainda são desconhecidos pelos homens”. No tocante ao solo, o IBF (2020, p.p) afirma que: O solo da floresta amazônica é em geral bastante arenoso. Possui uma fina camada de nutrientes que se forma a partir


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da decomposição de folhas, frutos e animais mortos. Esta camada é rica em húmus, matéria orgânica muito importante para algumas espécies de plantas da região. Em áreas desmatadas, as fortes chuvas "lavam" o solo, carregando seus nutrientes. É o chamado processo de lixiviação, que deixa os solos amazônicos ainda mais pobres. Apenas 14% de todo o território pode ser considerado fértil para a agricultura. Mas se apenas essa pequena parte é fértil, como existem tantas árvores? Aqui está um dos pontos essenciais para o equilíbrio do ecossistema. Neste processo a camada de húmus tem um papel fundamental. Além disso, os poucos nutrientes presentes no solo são rapidamente absorvidos pelas raízes das árvores, e estas plantas, por sua vez, tornam a liberar nutrientes para enriquecimento do solo. Trata-se de uma constante reciclagem de nutrientes. (gn)

Segundo o relatório da UNEP/ONU, “75% do planeta já foi alterado pelas mãos humanas, de forma desmedida, sem levar em conta os demais seres vivos que ali estavam, o que provocou um desequilíbrio ambiental, com interferências nos biomas e nos demais ecossistemas”. Com a crise ambiental instalada e a ação do homem interferindo no meio ambiente e no modus vivendi de animais como: cobras, morcegos, ratos, e outros animais exóticos, as zoonoses até então controladas, passaram a sair do controle dos cientistas. Isso ocorreu porque o desequilíbrio ambiental fez com que os vírus e outras formas de vida que habitavam esses espaços e viviam em harmonia com outros seres que lhe eram hospedeiros. Tendo em vista esse fato, acabaram por sofrer alteração em seu modus vivendis; instalada a desarmonia esses seres vivos migraram para outros hospedeiros, buscando sobreviver às novas condições de vida, impostas pelo seu invasor; no caso, o homem. Dessa forma, além do prejuízo ambiental daquele espaço, anteriormente não acessado pelo homem, o prejuízo à saúde humana também passou a ser um fator de transformação. Assim, os seres vivos, ainda desconhecidos pelo homem, passaram a ter contato com


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esse último e, sofrendo uma mutação, se adequaram à presença do homem e sobreviveram às intempéries e às mudanças impostas pela chegada do homem. A partir dessa perspectiva, segundo dados da UNEP/ONU, “uma zoonose chega ao ser humano a cada 04 meses. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define as zoonoses como “doenças ou infecções naturalmente transmissíveis entre animais vertebrados e seres humanos, e vice-versa”. Entretanto, se há um equilíbrio ambiental, as zoonoses não causam prejuízos ao ser humano, porque possuem como hospedeiros, outros seres vivos, havendo uma convivência harmônica entre eles: ser humano, meio ambiente, mundo animal e mundo virótico. Logo, adentrar espaços sem conhecer esse habitat e invadi-los para explorá-los, sem conhecer as formas de vida que nesse local vivem, é extremamente temerário para o homem. Assim, um exemplo disso, já alertado pela OMS é o do atual problema que estamos vivenciando sobre o “COVID 19, que nada mais é do que o início de diversas epidemias, as quais virão, em virtude do modelo econômico que adotamos como: destruir o meio ambiente sem se preocupar com os seres vivos que ali vivem, que terão sua cadeia alimentar modificada, deixando de se alimentar dos micróbios, moluscos e outros seres que foram eliminados do seu habitat, pela destruição da natureza do seu entorno. É de se refletir o seguinte: ausente a cadeia alimentar, esses animais silvestres e os vírus passam a compreender o ser humano incluso, também em sua cadeia alimentar. Se o humano, por exemplo, não ingressar em cavernas habitadas por morcegos que se alimentam de moluscos e outros animais que ali vivem, inclusive tendo vírus como hospedeiros, se não os capturar para vendê-los vivos em feiras livres, ou domesticando-os para deles se alimentarem, os vírus transmitidos pelos morcegos não encontrarão as novas fontes de alimentos, ou seja, o ser humano. Ao deixar o hospedeiro originário, o vírus acaba por sofrer uma mutação, até porque, quer se manter vivo) e aí acaba


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por se adaptar ao novo hospedeiro que é o homem e, assim, prejudica a sua saúde, como ocorreu com o COVID19. Eliminando os seus habitats, esses animais e os vírus que vivem em harmonia com eles, passam a buscar uma forma de sobreviver; se esses espaços não fossem invadidos ou eliminados, esses vírus não atacariam o ser humano. Não sabemos quais são os hospedeiros que um morcego, uma cobra ou um fruto do mar possuem. Manter esses animais vivos, domesticando-os para venda, no mercado, para deles nos alimentar, retirando-os do seu habitat natural exótico, que foi destruído, causa desastres biológicos inimagináveis. Entretanto, o homem não possui a imunidade virótica que os demais seres vivos, daquele habitat destruído, possuíam. Assim, o desastre biológico se consuma, trazendo prejuízos ao meio ambiente. E o que é esse desastre biológico? Ele nada mais é que a participação do ser humano interagindo com meio ambiente, sem conhecê-lo, sem um estudo prévio. A Amazônia já deu mostras desses desastres ambientais, como por exemplo, quando o homem atua em garimpos, invadindo espaços naturais e atraindo para si: doença de chagas, malária, dengue, dentre outros. Assim, é importante alertarmos que o ser humano não poderá continuar a interferir nas outras formas de vida que disputam com ele, espaços demarcados, no planeta. Continuar a invadir espaços, sem estudá-los, pelo mero prazer de se obter recursos econômicos, acaba trazendo mais prejuízos que benefícios. Logo, é preciso que estejamos alertas para não continuarmos a repetir esse ciclo devastador, como ocorreu com o Corona Vírus que vem sofrendo várias mutações e causando inúmeras mortes. Nesse sentido, explorar um determinado bioma, sem estudálo e conhecê-lo adequadamente e alterar o meio ambiente, causará um desastre biológico, que trará as seguintes consequências: 1) Alterações no meio ambiente, desequilibrando-o; 2) Provocará, nos seres vivos que ali vivem alterações nos seus hospedeiros, os quais migrarão para o homem, que passará a ser o novo hospedeiro; 3) Provocará alterações no patógeno (patógeno são organismos capazes de causar


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doenças em um hospedeiro). É de se destacar que existem organismos com grande patogenicidade, produzindo sintomas em praticamente todos os infectados, como por exemplo, o sarampo, que é contagioso. Segundo Kokke (2020, vídeo) são exemplos de alterações no patógeno: ZIKA VÍRUS: - um tipo de vírus transmitido por artrópodes, como insetos. Esse vírus é parente de outros, como os causadores de dengue e outras doenças. ORIGEM: foi isolado em macacos rhesus da floresta ZIKA, em Uganda. Por 50 anos causou surtos isolados e poucos casos em humanos eram conhecidos. ÉBOLA: - A doença é causada pelo vírus ebola é uma zoonose, cujo hospedeiro mais provável são os morcegos. Quatro dos 5 subtipos ocorrem em hospedeiro animal nativo da África. Acredita-se que o vírius foi transmitido para o homem através do contato com sangue, órgãos e fluidos corporais de animais infectados, como chipanzés, gorilas, morcegos gigantes, antílopes e porcos espinho. O agente da doença é um vírus da família Ebola, descoberto em 1.976, a partir de surtos ocorridos no Sudão e norte da República Democrática do Congo, às margens do Rio Ebola. SARS – Síndrome Respiratória Aguda – foi transmitida por gatos domésticos para os seres humanos; SÍNDROME RESPIRATÓRIA DO ORIENTE MÉDIO – Passou de dromedários para os seres humanos. AEDES AEGYPTI – oriundo do Egito

Dessa forma, o equilíbrio ecológico evita epidemias e pandemias. E se a Amazônia é um bioma ainda desconhecido ser humano, que não tem a noção de quantos seres ali vivem, e quais são as suas formas de vida, torna-se primordial realizar estudos, antes de se permitir a exploração dos habitats e biomas de seres que ainda não conhecemos. É preciso compreender que a vida humana precisa ser preservada e com qualidade de vida. Por conseguinte, o art. 5º. da CF/88, que trata de direitos fundamentais, em seu caput, garante a todos o direito à vida:


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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) omissis (gn)

E, nessa linha de pensamento, perguntamos: como garantir o direito à vida se não controlarmos ou encontrarmos uma maneira de evitar os desastres biológicos? É importante destacar que os direitos fundamentais insertos na CF/88, se constituem em cláusulas pétreas (que não podem ser modificados), devendo o Estado garantir esses direitos a todos. Assim, devemos exigir que nossos legisladores e governantes cumpram a constituição federal, em relação ao meio ambiente. Devemos dizer “não” ao licenciamento ambiental acelerado, “não” à mineração em terras indígenas, “não” à transformação de terras indígenas e terras de plantio industrial de grande escala, com a derrubada da vegetação e extinção dos biomas; “não” à destruição da floresta para o plantio de alimentos, pois já temos terras cultiváveis o suficiente para produzirmos alimentos. Também precisamos dizer “não” ao Projeto de Lei nº 2.963/2019, que prevê, indiscriminadamente, a venda de terras para estrangeiros, sem a devida cláusula da não destruição dos biomas. É de se enfatizar que é a saúde planetária que está em jogo. As terras indígenas prestam um serviço ambiental e sanitário imenso a todos nós. Nesse sentido é de se destacar que é necessário aplicar o Princípio Ambiental da Precaução, com urgência. Nesse conjunto de ideais, Pozzetti e Gomes (2018, p. 84), ao comentarem esse princípio, de número 15, inserto na Declaração do Rio/92, esclarecem: A Declaração tem um viés de compromisso ético entre os países que dela participaram, e o princípio da precaução,


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desde então, tem sido utilizado amplamente pela doutrina e por legisladores como um parâmetro para obstar atividades quais inexistam certezas científicas.

Pois bem, e não só esses motivos, relacionados à saúde que devem movimentar a exploração sustentável da Amazônia, como um todo. E, sendo assim, quais são os demais motivos que subsidiariam a decisão de manter a floresta em pé, com exploração mínima de seus biomas, sem destruí-los, mas fazendo-os com conhecimento prévio e devidamente esclarecido e informado? Alguns dizem que ela é o pulmão do mundo; entretanto o Protocolo de Kyoto, excluiu a Amazônia de ser beneficiária dos créditos de carbono, sob a alegação de que a floresta amazônica é composta de florestas nativa, com árvores velhas; e que árvores velhas não sequestram carbono (e declarou que somente árvores novas sequestram carbono), não podendo negociar carbono no mercado internacional. Com esse enfoque, o Protocolo viabilizou o recebimento de Crédito de Carbono somente às florestas plantadas, destacando que a florestas nativas não teriam direito a receber créditos de carbono, porque em sendo nativas, são árvores velhas e não sequestram mais o carbono. Isso é um grande equívoco, e nos parece conspiração para eliminar o direito de todos esses povos que são “guardiões da floresta” e que a possuem em seu território; não é justo que percam o direito de receber esse crédito, pelos serviços ambientais prestados ao planeta. Nesta questão, vemos a tentativa do mercado financeiro em lançar mão às terras que abrigam a floresta, inclui: 1) A intenção é a de excluir a Amazônia como partícipe dos Créditos de Carbono e não permitir a sustentabilidade dos povos originários; dessa forma, as terras indígenas seriam exploradas, a floresta derrubada e a exploração de minérios e madeira, seriam exploradas de forma disfarçada. Vemos claramente o desvio de finalidade, pois a floresta amazônica é exuberante, de mata fechada e todos os dias milhares de sementes são lançadas ao solo e, ao


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germinarem, nascem novas árvores, aptas a sequestrarem o carbono da atmosfera, além das árvores que também morrem e sofrem o processo de decomposição. 2) as árvores ancestrais são uma bomba d’água natural que produz chuva ao resto do país e a outros países no continente, contribuindo para o equilíbrio do clima do planeta. A produção de chuvas da floresta amazônica beneficia o planeta todo, pois refresca o ambiente do trópico, tornando as demais áreas, fora da floresta, férteis e cultiváveis e produtoras de alimentos. A não ser essas chuvas, o clima se modificará e a produção de grãos sofrerá prejuízos, quer no tocante a qualidade de grãos não granados (e mirrados) quer na quantidade de produção. Segundo Pena (2020, p. p): A expressão “rios voadores da Amazônia” foi criada para designar a enorme quantidade de água liberada pela Floresta Amazônica em forma de vapor d’água para a atmosfera, sendo transportada pelas correntes de ar. De acordo com o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), uma única árvore de 10 metros de altura emite uma média de 300 litros de água por dia, mais do que o dobro do total de água consumida por uma pessoa durante o dia para beber, cozer alimentos, tomar banho etc (gn)

Dessa forma, o fenômeno da Bomba d’ água e dos “rios voadores” produzidos pela floresta amazônica, é de extrema importância para os países da América e para todo o planeta; pois o Brasil é um grande exportador de grãos para diversos países, contribuindo com a alimentação planetária. E, segundo Abramovay (2019, p.25): O crescimento da agricultura brasileira deixou de ser intensivo de terra para ser cada vez mais, intensivo em tecnologia. Entre 1991 e 2017, a produção de grãos e oleaginosas no Brasil subiu 312%, mas a área plantada cresceu apenas 61%, como mostram as informações do observatório do Clima.


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Assim sendo, a contribuição da floresta em pé, para o planeta é inestimável. A floresta amazônica, vale mais em pé do que derrubada. Se for destruída para exploração de madeira e minérios, o planeta agonizará porque haverá uma grande quantidade de epidemias que se transformarão em pandemias, atingindo todo o planeta; como estamos experimentando, no caso da COVID19. Precisamos, com urgência, compreender e tomarmos atitudes rápidas e eficientes no tocante a salvarmos a floresta, conscientizando não só os governantes dos países Panamazônicos, mas também da Guiana Francesa. Nesse sentido é preciso dizer que, embora a Guiana Francesa seja um território ultramarino e que não comunga com as mesmas dificuldades que os países Panamazônicos suportam, ela possui parte da floresta em seu território. E, assim sendo, precisa se alinhar às ações de preservação. O bioma precisa ser preservado de destruição de qualquer natureza, é preciso respeitar os espaços lacustres, de florestas, da fauna e da flora. A exploração desses recursos deverá ocorrer de forma a conservar a área. A destruição de habitats de seres vivos, ainda desconhecidos pelo homem, trarão grande prejuízo à saúde planetária. Além disso, sem o fenômeno da Bomba d’água, a região se tornará um deserto, modificando o clima não só da região, mas de todo o planeta, que sofrerá com grandes secas, com cataclismos e grandes catástrofes ambientais. Se hoje, os ventos aliseos que cortam essa área do planeta carregam os vapores d’água para o restante do Brasil e demais países, promovendo as chuvas. Logo, sem a floresta e sem os rios voadores, os ventos levarão calor do deserto e não mais vapor d’água… Isso modificará a paisagem de todo o clima planetário, causando danos ambientais transfronteiriços. E, nesse sentido, Abramovay (2019, p. 40) destaca que: A conversão de imensas superfícies do Cerrado (parte do qual encontra-se a Amazônia) em área agrícola também está comprometendo o ciclo de água. Entre 2003 e 2013, a área de


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cultivos agrícolas no Cerrado passou de 1,2 milhões a 2,5 milhões de hectares; 7,4% das novas áreas de cultura vieram de vegetação previamente intacta. Isso reduziu o montante de água reciclada para a atmosfera via evapotranspiração. Só em 2013, as áreas de cultura agrícola reciclaram 14 km3 a menos do que se estas áreas não tivessem sido desmatadas, como mostra o artigo de Spera et al. (2016) na Global Change Biology.

E continua Abramovav (2019, p. 41): O Relatório da Embrapa Visão 2030: o futuro da agricultura brasileira mostra que as mudanças climáticas devem provocar perdas para a agricultura de US$ 7,4 bilhões em 2020 e US$ 14 bilhões em 2070. A soja seria a principal perdedora, mas produtos como café, milho, arroz, feijão, algodão e girassol também devem ser afetados.

Vemos, portanto, que são dados científicos, produzidos pelas agências governamentais. A quem interessa a destruição da floresta amazônica e, consequentemente o perecimento do sistema natural de produção de chuvas e de biodiversidade que essa floresta produz? Se um dos pilares da economia brasileira é o agronegócio, porque destruirmos esse sistema? Sem o regime de chuva, os solos amazônicos, que são arenosos, se transformarão em deserto, não produzindo mais agua e nem chuvas abundantes e o prejuízo à agricultura será enorme. A mídia, desde há muito, noticia que o Brasil é o celeiro do mundo, que sua missão é a de produzir alimentos para toda a humanidade. Sem chuvas, não haverá produção de alimentos; o Brasil perde, devastando sua economia e o planeta agonizará com a “grande fome”. A partir dessa perspectiva, Abramovay (2019, p.26) destaca que: O recém lançado relatório da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) sobre o futuro da agricultura brasileira ressalta o “desacoplamento entre produção agrícola


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total e mudança dos usos da terra. A destruição florestal não é, portanto, premissa para o aumento da produção de soja.

Dessa forma, é importante enfatizar que o bioma amazônico, presta os seguintes serviços ambientais: 1) produção de chuvas; 2) biodiversidade com plantas e animais que com a colaboração da ciência produzirão muitos frutos para a humanidade, se não forem extintos; 3) oxigênio, pois todos os dias são milhares de sementes lançadas ao solo, com o surgimento de novas árvores na floresta fechada. Outro ponto importante é que os rios da floresta amazônica são caudalosos e que o rio Negro, por exemplo, possui águas da cor negra em virtude da pigmentação liberadas pelas algas que vivem no seu interior. Sem o fenômeno das chuvas, da bomba água e desertificação do bioma, não haverá mais rios e nem algas. Logo, o fenômeno da produção de oxigênio para o planeta, também estará comprometido. Além disso, outros sistemas serão prejudicados; pois a floresta produz chuva suficiente para irrigar e manter a umidade de outros biomas. Estes rios voadores produzem chuvas para todo o Brasil e para toda a América Latina e ajuda a manter vivo o Canal do Panamá, cuja economia depende, em grande parte, dos serviços prestados aos navios que necessitam fazer a travessia do oceano Atlântico para o Pacífico. Dessa forma, havemos que concluir que a exploração da madeira, de minérios, petróleo ou construção de hidroelétricas não serão uma forma acertada de exploração da Amazônia. Há a necessidade de compreendermos, e urgente, que a preservação do bioma é mais importante para o planeta do que se parece. 4 A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL NA GUIANA FRANCESA E O PROJETO DE INTEGRAÇÃO AMAPÁ X GUIANA FRANCESA A legislação ambiental aplicada à Guiana Francesa, salvo exceções, é a mesma aplicada na França, mas o legislador buscou


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trazer algumas peculiaridades regionais. Nesse sentido, faremos um breve apanhado das proteções ambientais, na Guiana, não nos sendo possível aprofundar estudos nesse pequeno espaço; por essa razão, pontuaremos apenas, alguns detalhes. A Guiana Francesa, embora à distância física que a separa da França, possui característica diversas dos demais países amazônicos, uma vez que seus habitantes utilizando o euro, como moeda, possuem um padrão de vida diverso dos demais povos que habitam a Amazônia. Sendo uma parte da França no continente sul americano, com aspectos culturais diferenciados, há questões que distanciam os franco-guianenses dos demais povos da Amazônia e, em razão dessa questão geopolítica, a França foi excluída do TCA – Tratado de Cooperação Amazônica (1.978), com base no através do artigo 27 desse TCA. Segundo Toledo (2019, p.p): Há dificuldades práticas para inserir a Amazônia na dinâmica interna do país europeu. Isso não impede, entretanto, que a Guina Francesa se destaque regionalmente por conta da existência de mecanismos de amparo do Estado de bem-estar social. Isso faz com que a Guiana Francesa seja o destino de muitos migrantes brasileiros, haitianos, surinameses e guianenses. O Território ultramarino francês, na Amazônia, tem estatutos específicos para os povos indígenas e exploração da região. Apesar da distância, a França é soberana sobre uma pequena porção da Amazônia, o que faz com que o Direito francês seja ali aplicado. Analisando as normas internas relativas à Amazônia, destaca-se a Carta Ambiental, que, em consonância com todo o bloco constitucional, obriga a França a agir para proteger o meio ambiente amazônico, impedindo a prática de atos potencialmente destrutivos.

Nesse sentido, a França possui uma legislação europeia que é aplicada à Guiana, destacando-se legislação específica para os cursos d’água, onde o Estado deve garantir que as intervenções artificiais não comprometam o bom funcionamento dos ecossistemas aquáticos à


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jusante. No tocante aos recursos minerais, estes são de propriedade do Estado e há legislação especifica que, para explorá-los, deve-se observar com rigidez ao Princípio da Prevenção. Entretanto, esse é um tema muito controverso, no tocante à exploração do ouro, porque apesar do controle do Estado francês sobre a mineração, há um aumento significativo da procura do mesmo, o que tem incentivado movimentos migratórios regionais – tem causado importantes impactos socioambientais na floresta, que cobre 95% do território ultramarino e é um dos últimos massivos equatoriais quase intactos. O garimpo ilegal de ouro em terras indígenas também é um desafio enfrentado pelo Estado na Guiana Francesa; pois sofre uma invasão de garimpeiros ilegais e, como a floresta cobre 95% do território. A pratica ilegal de extração de ouro, inclusive em terras indígenas, fica de difícil controle e fiscalização pela França. (TOLEDO, 2019). A França também tem criado mecanismos legislativos de proteção da fauna e flora, proibindo o comércio de determinadas espécies. E, conforme Toledo (2019, p.p): Segundo a lei francesa, é possível que recursos biológicos encontrados no Parque Amazônico da Guiana sejam explorados e aproveitados, desde que seja garantida a partilha de benefícios. Trata-se de um regime específico de consentimento, fundado na repartição de competências entre a região e o departamento, em vista de utilização sustentável dos recursos amazônicos franceses. Na Guiana Francesa, assim como em outros departamentos ultramarinos, reservas biológicas integrais têm sido instituídas com o propósito de constituir redes representativas da diversidade dos ecossistemas florestais e proteger as florestas primárias, o que implica uma atuação harmônica com os modos de vida das populações tradicionais. (gn)

Assim, verificamos que embora a Guiana Francesa seja uma parte da Europa no continente Americano e, muito embora a metrópole esteja muito distante para fiscalizar e implantar Políticas Públicas, há esforços significativos de proteção ambiental; entretanto


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é necessária essa integração com os demais países que fazem parte da Amazônia. Nesse sentido, Toledo esclarece (2019, p.p): Apesar de ser um país desenvolvido, a França enfrenta os mesmos desafios socioambientais enfrentados pelos outros oito Estados subdesenvolvidos, no que concerne à proteção da Amazônia. Em vista desse objetivo comum, é importante considerar a França, não apenas em termos geográficos, mas em termos político-jurídicos, como Estado amazônico, de modo a facilitar a construção de instrumentos de cooperação internacional. (gn)

Dessa forma, verificamos que a integração da Guiana Francesa aos demais países do bloco da Panamazônia, mesmo não sendo parte do TCA, se faz urgente e necessária, para que juntos, esses países unam esforços para definir o que deve ser explorado no bioma, de que forma isso deve ser feito e quais as cautelas necessárias para se obter êxito. Há a necessidade de se unir esforços prementes para uma efetiva fiscalização e punição daqueles que só visam o capital; pois é preciso frear as ações que colocam em risco a vida no planeta. As análises realizadas nessa pesquisa nos mostraram que as epidemias e pandemias se tornarão mais frequentes em nossas vidas se o capitalismo não deixar a sua característica de “selvagem” para passar a ser um capitalismo “social”, privilegiando o bem-estar e a saúde de todos os seres que habitam o planeta terra; caso contrário, a vida no planeta se tornará insustentável. 5 CONCLUSÃO A problemática que movimentou essa pesquisa foi a de analisar de que forma o bioma amazônico contribui para a sustentabilidade alimentar e ambiental do planeta. Os objetivos foram cumpridos à medida em que se analisou os serviços ambientais que a floresta amazônica, nela incluída a Guiana Francesa, presta à manutenção da vida, com alimentação e meio ambiente equilibrado à


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população planetária. A conclusão a que se chegou foi a de que o solo do bioma amazônico é arenoso e pobre, que se sustenta através do processo de retro-alimentação da vegetação e que a ação destruidora do homem, poderá ocasionar o surgimento de novas pandemias colocando em risco a saúde da população planetária, além do que, inexistindo a vegetação, o local se transformará num deserto, extinguindo o fenômeno dos rios voadores, causando prejuízo ao clima planetário, que ocasionará a alteração do regime de chuvas no planeta e prejudicará a produção de alimentos, reduzindo a quantidade de produtos e qualidade dos grãos alimentares. Logo, se faz necessário medidas urgentes para frear a exploração desmedida do Bioma Amazônico, sob pena de transformamos um bioma destinado à Sustentabilidade ambiental em uma insustentabilidade. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Ricardo. Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza. Ed. Elefante, São Paulo, 2019. ARAÚJO DA SILVA, Osíris M. Pan-Amazônia: cooperação e integração para o desenvolvimento. In: Pan-amazônia: visão histórica, perspectivas de integração e crescimento. Org. ARAÚJO DA SILVA, Osiris M; HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. Manaus; Prefixo Editorial; 2015. CAVLAK, Iuri. Introdução à história da Guiana Francesa. Editora da Universidade Federal do Amapá; Macapá: 2017. BRASIL, Constituição da República Federativa do. Congresso nacional, Brasília, 1.988. IBF – INSTITUTO BRASILEIRO DE FLORESTAS. Bioma Amazônico. Disponível em: https://www.ibflorestas.org.br/bioma-amazonico, consultado em 20 jul. 2020 KOKKE, Marcelo. Desastres Biológicos. Aula ministrada em 24.03.2020 , na Escola de Direito DOM HELDER CÂMARA. Disponível em https://youtu.be/9IXIeclC2P4, consultada em 20 jul.2020.


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ONU. Organização das Nações Unidas. Relatório da UNEP. Programa de Meio Ambiente. Disponível em: https://www.unenvironment.org/pt-br, consultado em 20 jul. 2020. ONU. Organização das Nações Unidas. PNUMA (Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente). Matéria publicada sem data. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/pnuma/, consultado em 20 jul. 2020. ONU. Organização das Nações Unidas. OMS (Organização Mundial da Saúde). Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/opasoms/, consultado em 20 jul. 2020. PENA, Rodolfo Alves. Rios Voadores da Amazônia. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/brasil/rios-voadores-amazonia.htm, consultado em 2302 jul. 2020 POZZETTI, Valmir César e GOMES, Wagner Robério Barros. O princípio da precaução e o pacote do veneno: o projeto de lei nº 6.299/2002 e as estratégias para enfraquecer a fiscalização dos agrotóxicos no brasil. Revista de Direito Agrário e Agroambiental. Porto Alegre, v. 4; n.2; |Jul/Dez, 2018. Disponível em: file:///C:/Users/VALMIR~1/AppData/Local/Temp/501214629-1-PB.pdf, consultada em 20 jul. 2020. TOLEDO, André de Paiva. A Guiana Francesa e a Amazônia. In: PanAmazônia: Ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental. Org. Beatriz Souza Costa. Editora Dom Helder, Belo horizonte, 2016. TURA, Letícia. Como nasceu e o que é o conceito de Pan-Amazônia? Disponível em https://repam.org.br/?page_id=866, consultado em 20 jul. 2020.


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CAPÍTULO 3 A OBRIGAÇÃO DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL NO DIREITO INTERNACIONAL Amael Notini Moreira Bahia Lucas Carlos Lima

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INTRODUÇÃO: O CRESCIMENTO DA QUESTÃO AMBIENTAL NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE DA HAIA A obrigação de conduzir um estudo de impacto ambiental (EIA) é uma obrigação central no direito internacional ambiental. Associada à obrigação de diligência devida, ela estabelece, em poucas palavras, que diante da existência de um risco de dano ambiental, Estados devem realizar estudos para avaliar, mitigar e monitorar quaisquer atividades que possam causar significativo dano transfronteiriço. Porquanto uma obrigação oriunda do direito internacional geral, seus exatos contornos, âmbito de aplicação e conteúdo são definidos, essencialmente, pela prática dos Estados e pelas cortes internacionais. Consequentemente, há alguma incerteza em relação a esses elementos. Nesse sentido, para compreender a natureza jurídica dessa obrigação, bem como sua relação com as demais obrigações procedimentais e substanciais do direito ambiental internacional, faz-se necessário examinar suas manifestações em duas instâncias: o processo de codificação no interior da Comissão de Direito Internacional (CDI) e suas recentes aparições no contencioso internacional interestatal perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ). Embora não tenha sido claramente prevista no âmbito das Conferências de Estocolmo de 1972, a obrigação do Estudo de Impacto é inserida no discurso jurídico internacionalista na segunda


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metade do Século XX. Sua aparição se deu principalmente no âmbito de legislação nacional, sendo os Estados Unidos o primeiro Estado a especificamente promulgar normas nesse sentido. A transposição para o Direito Internacional ocorre concomitantemente ao crescimento da preocupação ambiental na agenda internacional. Nesse sentido, uma série de debates ocorreram no interior do Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente buscando melhor delinear o conteúdo e escopo da obrigação. A obrigação do EIA emerge claramente na Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de 1992. Seu princípio 17 da Declaração prevê expressamente que “a avaliação do impacto ambiental, como instrumento nacional, deve ser empreendida para atividades planejadas que possam vir a ter impacto negativo considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma decisão de autoridade nacional competente.”3 Os termos adotados na redação deste princípio sugerem o reconhecimento de uma obrigação existente no direito internacional geral, em vez de uma exortação programática como ocorre em outros princípios. Diversos tratados internacionais incorporam e detalham a obrigação4 bem como avanços ocorreram no campo do direito

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CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992. Disponível em: https://www.un.org/en/development/desa/population/migration/generalassembly/docs/globalco mpact/A_CONF.151_26_Vol.I_Declaration.pdf. Acesso em: 30/07/2020. Princípio 17. Ver, nesse sentido, CRAIK, Neil. Principle 17: Environmental Impact Assessment. In VIÑUALES, Jorge (org). The Rio Declaration on Environment and Development: a commentary. Oxford: Oxford University Press, 2015. Por exemplo: Convention on Environmental Impact Assessment in a Transboundary Context (Espoo Convention); Kuwait Regional Convention for Co-operation on the Protection of the Marine Environment from Pollution; Convention on Biological Diversity; Convention on Transboundary Effects of Industrial Accidents; ASEAN Agreement on the Conservation of Nature and Natural Resources; Convention for the Protection of Natural Resources and Environment of the South Pacific Region; Protocol on Environmental Protection to the Antarctic Treaty; Regional Convention for the Conservation for the Environment of the Red Sea and Gulf of Aden.


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internacional do mar.5 Convenção importante nesse sentido é a Convenção Espoo. Enquanto obrigação costumeira do direito internacional geral, contudo, muito debate ocorreu até sua definitiva utilização na sentença do caso Pulp Mills (Argentina v. Uruguai) em 2010. Apesar do amplo recurso à obrigação na prática internacional, o preciso conteúdo da obrigação ainda é objeto de controvérsia. Numa primeira seção, analisar-se-á o desenvolvimento e a percepção do conteúdo e natureza da obrigação de EIA no estudo da Comissão de Direito Internacional. Apesar do tópico se fazer presente no processo de codificação do direito internacional, sustenta-se que os trabalhos da CDI revelam ainda incertezas sobre a natureza da obrigação, seu específico conteúdo e a margem atribuída aos Estados no que se refere aos EIA. Na segunda seção, analisa-se o contencioso da CIJ e suas importantes contribuições à análise da obrigação de EIA no direito internacional. O argumento principal que este trabalho evidencia é que apesar de já ser reconhecido um núcleo significativo de requisitos consuetudinários relativos à obrigação de EIA, existe margem de discricionariedade para a ação doméstica dos Estados diante da ausência de standards internacionais vinculantes no direito internacional geral. Ainda assim, essa discricionariedade deve ser exercida em consonância com as obrigações de diligência devida, razão pela qual a adoção de padrões internacionais referenciais poderia trazer mais segurança jurídica quanto à extensão de cuidado exigida dos Estados pelo direito internacional.

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O Tribunal Internacional do Direito do Mar já reconheceu expressamente que a obrigação de EIA emana diretamente do artigo 206 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, além de ser uma obrigação consolidada no direito internacional consuetudinário. INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Responsibilities and Obligations of States sponsoring persons and entities with respect to activities in the area. Case No. 17. Advisory Opinion of 1 February 2011. para. 145.


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2 O PROCESSO DE CODIFICAÇÃO DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL NA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Em 2001, a Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (CDI) consolidou o Projeto de Artigos sobre a Prevenção de Dano Transfronteiriço por Atividades Perigosas, originado a partir da cisão do tópico da Responsabilidade Internacional por Consequências Nocivas decorrentes de Atos não Proibidos pelo Direito Internacional. No desenvolvimento desse documento foram ressaltados os exemplos de diversas experiências nacionais e internacionais de EIA na tentativa de delimitar seu escopo e os elementos normativos. Ademais, o documento oferece indicações importantes sobre o então atual estado das obrigações internacionais sobre os EIA. Os debates no interior da Comissão também revelam quais são os principais pontos de dissidência em relação ao conteúdo e natureza da obrigação. Ainda no início da elaboração desse documento, o segundo relator especial do tema original, Julio Barboza, argumentou pela inclusão da obrigação da realização de uma avaliação de riscos dos projetos potencialmente nocivos ao meio ambiente com impactos transfronteiriços, tendo em vista o extenso quantitativo de tratados bilaterais e multilaterais que já haviam consolidado a prática internacional acerca da matéria.6 Ainda assim, Barboza observou que, mesmo que essa obrigação tenha se consolidado na prática internacional, os instrumentos analisados não continham uma 6

Na primeira análise aprofundada do tema, foram citados os seguintes instrumentos internacionais: Kuwait Regional Convention for Co-operation on the Protection of the Marine Environment from Pollution (1978), art. XI; Convention on the Long-Rang Transboundary Air Pollution (1979), art. 8; United Nations Convention on the Law of the Sea (1982), art. 200; Agreement between the United States of America and Mexico on co-operation for the protection and improvement of the environment in the border area (1983), art. 7. BARBOZA, Julio. Fifth report on international liability for injurious consequences arising out of acts not prohibited by international law. Yearbook of the International Law Commission, vol. II (1), 1989. p. 142-143.


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obrigação propriamente dita, dada a ausência de consequências previstas para o caso de seu descumprimento.7 Após a adoção da Convenção de Espoo sobre EIA, Barboza adotou uma postura mais assertiva acerca do tema, desenvolvendo uma argumentação mais extensa a esse respeito. Ao ser questionado sobre o suposto ônus excessivo alocado ao Estado pela positivação das obrigações de realizar o EIA, como também as de notificar e de consultar, Barboza afirmou que tais obrigações não apenas encontram respaldo na prática internacional, mas também derivam naturalmente da própria jurisdição territorial exclusiva exercida pelo Estado.8 Utilizando-se dos conceitos de jurisdição territorial construídos no caso da arbitragem da Ilha de Palmas, Barboza ponderou que, considerando a obrigatoriedade usual da realização de EIA para atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente sob a jurisdição dos Estados, seria apenas lógico que essa avaliação fosse realizada e comunicada também aos Estados que poderiam potencialmente ser afetados por tais atividades.9 De todo modo, essas 7

BARBOZA, Julio. Sixth report on international liability for injurious consequences arising out of acts not prohibited by international law. Yearbook of the International Law Commission, vol. II (1), 1990. p. 92. 8 BARBOZA, Julio. Seventh report on international liability for injurious consequences arising out of acts not prohibited by international law. Yearbook of the International Law Commission, vol. II (1), 1991. p. 82. 9 Ao comentar o conceito de soberania desenvolvido no caso da arbitragem da Ilha de Palmas, Barboza realizou as seguintes considerações: " These concepts were well established in the Island of Palmas case: "Sovereignty in the relations between States signifies independence. Independence in regard to a portion of the globe is the right to exercise therein, to the exclusion of any other State, the functions of a State. The development of the national organisation of States during the last few centuries and, as a corollary, the development of international law, have established this principle of the exclusive competence of the State in regard to its own territory in such a way as to make it the point of departure in settling most questions that concern international relations." (United Nations, Reports of Inter- national Arbitral Awards, vol. II, p. 838.). To this sovereign right corresponds an obligation that the arbitrator Max Huber points out a little further on: “Territorial sovereignty, as has already been said, involves the exclusive right to display the activities of a State. This right has, as corollary, a duty: the obligation to protect within the territory the rights of other States, in particular their right to integrity and inviolability in peace and war, together with the rights which each State may claim for its nationals in foreign territory. Without manifesting its territorial sovereignty in a


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considerações não impõem que o Estado realize diretamente a avaliação dos riscos, incumbência essa que é alocada ao operador do serviço ou atividade a ser implementada, cabendo ao Estado a responsabilidade de revisar e verificar a coerência técnica do EIA. 10 Nesse sentido, os Estados Unidos da América reiteraram que o mais adequado seria que os governos realizassem o EIA exclusivamente para atividades conduzidas pelo Estado, enquanto os riscos decorrentes de atividades privadas poderiam ser mitigados por meio de leis domésticas de responsabilidade e programas de garantia.11 Após a cisão do tema, a matéria do EIA foi retomada pelo primeiro relator especial da seção de prevenção do dano transfronteiriço, Pemmaraju Rao. Em seu entendimento, a obrigação de conduzir EIA seria um requisito do dever de prevenir o dano transfronteiriço significativo.12 Ainda assim, observa que as legislações domésticas preveem penalidades autônomas para o caso de seu descumprimento, tais como a suspensão temporária ou permanente da atividade.13 Após uma análise extensiva do mecanismo de EIA no âmbito legislativo interno dos Estados, Rao ressaltou a dissonância na prática internacional, referenciando o entendimento de que essa não passaria de uma mera tendência progressiva do direito internacional, manner corresponding to circum- stances, the State cannot fulfil this duty. Territorial sovereignty cannot limit itself to its negative side, i.e. to excluding the activities of other States; for it serves to divide between nations the space upon which human activities are employed, in order to assure them at all points the minimum of protection of which international law is the guardian." (Ibid, p. 838.). In one of the debates on this matter in the Commission it was said that if a State is responsible for the harm that activities in its territory may cause to foreigners within that territory, a fortiori it must be responsible for harm caused to persons who reside in the territory of the affected State. Something similar may be said of expeditions organized within the territory of one State against the Government, or the public order, of another State”. Ibidem. 10 Ibidem. 11 UNITED STATES OF AMERICA. Comments and observations received from Governments. Document A/CN.4/481 and Add.1. Yearbook of the International Law Commission, vol. II (1), 1997. 12 RAO, Pemmaraju. First report on prevention of transboundary damage from hazardous activities. Yearbook of the International Law Commission, vol. II (1), 1998. p. 201-203. 13 Ibidem.


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podendo-se dificilmente derivar um caráter vinculante dessa norma procedimental.14 Por fim, afirmou que a efetividade dessa obrigação na legislação dos países em desenvolvimento restou incerta.15 De todo modo, em seu art. 7, o Projeto de Artigos apresenta a obrigação de conduzir EIAs nos seguintes moldes: Qualquer decisão a respeito da autorização de uma atividade inserida no escopo dos presentes artigos deverá, em particular, ser baseada em um estudo dos potenciais danos transfronteiriços causados pela atividade, incluindo qualquer estudo de impacto ambiental.16

Dentre os elementos centrais contidos nos comentários da CDI sobre a redação final desse tópico, observa-se que foi adotado o entendimento de que a alocação da responsabilidade da realização do EIA seria deixada à discricionariedade dos Estados por meio de seu direito doméstico. Presumiu-se, entretanto, que seria designada uma autoridade, governamental ou não, para avaliar os estudos realizados, de forma que o Estado aceitaria a responsabilidade pelas decisões de tal autoridade.17 O conteúdo do estudo a ser realizado não foi especificado pela CDI. Na sistemática adotada, os componentes do estudo foram delegados à regulação pelo direito doméstico dos Estados, de forma que o único requisito cogente seria a avaliação dos potenciais impactos transfronteiriços da atividade a ser desenvolvida.18

14

Ibidem. Ibidem. 16 Do original: “Any decision in respect of the authorization of an activity within the scope of the present articles shall, in particular, be based on an assessment of the possible transboundary harm caused by that activity, including any environmental impact assessment”. INTERNATIONAL LAW COMMISSION. Draft Articles on Prevention of Transboundary Harm from Hazardous Activities, with commentaries. Yearbook of the International Law Commission, vol. II, Part Two, 2001. 17 Ibidem. 18 Ibidem. 15


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Assim, verifica-se que o presente tema foi abordado de forma meramente tangencial pela CDI, tendo sido codificado em termos abstratos e com forte dependência a posterior regulamentação interna pelos Estados. Mesmo que tenha sido ressaltada nos comentários finais a existência de uma prática internacional consistente em matéria de tratados internacionais, as ressalvas do último relator especial e os termos gerais utilizados para a implementação dessa obrigação sugerem que dúvidas existiam sobre a natureza jurídica dessa obrigação, bem como de seus elementos normativos. 3

O ESTUDO CONTENCIOSO JUSTIÇA

DE DA

IMPACTO AMBIENTAL NO CORTE INTERNACIONAL DE

No passado, a obrigação do EIA apareceu de maneira tangencial na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, bem como nas opiniões individuais de alguns juízes.19 Somente no contencioso recente da Corte é que avanços significativos ocorreram no sentido de melhor precisar os contornos da obrigação. Passados 10 anos da adoção das conclusões da CDI acerca do tema da prevenção, a Corte Internacional de Justiça teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema do EIA no caso Pulp Mills (Argentina v. Uruguai). Nesta ocasião, a Argentina havia acionado a jurisdição da CIJ em razão da construção de usinas de celulose no território Uruguaio, alegando que estas teriam efeitos danosos sobre o Rio Uruguai, um curso d’água internacional 19

WEERAMANTRY, Christopher. Dissenting Opinion of Judge Weeramantry on the Request for an Examination of the Situation in Accordance with Paragraph 63 of the Court's Judgment of 20 December 1974 in the Nuclear Tests (New Zealand v. France) Case. Disponível em: https://www.icj-cij.org/files/case-related/97/097-19950922-ORD-01-05-EN.pdf. Acesso em: 30/07/2020. p. 344-345; WEERAMANTRY, Christopher. Separate Opinion of Judge Weeramantry on the Gabčíkovo-Nagymaros Project (Hungary/Slovakia) Case. Disponível em: https://www.icj-cij.org/files/case-related/92/092-19970925-JUD-01-03-EN.pdf. Acesso em: 30/07/2020. p. 108-109;


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compartilhado. Mesmo que a obrigação de realizar um EIA não estivesse codificada no Estatuto do Rio Uruguai (1975), convenção aplicável ao recurso compartilhado em questão e base da jurisdição da CIJ para análise da controvérsia, a Corte constatou que: (...) a obrigação de proteger e preservar contida no artigo 41 (a) do Estatuto, deve ser interpretada em consonância com a prática, que tem ganhado a aceitação dos Estados em tamanha escala nos últimos anos, de forma que pode atualmente ser considerado um requisito, no âmbito do direito internacional geral, a realização de um estudo de impacto ambiental quando houver um risco de que as atividades industriais propostas possam causar um impacto significativo em um contexto transfronteiriço.20

O reconhecimento pela CIJ possui alguns elementos importantes. A Corte estabelece a origem da obrigação no âmbito do direito internacional geral, ou seja, no interior de regras não escritas de natureza costumeira ou principiológica. A obrigação emerge quando existe um risco de que as atividades propostas causem um “impacto significativo” no contexto transfronteiriço. Contudo, a própria Corte reconhece que o direito internacional geral não estabelece o âmbito de aplicação e o conteúdo do estudo de impacto ambiental.21 De maneira interessante, a Corte parece reconhecer que os critérios estabelecidos pela Convenção Espoo não podem, por si só, corresponder aos requisitos do direito internacional geral, ao

20

No original: “(…) the obligation to protect and preserve, under Article 41 (a) of the Statute, has to be interpreted in accordance with a practice, which in recent years has gained so much acceptance among States that it may now be considered a requirement under general international law to undertake an environmental impact assessment where there is a risk that the proposed industrial activity may have a significant adverse impact in a transboundary context, in particular, on a shared resource”. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v. Uruguay). Judgement, I.C.J. Reports 2010, p. 14. para. 204. 21 Ibid, para 205.


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indicar que “Argentina e Uruguai não são partes da Convenção Espoo”.22 Nesse sentido: (...) cabe a cada Estado determinar na sua legislação interna ou no processo de autorização do projeto, o conteúdo específico da avaliação do impacto ambiental necessária em cada caso, tendo em conta a natureza e magnitude do desenvolvimento proposto e o seu provável impacto adverso no ambiente, bem como a necessidade de exercer a diligência devida na realização de tal avaliação.23

O raciocínio empregado pela Corte concede uma grande margem nacional em relação ao conteúdo do EIA. A construção jurídica elaborada pela CIJ foi objeto de controvérsia doutrinária, gerando duas correntes de interpretação. A primeira considerou as ponderações da CIJ como um claro reconhecimento do caráter costumeiro da norma de realizar um EIA.24 Por outro lado, a segunda ressaltou a ambiguidade do pronunciamento da CIJ, dado que as considerações foram realizadas em um contexto de análise de interpretação do Estatuto do Rio Uruguai. Assim, a segunda corrente considera que a abordagem da CIJ parece sugerir uma interpretação evolutiva do tratado analisado, não especificando se a prática subsequente consistiria em uma obrigação costumeira.25 22

Ibid, para 205. Do original: “(…) it is for each State to determine in its domestic legislation or in the authorization process for the project, the specific content of the environmental impact assessment required in each case, having regard to the nature and magnitude of the proposed development and its likely adverse impact on the environment as well as to the need to exercise due diligence in conducting such an assessment”. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Pulp Mills, op. cit., para. 205. 24 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine; RICHARD, Vanessa. The International Court of Justice’s Judgement of 20 April 2010 in the Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v. Uruguay) case, p. 309-320. In: ALMEIDA, Paula; SOREL, Jean-Marc. Latin America and the International Court of Justice. London: Routledge, 2016. p. 316-317. 25 CRAIK, Neil. The Duty to Cooperate in the Customary Law of Environmental Impact Assessment. International and Comparative Law Quarterly, vol. 69, p. 239-259, 2020. p. 244. 23


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Entretanto, ao retomar as estas considerações no caso Certain Activities/Construction of a Road, a CIJ omitiu as referências ao Estatuto do Rio Uruguai e afirmou ter concluído que o EIA se tornou um requisito no direito internacional para a condução de atividades industriais que possam gerar efeitos transfronteiriços adversos.26 Ressaltou ainda que, apesar de ter se referido apenas a atividades industriais, que eram o foco da controvérsia, o princípio basilar exarado aplica-se a quaisquer atividades que possam causar um impacto transfronteiriço significativo. Assim, em consonância com a interpretação autoritativa da CIJ de sua própria jurisprudência, assiste razão à primeira linha doutrinária mencionada. Ademais, ainda no caso Pulp Mills, a CIJ assinalou que a omissão da realização de um EIA no contexto da implementação de projetos passíveis de alterar o regime de um rio ou a qualidade de suas águas, em si, já representa um descumprimento da obrigação de diligência devida, bem como dos deveres de vigilância e prevenção que dela decorrem.27 Assim, considerando que a CIJ constatou claramente que a não realização de um EIA consistiria em uma violação da obrigação de diligência devida, obrigação esta que é respaldada tanto em âmbito costumeiro quanto convencional, a divergência doutrinária acerca da manifestação da CIJ tem apenas o condão de determinar qual o fundamento normativo da obrigação de EIA no direito internacional. A CIJ determinou alguns critérios importantes: que o EIA deve ser conduzido previamente à implementação do projeto, devendo ser realizada um monitoramento contínuo após o início das operações e, quando necessário, durante todo desenvolvimento do 26

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Certain Activities Carried out in the Border Area (Costa Rica v. Nicaragua)/Construction of a Road along the San Juan River (Nicaragua v. Costa Rica). Judgement, I.C.J. Reports 2015, p. 665. para. 104. Ver, nesse sentido, TANAKA, Yoshifumi. Costa Rica v. Nicaragua and Nicaragua v. Costa Rica: Some Reflections on the Obligation to Conduct an Environmental Impact Assessment. Review of European Community and International Environmental Law, Vol. 26, 2017, pp. 91-97. 27 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Pulp Mills, op. cit., para. 204.


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empreendimento.28 Bem como o Projeto de Artigos concebido pela CDI, a CIJ considerou que caberia à legislação doméstica ou ao processo de autorização de cada Estado determinar o conteúdo específico do EIA para cada caso, considerando a natureza e a magnitude das atividades propostas.29 Nesse sentido, surge uma controvérsia quanto à discricionariedade dos Estados na condução de EIAs, dada a incerteza quanto aos critérios específicos a serem observados na avaliação de risco das atividades a serem implementadas.30 Essa indefinição leva ao questionamento de se a CIJ revisaria a adequabilidade de um EIA, dado que a brevidade das considerações a esse respeito permite apenas pressupor que o EIA do Uruguai foi analisado e julgado regular.31 Entretanto, ainda restaram dúvidas quanto ao cumprimento das obrigações de diligência devida pelo Uruguai, dada a suposta inadequação dos dados de referência utilizados e outros aspectos de caráter técnico.32 Não obstante as ressalvas apresentadas, é improvável que a CIJ descarte, em casos presentes e futuros, um EIA realizado em boa-fé e fundamentado em evidências técnicas e científicas contundentes, a não ser que este se prove manifestamente inadequado.33 Foi então que sobreveio o julgamento do caso Certain Activities/Construction of a Road, no qual impugnava-se a drenagem de um canal pela Nicarágua e a construção de uma rodovia pela Costa 28

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Pulp Mills, op. cit., para. 205. Ibidem. 30 CRAIK, Neil. The International Law of Environmental Impact Assessment: Process, Substance and Integration. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 119. 31 BOYLE, Alan. Pulp Mills Case: A Commentary. Disponível em: https://www.biicl.org/files/5167_pulp_mills_case.pdf. Acesso em: 13/07/2020. p. 2-3. 32 PAYNE, Cymie. Environmental Impact Assessment as a Duty under International Law: The International Court of Justice Judgement on Pulp Mills on River Uruguay. European Journal of Risk Regulation, vol. 1, n. 3, p. 317-324, 2010. p. 322. 33 BOYLE, Alan. Developments in International Law of EIA and their Relation to the Espoo Convention. Disponível em: https://www.unece.org/fileadmin/DAM/env/eia/documents/mop5/Seminar_Boyle.pdf. Acesso em: 13/07/2020. p. 8. 29


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Rica, respectivamente. Em ambos os casos, julgados conjuntamente, alegou-se que um EIA era necessário, mas não havia sido conduzido.34 Também nesse julgamento, a natureza jurídica da obrigação de conduzir um EIA foi proclamada de forma interdependente com a obrigação de diligência devida: Assim, para cumprir suas obrigações de exercer diligência devida na prevenção do dano ambiental significativo transfronteiriço, um Estado deve, antes de embarcar na atividade com potencial adverso de afetar o meio ambiente de outro Estado, verificar se há um risco significativo de dano transfronteiriço, o que acionaria o requisito de conduzir um estudo de impacto ambiental.35

Houve dissonância entre os juízes acerca da natureza da obrigação de conduzir um EIA. Para a Juíza Donoghue, a obrigação de realizar um EIA, enquanto uma norma consuetudinária em si, não encontra respaldo na prática estatal e opinio juris, de forma que a mencionada obrigação apenas integraria a obrigação de diligência devida.36 Esse posicionamento foi referendado pelo Juiz Owada.37 Em sentido contrário, o Juiz ad hoc Dugard argumenta que a obrigação de conduzir um EIA se consolidou no direito consuetudinário 34

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Certain Activities, op. cit., para. 101, 102, 146. 35 No original: “Thus, to fulfil its obligation to exercise due diligence in preventing significant transboundary environmental harm, a State must, before embarking on an activity having the potential adversely to affect the environment of another State, ascertain if there is a risk of significant transboundary harm, which would trigger the requirement to carry out an environmental impact assessment”. Ibid. para. 104. 36 DONOGHUE, Joan. Separate Opinion of Judge Donoghue on the Case concerning Certain Activities Carried out in the Border Area (Costa Rica v. Nicaragua)/Construction of a Road along the San Juan River (Nicaragua v. Costa Rica). Disponível em: https://www.icjcij.org/files/case-related/152/18858.pdf. Acesso em: 18/07/2020. p. 4. 37 OWADA, Hisashi. Separate Opinion of Judge Owada on the Case concerning Certain Activities Carried out in the Border Area (Costa Rica v. Nicaragua)/Construction of a Road along the San Juan River (Nicaragua v. Costa Rica). Disponível em: https://www.icj-cij.org/files/caserelated/152/18852.pdf. Acesso em: 1807/2020. p. 5-6.


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internacional enquanto uma norma autônoma, de forma que a diligência devida seria apenas o padrão de conduta que deve ser demonstrado pelo Estado em todas as atividades voltadas à prevenção do dano transfronteiriço, incluído o EIA.38 Quanto à verificação da aplicabilidade da obrigação de realizar um EIA, no caso Certain Activities, a CIJ referenciou as manifestações dos especialistas científicos de ambas as partes 39, bem como um estudo de impacto preliminar realizado pela Nicarágua, para concluir que não haveria risco significativo de dano transfronteiriço, razão pela qual não haveria obrigação de conduzir um EIA.40 Por outro lado, no caso Construction of a Road, a CIJ abordou de forma mais analítica os aspectos da natureza e da magnitude do projeto para afirmar que estava presente o risco de dano transfronteiriço, de forma a atrair a incidência da obrigação de realizar um EIA.41 Ao constatar a incidência da obrigação do conduzir uma EIA, a CIJ verificou que os estudos apresentados pela Costa Rica foram realizados posteriormente ao início das atividades, contrariando a necessidade de avaliação prévia dos riscos.42 Por estas razões, a CIJ concluiu que a Costa Rica não cumpriu com a 38

DUGARD, John. Separate Opinion of Judge Ad Hoc Dugard on the Case concerning Certain Activities Carried out in the Border Area (Costa Rica v. Nicaragua)/Construction of a Road along the San Juan River (Nicaragua v. Costa Rica). Disponível em: https://www.icjcij.org/files/case-related/152/18868.pdf. Acesso em: 18/07/2020. p. 3-4. 39 Sobre a questão ver LIMA, Lucas Carlos. O uso de experts em controvérsias ambientais perante a Corte Internacional de Justiça. Revista de Direito Internacional, v. 13, p. 245-261, 2016. 40 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Certain Activities, op. cit., para. 105. 41 Ibid. para. 155-156. A abordagem da CIJ sobre a questão probatória foi criticada por uma parcela da doutrina. A esse respeito, ver: DESIERTO, Diane. Evidence but not Empiricism? Environmental Impact Assessments at the International Court of Justice in Certain Activities Carried Out by Nicaragua in the Border Area (Costa Rica v. Nicaragua) and Construction of a Road in Costa Rica Along the San Juan River (Nicaragua v. Costa Rica). Ejil: Talk!. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/evidence-but-not-empiricism-environmental-impactassessments-at-the-international-court-of-justice-in-certain-activities-carried-out-by-nicaraguain-the-border-area-costa-rica-v-nicaragua-and-con/. Acesso em: 18/07/2020. 42 Ibid, para. 161-162.


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obrigação de conduzir um EIA. Ainda que não tenha abordado o conteúdo do EIA, a CIJ reiterou que este deve ser regulamentado pela legislação doméstica dos Estados.43 Em complementação a essa posição, o Juiz Bhandari argumentou pela determinação de padrões mínimos que devem ser observados na condução de um EIA, utilizando a Convenção de Espoo como marco de boas práticas a serem reconhecidas e implementadas pelo direito internacional.44 Como a Corte reconheceu em Pulp Mills, na ausência de parâmetros vinculantes para a delimitação da adequabilidade de um EIA, os instrumentos de “soft law”, tais como os Objetivos e Princípios sobre EIA do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), podem se mostrar importantes diretivas para a demonstração da diligência devida nos casos concretos.45 Contudo, a lógica seguida pela Corte parece ter sido de que, não sendo as partes membros da referida Convenção, não seria possível exigir os critérios nela elaborados como aplicáveis ao caso concreto. No que tange às demais obrigações procedimentais, a CIJ a avaliou que não seria necessário verificar o cumprimento das obrigações de consultar ou notificar no caso em tela.46 Isso acontece porque, no entendimento da CIJ, as obrigações de notificar e consultar emergem, em conformidade com a obrigação de diligência devida, caso o EIA confirme a existência de um risco significativo de dano transfronteiriço.47 O pronunciamento da CIJ levanta 43

Ibid, para. 104. BHANDARI, Dalveer. Separate Opinion of Judge Bhandari on the Case concerning Certain Activities Carried out in the Border Area (Costa Rica v. Nicaragua)/Construction of a Road along the San Juan River (Nicaragua v. Costa Rica). Disponível em: https://www.icjcij.org/files/case-related/152/18860.pdf. Acesso em: 18/07/2020. p. 9-11. 45 BENDEL, Justine; HARRISON, James. Determining the legal nature and content of EIAs in International Environmental Law: What does the ICJ decision in the joined Costa Rica v Nicaragua/Nicaragua v. Costa Rica cases tell us?. Questions of International Law, Zoom-In 42, p. 13-21, 2017. p. 19. 46 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Certain Activities, op. cit., para. 168. 47 Ibid, para. 104. 44


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questionamentos sobre a questão de se essas obrigações procedimentais seriam estritamente sequenciais ou se a ausência da condução de um EIA, em si, já representaria um descumprimento da obrigação de diligência devida. Apesar da primeira opção estar em maior consonância com a leitura da decisão,48 a segunda encontra respaldo nas considerações apresentadas pela CIJ no caso Pulp Mills.49 4 CONCLUSÃO Em suma, como se observa, a obrigação de conduzir um EIA ainda possui aspectos a serem esclarecidos no direito internacional. O contencioso da CIJ tece um papel importante na consolidação dessa obrigação no direito internacional, bem como na delineação de seus contornos básicos. Entretanto, a jurisprudência recente da CIJ tem hesitado em aprofundar a questão, mantendo as mesmas ambiguidades verificadas na ocasião de seu primeiro contato com a questão do EIA.50 De um ponto de vista prático, a discussão sobre a natureza da obrigação de realização de EIA e sua relação com a obrigação de diligência devida parece oferecer ainda poucas implicações significativas – apesar das potenciais repercussões para a obrigação de consultar e notificar,. Fato é que as exigências gerais do direito internacional geral podem gerar a responsabilidade do Estado quando não realizadas as obrigações mínimas reconhecidas. Nesse sentido, a margem de discricionariedade concedida aos ordenamentos domésticos para a determinação dos standards para o cumprimento dos EIA parece ser uma tendência verificada tanto nos trabalhos da CDI quanto na jurisprudência internacional. A escolha da Corte Internacional de Justiça em respeitar a discricionariedade dos Estados 48

BRUNÉE, Jutta. ESIL Reflection: Procedure and Substance in International Environmental Law: Confused at a Higher Level?. European Society of International Law, vol. 5, n. 6, 2016. 49 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Pulp Mills, op. cit., para. 204. 50 MARSDEN, Simon. Determining significance for EIA in International Environmental Law. Questions of International Law. Zoom-In 42, p. 5-12, 2017. p. 12.


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reflete a lógica. Ressalta-se, porém, que resta evidente da análise supra que esta discricionariedade deve ser exercida no respeito das obrigações de diligência devida. Tal discricionariedade evidencia a necessidade de standards internacionais mais definidos, a fim de esclarecer quais cuidados o direito internacional requer dos Estados em sua atuação doméstica. Tanto a Convenção Espoo quanto documentos referenciais de soft law (e.g. Diretivas Gerais do PNUD) servem de guia nesse sentido, e cabe aos Estados uma maior adesão e suporte a esses padrões de proteção.

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CAPÍTULO 4 REFLEXÕES ACERCA DOS IMPACTOS DA CRISE DE COVID-19 NA REGULAÇÃO DO TRABALHO: DA NECESSIDADE DE REGULAÇÃO TRANSNACIONAL DAS NOVAS TECNOLOGIAS Anderson Vichinkeski Teixeira Bárbara De Cezaro

1 INTRODUÇÃO O presente ensaio objetiva discorrer sobre os impactos e transformações causados pela generalização do emprego de novas tecnologias no contexto da crise sanitária de Covid-19. Pensado ainda nos século XX como teletrabalho, os mecanismos virtuais que possibilitam o trabalho fora do ambiente físico em que tradicionalmente ele se desenvolveria ensejaram diversas discussões quanto ao alcance do Direito do Trabalho, notadamente de matriz estatal, na regulação de formas de trabalho exercidas para além das fronteiras dos Estados. Assim, a abordagem que se segue será desenvolvida em três partes. Em um primeiro momento, o papel do Estado na ordem internacional deverá ser objeto de reflexão, pois redes transnacionais de normatividade progressivamente promovem a erosão de competências originariamente se encontravam atribuídas aos Estados nacionais. Em seguida, atenta às modificações nas relações de trabalho em face das novas tecnologias, a Organização Internacional do Trabalho também deverá ser objeto de reflexão acerca da sua capacidade de normatização de tais relações. Por fim, tentaremos discutir a possibilidade de novas formas de governança transnacional


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das relações de trabalho a partir de standards globais mínimos para o estabelecimento de um regulação mais atenta às particularidades das novas tecnologias. 2 DA CRISE DO ESTADO AO NOVO PAPEL DO ESTADO NA ORDEM INTERNACIONAL O tema “crise do Estado” tem sido considerado em tantas e diferentes abordagens ao longo dos últimos cem ano que, neste ensaio, não há razões para uma reconstrução do estado da arte acerca dessa discussão. Pelo contrário, deve-se partir da ideia de crise como situação concreta e real, como um dado posto, como algo que permeia a soberania estatal e precisa ser entendida na atualidade sob um prisma jurídico-político. Convém recordar, como faz Dallari (2010, p. 74-75), que a soberania é um pilar em que o Estado moderno encontra-se amparado e esta exerce fundamental importância para a caracterização do Estado, constituindo-se em um “poder absoluto e perpétuo de uma república”, na paráfrase que remonta a Jean Bodin. É sabido, porém, que o Estado dito moderno por Chevallier (2009, p. 16) justifica-se no intuito de sinalizar orientação e organização políticas seguindo o horizonte do constitucionalismo e visa à declaração de direitos fundamentais e limitação de poder do Estado. Acentua-se a individualidade frente à soberana monarquia, e esta mesma individualidade acaba sendo um dos males carregados com o que o autor relata ser a modernidade. A ideia baseada no Estado-Nação com fronteiras físicas delimitadas enfrenta o além-fronteira territorial, marcado de forma bastante acentuada quando nos projetamos às novas tecnologias, em especial, a Internet. Ainda, o Estado Social enfrenta uma densa crise por não conseguir realizar as atividades trazidas a si, abrindo espaço para instituições privadas que passam a atuar por meio da delegação estatal e começam a realizar atividades próprias de Estado.


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Com o impulso da globalização, organizações internacionais e questões relativas à comunidade internacional, a exemplo do direito ao meio ambiente e direitos humanos, remetem o Estado a uma ordem e pensamento globais. Neste sentido, Morais e Streck (2014, p. 140-145) referem que, em planos internacionais, observa-se fortemente o entrelaçar de ideia de soberania, evidenciada em cooperação no âmbito social, econômico e também jurídico. Para os autores, o Estado Moderno advindo do século XVI está inserido em um processo de transformação, na qual o modelo que se apresenta sugere a ideia de exaustão pelas constantes e interconectadas crises. Assim, as transformações e lapidações sofridas pelo Estado refletem e afetam cada vez mais o ideal de poder absoluto estatal, levando-nos a (re)pensar o caráter soberano a este atribuído. Outro agente fundamental no processo de transformação da soberania estatal são as Organizações Não Governamentais (ONGs), enquadradas entre o espaço público e o privado. Para os autores, este vínculo, incongruente com a ideia de poder soberano, é uma realidade da contemporaneidade (STRECK; MORAIS, 2014, p. 140145). Neste contexto, muitas ou, quiçá, todas as transformações e lapidações sofridas pelo Estado revelam-se e se fortalecem pelo território além-fronteira representado pelo ambiente da internet. Tais constatações levam-nos às próximas reflexões propostas pelo artigo, que nos conduzem a (re)pensar a estrutura tradicional do Estado. Para tanto, e, neste sentido, nos guiando à luz de Gómez, a soberania estatal passa a ser repensada sob uma ideia de subsistência na modernidade, necessitando, para isto, de novos contornos, abrindo-se para o mundo em uma perspectiva cosmopolita. Segundo José Maria Gómez (2000), faz-se necessária a construção de uma democracia que chama, cosmopolita, estando sustentada em garantias institucionais, capazes de assegurar a representação e participação em um caráter regional e global, e também sustentada em ações deliberativas e em redes, possibilitando a


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expansão de uma esfera pública sobre questões como gênero, direitos humanos e saúde. Ao encontro desta perspectiva, o Estado-Nação, que tinha nas suas fronteiras físicas um dos elementos que o caracterizavam, faz-se necessária uma reconsideração. Urge a reflexão de uma soberania com dimensão plurinacional, reexaminando os elementos constituintes do Estado em contextos globais. No entender de Maria Eduarda Gonçalves (2003, p. 7), as sociedades atuais vivenciam as novas tecnologias de informação na política, na comunidade social e na economia, e tal vivência, ao seu modo de ver, afeta de maneira densa os valores basilares como a democracia e a liberdade, a forma de organização e as relações comunitárias de uma sociedade moderna. O mundo na atualidade passa a ser visto de uma forma interligada. Isso deve-se em grande parte ao interesse essencialmente econômico de atingir todos os países, como decorrência da globalização, que se refere àqueles processos, atuantes uma escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado (HALL, 2005, p. 67). Em A Democracia no mundo de hoje, Otfried Höffe (2005, p. 175) defende, ao citar Luhmann, que: “mais plausível que a existência de um fim do Estado, são as transformações estruturais consideráveis: ‘metamorfoses do Estado’”. O mesmo autor defende que a ideia de Estado nacional não será capaz de suprir as demandas de ações globais, necessitando, pois, de uma ordem pública supraestatal, não para tomar o lugar do Estado nacional, mas para completá-lo, dando origem a uma ordem política global (Höffe, 2005, p. 199). O referido autor ainda traz a proposição do Estado nacional esclarecido, discorrendo sobre cinco modernizações para migrarmos de um Estado nacional para o ideal de Estado nacional esclarecido,


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referindo as sociedades contemporâneas como “sociedades pósnacionais” (2005, p.218). Acreditamos estar em curso a reconfiguração das formas tradicionais de soberania do Estado, cada vez mais direcionado a redes regionais e globais. Para isto, em um contexto de mundialização, “[...] velejadores e aviadores precisam ser capazes de fazer a ‘composição’ destes ventos para manterem seus equipamentos singrando os mares ou cruzando os céus”. Somando-se à temática proposta, abordamos Luño, apresentado por Carlos Alarcon Cabrera no Anuario de filosofia del Derecho – Boletim oficial do Estado (Es) (1994) –, que apresenta as críticas somadas por Dworkin no que se refere ao convencionalismo jurídico em que o direito é, segundo as convenções jurídicas estabelecidas, “o direito”. Apresenta a defesa de Dworkin ao integracionismo jurídico, no qual o direito deve respeitar a garantia de igualdade de tratamento entre os cidadãos. Segundo Luño, nas últimas décadas, caminhos decisivos levam ao que denomina “transbordamento” das fontes de Direito e, constrói duas dicotomias para resumir estes novos fenômenos. Logo, a globalização passa a se traduzir para o plano jurídico, criando novos paradigmas para as fontes do direito, superando a ideia de marco territorial dos Estados nacionais (com a globalização traduzida no plano jurídico, há um transbordamento das estruturas normativas tradicionais e a crise da lei – sistema rígido e hierárquico da lei incompatível com as sociedades democráticas). Posto isto, na visão de Bercovici (2005, p. 32), “o próprio processo de integração supranacional que ocorre na Europa, ainda não permite, de forma clara, afirmar a superação da estatalidade.” A lei vai perdendo o caráter de supremacia no ordenamento jurídico (a hierarquia dá lugar ao pluralismo) e a noção de EstadoNação perde espaço com a desterritorialização e atenuação da soberania. Para tanto, repensar a recriação das fontes faz-se necessário para tender a uma sociedade deslocalizada e fluida.


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Nesse contexto, para repensar e questionar o papel do Estado na perspectiva atual e por meio no papel em que o cidadão tem representado, passar-se-á analisar de forma específica a temática do ciberativismo e da ciberdemocracia, refletindo as novas realidades globais. Destaca-se, para tanto, que a temática abordada representa apenas um recorte para repensar os caminhos assumidos pelo Estado quanto ao assunto pontual, podendo ser analisada sob diversas outras situações específicas que aqui não traremos. Frise-se, neste contexto, que a análise assumida reflete os fenômenos contemporâneos que emergiram na sociedade global nas últimas décadas, com a realização e propagação da internet e o papel do Estado frente a estes novos fenômenos globais. 3 A OIT E O FUTURO DO TRABALHO Diante das transformações pelas quais passa o Estado, impossível não pensar nas transformações do trabalho em face das novas tecnologias. Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho lançou obra que aborda a temática do futuro do trabalho no ano que completa seu centenário. Em Work for a brighter future – Global Commission on the Future of Work, a OIT publicou no início do ano de 2019 seu posicionamento sólido na busca do emprego da tecnologia apoiada ao trabalho decente51 ou a uma abordagem humana em comando da tecnologia. Para a Organização Internacional do Trabalho as discussões sobre o futuro do trabalho estão centralizadas na criação e destruição do emprego e a necessidade de requalificação para atender as 51

A Organização Internacional do Trabalho no ano de 1999 definiu o trabalho decente como aquele que visa” promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável”. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2019)


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demandas do trabalho futuro. Para a OIT, uma agenda que esteja voltada ao ser humano se faz igualmente urgente. Ao mesmo tempo que a tecnologia pode libertar trabalhadores de tarefas árduas, jornadas extensas e exposição a agentes nocivos a sua saúde, os processos conduzidos de forma colaborativa com robôs podem produzir stress relacionado ao trabalho e possíveis lesões, podendo ainda impulsionar o trabalho a algo supérfluo. Ainda, destaca que a automação potencializa a redução do controle e autonomia dos trabalhadores e, consequentemente, a riqueza do conteúdo do trabalho resultante de uma possível desqualificação e declínio na satisfação do trabalhador. Atentando a estas questões e ao potencial da tecnologia no futuro do trabalho, a OIT defende o que chamou de “abordagem humana de comando”, visando que as decisões finais que afetem o trabalho sejam tomadas por seres humanos e não por algoritmos, sendo necessário para tanto, uma regulamentação para a proteção da própria dignidade de trabalhador. É inegável que a tecnologia e, dentro do termo, se inclui a robótica, a inteligência artificial e sensores, trazem junto de seu arcabouço vastas condições de melhora para o trabalho, facilitando a identificação de setores de alto risco, melhorando as sistemas de inspeção do trabalho, criando aplicativos que viabilizem o maior acompanhamento da legislação laboral, inclusive o uso do blockchain trazido por meio da transparência e segurança dos blocos criptografados e descentralizados pode garantir o pagamento de salários e facilitar a proteção social dos trabalhadores migrantes. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2019) É imprescindível que governos, trabalhadores, empregadores e o Direito atentem ao desenvolvimento da disseminação da tecnologia digital para, de forma cada vez mais efetiva, apoiar e garantir o desenvolvimento do trabalho decente em uma realidade cada vez mais tecnológica. Neste novo contexto, o Direito passa a encarar a tecnologia digital e seus novos desafios lançados à proteção do trabalho já existente, como também aos novos trabalhos


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viabilizados pelas plataformas digitais, em especial, as potencializadas pela internet. O trabalho em plataformas digitais e as novas tecnologias criam consequentemente desafios novos para a proteção trabalhista de modo cada vez mais global, fator que dificulta o monitoramento das legislações trabalhistas. Hoje, portanto, frente ao cenário de céleres transformações, essencial se faz a reflexão e estudo para o desenvolvimento do que a OIT tem chamado de uma governança internacional para plataformas de trabalho digital que vise definir, requerer e respeitar direitos e proteções mínimos. De todo modo, as transformações econômicas, alinhadas ao avanço da tecnologia, transformam o trabalho humano. Como isso, o papel do Direito, dos governos nacionais e globais, empregadores e empregados, é participar deste processo tendo como ponto central o equilíbrio voltado à dignidade da pessoa humana, ao desenvolvimento humano e ao trabalho decente. Para analisar este fenômeno, é indispensável observar que: Novas regras, negócios, incentivos e metas de política econômica podem direcionar melhor os investimentos áreas protegidas da economia que promovem empregos decentes, igualdade de gênero desenvolvimento sustentável, fornecendo ao mesmo tempo uma base para atividades de alto valor agregado. O objetivo geral é investir em e trabalho sustentável, termo que usamos para o crescimento centrado no caminho do desenvolvimento para entregar trabalho decente para todos. (tradução livre) (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2020)

Frente aos novos cenários, a obra de Domenico De Masi (2001), O futuro do Trabalho, chama a atenção ao levantar a informação de que atualmente apenas 30% da população italiana tem um emprego de modo a cumprir um tempo contínuo e realizado de forma presencial. É notório que a tecnologia da informação


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contribuiu de modo significativo para a integralização e transformação de diversas atividades realizadas pelo trabalho humano. Ao lado de tais benefícios, surgiram também novas modalidades de precarização do trabalho quando, ao “uberizar o trabalho”52, ao tomar o trabalho remoto de diferentes locais do mundo, cria-se uma alteração na relação de emprego institucionalizado. Mais ainda, geralmente ao transformar empregados em trabalhadores reduz o pagamento de salários e, consequentemente, a garantia de direitos sociais. Frente aos novos cenários tecnológicos que influenciam todos os setores da vida humana, entre eles, o trabalho humano, é elementar que se estabeleçam reflexões a fim de buscar novas soluções legislativas para abarcar as peculiaridades desta nova realidade, visando garantir aos trabalhadores os direitos sociais53. Porém, é crescente a produção por meio da tecnologia informática que, ao passo que qualifica o trabalho humano, também se apresenta capaz de ocultar e flexibilizar contratos de trabalho, aumentando o poder oculto do capital, desumanizando o trabalho humano. Cumpre ressaltar neste momento que o Estado tem cada vez mais enfrentando dificuldades de interferir e tutelar as relações 52

Desde 2016, o tribunal do Reino Unido denominado Empleyment Tribunal de Londress, reconheceu o vínculo de emprego entre a empresa Uber e os motoristas cadastrados junto ao aplicativo. O autor, motorista da uber propôs ação na Holanda, local da controladora e também em face de duas outras controladoras a Uber Brittania Ltda e Uber London. (BBC NEWS, 2019) Seguindo os mesmos passos, a 15ª turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo reconheceu o vínculo de emprego entre o motorista e a uber em agosto de 2018, evidenciando que o motorista não possui real autonomia, devendo seguir as regras determinadas pela empresa. Também decidiram deste modo os tribunais: TRT de Minas Gerais, a48ª Vara do Trabalho de São Paulo,TRT-2,a 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, a 86ª Vara do Trabalho de São Paulo e a 10ª Vara do Trabalho de Gama. 53 Para mais informações sobre os aspectos da decisão acessar: Uber drivers win key employment case em https://www.bbc.com/news/business-37802386 e Uber loses landmark tribunal decision over drivers' working rights em https://www.telegraph.co.uk/technology/2016/10/28/uber-awaits-major-tribunaldecision-over-drivers-working-rights/ e CONJUR. TRT de São Paulo reconhece vínculo de emprego entre Uber e motorista. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-ago27/trt-sao-paulo-reconhece-vinculo-emprego-entre-uber-motorista≥. Acesso em: 21 jan. 2019.


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de trabalho. É inegável que a revolução tecnológica potencializada pela Internet possui significado emancipador, ao mesmo tempo que é também inegável que o trabalhador se vê compelido a uma formação capaz de atender a multifuncionalidade, dominando os avanços tecnológicos, sob pena de ser substituído. Cada vez mais o trabalho humano vive, em nível global, o impacto e consequente substituição pelas novas tecnologias. Em nome do que Antunes (2011, p.148) denomina “racionalização própria da indústria capitalista moderna”, que visa a produzir mais com menos – fenômeno do dumping social –, o mundo e o direito social do trabalho globalizam-se em favor do capital. Neste processo de economia global, em favorecimento ao capital, o Estado encontra sérias e visíveis limitações para fazer cumprir a intervenção necessária para garantir o direito social ao trabalho, até porque, como já mencionado, as novas tecnologias têm substituído em escala exponencial os postos de trabalho humano. As novas questões sociais e a ingerência do Estado nestas, destacando-se neste momento a regulamentação do trabalho em todo o mundo ou até mesmo as reflexões acerca de uma sociedade do pós-trabalho, em um momento em que o desenvolvimento tecnológico tem desafiado o papel do Estado, leva-nos à necessidade de refletir acerca dos novos caminhos e perspectivas do Estado. No mesmo sentido, em 2019 a reunião anual do Fórum Econômico Mundial (WORLD ECONOMIC FORUM, 2019) mais uma vez coloca em pauta a inteligência artificial e o futuro do trabalho como focos da indústria internacional. Há um alinhamento no debate quanto ao futuro do trabalho: o mercado de trabalho passará por densas transições e novas habilidades e transições complexas na carreira para atender as novas necessidades de mercado (KALIL, 2017, p. 237)54 54

Consoante Kalil, a transformação tecnológica potencializa também outras formas de trabalho, a chamada economia de compartilhamento que comporta duas formas de trabalho, o crowdwork


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Para demonstrar a mudança do modo de trabalho atual, a International Federation of Robotics (2019) publicou o relatório mundial de robótica em 2018 demonstrando que as vendas globais de robôs industriais dobraram de 2013 a 2017. Os dados apuram que 381.000 unidades foram enviadas globalmente em 2017, representando um aumento da venda de robôs industriais em 114% em cinco anos. O estudo ainda refere que 73% do volume total de vendas de 2017 estão centralizados em cinco países: Alemanha, Estados Unidos, China, Japão e Coréia do Sul, o que demonstra mais uma vez a necessária atenção ao nível de desigualdade que as novas tecnologias podem potencializar no universo do trabalho. Estudos atuais demonstram que as desigualdades em nível global são uma constante. Conforme comprova o relatório Recompense o trabalho, não a riqueza, relatório da Oxfam publicado em janeiro de 2018, uma elite econômica mantém acumulo de fortunas enquanto a maior parte da população luta pela sobrevivência com pagamento de baixos salários, sendo que os dados publicados demonstram que de toda a riqueza que fora gerada no ano de 2017, 82% está concentrada na mão de 1% mais rico do planeta enquanto a metade da população global mais pobre não fica com nada. 4 GOVERNANÇA AMBIENTAL E INTEGRAÇÃO REGIONAL EM TEMPOS DE CRISE A pandemia de Covid-19 que assolou o mundo em 2020, suscitando o empenho dos governantes em estabelecer novos marcos (realização de atividades por meio de plataformas on-line) e o trabalho on-demand por meio de aplicativos (trata de execução de serviços tradicionais como transporte e escritório). O número de trabalhadores ativos no contexto da economia compartilhada em nível global aparece no levantamento, “existem 8 milhões de trabalhadores vinculados ao Crowdsource: 6,6 milhões ao Care.com, 5 milhões ao Crowdflower, 700 mil ao Clickworker, 500 mil ao Amazon Mechanical Turk e 160 mil à Uber.” (KALIL, 2017, p. 237-259).


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protetivos à saúde, também implicou na necessidade de um aprimoramento de uma governança global democrática para o enfrentamento das dificuldades que marcam a contemporaneidade. Em condições de restrita circulação, a utilização de novas tecnologias terminou rapidamente se generalizando em todas as atividades nas quais fossem possíveis de serem empregadas. O que antes era uma possibilidade a discutir em dada área, tornou-se a “nova normalidade” para os trabalhadores daquela área. Sabido que as novas tecnologias potencializam maior flexibilização, adaptabilidade no tempo e espaço do trabalho, porém, conjuntamente a isto a desproteção institucional do Estado no que se refere a estes trabalhadores os torna dependentes das condições de negociação em caráter individual, em um trabalho que apresenta mudanças constantes, alinhadas à mobilidade do capital nacional e internacional. Os desafios da ciência jurídica refletem os processos evolutivos da humanidade, e, a cada passo desta evolução, dentre elas, a evolução tecnológica, o foco central deve ser a pessoa humana. Cumpre ao Direito a importante função de “freio e contrapeso” ao capitalismo, de modo a impedir a exploração tecnológica do trabalho humano sem a efetivação dos direitos trabalhistas internacionalmente reconhecidos. Como verificado, o modelo de trabalho do século XIX se diferencia do século XX e, no início do século XXI, novos modelos organizacionais do trabalho tem surgido e vem alinhando-se às transformações dos sistemas econômicos. Se as inúmeras projeções se cumprirem, as relações de trabalho tendem a se modificar ainda mais, inclusive com muitas podendo chegar a extinção. A tecnologia está modificando completamente o modo de integração de empresas nos mercados, e em muitas vezes, tornando empregado, figura desnecessária em virtude de automação. O desenvolvimento da tecnologia causa impactos na organização produtiva como também nos modos de produção capitalista, neste aspecto, tem causado em muitos setores a


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substituição da mão de obra humana em um fluxo global55 e como consequência, tem gerado o consequente enfraquecimento da classe trabalhadora que perde condições trabalho diante do excedente ao excluir muitos do processo produtivo que cada vez mais se estabelece pela tecnologia da inteligência artificial, pelo fato de beneficiar o investimento capitalista, fato amparado pelo próprio Estado de Direito. Deste modo, a regulação jurídica das tecnologias que afetam diretamente o trabalho e o emprego, são essenciais para a garantia em nível global do respeito aos direitos fundamentais dociais e do controle dos perversos mecanismos de mercado que potencializados pela tecnologia, podem acentuar as desigualdades sociais e exclusões na vida social. Frente a realidades sociais cada vez mais complexas, não mais sólidas, em um tempo virtual em que uma das principais características é a da dissolução da noção natural de tempo em um tempo líquido (BAUMAN, 2007), verifica-se agora o tempo líquido virtual que pode ser ditado por segmentos econômicos em desrespeito aos direitos sociais. Este fato merece a atenção e suscita diversos questionamentos e buscas de respostas perante o direito nacional e a ordem global, para que as novas dinâmicas de mercado, ao absorverem o desenvolvimento tecnológico, respeitem a regulamentação do mercado como também os direitos fundamentais sociais, da dignidade da pessoa humana e dos institutos conquistados historicamente e a nível global pelo Direito do Trabalho. Nas palavras de Thomas Piketty (2013, p. 304), “A marcha em direção à racionalidade econômica e tecnológica não implica, necessariamente, uma marcha rumo à racionalidade democrática e à meritocracia. A razão central é simples: a tecnologia, assim como o mercado, não tem limite ou moral.” Há que se considerar que a oferta de qualificação não consegue progredir ao passo das 55

Ao passo da evolução tecnologia, o próprio capitalismo entra em contradição quando, ao substituir a mão de obra humana por tecnologia, substitui a única energia capaz de produzir valor, pois trabalho é capital. (GRESPAN, 2012)


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necessidades tecnológicas, ocasionando, portanto, a exclusão de grupos que não consigam progredir em suas formações e, por consequência, sem a requalificação constante para o mercado de trabalho o próximo passo pode significar a progressão de empregos desvalorizados, a baixa dos salários e a desigualdade do trabalho (PIKETTY, 2013, p. 304) É por isso que a exploração da mão de obra humana por meio da tecnologia requer, acima de tudo, a garantia de efetivação dos direitos trabalhistas sob a perspectiva do valor social e ético que compõe o trabalho. Milton Santos (2019) acredita ser fundamental a adoção de medidas que assegurem a democracia também no contexto da sociedade em rede, utilizando as tecnologias emergentes como instrumentos a serviço da humanidade e não o contrário. Para isso, duas grandes mutações em progresso precisam se completar “a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana”. As garantias sociais consagradas em forma de direitos, em especial aqui, os direitos sociais, precisam ser salvaguardados em detrimento de razões econômicas, que não podem ser atendidas de forma irrestritas. É também papel do Direito, das formas jurídicas a limitação da vontade econômica que não respeita o reconhecimento da evolução histórica afim de evitar profundas crises. No cenário brasileiro, a fonte primordial legislativa, a Constituição de 1988 é a fonte democrática que apresenta em seu bojo um rico catálogo de direitos fundamentais a serem seguidos.56 No que se refere ao Direito do Trabalho, a Constituição de 1988 apresenta em seu artigo primeiro os fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os 56

É pois, o que registra a Recomendação 198 da OIT: POLÍTICA NACIONAL DE PROTEÇAO DOS TRABALHADORES EM UMA RELACAO DE TRABALHO. 1. Os Membros devem formular e implementar uma política nacional destinada a examinar, em intervalos apropriados e, se necessário, esclarecer e adaptar o escopo da legislação pertinente, a fim de assegurar a proteção efetiva dos trabalhadores envolvidos em sua atividade. no âmbito de uma relação de trabalho. Link para acesso: https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:55:0::NO::P55_TYPE,P55_LANG, P55_DOCUMENT,P55_NODE:REC,es,R198,%2FDocument.


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valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa. Ainda, o artigo terceiro apresenta como objetivos fundamentais desta República a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Por fim, verifica-se ser cada vez mais relevante, em relação aos novos mecanismos de trabalho remoto, a fixação de direitos e obrigações que não se limitem apenas à normatividade do Estado, nem a um quadro muito amplo e genérico definido pela OIT. Torna-se fundamental a adaptação e transformação de antigos institutos de regulação estatal, como também pela criação de novos modelos mais vocacionados às atuais necessidades sociais, de modo a permitir uma efetiva conjugação da proteção dos direitos humanos, sobretudo do indivíduo como trabalhador, com as demandas impostas pela economia e suas constantes evoluções. Nesse sentido, pensar na formação de grandes standards globais, setorizados e tematizados de acordo com segmentos profissionais específicos parece ser uma imposição da atual realidade póspandemia de Covid-19. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre metamorfoses e centralidade no mundo do trabalho. São Paulo: Cortez: 2011. BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de uma teoria do estado. Revista da História das ideias.Vol. 26, 2005. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Trad. Marçal Justen Filho, Belo Horizonte: Fórum, 2009. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.


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CAPÍTULO 5 DEBATENDO A PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA NO SISTEMA INTERNACIONAL: TEORIZAÇÕES LEGITIMADORAS E CRÍTICAS Marinana Andrade e Barros

1 INTRODUÇÃO O término da Guerra Fria marcou a ascensão na agenda de vários temas relacionados aos novos contornos da sociedade internacional. Naquele momento, em que se bradou o fim da História como parte da decadência do socialismo, o corolário liberal foi alçado a grande vencedor do embate bipolar. Apesar das reticências com que parte da literatura recebeu o otimismo de se conceber aquela como uma vitória inequívoca dos valores que informam o liberalismo político e econômico, o fato é que se observou a partir de então a construção de uma pauta internacional primordialmente composta por temas a eles relacionados. Um dos mais centrais foi o que ficou conhecido como promoção da democracia57. No contexto do fim do sistema bipolar, amplamente fomentado pela política externa norte-americana, por diferentes organizações internacionais e, posteriormente por outros Estados, o tipo de democracia que se tornou parte das discussões internacionais 57

É possível encontrar menções à democracia ou à necessidade de um concerto político em torno de repúblicas representativas em foros multilaterais de Estados desde o século XIX, com alguma ênfase depois da II Guerra Mundial. Contudo, foi somente com o fim da Guerra Fria que o tema se estabelece de maneira robusta no sistema internacional. Para mais sobre o assunto, ver Peceny (1999) que analisa historicamente as intervenções dos EUA pró liberalização e democratização em diversos países e Roget (2009) que trata especificamente do contexto do sistema interamericano.


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é qualificada. Ainda que o conteúdo daquilo que se concebe como democracia possa ser discutido (BARRETO, 2006; GARTKZE, 2007), o que transbordou para o sistema internacional foi primordialmente a democracia liberal (KOSKENNIEMI, 1996; KURKI, 2010; ROBINSON, 2013) baseada em procedimentos. Em termos práticos, tratou-se de uma mudança na práxis internacional para acolher a problemática dos regimes políticos dos Estados por meio da criação de normas internacionais, institucionalização de condicionalidades, imposição de sanções econômicas e políticas e elaboração de novos padrões de atividades diplomáticas. Essas transformações apoiaram-se e ao mesmo tempo foram motor para a elaboração de um conjunto de reflexões sobre a existência de uma dimensão internacional de promoção da democracia liberal. O caminho para sua ampla disseminação, que a princípio parecia triunfal para alguns, tem se mostrado menos linear e mais intrincado do que se imaginara há algumas décadas (GALSTON, 2018). O fato de existirem diferentes tipos de democracia que foram desconsiderados na dinâmica da internacionalização da problemática dos regimes políticos – entre elas a participativa, a deliberatória e a cosmopolita (KURKI, 2010) – pode ser parte da explicação para os percalços. A isso se soma o contexto de declínio da democracia (PLATTNER, 2015) e aumento no número de governos autoritários no mundo (GALSTON, 2018). Neste cenário, a promoção da democracia tem seus princípios constantemente escrutinizados. Assim como são contínuas as reformulações que buscam reafirmar sua importância. Este estudo se debruça sobre a construção das principais reflexões que buscam legitimar e aquelas que criticam as bases de disseminação da democracia liberal desde o início do fenômeno até os dias atuais. Busca-se, assim, compreender os fundamentos argumentativos que visam a validar ou invalidar este fenômeno, revisitando as já tradicionais teses elaboradas sobre o tema e articulando-as às novas perspectivas desenvolvidas nos últimos anos.


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2 TEORZAÇÕES LEGITIMADORAS DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA Os discursos legitimadores da existência de uma dimensão internacional da promoção da democracia fundamentam-se, essencialmente, em dois grandes temas: a paz democrática e os Direitos Humanos. O primeiro argumento, amplamente debatido entre os autores liberais, relaciona-se à problemática da segurança coletiva e tem seu alicerce na teoria da paz perpétua desenvolvida por Immanuel Kant ([1795] 2008). A base desse pensamento é que a disseminação dos valores da democracia liberal levaria à ausência de conflitos armados no âmbito interestatal (TÉSON, 1992; SLAUGHTER, 2004, CONCONE et al., 2014). O segundo argumento relaciona a democracia aos Direitos Humanos em uma via dupla. Ela seria ao mesmo tempo uma parte dos Direitos Humanos e fator imprescindível para sua efetiva realização (VASAK, 1978; CERNA, 1995, MATTHEWS, 2019). Estes dois conjuntos de enunciados – segurança e direitos – estão entre os mais relevantes temas dos quais a sociedade internacional se ocupa desde a II Guerra Mundial. Não são, portanto, problemáticas recém-surgidas. Elas fazem parte de uma esfera na qual a retórica permeada pela hipocrisia e o esforço autêntico em tornar o mundo mais seguro e justo convivem. Suas premissas estão relacionadas à crença tanto na existência de profunda convergência em torno do corolário liberal político e econômico quanto na viabilidade e disposição da sociedade internacional de tornar esta convergência ainda mais densa. Os teóricos da paz democrática – ou paz liberal – atribuem suas raízes a Kant que, ao fundamentar sua tese sobre a busca pela paz perpétua, endossou a forma representativa de governo baseada na igualdade, no devido processo e na liberdade dos cidadãos (KANT, [1795] 2008). Após duas guerras mundiais no período de poucas décadas, o princípio da não-utilização da força surgiu como um dos mais importantes preceitos do Direito Internacional. Organizações


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internacionais, tratados e métodos de soluções pacíficas de controvérsias foram desenvolvidos com o objetivo de diminuir os conflitos entre Estados e alcançar a paz. Neste contexto, os ideais kantianos passaram a ser vistos aos olhos dos pensadores e estadistas liberais como antídotos para a guerra (NOUR, 2003). Haveria uma ética kantiana, que deveria ser buscada pelos Estados (DOYLE, 1986). O aspecto normativo que compõe a teoria da paz perpétua ganhou força com a criação de instituições que buscavam salvaguardar o mundo de grandes conflitos. Ainda durante a Guerra Fria, e mais firmemente com seu fim, o argumento de que a democracia liberal gera a paz ganhou densidade. Multiplicaram-se os trabalhos que buscavam investigar a paz democrática em seu aspecto filosófico (DOYLE, 1986; IKENBERRY, 1996), teórico (TÉSON, 1992; LAKE, 1992; BUENO DE MESQUITA et al., 1999) e prático – estes pretendiam, a partir de regularidades empíricas, compreender o alcance da tese kantiana (MAOZ, ABDOLALI, 1989; O’NEAL, RUSSET, 1999; MOUSSEAU, 2013, REITER, 2017). Os teóricos que kantianamente correlacionam a democracia liberal e a diminuição no número de conflitos no sistema internacional afirmam que os aspectos normativos e as características institucionais do liberalismo levariam a uma política externa mais pacífica nas relações com aqueles que partilham a mesma ideologia, o que perfaz a tese diádica da democracia liberal (FUKUYAMA, 1992; DIXON, 1994; DOYLE, 2008; SLAUGHTER, 2009; CHOI, 2011; REITER, 2017). Essa máxima seria válida tanto para o período da Guerra Fria quanto depois dela (PARK, 2013), o que a tornaria uma das leis mais importantes das relações interestatais. A teoria da paz democrática atribui relevante papel aos cidadãos que influenciariam tanto o processo decisório de um governante em relação à guerra quanto os custos de um eventual fracasso. A permanência de um governante no cargo é mais precária e a recondução mais difícil se comparadas à trajetória daquele que governa um Estado não-democrático. Enquanto no primeiro caso o


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instituto do mandato exige a aprovação periódica do governante, no segundo, obviamente, não há de se falar em escrutínio popular formal. Com isto, em um governo não-democrático, a tomada de decisão para o início da guerra é menos onerosa politicamente do que em governos democráticos. A alternância do poder, parte do corolário que restringe os poderes de um governo nas democracias liberais, pode atuar como um limitador das declarações de guerra (TÉSON, 1992; CONCONE et al., 2014). No processo decisório de um governante de Estado democrático sobre ir ou não à guerra, o principal fator a ser considerado é, segundo parte da literatura, a possibilidade de vitória. Governos democráticos dificilmente entram em uma guerra quando têm dúvidas sobre a probabilidade de seu êxito. Governantes de países não-democráticos, diferentemente, teriam um cálculo mais simples, relacionado à expectativa de ganhos maiores com a guerra do que com a resolução pacífica da controvérsia (BUENO DE MESQUITA et al., 1999). Além do intrincado processo decisório pelo qual passa uma democracia para definir se deve ou não recorrer ao conflito armado, outro fator que contribuiria para a tendência à paz democrática seria a relação entre os valores disseminados internamente nos Estados liberais e seu comportamento no sistema internacional. Segundo Francis Fukuyama (1992), domesticamente, a democracia liberal seria responsável pelo apaziguamento de conflitos, ao dispor sobre a igualdade jurídica entre as pessoas, abolindo as diferenças existentes em períodos anteriores às revoluções liberais. A suposta ausência de conflitos internos que resulta da emergência do liberalismo teria reflexos nas relações internacionais, levando a um cenário mais estável e pacífico (FUKUYAMA, 1992). Analisando especificamente os casos de liberal peacebuilding, Roland Paris (2010) observa, de forma similar, que as condições originadas pelo liberalismo em países em conflito seriam fundamentais para a construção de uma paz duradoura. No tocante aos Direitos Humanos, duas premissas relacionadas à promoção da democracia se desenvolvem. Uma que


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afirma que a democracia liberal seria o ambiente ideal para a efetivação da justiça política por meio da representação política igualitária entre os cidadãos, a partir dos valores da igualdade e da liberdade. Assim, a democracia liberal seria o instrumento que permitiria que justiça e Direitos Humanos se tornassem realidade. Outra premissa se baseia na ideia de que a democracia liberal é parte do corolário que compõe os Direitos Humanos. Desta forma, ainda que por vezes indiretamente, os direitos positivados e protegidos internacionalmente disporiam sobre a democracia em seu viés liberal. As construções filosóficas acerca da democracia liberal afirmam sua aptidão como regime político que mais se aproxima do ideal de participação política e de respeito à “essência” humana. A democracia liberal permitiria, ao mesmo tempo, alcançar o reconhecimento do ser humano enquanto parte da sociedade e efetivar a justiça no âmbito político (FUKUYAMA, 1992). Neste sentido, a participação por meio de representantes seria uma condição necessária para o reconhecimento do ser humano como ser capaz de influenciar na condução dos assuntos públicos. Em uma leitura que remete a Hegel ([1807] 2004; [1821] 1997) e à sua reflexão sobre a necessidade de o ser humano ser reconhecido enquanto ser de escolha, compreende-se que somente com a participação na esfera pública seria possível a cada cidadão completar-se em sua relação com seus pares, um imperativo para a realização do indivíduo enquanto tal (FUKUYAMA, 1992). Além disso, os valores sublinhados pela democracia liberal – igualdade e liberdade – permitiriam a efetivação da justiça política que, de acordo com os teóricos liberais, somente pode ser concluída pela representação política equitativa dos cidadãos. A necessidade de reconhecimento explicaria o elo entre a economia liberal – que provê os bens materiais – e a política liberal – que atende à demanda por participação política (FUKUYAMA, 1992). No que concerne à ideia de que a democracia seria parte integrante dos Direitos Humanos, há, especialmente na literatura do início dos anos 1990, uma interpretação extensiva que associa os direitos previstos em tratados ao conteúdo da democracia liberal.


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Durante a Guerra Fria, poucas foram as disposições inequívocas acerca da democracia nos documentos vinculantes de Direitos Humanos58. Partindo dos direitos contidos nos documentos de hard law, deduzia-se acerca de sua relação com os Direitos Humanos. Traduzia-se, assim, os direitos à autodeterminação, eleições livres e honestas e liberdades civis, previstos nos tratados, como evidências da existência de normas favoráveis ao regime democrático em sua versão liberal. Neste sentido, Thomas Franck (1992) concebe as referências à autodeterminação, eleições livres e honestas e liberdade de expressão como alusões à democracia liberal. Já Gregory Fox (1992), compreendendo de forma mais restrita a concepção da democracia para o Direito Internacional, correlaciona-a ao processo eleitoral. Esta interpretação a favor da democracia liberal pode ser explicada por um conjunto de fatores: o colapso dos regimes marxistas-leninistas; a transição democrática em diversos países; o crescimento do número de Estados comprometidos com o reconhecimento do princípio da legitimidade democrática; e a mudança de diretiva das Nações Unidas acerca do regime político de seus membros, saindo da neutralidade e assumindo uma posição ostensivamente favorável à democracia59 (CHRISTAKIS, 1999). Apesar das manifestações no início dos anos 1990 que pareciam apontar para o surgimento de um direito à democracia, a literatura desenvolvida nos anos 2000 tendeu a não confirmar essa inclinação. Andrew Hurrel (2007), analisando especificamente o caso da América Latina, onde um robusto corpo de normas favoráveis à democracia foi criado, afirma que o movimento não levou à cristalização de um direito. No mesmo sentido, mas partindo da perspectiva global, Anita Horn (2019) refuta a ideia da existência de um direito à democracia 58

Há, em alguns tratados gerais concluídos durante a Guerra Fria, menção à democracia como na Carta da Organização dos Estados Americanos (1948) e no Tratado de Londres (1949) mas estes tendem a ser exceções. De forma mais robusta e profunda, a democracia somente passa a ser tratada nos documentos posteriores a 1990. 59 Para mais sobre a relação da ONU com a promoção da democracia, ver Ghali (1995) e Haack (2011).


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em sentido amplo, compreendendo que diante dos desenvolvimentos normativos e institucionais neste âmbito, originou-se um direito individual a ter voz. 3 PERSPECTIVAS CRÍTICAS À PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA A mudança paradigmática que leva a democracia a se tornar tema prioritário na agenda internacional traz consigo importantes questionamentos. Converter uma temática doméstica em internacional suscita, no mínimo, alguma desconfiança. Quando o que está em discussão é o regime político de um Estado, as reações podem ser acaloradas. Para parte da literatura, a elevação da democracia liberal a valor a ser perseguido universalmente seria, em larga medida, uma tentativa desrespeitosa de imposição de um valor particular ocidental para todos. Por isso, a promoção da democracia é compreendida mais como o resultado da equação de forças que compõe a sociedade internacional do que como uma inexorável evolução política. Há ainda os que questionam as bases teóricas da promoção da democracia no que concerne às correlações entre a ausência de conflitos e a democracia liberal. Defende-se que a paz não seria um resultado do regime político democrático, como enunciaram Kant e os teóricos liberais que o seguiram, mas sim resultado da estrutura do sistema internacional ou uma consequência do desenvolvimento do modelo capitalista. O principal fundamento para se compreender que a sociedade internacional possui legitimidade para interferir no regime político adotado por um Estado é de que a democracia seria um valor universalizado ou universalizável (FUKUYAMA, 1992; FRANCK, 1992; SEN, 1999). Não se nega, por esta perspectiva, a origem específica – ocidental – da democracia liberal. Afirma-se que os valores nos quais ela está alicerçada – liberdade e igualdade – têm significado universal. Este significado seria refletido em um conjunto de forças subjacentes que dirige as mais diversas sociedades para esta


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forma de organização política (FUKUYAMA, 1992). Uma das questões levantadas pelos críticos deste pensamento baseia-se no fato de se considerar plausível – e até desejável – a universalização de valores que estariam relacionados a um esquema político e social particular ocidental. Durante a Guerra Fria, era possível perceber uma dissidência na forma de se conceber a democracia pelo bloco capitalista e pelo socialista. As diferenças se relacionavam à interpretação e à ênfase dada por cada bloco aos direitos individuais e coletivos. Conforme dispõe John Vincent (2005), concepções heterogêneas de democracia refletem diferentes prioridades em diferentes circunstâncias materiais. O bloco capitalista destacava os direitos civis e políticos. Já o bloco socialista sublinhava uma democracia relacionada aos direitos econômicos e sociais (VINCENT, 2005). De forma geral, a ênfase dos capitalistas estaria nas liberdades, enquanto a dos socialistas, na igualdade; pois era colocada na possibilidade de fruição de bens materiais de maneira minimamente igualitária entre os membros de uma sociedade. Mais adiante, a partir dos anos 1990, outras formas de se praticar a democracia foram concebidas60, demonstrando que o pretendido consenso em torno da democracia liberal era mais retórico do que empírico. O fato é que com o fim da Guerra Fria, observa-se uma diminuição da influência da ideologia socialista na configuração política dos Estados. Uma das consequências da decadência socialista e do consequente aprofundamento do poder material e ideacional do Ocidente foi a aposição da promoção da democracia como tema da agenda, não por sua natureza universal, mas sim como resultado de um embate de forças da política internacional que pendeu para o bloco capitalista. Segundo Martti Koskenniemi (1996), a elaboração de argumentos favoráveis à promoção da democracia liberal acontece a partir de um fundamento pretensamente neutro – mas de fato construído a partir de processos histórico, cultural e econômico

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Para mais sobre este tema, ver Vitullo (2009).


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particulares – que imporia aos “outros” as motivações para um determinado regime político. Por esta perspectiva, o fenômeno da promoção da democracia seria uma universalização superficial, baseada em uma super-simplificação da realidade (CAROTHERS, 1992) e encobriria o fato de a democracia ter mais apelo na parte ocidental do mundo, considerando-a um consenso maior do que a realidade permite inferir (ROTH, 1992; CAROTHERS, 1992). Segundo Carothers (1992), essa tendência reducionista à universalização reflete um arranjo tipicamente norte-americano que ignora padrões históricos diferentes do ocidental. A consequência deste fato seria uma nova forma de imperialismo (KOSKENNIEMI, 1996), no qual uma visão de mundo é elevada a status de verdade universalmente apreendida e compartilhada. Ainda segundo Koskenniemi (1996), a existência de uma norma democrática no sistema internacional é parte de uma obsessão retórica do Ocidente e não pode ser considerada aceitável porque se assemelha a uma estratégia neocolonialista. Uma das características da promoção da democracia seria a grande distância entre o discurso e a prática (FIEDLSCHUSTER, 2019). A relação quase direta entre a política externa norteamericana e a promoção internacional da democracia é um fator constante nas críticas a este fenômeno. A seletividade e os duplos padrões das ações dos EUA serviram como combustível para minar sua legitimidade (CAROTHERS, 2006; CAROTHERS, BROWN, 2018). E contribuiu, ainda, para trazer de volta, em diversos países, as memórias de ações veladas dos Estados Unidos que, durante a Guerra Fria, influenciaram eleições e derrubaram governos legitimamente eleitos (CAROTHERS, 2006; FIEDLSCHUSTER, 2019). Apoiando-se também na relação entre a promoção da democracia e a política externa dos Estados Unidos, William Robinson (1998) constata que a promoção internacional da democracia é consequência da globalização e da transnacionalização dos Estados e das elites. Este fenômeno se disseminaria a partir dos interesses econômicos norte-americanos. O avanço da globalização


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do capitalismo teria levado a um consenso entre as elites globais em torno do neoliberalismo e da democracia (ROBINSON, 2013). Para o autor, a democracia promovida a partir das intervenções norteamericanas levaria a uma participação política bastante estreita, regulada pelas elites e com atuação limitada das massas populares. O real objetivo destas ações não seria, portanto, a promoção de eleições livres, mas o resultado que delas advém: a disseminação do capitalismo global neoliberal (ROBINSON, 2013). Além dos questionamentos acerca da legitimidade da promoção da democracia, parte da literatura também refuta a tese da paz democrática a partir de reflexões que questionam tanto as premissas quanto as conclusões dos liberais. Diferentes análises apontam que as democracias não guerreiam menos do que Estados não-democráticos (MAOZ, ABDOLALI, 1989; MORGAN, CAMPBELL, 1991; DIXON, 1994). A assertiva sobre o pacifismo das democracias é colocada em cheque por estudos que constatam que a tendência mais ou menos conflitiva depende do nível de análise examinado, do período avaliado e também, ainda que em menor grau, da forma como os próprios regimes políticos e o envolvimento no conflito são avaliados (MAOZ, ABDOLALI, 1989). Infere-se pelas relações causais sustentadas pelos teóricos da paz democrática, que um Estado não-democrático ao se democratizar se tornaria menos propenso a desenvolver relações belicosas, o que não se verifica empiricamente (MAOZ, ABDOLALI, 1989). No âmbito temporal, questiona-se a paz democrática com análises empíricas que consideram períodos anteriores ao século XX. Se os constrangimentos resultantes da democracia são verdadeiros, eles deveriam ser uma constante em qualquer período analisado. Patrick McDonald (2009) conclui que até a I Guerra Mundial, autocracias seriam mais pacíficas do que democracias. Na mesma direção, Joanne Gowa (1999; 2011) sustenta que entre 1816 e 1913, Estados democráticos são tão propensos a guerrear entre si quanto Estados não-democráticos. Tanto Sebastian Rosato (2003) quanto


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Gowa (2011) afirmam que a paz democrática é um evento que somente pode ser constatado após a II Guerra Mundial, no período da Guerra Fria. Outro ponto controverso é o fato de “democracia” e “guerra” serem termos com conteúdos flexíveis. Assim, a natureza pacifista das democracias está relacionada à forma como os regimes políticos são avaliados e a linha que separa a democracia da nãodemocracia pode ser tênue na prática. Especialmente grupos políticos diferentes podem ter visões diversas sobre o regime político de outro Estado (ROSATO, 2003). Na mesma direção, a classificação de um Estado como estando ou não envolvido em um conflito pode ser mais árduo do que parece a princípio. Algumas ações se encontram em um limbo de difícil classificação, como é caso das intervenções dissimuladas, especialmente as que os Estados Unidos empreenderam na América Latina durante a Guerra Fria. Há, portanto, nas difíceis definições de “democracia” e de “guerra” uma tentação tautológica, de se buscar, com elas, salvaguardar a tese da paz democrática (OWEN, 1994). Mais um argumento crítico à paz democrática é o de que a ausência de conflitos armados entre democracias liberais seria encoberta pela atitude agressiva e beligerante destas em relação aos países não-democráticos. Koskenniemi (1996) observa que as democracias optam pela externalização da guerra, as guerras por proxy. A ausência de conflitos armados entre os países de tradição liberal teria como conexão não a relação entre democracia e paz, mas entre imperialismo, desenvolvimento e paz. O subdesenvolvimento e a guerra em territórios não-democráticos seriam implicações deste fato (KOSKENNIEMI, 1996). Em um raciocínio que parece completar esta reflexão, os estudos empíricos de Andrew Baush (2015) mostram que não há um crescimento linear entre o número de democracias no mundo e a diminuição de conflitos, confirmando o que Kenneth Waltz (2000) havia sugerido anos antes.


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As críticas à teoria da paz democrática recaem também sobre a real possibilidade de os constrangimentos institucionais e normativos, tão celebrados pelos liberais, serem capazes de limitar o recurso à força. No âmbito institucional, alguns autores argumentam que não há indícios fortes que demonstrem que a opinião pública de países democráticos seja profundamente pacifista. Se assim fosse, os Estados democráticos deveriam ser pacíficos de forma geral e não somente em relação aos que partilham do mesmo regime político (LAYNE, 1994; ROSATO, 2003). Da mesma forma, afirmam os críticos que, ainda que haja grupos pacifistas, estes não são necessariamente mais fortes do que os grupos de interesse que se articulam de maneira favorável à guerra (ROSATO, 2003). Seguindo na esfera institucional, questiona-se a afirmação segundo a qual líderes democráticos tenderiam à paz pelos constrangimentos resultantes dos processos decisórios das democracias. Governos não-democráticos também podem ser objeto de diversos constrangimentos em seus processos decisórios (MORGAN, CAMPBELL, 1991; GOWA, 1999). Femke Bakker (2018) observa que normas liberais não estão necessariamente ausentes em sistemas políticos não-democráticos e atuam também no processo decisório sobre entrar ou não em um conflito. Além disso, os constrangimentos políticos resultantes da estrutura doméstica de um Estado não afetariam de forma geral a frequência do envolvimento em guerras (MORGAN, CAMPBELL, 1991). De acordo com Rosato (2003), historicamente, é possível constatar que o sistema de checks and balances não é necessariamente utilizado quando da declaração de guerra, com os Poderes Executivos tomando muitas vezes a decisão de maneira isolada mesmo nas democracias. Observa-se da mesma forma, na literatura, estudos que buscam comprovar que variáveis relacionadas à estrutura do sistema, ao jogo de alianças e interesses e ao poder bélico são responsáveis pela guerra ou pela paz, não os fatores aventados pelos


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liberais. Nesse sentido, as mudanças ocorridas na estrutura do sistema internacional entre a I Guerra Mundial e a Guerra Fria seriam argumentos mais convincentes para explicar a ausência de conflitos entre democracias do que aqueles utilizados pelos teóricos da paz democrática (GOWA, 2011). A multipolaridade que caracterizou o sistema antes de 1914 e a bipolaridade pós-1945 seriam o fundamento da existência ou não de conflitos entre democracias. Antes de 1914, a heterogeneidade e a relativa fluidez de interesses reduziram o número de alianças entre democracias. De modo inverso, após 1945, houve um aumento de interesses comuns entre elas, resultante da ordem bipolar. Quanto mais interesses compartilhados, menor a probabilidade de conflitos militares (GOWA, 1999; 2011). Assim, a existência de interesses comuns refletiu no crescimento no número de alianças entre as democracias durante a Guerra Fria (GOWA, 1999). Atentando para as condições materiais que perpassam a decisão por entrar em um conflito, Christopher Layne (1994) afirma que os motivos que levaram ao arrefecimento dos ânimos de guerra foram a percepção, por um dos lados, da distribuição desigual de recursos militares entre as partes e o temor de que terceiros se aproveitassem do conflito. Tais conclusões são especialmente importantes considerando-se o pequeno universo de casos em que a paz democrática pode efetivamente ser testada. Um possível fator explicativo para as pesquisas que atestam o restrito número de guerras envolvendo democracias seria consequência de poucos Estados terem sido classificados como democráticos ao longo da história (MORGAN, CAMPBELL, 1991; ROSATO, 2003). A isto deve ser acrescentado o fato de as guerras não serem eventos cotidianos ou frequentes para os Estados. Sendo as guerras ocasionais de forma geral, ainda mais improvável é a sua ocorrência entre democracias (OWEN, 1994). O resultado é que a importância de cada exceção é ampliada, pesando contra a teoria da paz democrática (LAYNE, 1994).


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Finalmente, a última variável que busca refutar a tese da paz democrática fundamenta-se em estudos ligados à teoria das normas econômicas que afirmam que não é a estrutura política, mas sim a econômica, a responsável pela ausência de conflitos – a paz capitalista ou comercial61. Por esta perspectiva, o que realmente constrange o conflito são as instituições econômicas liberais, ou seja, o que se assiste é uma paz econômico-liberal baseada no capitalismo (GARTZKE, 2007; MCDONALD, 2009; MOUSSEAU, 2013; SCHNEIDER, 2017)62. Duas instituições centrais para o capitalismo, ligadas à estrutura da economia liberal, são basilares para o desenvolvimento desta corrente teórica: a propriedade privada e o livre mercado. Haveria uma espécie de “mão invisível da paz” (MCDONALD, 2009). Sintetizando, os principais mecanismos responsáveis pela paz por esta perspectiva seriam: o alto custo econômico dos conflitos especialmente diante da estrutura fiscal de boa parte dos Estados capitalistas; a percepção dos Estados de que os ganhos advindos do crescimento das relações de comércio são maiores do que em ações de pilhagem e conquista de novos territórios; o aumento do contato e da comunicação entre as sociedades que levaria à constituição de uma esfera de interesses comuns; a condição dos Estados capitalistas de vocalizar suas intenções quando em confronto com outro Estado; o desenvolvimento do comércio que auxiliaria nos processos de negociação de conflitos; os arranjos regionais que intensificariam os fluxos comerciais (MCDONALD, 2009; SCHNEIDER, 2017). Para parte da literatura que desconfia dos reais resultados internacionais da disseminação 61

A relação entre as forças do mercado e a ausência de guerras não chega a ser exatamente uma novidade. Os liberais clássicos já percebiam esta conexão (GARTZKE, 2007), por exemplo Kant. O que há, nas últimas décadas, é uma espécie de reexame sobre esta relação de causalidade. 62 Para um estudo que analisa os erros e acertos das análises empíricas da paz democrática e da paz capitalista, ver Choi (2011). Um exame crítico da relação entre comércio e paz pode ser encontrado em Barbieri (2005).


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da democracia liberal, seriam estes e não os constrangimentos políticos que conteriam as guerras. 4 CONCLUSÃO A História não acabou. O mundo está longe de um consenso, em termos práticos ou teóricos, acerca da existência de um regime político a ser universalizado. A realidade internacional tem, claramente, mais gradações e maior diversidade do que supunham os que previram que o fim da Guerra Fria significaria uma disseminação inexorável da democracia liberal. Por um lado, o poder do Ocidente somado à confiança nas características positivas da democracia liberal explicam sua propagação. De outro lado, há a desconfiança por experimentar-se a disseminação de um regime cujas características foram delineadas especificamente no contexto histórico e político ocidental. Afinal, seria a promoção da democracia um passo para uma sociedade mais justa e segura ou apenas mais uma mostra da faceta imperialista do Ocidente diante do “resto do mundo”, fundada em interpretações espúrias acerca das relações de causalidade que fomentam seus discursos legitimadores? A análise das teorizações em torno desta temática mostra que não há resposta simples a esta questão, pois esta desconsideraria a complexidade do próprio fenômeno. Trinta anos depois do início da promoção da democracia, revisitar os já tradicionais fundamentos teóricos que buscam validá-lo e as críticas a ele relacionadas mostra que as controvérsias seguem vivas e com nuances recém acrescidas, prosseguindo, assim, as potencialidades e a relevância do debate. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKKER, Femke. Hawks and Doves: Democratic Peace Theory Revisited. Leiden: Leiden University Press, 2018.


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CAPÍTULO 6 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA E CRISE SANITÁRIA NO BRASIL: O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Clara Cardoso Machado Jaborandy Liziane Paixão Silva Oliveira

1 INTRODUÇÃO A crise sanitária provocada pelo novo coronavírus (COVID-19) gerou impactos sociais, econômicos, jurídicos em todos os países do mundo, com diferentes proporções, de acordo com a política de Estado e de governo adotadas. No Brasil, tanto o governo federal, por meio da Lei n. 13.979 de 06 de fevereiro de 2020 (BRASIL, 2020), como os governos estaduais e municipais adotaram uma série de medidas para contenção da pandemia, que representam restrições a direitos fundamentais e às liberdades públicas, a exemplo de isolamento social, uso compulsório de máscaras, restrição à locomoção interestadual e intermunicipal, dentre outras. Em razão do desastre biológico ocasionado pelo vírus foi decretado Estado de Calamidade Pública, em 20 de março de 2020, por meio do Decreto Legislativo n.06. O Estado de Calamidade Pública é medida prevista na ordem jurídica brasileira no Decreto 7.257/2010 (BRASIL, 2010), em virtude da necessidade de aumentar os gastos públicos para proteger a saúde e a garantia do emprego. Durante o período de março a junho de 2020 o Executivo federal editou 64 medidas provisórias sob o argumento da relevância e urgência para contenção da pandemia, sendo que 25 medidas provisórias


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referem-se a criação de créditos extraordinários. As demais abarcam conteúdos variados relativos a distribuição de competências (MP 926/2020), direitos trabalhistas (MP 927/2020), compartilhamento de dados (MP 954/2020), direito de informação (MP 928/2020), relativização das responsabilidades do gestor público (MP 966/2020), dentre outras medidas. É nesse cenário de instabilidade democrática63 que o papel do Supremo Tribunal Federal ganha ênfase como corte que deve garantir o respeito às normas constitucionais, as regras do jogo democrático e o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Apesar do importante papel do Supremo Tribunal Federal, este protagonismo judicial precisa observar as técnicas decisórias da hermenêutica constitucional de modo a respeitar os limites constitucionais e não instaurar uma exceção constitucional provocada pelo Poder Judiciário, sem que haja uma real fundamentação para relativizar a norma da constituição por meio de uma jurisprudência de crise. O presente artigo tem por objetivo verificar se as decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal durante a crise sanitária provocada pelo COVID-19, especialmente nos meses de março a junho de 2020, revelam uma jurisprudência de crise e se realmente há necessidade de se relativizar o texto constitucional, considerando-se a realidade subjacente. Para esta análise o texto tratará inicialmente do conceito de estado de exceção e a de estado de calamidade pública no Brasil, a fim de verificar os limites e possibilidades de restrição às liberdades fundamentais durante o período de crise sanitária. Em seguida, apresentará as principais decisões em sede de controle concentrado de 63

É possível lembrar aqui Roberto Gargarela (2019) e sua compreensão da democracia defeituosa. Segundo o autor as democracias defeituosas se caracterizam pela: (i) desigualdade própria dos países da América Latina; (ii) dissonância democrática em razão da baixa participação popular no processo deliberalivo; (iii) hiperpresidencialismo, compreendida pela concentração de poderes no Executivo; (iv) sistemática violação dos direitos sociais; (v) perfeccionismo moral e conservadorismo político; (vii) violência política e social


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constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal entre os meses de março e junho de 2020. Ao final, trará o conceito de jurisprudência de crise para confirmar ou refutar a hipótese de que o Supremo Tribunal Federal age nos limites da hermenêutica Constitucional no seu papel contramajoritário. A pesquisa realizada é do tipo pura, qualitativa e exploratória, sendo a coleta de dados de natureza bibliográfica e documental, analisando-se as decisões em sede de controle concentrado de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal. 2 ESTADO DE EXCEÇÃO E A DECRETAÇÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NO BRASIL Antes de analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade dos atos normativos editados pelo Legislativo e Executivo é necessário compreender a teoria do estado de exceção no Brasil, também denominado de Sistema Constitucional de Crises, para verificar os limites e possibilidades das restrições a direitos no momento de crise sanitária. O conceito de estado de exceção (state of emergency, état d’excepcion, estado de excepción, stato di eccezione) é complexo na medida em que se situa entre o fenômeno político e jurídico e possui diversas facetas que vão desde a caracterização de sua natureza até a compreensão de seus fundamentos64. No pensamento jurídico há uma uniformidade na percepção de que o estado de exceção tem como intuito a retomada da estabilidade democrática em caso de tumulto institucional ocasionado por situações de crise, com possibilidade de suspensão da ordem jurídica ou da Constituição em sua totalidade ou das principais normas, a exemplo das que garantem direitos

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Para aprofundar o conceito ver SAINT-BONNET (2001); AGAMBEN (2004)


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fundamentais65. A dificuldade na definição foi observada por Giorgio Agamben (2004, pp.17-18): Entre os elementos que tornam difícil uma definição do estado de exceção, encontra- se, certamente, sua estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência. Dado que é o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, que é a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (2016, p.287) pontua que a característica mais marcante do estado de exceção é a “anormalidade na conjuntura de uma pretensa normalidade”. No sentido clássico66 o estado de exceção é instaurado diante de situações anormais, graves e imprevisíveis capazes de ameaçar a estrutura do Estado de Direito.

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Para François Saint- Bonnet (2007) o sentido clássico de estado de emergência consiste em uma violação ou uma derrogação às normas restritivas de poder em caso de crise, com o objetivo de salvaguardar o Estado. Nas palavras do autor: “Depuis quelques années, l’expression « état d’exception » est employée de deux manières très différentes. Dans une première acception, classique, l’état d’exception est entendu comme un moment pendant lequel les règles de droit prévues pour des périodes de calme sont transgres- sées, suspendues ou écartées pour faire face à un péril. Pendant ce moment, on assiste à une concentration du pouvoir, en général au profit de l’exécutif et d’autre part à la réduction ou à la suspension des droits jugés fondamentaux pendant les périodes de calme.” 66 Apesar de não ser o objetivo deste artigo, não se desconhece a compreensão de Agamben (2004) de que o estado de exceção consiste numa modificação do ordenamento jurídico para lidar com perigos duradouros, como um terrorismo. Agamben (2004) defende a existência de um estado de exceção permanente por ser uma técnica de governo e paradigma constitutivo da ordem jurídica. Na percepção de Rafael Valim (2017, p. 34): “Em última análise, o estado de exceção é uma exigência do atual modelo de dominação neoliberal. É o meio pelo qual se neutraliza a prática democrática e se reconfiguram, de modo silencioso, os regimes políticos em escala universal”. Sobre o estado de exceção permanente conferir também BERCOVICI (2012); SERRANO (2016).


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A experiência constitucional brasileira foi marcada por vários períodos totalitários em que o Poder Executivo67 utilizava arbitrariamente o estado de exceção para expandir suas atribuições e suspender direitos fundamentais. Diante deste contexto, em um regime democrático tardio e incipiente como o instaurado em 1988 a previsão de estados de exceção deve ser bem delimitada de modo a evitar abusos e garantir a manutenção das instituições democráticas. O sistema constitucional de crises da Constituição brasileira abrange o estado de defesa e o estado de sítio68, e tem como princípios a temporalidade, a estrita observância à Constituição e a proporcionalidade/necessidade. Além disso, infraconstitucionalmente, o art. 65 da Lei Complementar n. 101/2000 (BRASIL, 2000) disciplina o estado de calamidade pública. O estado de defesa está previsto no art. 136 da Constituição (BRASIL, 1988) e tem como objetivo a preservação ou restabelecimento em locais restritos e determinados, da ordem pública ou da paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. O decreto que o institui deverá determinar o tempo de duração e especificar as áreas a serem abrangidas. No estado de defesa são permitidas medidas coercitivas como: (i) restrição dos direitos de reunião, do sigilo de correspondência e do sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; bem como (ii) a ocupação e o uso temporário de bens e serviços públicos, respondendo a União pelos danos causados e custos decorrentes. O tempo de duração não poderá ser superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período. O estado de sítio previsto no art. 137 da Constituição (BRASIL, 1988) pode ser decretado pelo Presidente da República 67

Em Teologia Política, Carl Schmitt faz uma apologia da exceção, ligando-a diretamente à figura do soberano. “Soberano é quem decide sobre a exceção” (SCHMITT, 2004, p. 13). 68 A intervenção federal prevista no art. 34, CF também integra o sistema constitucional de crises, mas não integra o conceito de Estado de Exceção, razão pela qual não foi abordada.


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após aprovação do Congresso Nacional em casos mais graves como: (i) comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; e (ii) declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. O estado de sítio alcança todo o território nacional e permite mais limitações aos direitos fundamentais, como os previstos no art. 139, CF (BRASIL, 1988): (i) obrigação de permanência em localidade determinada; (ii) restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; (iii) a suspensão da liberdade de reunião; (iv) intervenção nas empresas de serviços públicos e a requisição de bens, dentre outros. A crise sanitária ocasionada pelo COVID-19 não traz um cenário de necessidade de suspensão de direitos característico dos Estados de Defesa e de Sítio. Foi imperioso, no entanto, decretar calamidade pública por meio do decreto legislativo n. 06/2020, que é medida prevista na ordem jurídica brasileira no Decreto 7.257/2010 (BRASIL, 2010) para combater crises institucionais e preservar a democracia em situações de anormalidade provocada por desastres que causem danos e prejuízos, implicando o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público. Trata-se de um Estado de Exceção sui generis, que permite a flexibilização de limites orçamentários para combater a disseminação do vírus. Diferentemente do estado de defesa e do estado de sítio, previstos constitucionalmente nos art.136 e 137, a declaração do estado de calamidade pública não autoriza a suspensão de direitos fundamentais. Em virtude deste contexto de excepcionalidade, admitem-se limitações às liberdades públicas, mas, por se inserir no sistema constitucional de crises, devem observar as regras de excepcionalidade, temporalidade, proporcionalidade/necessidade e observância estrita à Constituição.


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Diante da excepcionalidade causada pela emergência sanitária do COVID-19, essas medidas podem ser consideradas legítimas, sempre observando o princípio da proporcionalidade e o que dispõe o art.3º, § 1º, da Lei federal n. 13.979/2020, no sentido de que essas limitações só podem ser determinadas “com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública” (BRASIL, 2020). Não obstante a possibilidade de restrições a direitos com o intuito de proteger a saúde pública, que é bem comum universal, não se podem admitir excessos que agridam e desfigurem a ordem democrática, que passa por um período de forte tensão. As medidas de restrição às liberdades foram decretadas pelos executivos estaduais e municipais, no âmbito de sua competência concorrente de proteção a saúde pública (art.23, II, CF), tendo como foco a prevenção e a contenção de um vírus caracterizado pela enorme velocidade de contágio. Como já sublinhado, todas as medidas que restrinjam direitos fundamentais devem observar o princípio da proporcionalidade e ter como finalidade a proteção integral à saúde pública69. Caso haja excesso por parte do Executivo ou do Legislativo nas limitações aos direitos fundamentais o Poder Judiciário deve ser acionado para realizar o controle do ato e proteger a constituição e o Estado Democrático. Como guardião da Constituição o Supremo Tribunal Federal deverá assumir seu papel contramajoritário na jurisdição constitucional de modo a garantir o exercício regular das funções estatais e os direitos fundamentais. Não se defende, com isso, a denominada “supremocracia” (VIERA, 2008)70 e, tampouco, a “ministrocracia” (ARGUELHES; 69 70

A resolução 01/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2020) Para Oscar Vilhena Vieira (2008, p. 444-445) “o termo supremocracia refere-se à autoridade do Supremo em relação às demais instâncias do judiciário” (...) e “à expansão da autoridade do Supremo em detrimento dos demais poderes”.


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RIBEIRO, 2018)71 típicas de uma sociedade infantilizada e órfã (MAUS, 2000). Ao revés, propugna-se uma atuação do Supremo Tribunal Federal no âmbito da legalidade constitucional, de suas funções institucionais e nos limites da hermenêutica e do devido processo constitucional. Ocorre que, diante de uma crise sanitária e das já existentes crises econômica e política, é possível que o Supremo Tribunal Federal venha a decidir de maneira excepcional, nos termos do que foi denominada pela Corte Constitucional portuguesa de Jurisprudência da Crise72. 3 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E CONTROLE JUDICIAL DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS DURANTE A PANDEMIA: JURISPRUDÊNCIA DE CRISE? Desde a declaração de estado de calamidade pública, o Supremo Tribunal Federal tem sido acionado para se manifestar sobre a constitucionalidade de diversas medidas provisórias editadas pelo Presidente da República que tem como principal fundamento a contenção da pandemia. Como é de conhecimento acadêmico, em relação a decisões políticas deve prevalecer a regra da autocontenção judicial (judicial selfrestraint73). Todavia, diante da crise sanitária mundial provocada pelo 71

O termo ministrocracia é utilizado por Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhando Ribeiro (2018) para demonstrar a tendência dos Ministros do Supremo Tribunal Federal de decidir monocraticamente sem levar questões importantes a plenário. Além disso, os autores demostram o forte controle que os ministros individualmente exercem sobre a agenda do tribunal. 72 Em Portugal a Jurisprudência de Crise foi inserida no âmbito da Corte Constitucional entre os anos de 2011 e 2013 e baseia-se em uma série de medidas de austeridade voltadas à redução do déficit orçamentário português. Entre as modificações mais agudas, pode ser citada a decisão contida no Acórdão nº 396/2011 que entendeu ser compatível com o texto constitucional as reduções remuneratórias no quantitativo de 3,5% a 10% dos salários dos servidores públicos. 73 Um exemplo de autocontenção judicial durante a pandemia ocasionada pelo COVID-19 foi a decisão da Suprema Corte Norte Americana no caso SOUTH BAY UNITED PENTECOSTAL CHURCH, ET AL. v. GAVIN NEWSOM, GOVERNOR OF CALIFORNIA, ET AL. Nesse


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COVID-19 e considerando que muitas decisões do executivo federal brasileiro em relação a contenção da pandemia são tomadas sem amparo em dados científico e no consenso internacional coordenado pela Organização Mundial de Saúde, faz-se necessária a atuação do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade desses atos. Em razão dos limites deste artigo, serão apresentadas as principais decisões do Tribunal Constitucional brasileiro entre os meses de março e junho 2020, no tocante ao controle das medidas provisórias, de modo a viabilizar uma análise crítica sobre a existência de uma jurisprudência de exceção74 ou de crise no Brasil, em razão da pandemia. É importante esclarecer que, em razão da urgência das situações, a maioria das decisões apresentadas foi decidida monocraticamente por um Ministro do STF em sede de cautelar. No entanto, cumpre registrar que há um maior compromisso do Supremo Tribunal Federal em levar com mais velocidade essas decisões monocráticas a plenário, fato de extrema importância para legitimidade das decisões.

caso a Igreja Pentecostal ingressou om ação de controle de constitucionalidade na Suprema Corte Norte Americana em face de ato do governador de Califórnia, Gavi Newson que, durante a pandemia, limitava o comparecimento a locais de culto a 25 % da capacidade ou no máximo a 100 participantes. Com 5 votos a 4 a Suprema Corte entendeu que não há violação à Constituição. Veja-se trecho da decisão “Although California’s guidelines place restrictions on places of worship, those restrictions appear consistent with the Free Exercise Clause of the First Amendment. Similar or more severe restrictions apply to comparable secular gatherings, including lectures, concerts, movie showings, spectator sports, and theatrical performances, where large groups of people gather in close proximity for extended periods of time. And the Order exempts or treats more leniently only dissimilar activities, such as operating grocery stores, banks, and laundromats, in which people neither congregate in large groups nor remain in close proximity for extended periods” (EUA, 2020). 74 Segundo Serrano (2016, p. 104) “A exceção está presente na jurisdição quando suas decisões se apresentarem como mecanismos de desconstrução do direito, com finalidade eminentemente política, seja pela suspensão da própria democracia – como ocorreu, por exemplo, na América Latina, em países como Paraguai e Honduras –, seja pela suspensão de direitos da sociedade ou parcela dela, como de fato ocorreu e ainda ocorre no Brasil em inúmeras situações”.


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Com o intuito de verificar se há uma jurisprudência de Crise no âmbito do Supremo Tribunal Federal foram selecionadas 5 (cinco) decisões com temas distintos e relevantes. A primeira decisão que merece destaque é a da ADI 6342 em face da MP 927/2020, que trata das medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência sanitária decorrente do Covid-19. Nesse caso, o plenário do STF declarou a inconstitucionalidade parcial da medida provisória no tocante aos artigos 29 e 31. O artigo 29 não considerava doença ocupacional os casos de contaminação de trabalhadores pelo coronavírus e o artigo 31 limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho à atividade de orientação. Prevaleceu o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes no sentido de que o art. 29 ofende os direitos dos trabalhadores de atividades essenciais expostos ao risco. O art. 31, por sua vez, não auxilia o combate à pandemia e diminui a fiscalização no momento em que vários direitos trabalhistas estão em risco. Apesar do controle destes dois dispositivos, o STF permitiu a flexibilização dos direitos trabalhistas durante a crise admitindo, na contramão do que dispõe o texto constitucional nos arts.7º e 8º, a redução da jornada e da remuneração por meio de acordo individual entre empregado e empregador75. Sem dúvida, essa decisão revela uma jurisprudência de crise76 na medida em que o texto constitucional aponta a irredutibilidade 75

Art.2º, MP 927/2020 - Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição. 76 Em meio à crise econômica o Tribunal Constitucional Português admitiu (i) a extinção do pagamento de 13º e 14º dos aposentados com renda superior a 1,1 mil euros; (ii) congelamento das aposentadorias em 2011; (iii) cobrança de contribuição adicional de 3,5% para os aposentados com renda de 1 mil euros até 40% para aqueles com renda acima de 7,1 mil euros; e (iv) suspensão de aposentadorias precoces (57 anos) entre 2012 e 2014 (Acórdãos números: 396/20111 , 353/20122 e 187/2013)


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salarial, salvo o disposto em convenção e acordo coletivo (art.7º, IV) e afirma que a redução de jornada de trabalho depende de acordo ou convenção coletiva (art.7º, XIII). Na trilha do pensamento de Alexandre Souza Pinheiro (2014, p. 170), a jurisprudência da crise traduz um “processo negocial entre a interpretação normativa da Constituição e a necessidade de ceder perante as exigências das circunstâncias”. Como se vê, no momento em que o STF admite acordos individuais para redução de salários e jornadas está indo de encontro às garantias constitucionais da irredutibilidade salarial e da necessidade de presença do sindicato. A Corte constitucional está admitindo a ausência de inconstitucionalidade de uma medida legislativa que seria flagrantemente inconstitucional se não fosse o momento da crise. Mister frisar que por ser uma jurisprudência de crise deve ter o caráter temporário e transitório77, sendo válida apenas para esse momento de crise sanitária, o que significa dizer que essa decisão não faz precedente num ambiente de normalidade institucional e sanitária, não possuindo validade para situações posteriores à crise. Nesse caso, vê-se que o posicionamento do STF foi de permitir o retrocesso na proteção a direitos sociais trabalhistas em momentos de crise. Apesar de não ser o objetivo deste artigo aprofundar essa decisão, vê-se que não houve uma análise mais profunda pelo STF da proporcionalidade das medidas adotadas na flexibilização dos direitos trabalhistas pela MP 927/2020, a exemplo da suspensão temporária dos contratos de trabalho e da redução de jornada, o que fragiliza a legitimidade da decisão78, uma vez que esses 77

Ana Maria Guerra Martins (2015, p.688) destaca que uma das linhas principais da jurisprudência de crise em Portugal foi a de que as medidas de austeridade que comprometessem direitos fundamentais eram constitucionalmente justificadas se observassem o caráter da temporariedade e da transitoriedade. Ou seja, essas restrições a direitos sociais com a mudança da interpretação constitucional só seriam aceitáveis em razão das circunstâncias excepcionais. 78 Por se tratar de uma jurisprudência de crise, deve observar 5 virtudes elencadas por Gonçalo de Almeida Ribeiro (2014, p.81) a saber: construída com razoabilidade, previsibilidade, adequação


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limites Constitucionais revelam o que Godinho (2001)79 denomina de patamar civilizatório mínimo dos trabalhadores. Outra decisão relevante durante a pandemia foi a da ADI 6.343 MC-Ref/DF em face de dispositivos das medidas provisórias 926/2020 e 927/2020, que alteraram dispositivos da Lei n. 13.979/2020, que trata das medidas para enfrentamento da pandemia, para impor aos entes federados a obrigação de seguir as recomendações dos órgãos federais, a exemplo da restrição da locomoção interestadual e intermunicipal. O Supremo Tribunal Federal entendeu que essas medidas provisórias atingiam a autonomia dos Estados e Municípios para a contenção da pandemia, na medida em que possuem competência concorrente para legislar sobre saúde pública (art. 24, XII e art. 30, I , II e VII, CF). Ademais os entes regionais e locais compartilham com a União a competência comum para cuidar da saúde e assistência pública no âmbito do art. 23, II, do texto constitucional. Diante disto, o STF decidiu: i) suspender parcialmente, sem redução de texto, o disposto no art. 3º, VI, b, e §§ 6º e 7º, II, a fim de excluir estados e municípios da necessidade de autorização ou observância ao ente federal; e ii) conferir interpretação conforme aos referidos dispositivos no sentido de que as medidas neles previstas devem ser precedidas de recomendação técnica e funcional dos juízos, legitimidade da intervenção contramajoritária, abertura ao pluralismo político. 79 Segundo Godinho (2001, pp. 97-98): “No caso brasileiro, esse patamar civilizatório mínimo está dado, essencialmente, por três grupos convergentes de normas trabalhistas heterônomas: as normas constitucionais em geral (respeitadas, é claro, as ressalvas parciais expressamente feitas pela própria Constituição: art. 7º, VI, XIII e XIV, por exemplo); as normas de tratados e convenções internacionais vigorantes no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5º, §2°, CF/88, já expressando um patamar civilizatório no próprio mundo ocidental em que se integra o Brasil); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança no trabalho, normas concernentes a bases salariais mínimas, normas de identificação profissional, dispositivos antidiscriminatórios, etc.).


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fundamentada, devendo ainda ser resguardada a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas as definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão

Assim o Supremo Tribunal Federal reconheceu e assegurou o exercício da competência concorrente dos governos estaduais e distrital e suplementar dos governos municipais para adoção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, isolamento, quarentena, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver e restrição à locomoção interestadual e intermunicipal em rodovias, portos ou aeroportos, sem prejuízo da competência geral da União. Na oportunidade o STF afirmou que as medidas de restrição devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada do respectivo órgão de vigilância sanitária ou equivalente. Decerto, essa decisão tem inúmeros impactos na coordenação nacional que deveria existir no combate à pandemia. Entretanto, diante da postura negacionista do Executivo federal, amparado em uma falsa dicotomia entre saúde e economia, não restou alternativa ao Supremo Tribunal Federal senão aplicar o federalismo cooperativo, ampliando a autonomia dos entes regionais e locais. Mais uma vez é preciso registrar que não é objetivo deste artigo aprofundar essa temática80, mas verificar se a decisão do Tribunal observou os limites do texto constitucional. Não obstante a existência de vários conceitos abertos na decisão, já que não há uma especificação de como operacionalizar esse federalismo cooperativo e descentralizador no combate à pandemia, o que se observa é que a fundamentação utilizada pela

80

Para aprofundar ver BACHA E SILVA; BAHIA (2020)


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Corte encontra guarida no texto constitucional não se caracterizando uma jurisprudência de crise ou exceção. Outra medida provisória que foi levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal foi a MP n. 928/20 que alterava o art. 6º-B da Lei n. 13.979/2020 para restringir o direito/dever de informação na medida em que suspende os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação e impede o conhecimento de recursos interpostos contra a negativa de resposta. Por certo a medida provisória restringia excessivamente e sem qualquer vínculo com o combate à crise sanitária, os direitos constitucionais à informação, transparência e publicidade. Para questionar a constitucionalidade dessa medida provisória foram propostas três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 6351 MC-Ref/DF, ADI 6347 MC-Ref/DF, ADI 6353 MCRef/DF) que pleiteavam a declaração de inconstitucionalidade do art.6º-B, por limitar desproporcionalmente o direito do cidadão de acesso à informação. No dia 26/03/2020 o Ministro Relator Alexandre de Moraes concedeu a medida cautelar para determinar a suspensão do art.6º-B da Lei n.13.979/2020, incluído pelo art. 1º da MP 928/2020 e em 30/04/2020 o plenário referendou a decisão. Os fundamentos da decisão do STF foram no sentido de que: (i) a exceção (sigilo de informações) não pode ser transformada em regra sob pena de transgredir os princípios da publicidade e da transparência; (ii) a consagração constitucional de publicidade, transparência fortalecem a democracia representativa; (iii) o acesso à informação é uma garantia instrumental ao pleno exercício do princípio democrático; (iv) o dever de informar só pode ser excepcionado quando o interesse público assim determinar. De fato, não se desconhece a possibilidade de restrições a direitos fundamentais em períodos de crise, como a da emergência sanitária do COVID-19. Todavia, a medida provisória 928/2020 não guarda qualquer conexão com o combate à pandemia. Ao revés, a medida provisória vai na contramão do processo de contenção da crise sanitária na medida em que somente com a informação,


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transparência e publicidade é que a sociedade civil consegue participar ativamente e com corresponsabilidade nas ações de combate. Diante do claro abuso do poder emergencial utilizado pelo Executivo Federal na MP 928/2020, bem como o desvio de finalidade na motivação da MP, impõe-se o exercício da jurisdição constitucional para que se proteja e fortaleça os direitos fundamentais expressos no texto constitucional. Merece destaque ainda a decisão da Corte Constitucional brasileira no tocante ao direito fundamental à proteção de dados pessoais. Nesse caso, o plenário referendou a Medida Cautelar nas ações direitos de inconstitucionalidade 6387, 6388, 6389, 6393, 6390, suspendendo a aplicação da Medida Provisória 954/2020, que obrigava as operadoras de telefonia a repassarem ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dados identificados de seus consumidores de telefonia móvel para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública do Coronavírus. Na decisão, de relatoria da Ministra Rosa Weber, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a MP 954/2020 violava a garantia do devido processo legal (art.5º, LIV, CF) em sua dimensão substantiva (princípio da proporcionalidade) ao não definir como e para qual finalidade seriam utilizados os dados coletados, sem oferecer condições para avaliação da sua adequação (compatibilidade do uso dos dados para o combate da pandemia) e necessidade (dentre os meios de contenção o compartilhamento se revelaria um meio menos gravoso). O Tribunal ponderou também que não obstante a MP 954/2020 dispor no art. 3º, I e II que os dados compartilhados “terão caráter sigiloso” não apresenta mecanismo administrativo apto a evitar o vazamento acidental ou utilização indevida de dados, revelando uma proteção insuficiente aos direitos fundamentais da privacidade, da personalidade e da autodeterminação informativa.


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O voto da Ministra relatora também ressaltou a generalidade da MP 954/2020 na medida em que não especifica os fins e a forma de uso de dados. Também não há uma indicação precisa do período de uso dos dados e o compartilhamento de dados na forma prevista se tornou desnecessário e excessivo na medida em que o IBGE já tinha firmado parceria com o Ministério da Saúde para uma Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) voltada à quantificação do alastramento do COVID-19 e seus impactos no mercado de trabalho. Outro aspecto que foi ponderado na decisão foi a debilidade do quadro normativo do Brasil em relação a proteção de dados, na medida em que ainda não está em vigor a lei geral de proteção de dados (lei 13.709/2018), que define os critérios para responsabilização dos agentes em caso de violação bem como instaura uma autoridade nacional independente para fiscalizar a violação no uso e compartilhamento de dados. Ao terminar o voto a Ministra Rosa Weber (STF, 2020, p. 12) destacou que “não se subestima a gravidade do cenário de urgência decorrente da crise sanitária [...] O seu combate, todavia, não pode legitimar o atropelo de garantias fundamentais consagradas na Constituição”. De fato, malgrado a necessidade de criação de políticas públicas aptas ao enfrentamento e a contenção da pandemia, o uso da tecnologia e o compartilhamento de dados precisam estar em conformidade com os preceitos constitucionais e com o princípio da proporcionalidade, além de se mostrar um instrumento eficaz para a contenção da crise sanitária, o que não foi observado na MP 954/202081. Deste modo, entende-se que o Supremo Tribunal Federal agiu de maneira responsável e em conformidade com as 81

Por não ser o escopo do artigo analisar pormenorizadamente cada decisão em seus múltiplos aspectos e densidades teóricas, não se irá tecer comentários sobre as especificidades do direito a proteção de dados no Brasil. Nesse sentido conferir: DONEDA (2019); BIONI (2019).


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determinações constitucionais no tocante a declaração de inconstitucionalidade da MP 954/2020. A última decisão que merece destaque é a da análise da MP 966/2020, que dispõe sobre o regime especial de responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19. Nesse caso foram apresentadas 7 (sete) ações diretas de inconstitucionalidade (ADIS 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431 MC) e a relatoria foi do Ministro Luiz Roberto Barroso. As ações questionaram a limitação da responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos às hipóteses de “erro grosseiro” e de “dolo”, alegando inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 966/2020. O STF decidiu que a MP 966/2020 é, em princípio, constitucional, mas deverá ser feita uma interpretação conforme à Constituição para que seja interpretada segundo alguns parâmetros fixados pelo Tribunal. Desse modo, o Plenário do STF deferiu parcialmente a medida cautelar para: a) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 2º da Medida Provisória (MP) 966/2020 (1), no sentido de estabelecer que, na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção; e b) conferir, ainda, interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da MP 966/2020 (2), para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade à qual compete a decisão deve exigir que a opinião técnica trate expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades reconhecidas nacional e internacionalmente; (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.


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Como se pode observar da leitura da decisão o Supremo Tribunal Federal teve a preocupação em definir o que se compreende por erro grosseiro, bem como estabelecer parâmetros para a autoridade que fará o controle do ato administrativo nesse regime especial de responsabilização criado em razão da pandemia. Nessa decisão fica evidente a ação moderada e deferente da Corte Constitucional no tocante a ato do Poder Executivo Federal que teve por objetivo diminuir a burocracia da Administração Pública nesse momento absolutamente excepcional de pandemia, de modo a permitir que o agente público pratique com urgência atos destinados a combater os efeitos colaterais da pandemia. Com a técnica da interpretação conforme à Constituição adotada pelo Supremo Tribunal Federal na MP 966/2020 restou claro que a flexibilização do regime de responsabilização dos agentes públicos para tornar viável a execução de políticas públicas de enfrentamento à pandemia é uma necessidade decorrente da crise sanitária, sem, porém, deixar de punir casos de erros grosseiros ou fraudes. Trata-se de uma jurisprudência de crise na medida em que se o contexto fosse diverso o Tribunal Constitucional poderia entender pela inconstitucionalidade da medida. Após a análise destas cinco decisões do Supremo Tribunal Federal durante a pandemia do COVID-19, vê-se que, com exceção da decisão que reduziu garantias trabalhistas (ADI 6342) e a que flexibilizou o regime de responsabilidade administrativa durante a pandemia, as demais decisões não se enquadram no conceito de jurisprudência de crise, reforçando a proteção de direitos fundamentais e o papel contramajoritário da Corte Constitucional brasileira. 4 CONCLUSÃO A jurisdição constitucional consubstancia-se como uma garantia democrática de submissão da função legislativa à vontade do povo, expressa no texto constitucional.


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Por certo, mesmo em tempos de emergência sanitária como a provocada pelo COVID-19 o Estado democrático não pode funcionar sem a justiça constitucional, que atua na concretização dos direitos fundamentais. Como foi demonstrado o governo federal tem aproveitado o momento de crise para editar diversas medidas provisórias que vão na contramão do que é consenso científico para a contenção da COVID-19 bem como com restrições excessivas e desarrazoadas a direitos fundamentais. Em virtude da ausência de compromisso do Executivo com a consistência do uso de seu poder normativo para a contenção da pandemia, o protagonismo judicial do Supremo Tribunal Federal faz-se necessário para garantia do Estado democrático e do texto constitucional. Como ator principal da jurisdição constitucional o Supremo Tribunal Federal deve exercer seu papel contramajoritário e de guardião do texto constitucional durante a crise sanitária de modo a reforçar a proteção aos direitos fundamentais. Após analisar as principais decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle entre março e junho de 2020 constatou-se que, na sua maioria, os julgados não extrapolam os limites das funções atribuídas ao STF no exercício da jurisdição constitucional, concretizando princípios constitucionais e direitos fundamentais. No tocante à jurisprudência de crise ou de exceção ela deve ser vista e utilizada com moderação e cautela, observando-se a transitoriedade que o momento impõe, de modo que o STF se responsabilize pela manutenção e a continuidade do projeto político constitucional. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhando. MINISTROCRACIA: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estud. CEBRAP [online]. 2018,


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CAPÍTULO 7 A POLÍTICA EXTERIOR BRASILEIRA NA ADOÇÃO DO ESTATUTO DE ROMA Renata Mantovani de Lima

1 INTRODUÇÃO O processo de ratificação de um tratado implica sua posterior inserção no ordenamento jurídico interno. Tal fato traz, inevitavelmente, questionamentos. Nesse sentido, ao consagrar, em um só documento, preceitos inovadores de proteção à pessoa humana82, o texto do Estatuto do Tribunal Penal Internacional acabou por suscitar conflitos com alguns dispositivos internos, inclusive constitucionais, provenientes dos Estados participantes das negociações. Com o Brasil não foi diferente, uma vez que, embora favorável à sua adoção, à época não firmou o tratado constitutivo do TPI, pois a complexidade das regras adotadas prescindia de um prévio e criterioso exame jurídico para, posteriormente, decidir sobre a incorporação do texto no ordenamento jurídico pátrio. Conceitualmente, tratado pode ser definido como um acordo formal, manifestado pela vontade dos Estados, sujeitos de direito internacional público, destinado a produzir efeitos jurídicos para as partes contratantes83. Todavia, para se tornarem eficazes deve 82

Cita-se como exemplo a tipificação dos crimes de guerra, contra a humanidade e genocídio, a obrigatoriedade da entrega de nacionais para julgamento e a cooperação internacional com o Tribunal. 83 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, em seu art. 2 (1) (a) define tratado como um “acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica”.


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respeitar um processo solene de negociação, celebração e ratificação regulados tanto pela normativa internacional84 quanto pelo sistema jurídico interno de cada um dos Estados. No caso do Brasil, o Presidente da República e o Congresso, embora possuidores de competências diversas, voltam-se para a mesma finalidade: a conclusão e adoção do tratado pelo regime jurídico nacional85. Neste sentido, a primeira fase da celebração do Tratado de Roma foi sua negociação pelos participantes da Conferência de Plenipotenciários, que culminou na formulação de um Estatuto a ser submetido à ratificação pelos Estados. Superada essa fase, passou-se para a celebração propriamente dita, a qual no direito pátrio, depende da conjugação dos Poderes Executivo e Legislativo. Nos termos da Constituição Federal, compete privativamente ao Chefe do Poder Executivo celebrar tratados, convenções e atos internacionais86, cabendo ao Ministro de Estado das Relações Exteriores a tarefa de auxiliá-lo relativamente à Hodiernamente, a prerrogativa em firmar tratados não é mais atributo exclusivo do Estado. Organizações internacionais como ONU, OEA, passaram a ter capacidade internacional para celebrar tratados. Vide Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986. 84 Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. 85 A formalização de um ato internacional inicia, na maioria dos casos, com os atos de negociação, conclusão e assinatura. Em regra, essa competência é atribuída ao Poder Executivo, dependendo do ordenamento de cada um dos Estados. Especificamente no Brasil, as negociações de um Tratado devem ser acompanhadas por funcionário diplomático (Decreto nº. 2.246/1997, art. 1º, III, anexo I), devendo, ainda, ser aprovado pela Consultoria Jurídica do Itamaraty e pela Divisão de Atos Internacionais. A assinatura, por sua vez, implica na mera autenticação do texto convencional, ou seja, põe termo à negociação. Contudo, não tem o condão de vincular o Estado ao instrumento internacional. É importante destacar que o término da fase de negociação que se dá com a assinatura do instrumento internacional, por implicar apenas a manifestação do Governo em prosseguir no procedimento de celebração do tratado, não tem o condão de atribuir ao Estado signatário a obrigação de cumpri-lo. Diversamente, a ratificação implica o aceite definitivo das normas e obrigações constantes do Tratado, externando seus efeitos no plano jurídico internacional. ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do. Manual de direito internacional público, p.20. 85 Art. 84, VIII, da Constituição Federal. 86 Art. 84, VIII, da Constituição Federal.


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formulação da política externa do Brasil87. Contudo, é de praxe, no Ministério das Relações Exteriores, que qualquer autoridade, desde que com Carta de Plenos Poderes, possa assinar um tratado88. Por tal razão, o representante brasileiro perante as Nações 89 Unidas , aos 07 de fevereiro de 2000, assinou o Estatuto de Roma, reforçando a relevância do Tribunal nos planos político e jurídico, exatamente por ser a primeira Jurisdição Internacional Penal permanente e autônoma constituída por um tratado multilateral. Entretanto, o ato internacional ainda não estava concluído, uma vez que cabia ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre o referido instrumento90. Assim, no dia 10 de outubro de 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso submeteu o texto à apreciação do Congresso Nacional, em consonância com o disposto no art. 49, I, da Constituição Federal. Somente em 06 de junho de 2002, o Estatuto foi aprovado por meio do Decreto Legislativo nº. 11291. Feito isso, o referendo retornou ao Chefe do Executivo, que providenciou o depósito do instrumento de ratificação perante o Secretário-Geral das

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Decreto nº. 2.246/1997, art. 1º, parágrafo único, anexo I. A Carta de Plenos Poderes deve ser firmada pelo Presidente da República e referendada pelo Ministro das Relações Exteriores. 89 Embaixador Gelson Fonseca, integrante do Ministério das Relações Exteriores. 90 Art. 49, I, da Constituição Federal. 91 Decreto Legislativo nº 112 de 2002: “O Congresso Nacional decreta: Art. 1º Fica aprovado o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aprovado em 17 de julho de 1998 e assinado pelo Brasil em 7 de fevereiro de 2000. Parágrafo Único. Ficam sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido Estatuto, bem como quaisquer ajustes complementares quem nos termos do inciso I do art. 49 da Constituição Federal, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Art. 2º Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação”. Vale registrar a natureza jurídica do decreto legislativo: trata-se de uma lei sem sanção, ou confirmação, aprovação do Chefe do Executivo. Assim, é um ato proferido exclusivamente pelo Congresso Nacional, também proveniente do processo legislativo nacional, contudo sem a interferência do Presidente da República. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, p. 142. 88


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Nações Unidas92 em 20 de junho do mesmo ano, confirmando sua vinculação ao Tratado de Roma no plano jurídico internacional. É oportuno ressaltar que com o ato de ratificação93 o Estado manifesta seu consentimento em vincular-se juridicamente ao acordo internacional. A partir de então, devem cumpri-lo em respeito aos princípios pacta sunt servanda e o da boa-fé94, sob pena de responsabilidade no plano internacional. Outro ponto a ser destacado é que o trâmite de recepção interna, previsto nas Constituições dos Estados, é o vetor de eficácia do documento internacional no âmbito territorial de cada um dos Estados Partes. Por tal razão, a finalização da etapa interna de inserção do Estatuto de Roma no ordenamento jurídico pátrio foi formalizada pela promulgação95, em 25 de setembro de 2002, do Decreto Presidencial nº. 4.38896. 92

O referido órgão da ONU ficou incumbido de receber os instrumentos de ratificação, aceitação ou aprovação, vide art. 125 (2) do Estatuto de Roma. 93 A mesma Convenção sobre Tratados preceitua que ratificação pode ser entendida como “o ato internacional assim denominado, pelo qual um Estado estabelece no plano internacional o seu consentimento em se obrigar por um tratado”. Art. 2 (1), (b). 94 Vide art. 26 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. 95 Salienta-se que a promulgação atesta a existência e a formalização do ato internacional, indicando a sua executoriedade no ordenamento pátrio. “Os efeitos da promulgação consistem em: a) tornar o tratado executório no plano interno e b) constatar a regularidade do processo legislativo, isto é, o Executivo constata a existência de uma norma obrigatória (tratado) para o Estado”. MELLO, Celso D. Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 241. Observa-se que o decreto presidencial não encontra fundamento legal, mas constitui-se em “praxe tão antiga quanto a Independência e os primeiros exercícios convencionais do Império”. REZEK, José Francisco. Direito internacional público, p. 83. 96 Decreto Presidencial na íntegra: “O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VIII, da Constituição, Considerando que o Congresso Nacional aprovou o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, por meio do Decreto Legislativo nº. 112, de 6 de junho de 2002; Considerando que o mencionado Ato Internacional entrou em vigor internacional em 1o de julho de 2002, e passou a vigorar, para o Brasil, em 1o de setembro de 2002, nos termos de seu art. 126; Decreta: Art. 1o O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém. Art. 2º São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido Acordo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do art. 49, inciso I, da


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Aduzidas, brevemente, algumas considerações sobre o processo de inserção dos Tratados no plano interno, in casu Estatuto de Roma, responsável pela criação do Tribunal Penal Internacional, e considerando-se os compromissos assumidos em razão dessa implementação, impõe-se a analisar, inicialmente, o tratamento dispensado pela Constituição Federal brasileira aos Direitos Humanos, bem como as repercussões da Emenda Constitucional nº. 45 no Direito Internacional Penal. Após, reflexões sobre eventuais impactos constitucionais serão realizadas, com o intuito de se demonstrar a perspectiva interna para a adoção do Estatuto, e ao fim, analisar os esforços envidados pelo Brasil para o cumprimento das obrigações decorrentes do Tratado. 2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Ao se analisar o histórico das Cartas Constitucionais do Brasil, pode-se perceber que a atual representa a culminação de um processo evolutivo para se chegar a um Estado Democrático de Direito, no qual os direitos humanos fundamentais e as garantias a eles inerentes são expressamente assegurados97. Desse modo, a Constituição de 1988 acolhe ampla e categoricamente os Direitos Humanos, responsáveis por eleger valores universais e essenciais ao homem, reconhecidos ao longo dos anos, sobretudo no século XX, após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Ademais, representa, também, um marco jurídico no processo de

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Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio Nacional. Art. 3º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação”. “A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito”. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p. 61.


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institucionalização dos direitos humanos no Estado brasileiro, uma vez que abriga o princípio da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, ao alargar a dimensão dos direitos e garantias fundamentais assegurados, por meio do preceituado no § 1º, art. 5º da Constituição. Vale lembrar que direitos humanos e direitos fundamentais são expressões utilizadas como sinônimo, exatamente por denominarem uma mesma realidade; no caso, a realidade referente aos direitos essenciais e inerentes ao homem98. Tais direitos antecedem qualquer forma de organização política, e, por isso, são basilares aos ordenamentos constitucionais99. Nessa perspectiva, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é instituído logo no início da nossa Carta Política100. O princípio da prevalência dos direitos humanos, por sua vez, é destacado enquanto regulador das relações internacionais em que a República for parte. No tocante às normas positivadas, destacam-se, primeiramente, os direitos individuais e políticos. Estes compreendem as liberdades clássicas e implicam a prestação negativa do Estado, resguardando, com isso, direitos considerados indispensáveis a cada pessoa humana. São tradicionalmente denominados direitos fundamentais de primeira geração. De maneira geral, englobam a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Como provisões implicantes no presente trabalho, citam-se a proteção à coisa julgada, a punição de atos atentatórios a direitos fundamentais, a individualização da pena e a proibição da extradição e de penas de caráter perpétuo101. Posteriormente, são estabelecidos os direitos sociais, econômicos e culturais, denotados como direitos fundamentais de 98

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 360. “A história dos direitos humanos (...) é a história mesma da liberdade moderna, da separação e limitação de poderes, da criação de mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade jaz primeiro na Sociedade e não nas esferas do poder estatal”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 528. 100 Vide art. 1º, III, da Constituição Federal. 101 Previsões constantes do art. 5º da Constituição Federal. 99


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segunda geração. Estes, identificados precipuamente nas Constituições do pós-guerra, correspondem às liberdades positivas, ou seja, exigem uma ação por parte da entidade estatal102. Por último, os 102

José Afonso da Silva, ao discorrer sobre os Direitos Humanos consagrados pela Constituição, expõe os seguintes: “a) os direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade e do próprio Estado; por isso são reconhecidos como direitos individuais, ou seja: direitos à vida, à privacidade, à igualdade, à liberdade e à propriedade, especificados no art. 5º, mas, de acordo com o § 2º desse mesmo artigo, os direitos e garantias nele previstos não excluem outros decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte; b) os direitos fundamentais do homem-nacional, que são os que têm por objeto a definição da nacionalidade e suas prerrogativas (art. 12); c) os direitos fundamentais do homem-cidadão, que são os direitos políticos (arts. 14-17), os direitos de participação política; d) os direitos fundamentais do homem-social, que constituem os direitos assegurados ao homem em suas relações sócio-econômicas e culturais, de acordo com os arts. 6º a 11, que podem ser agrupados em três classes: 1) direitos sociais relativos ao trabalhador (art. 7º e seus incisos), com regras sobre direito ao trabalho e garantia do emprego, direitos sobre as condições de trabalho (negociações coletivas), direitos relativos ao salário (salário mínimo, salário noturno superior ao diurno, irredutibilidade do salário), direitos relativos ao repouso e à inatividade do trabalhador, direitos relativos aos dependentes do trabalhador, participação nos lucros e co-gestão; direito de associação sindical e direito de greve (arts. 8º e 9º); 2) direitos sociais relativos à seguridade (art. 6º), compreendendo os direitos à saúde, à previdência e à assistência social (arts. 6º e 194 a 204); 3) direitos sociais relativos à educação e à cultura (arts. 6º); d) direitos fundamentais do homem-membro da coletividade, de que participam alguns tradicionais direitos de expressão coletiva como os de associação e de reunião, mas os direitos coletivos como espécies dos direitos fundamentais do homem começam a forjar-se e a merecer consideração constitucional, assim são os direitos coletivos à informação (art. 5º, XIV e XXXIII, o qual não se confunde com a liberdade de informação, direito individual) e à representação associativa; direitos do consumidor (arts. 5º, XXXII, e 170, VI) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225). Vê-se, por essa síntese apertada, que a Constituição incorporou também os chamados direitos humanos de terceira geração, integrados com os de segundo e os de primeira. Ela suplanta a tendência para entender os direitos individuais como contrapostos aos direitos sociais e coletivos, que as Constituições anteriores, de certo modo, justificavam. Tratava-se de deformação de perspectiva, pois só o fato de estabelecere um rol de direitos econômicos, sociais e culturais já importava em conferir conteúdo novo àquele conjunto de direitos chamados liberais. Ela agora fundamenta o entendimento de que as categorias de direitos humanos, nela previstos, integram-se num todo harmônico, mediante influências recíprocas, com o que se transita de uma democracia de conteúdo basicamente político-formal para uma democracia de conteúdo social, pois a antítese inicial entre direitos individuais e direitos sociais tende a resolver-se


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direitos humanos de terceira geração englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, ao progresso, à paz, à qualidade saudável de vida, à autodeterminação dos povos e a outros tantos direitos coletivos e difusos representados pelos direitos de solidariedade ou fraternidade103. Dessa maneira, além de erigir os Direitos Humanos como princípio fundamental da República Federativa do Brasil104, a Constituição dispõe de uma série de regras afetas à matéria. Prevê, igualmente, que normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, isto é, são normas autoaplicáveis, uma vez que não dependem de complementação ou regulamentação para se tornarem exequíveis. São de tal forma reconhecidas que se constitui em cláusulas pétreas105. Ademais, não se trata de direitos taxativos, exatamente por não excluir da sistemática constitucional os direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, bem como de tratados firmados pelo Estado brasileiro. De fato, são todos manifestamente abrangidos pela Constituição106. numa síntese de autêntica garantia da vigência do princípio democrático, na medida em que os últimos forem enriquecendo-se de conteúdo e eficácia”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 217. 103

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Essas gerações de direitos fundamentais estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal brasileira. Na primeira, os direitos fundamentais de primeira geração podem ser apontados por intermédio dos arts. 4º a 21; os de segunda geração pelos arts. 22 a 27 e, no fim do documento, os direitos de terceira geração. Na Constituição do Brasil, por sua vez, os direitos dividem-se nos art. 5º para os de primeira geração; 6º e 7º para os de segunda geração, e alguns artigos esparsos representam os de 3ª geração, por exemplo, a preservação do meio ambiente disposta no art. 225.

Art. 4º, II, da Constituição do Brasil. Art. 5º, § 1º, e art. 60, § 4º, ambos da Constituição Federal. Este último artigo enaltece que os direitos e garantias constitucionais não podem ser alterados por Emenda Constitucional tendentes a aboli-los. 106 Vide artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Referida 105


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É necessário apontar, ainda, que os dispositivos relativos aos Direitos Humanos se encontram por todo texto constitucional, e não meramente em pontos específicos. Por este motivo, mostra-se crucial a afirmação da República brasileira em defender a formação de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos capaz de garantir e efetivar normas fundamentais internacionalmente reconhecidas107. E, sendo o TPI dessa natureza, outra não poderia ser a posição do Estado brasileiro que não a sua resguarda e consequente aprovação. É também neste contexto que a Emenda Constitucional nº. 45/2004 trouxe inovações, reafirmando e elevando a posição de destaque dos Direitos Humanos no ordenamento pátrio, bem como da expressa adesão ao Tribunal Internacional Penal. 3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº. 45, DE 8 DE DEZEMBRO DE 2004, E SUA IMPLICAÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL PENAL Publicada em 31 de dezembro de 2004, a Emenda Constitucional nº. 45 modificou o aspecto estrutural do Poder Judiciário, sendo, portanto, denominada “Reforma do Poder Judiciário”. No tocante ao Direito Internacional Penal, o legislador constituinte derivado dispôs de alterações relevantes, a seguir detalhadas.Com relação aos Direitos Humanos, acrescentou-se a seguinte previsão ao artigo 5º do texto constitucional: § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. norma pretende alcançar todos os direitos humanos: os inseridos no texto constitucional, os não inseridos, mas consagrados pelo ordenamento interno, e os posteriormente pactuados pelo Estado por meio de tratados. 107 Vide art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.


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Tal previsão mostrou-se fundamental, já que o conflito entre dispositivos dos tratados internacionais afetos à matéria e a Constituição Federal eram explicados por posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais diametralmente opostos108. Nesse sentido, uma parte dos operadores do direito entendia que a conjugação de alguns dispositivos constitucionais109 permitiria a aplicação direta e imediata dos Tratados dessa natureza110. Desse modo, seria desnecessário o processo de internalização formal de referidos atos internacionais, podendo inclusive revogar normas constitucionais. De forma contrária, outros defendiam que os tratados e convenções só poderiam ser aplicados quando incorporados pelo ordenamento jurídico pátrio. E, mesmo assim, estariam no mesmo plano de validade e eficácia das leis infraconstitucionais. Logo, além de não serem autoaplicáveis, seriam utilizados apenas como documentos auxiliares para a interpretação dos direitos constitucionais111. Ademais, “a ocorrência de conflito 108

A discussão quanto ao alcance dos tratados internacionais no direito interno teve início na decisão proferida pelo STF do RE 80004/1977. Na ocasião, a última instância jurídica brasileira afirmou que tais atos internacionais não se sobrepõem às leis internas. 109 Art. 5º, § 2º; art. 1º, III, e 4º, II, todos da Constituição. 110 Celso D. de Albuquerque Mello e Antônio Augusto Cançado Trindade, entendem que, relativamente aos direitos humanos, a norma mais benéfica deve ter prevalência, e não obrigatoriamente a mais recente. Entretanto, conferida a força de emenda constitucional aos tratados e convenções de direitos humanos, estes só poderão ser revogados pelo poder constituinte. 111 Nesse sentido: a) Julgamento do HC 72.131: análise do dispositivo da Convenção de San José da Costa Rica que proíbe a prisão civil por dívida. A decisão foi no sentido de que a dita Convenção não minimiza o conceito de soberania do Estado na elaboração da sua constituição, por isso não afasta a aplicação do art. 5º, LXVII, da Constituição, confirmando, assim, a prevalência desse instrumento sobre atos internacionais que protejam direitos fundamentais. b) Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 1.480-3/DF, relator Ministro Celso de Mello, julgada em 4 de setembro de 1997, que teve por objeto a Convenção nº. 158 da OIT (direitos fundamentais de segunda geração – direitos sociais do trabalho): “os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema judiciário brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posiciona as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre estas e os atos de direito


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entre essas normas deve ser resolvida pela aplicação do critério cronológico (a normatividade posterior prevalece) ou pela aplicação do critério da especialidade”112. Este é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal que esvazia por completo a extensão pretendida pelos parágrafos 1º e 2º do art. 5º, defendendo a supremacia da Constituição como valor absoluto113. Nesses termos, a EC 45/2004 evidencia o valioso esforço em expressamente conceder a esses tratados o real alcance de suas disposições. Observa-se, portanto, que a novidade introduzida se refere à expressa menção de força normativa constitucional dos tratados e convenções, dado a atribuição do status de emenda constitucional a esses atos internacionais. Para que se alcance a eficácia pretendida, o quórum exigido é o mesmo reservado para a aprovação das emendas114. Em outros dizeres, a condição de emenda constitucional implica integrá-los ao ordenamento interno como norma formalmente constitucional. Com isso, a qualidade de internacional público, mera relação de paridade normativa”. Contudo, o Ministro Carlos Velloso defendeu, nesse mesmo julgamento, a auto-aplicabilidade dos atos internacionais relativos aos direitos humanos pactuados pelo Brasil. Para ele, tais atos são incorporados pela ordem jurídica de forma autônoma, devendo ser integrados, harmonicamente, aos outros direitos fundamentais existentes. Dessa maneira não há que se falar em inconstitucionalidade material (ADIn 1480-3. Vencidos: Ministro Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence). C) Julgamento do HC 77.631 (SC - 3/08/1998): “Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental”. Relator: Ministro Paulo Gallotti. 112 RAMOS, André de Carvalho. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira, p. 262. 113 Afastaram a auto-aplicabilidade dos Tratados Internacionais afetos aos direitos fundamentais internalizados após a Constituição de 1988. Entenderam, por maioria, que apenas os Tratados daquela natureza celebrados e recebidos pelo ordenamento interno antes da promulgação dão diploma constitucional é que possuíam status de norma constitucional. Voto dos Ministros Moreira Alves e Nelson Jobim na Adin nº. 1480-3. 114 Art. 60, § 2º, da Constituição Federal: “A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”.


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norma materialmente constitucional atribuída aos direitos consubstanciados nesses instrumentos internacionais poderá ser concretamente efetivada, integrando-as, de forma definitiva, ao rol de direitos fundamentais acobertados pela garantia da cláusula pétrea115. Isso implica a persistência dos direitos consubstanciados no tratado, mesmo que no plano internacional tenha deixado de existir ou de ser cumprido. Em realidade, os tratados incorporados em consonância ao § 3º, do art. 5º da Constituição poderão, de forma concreta, revogar disposições constitucionais que lhe forem contrárias, ainda que elaboradas pelo constituinte originário. Outra considerável alteração foi a adição, ao mesmo art. 5º, de um dispositivo relacionado à submissão do Estado brasileiro à jurisdição de Tribunal Penal Internacional, a cuja criação tenha aderido116. Em uma primeira análise pode-se concluir, inicialmente, que seria uma desnecessária reafirmação do princípio constitucional da prevalência dos Direitos Humanos. Sem dizer na clara e anterior alusão de um Tribunal de Direitos Humanos propugnado pelo art. 7º do ADCT. Dado as características e a competência material do TPI, outro não seria o aludido Tribunal. Além disso, à época da publicação da Emenda Constitucional, o Estatuto de Roma já se encontrava devidamente incorporado ao ordenamento pátrio. Nessa perspectiva, a previsão constitucional, posterior à inserção deste ao direito interno, seria, tão-somente, mera redundância normativa, dado que não teria o condão de alcançar e muito menos convalidar atos jurídicos perfeitos. Contudo, a interpretação a esse dispositivo não pode ser realizada de maneira tão superficial. Seu sentido e efeitos são de profunda complexidade. O que se pretende, em verdade, é afastar quaisquer discussões quanto à constitucionalidade das previsões estatutárias do Tribunal Penal Internacional. Para tanto, o § 4º, do art. 5º da CF promoveu uma extensão da jurisdição brasileira ao 115 116

Artigo 60, § 4º da Constituição. Trata-se do § 4º do citado artigo constitucional que preceitua: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional e cuja criação tenha manifestado adesão”.


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claramente se submeter à jurisdição de Tribunal Penal Internacional, a cuja criação manifeste sua aderência. Isto é, acabou por equiparar um Tribunal desse gênero aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Vê-se, portanto, que o intuito de tal dispositivo não é de declarar, na esfera constitucional, a adesão ao Tribunal Penal Internacional; mas reconhecer, qualquer instituição dessa espécie, como jurisdição nacional. No entanto, pode-se formular a seguinte indagação: se a intenção do dito parágrafo era a de estender o poder jurisdicional interno, por qual motivo não o inseriu dentre as disposições constantes do Capítulo III, do Título IV da Constituição117? Para responder esse questionamento devem-se considerar alguns aspectos. Em primeiro lugar, ressalta-se que o diploma constitucional não obsta a ampliação da jurisdição nacional. Em segundo lugar, observa-se que, embora disponha sobre os órgãos jurisdicionais em um Capítulo específico, nada dispõe no sentido de impedir seu tratamento em domínio constitucional diverso. Aliás, assim o fez por mera questão organizacional e metodológica. Dito isso, é forçoso concluir que a opção do constituinte derivado em expandir o rol dos órgãos jurisdicionais no Título destinado aos direitos e garantias fundamentais foi deliberada, intencional. Isso porque, procedendo dessa maneira erigiu-o como norma de caráter fundamental, acobertando-o pelo manto da cláusula pétrea118. Ocorre que as cláusulas pétreas são aqueles dispositivos que impossibilitam o legislador reformador de suprimir determinadas matérias do texto constitucional. Em outros termos, dispositivos constitucionais que não admitem alterações quanto à forma e insuscetíveis de serem abolidos por emenda. Todavia, é 117

Este Capítulo destina-se a regular as disposições afetas ao Poder Judiciário, dentre elas a de dispor sobre os órgãos jurisdicionais que o compõe. 118 Art. 60, § 4º, IV da Constituição: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias fundamentais”. Esse artigo faz referência à cláusula pétrea, ou seja, dispositivo constitucional imutável, no sentido de não poder ser suprimido nem por via de emenda à constituição.


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sabido que os tratados e convenções internacionais podem ser extintos, entre outros meios, através do ato unilateral de denúncia 119 exteriorizado pelo Chefe do Poder Executivo. Nessa perspectiva, haveria, então, a possibilidade de o Presidente da República, na prerrogativa de seu poder discricionário, portanto de conveniência e oportunidade, abolir esta cláusula pétrea, denunciando o Tratado de Roma? Para alguns autores, veda-se a denúncia de tratados de proteção dos direitos humanos. Isso porque, ratificados pelo Estado, ingressam no ordenamento interno com índole constitucional, sendo, pois, cláusula pétrea. Entretanto, mesmo não se admitindo tal posição120, uma eventual denúncia não implicaria na supressão dessa regra fundamental. Tal deve-se pelo fato do § 4º, do art. 5º da CF propugnar pela adesão a um Tribunal Penal Internacional genérico, e não ao TPI especificamente. É certo que atualmente este é o que se molda ao dispositivo constitucional, não obstante o que se petrifica é o reconhecimento de que, na existência de um Tribunal Internacional de natureza penal, sua jurisdição será atribuída ao Estado brasileiro. Contudo, resta, ainda, um último ponto a ser analisado: a natureza jurídica das decisões do Tribunal Penal Internacional, para determinar ou não a observância do art. 105, I, i da Constituição Federal, que exige a homologação de sentenças estrangeiras ou a aprovação de diligências (por meio da concessão do exequatur) pelo STJ, para que possa surtir efeitos no ordenamento interno121. 119

A denúncia pode ser conceituada como: ato unilateral pelo qual um Estado parte em determinado Tratado manifesta sua vontade em dele se retirar. 120 Ver posição jurisprudencial do STF na nota 461. 121 A EC nº. 45/2004, também alterou a competência para a homologação das sentenças estrangeiras. Agora a competência para esse ato é reservada ao STJ. “Art. 105, CF: Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias”. A carta rogatória é um pedido feito por autoridade judicial estrangeira para que seja cumprida uma diligência no Brasil, como citação, inquirição de testemunhas, entre outras. Por isso é necessário o exequatur, isto é, o despacho que ordena a exequibilidade, no Brasil, de diligência judicial oriunda do estrangeiro.


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O TPI é uma organização internacional com personalidade jurídica internacional, cuja jurisdição alcança todos os signatários que, voluntariamente, participaram de sua formação ou a ele aderiram122. Desse modo, seus atos e, consequentemente, suas decisões, sejam interlocutórias, terminativas ou definitivas, têm natureza internacional, ou provenientes de um organismo internacional123. Ademais, tais decisões constituem-se em obrigação internacional de resultado. Entretanto, por lhes faltarem o atributo da executividade, o Estado deverá cumpri-las, por meio de seu aparato interno, sob pena de responsabilização internacional. Isso porque, ao aceitar a jurisdição de um tribunal internacional, assume o compromisso de cumprir de boa-fé as decisões internacionais porventura proferidas124. E no caso brasileiro, reconheceu não só a validade do Tribunal, mas, expressamente, admitiu sua jurisdição como extensão da sua. As sentenças estrangeiras, por sua vez, são proferidas por uma Corte afeta à soberania de outro ente estatal. Por esse motivo, determina-se a homologação dessas decisões, instituto relacionado com a cooperação judicial entre Estados, fornecendo-lhes eficácia para a produção dos efeitos jurídicos em território diverso do prolatado125. Trata-se, pois, de “ato de recepção de decisão emanada de outro 122

Art. 4 (1) do Estatuto. Salienta-se que a decisão do Estado brasileiro em reconhecer a jurisdição do TPI como jurisdição nacional, não tem o condão de retirar ou modificar a natureza internacional desse organismo. Trata-se de uma escolha política interna, no sentido de ampliar a sua jurisdição. 124 RAMOS, André de Carvalho. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira, p. 280/281. 125 Nesse sentido preceitua Mazzuoli: “Ora, sabe-se que o direito internacional não se confunde com o chamado direito estrangeiro. Aquele diz respeito à regulamentação jurídica da sociedade internacional, na maioria dos casos feita por normas internacionais. O direito internacional disciplina, pois, a atuação dos Estados, das Organizações Internacionais e também dos indivíduos no cenário internacional. Já o direito estrangeiro é aquele afeto à jurisdição de determinado Estado, como o direito italiano, o francês, o alemão e assim por diante. Será, pois, estrangeiro, aquele direito afeto à jurisdição de outro Estado que não o Brasil.” MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro, p. 81. 123


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Estado, sem referência a organização internacional”126. Nesse sentido, a doutrina e a própria jurisprudência do STF127, quando competente para homologar sentenças estrangeiras, eram pacíficas ao afirmar os limites constitucionais da enumeração da competência originária do órgão máximo do Judiciário. Assim, por se tratar de numerus clausus, não cabe interpretação tendente a ampliar essa competência128. Esse entendimento deve ser mantido, uma vez que a EC 45/2004 apenas alterou o órgão responsável por proceder ao processo homologatório. Visto isso, pode-se concluir que dada à natureza jurídica das decisões do TPI, essencialmente internacionais e, portanto, distintas das decisões estrangeiras, não compete ao STJ homologá-la para que possa produzir seus efeitos jurídicos no Estado brasileiro. Aliás, caso seja necessária a intervenção do Judiciário, caberá à Justiça Federal, por meio de seus órgãos, quais sejam, juízes federais, e mediante provocação do Ministério Público Federal, atuar no processamento dessas decisões129. 126

RAMOS, André de Carvalho. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira, p. 282. 127 Antes da EC nº. 45/2004, a competência para homologar sentenças estrangeiras era do Supremo Tribunal Federal. (Antigo art. 102, I, h). 128 “Assim a enumeração da competência originária do Excelso Pretório prevista no art. 102, inc. I, é verdadeiro numerus clausus e não pode ser ampliada, a não ser por reforma constitucional. Como firmou Celso de Mello (...): “Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que a competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se acha submetido – não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política...”. RAMOS, André de Carvalho. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira, p. 284. 129 Nesse sentido leciona André Ramos: “(...) quando a decisão do Tribunal Penal Internacional exigir a intervenção do Poder Judiciário (como ocorre no caso de ordem de prisão para posterior entrega), o juiz das liberdades, que pode ser provocado em todos os casos, é o juiz federal de 1ª. Instância do domicílio do acusado ou segundo as regras processuais ordinárias. (...) Caberá ao Ministério Público Federal a provocação, quando necessário, do juízo das liberdades para que seja implementada a ordem internacional. Esta atribuição do Parquet está em sintonia com o art. 127 et seq. Da Constituição federal, que justamente dotou esta instituição de uma ampla missão, em especial a de zelar pelo respeito aos direitos humanos, o que por certo coaduna-se com a tarefa de fazer ver cumprida decisão de órgão internacional


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ENFRENTAMENTO DE EVENTUAIS IMPACTOS CONSTITUCIONAIS PARA A ADOÇÃO DO ESTATUTO DE ROMA

Em uma leitura simples, desprovida de análises profundas, poder-se-ia concluir pela incompatibilidade de alguns preceitos estabelecidos pelo Estatuto de Roma para a adoção do Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira. Considerando a premissa de inadmissão de reservas130, alguns juristas, à época da ratificação, questionaram a conveniência em se obrigar com o Estatuto. Isso porque, aparentemente, violava princípios garantistas de nossa Constituição e a noção de soberania interna. A partir de questões como a obrigação de entregar nacionais ao TPI para que sejam julgados, o suposto desrespeito à coisa julgada, a questão relativa à previsão de prisão perpétua e a ausência de individualização da pena para cada tipo penal, a desconsideração das imunidades de jurisdição e privilégios de foro por prerrogativa de função e a imprescritibilidade dos crimes previstos no Estatuto, desenvolveu-se um intenso debate que, ao fim, consensaram plena sintonia dos preceitos constantes do Estatuto de Roma e da Constituição Federal. De fato, a análise de compatibilidade além de interessante, é de fundamental importância, mas o presente artigo não visa enfrentar essa perspectiva. Nesse momento, importa destacar a conduta do Estado brasileiro para a ratificação do Estatuto131. Na oportunidade, o texto do Estatuto fora submetido à apreciação da Consultoria Jurídica para que se emitisse parecer sobre o tema suscitado. Nesse contexto, o Ministério das Relações Exteriores, juntamente com o Centro de Estudos Judiciários da criada para a proteção de direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional“. RAMOS, André de Carvalho. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira, p. 284. 130 Art. 120 do Estatuto de Roma. 131 Para uma análise desses aspectos jurídicos ver: Lima, Renata Mantovani de. O Tribunal penal internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006


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Justiça Federal promoveram um Seminário Internacional com o intuito de debater os aspectos políticos e jurídicos expostos com a instituição do TPI para a sua consequente adoção pelo Brasil. O Seminário Internacional “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira” foi realizado em Brasília – DF, entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro de 1999, no auditório do Superior Tribunal de Justiça. Ao término do referido Seminário, ficou consagrada a posição brasileira no sentido de que os conflitos levantados com a adoção do Estatuto pelo Brasil eram apenas aparentes. Concluiu-se, também, que o diploma confirmava os princípios fundamentais de direito penal e processual, oferecendo garantias concretas de sua jurisdição complementar. Desse modo, não havia que se falar em incongruência entre o ordenamento jurídico interno e o internacional estabelecido pelo Tribunal. Assim, no dia 07 de fevereiro de 2000, o Brasil procedeu à assinatura do tratado constitutivo do TPI e, em 20 de junho de 2002 depositou o instrumento de ratificação perante o Secretário-Geral das Nações Unidas. O texto do Estatuto, submetido à apreciação do Congresso Nacional em 10 de outubro de 2001, foi aprovado por meio do Decreto Legislativo nº. 112, de 06 de junho de 2002. E, no dia 25 de setembro de 2002, foi promulgado pelo Decreto Presidencial nº. 4388. 5

ESFORÇOS ENVIDADOS PELO BRASIL PARA O CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES DECORRENTES DO ESTATUTO DE ROMA

É de se destacar que o governo brasileiro participou ativamente dos Comitês Preparatórios e da Conferência de Roma (1998), responsável por estabelecer o Estatuto do Tribunal Penal Internacional. A posição brasileira foi no sentido de que uma corte penal eficiente, imparcial e independente representaria um


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significativo avanço na busca contra a impunidade pelos mais graves crimes internacionais. Com sede na Haia (Países Baixos), o TPI iniciou suas atividades em 01 de julho de 2002132. Regido pelo princípio da complementaridade, compete ao Tribunal processar e julgar indivíduos acusados de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão133. Todavia, nenhuma das normas do Estatuto prevê expressamente a implementação dos seus preceitos por meio da transposição de suas disposições ao plano interno dos Estados-Partes. Contudo, é certo que, em âmbito internacional, tal dever decorre da responsabilidade assumida pelos Estados, cabendo, inclusive, cumpri-lo em estrita observância ao princípio da boa-fé. A ratificação e o subsequente depósito do instrumento de ratificação por si só implicam à observância dos fins à que se propõe o Tratado. Reforça-se, contudo, que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional é complementar a dos Estados. Entende-se, pois, que, sob a perspectiva de política externa, a implementação de seus preceitos resguarda a tarefa primária dos Estados-Partes. Nesse sentido, o § 10 do preâmbulo do Estatuto destaca que a jurisdição do TPI é complementar às jurisdições penais nacionais, de forma a permitir que os Estados-Partes realizem, domesticamente, o julgamento dos crimes internacionais elencados no Estatuto. Lado outro, o art. 88 prevê o dever de cooperação, sob todas as formas, dos Estados-Partes com o Tribunal. É certo, entretanto, que o citado princípio pressupõe a capacidade dos Estados em proceder à investigação, bem como promover o procedimento criminal dos crimes sob competência do TPI. Remanesce, portanto, a presunção em favor dos Estados-Partes, tendo em vista que o processo perante o Tribunal só é admissível quando incompatível com o processamento 132

Atualmente, o Estatuto de Roma conta com 123 estados partes – dos quais 33 são africanos; 28 latino-americanos e caribenhos; 25 do grupo da Europa Ocidental e Outros; 18 da Europa do Leste e 19 da Ásia e Pacífico. Todos os países da América do Sul são partes do Estatuto. 133 Após 17 de julho de 2018.


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doméstico, quer por inércia do Estado, quer por ausência de condições. Nesse sentido, torna-se imprescindível uma implementação por meio da introdução dos dispositivos processuais necessários para a cooperação (compromisso de política externa), para além da inclusão dos crimes sob a jurisdição do TPI, principalmente ao consideramos as análises decorrentes da inclusão do § 4º do art. 5º da Constituição pela EC nº 45/2004. Em 23 de setembro de 2008, foi apresentado para a Deliberação do Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 4038/2008 que dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, inclusive de cooperação com o Tribunal, e dá outras providências. A última movimentação da citada PL foi em 16 de fevereiro de 2016134. Nesses dezoito anos de funcionamento do TPI, o Brasil manteve presença no Tribunal, seja por meio de sua delegação junto à Assembleia dos Estados Partes, seja pela participação de nacionais em importantes cargos da Corte. A brasileira Sylvia Steiner integrou o corpo de juízes do TPI de 2003 a 2016. Agora compõe o Comitê Consultivo para Nomeações do TPI, que já teve o Professor Dr. Leonardo Nemer Caldeira Brant entre seus membros (2013 a 2014). Em dezembro de 2019, a promotora Cristina Romanó foi uma das nove selecionadas para o Painel de Peritos Independentes para o processo de revisão do TPI, atualmente em curso.

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Apresentação do Requerimento de Urgência (Art. 155 do RICD) n. 3937/2016, pelo Deputado Weverton Rocha (PDT-MA) e outros Líderes, que: "Requeremos, nos termos do artigo 155, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, urgência para apreciação do PL nº 4.038/2008, que "dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências". Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=410747. Acesso em 08 ago. 2020.


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Ratificando o compromisso de participação nos trabalhos desenvolvidos pelo TPI, o governo brasileiro lançou, em abril de 2020, a candidatura da desembargadora Mônica Jacqueline Sifuentes a juíza do Tribunal Penal Internacional, nas eleições a serem realizadas na XIX Assembleia dos Estados Partes do TPI, prevista para novembro de 2020. No entanto, não basta indicações, mas a efetiva incorporação de preceitos do Estatuto. A morosidade nesse processo enseja à subsunção de fatos a tipos penais, cujo campo de tutela originária não alcançam a necessária proteção dos bens jurídicos mais caros à humanidade135. 6 CONCLUSÃO É possível constatar o crescente movimento de reconstrução e proteção efetiva de direitos, colocados como paradigmas da ordem internacional contemporânea. As obrigações internacionais e de consciência do indivíduo devem prevalecer sobre sua obediência ao Estado. O Tribunal Penal Internacional despontou como expoente de uma Corte permanente para salvaguardar preceitos jurídicos fundamentais que, historicamente, justificaram-se em premissas de ordem moral ou filosófica. Surgia, então, um Tribunal singular, capaz de atuar em julgamentos de grandes proporções e que permite um desenvolvimento unificado e uniforme do direito internacional penal. Nesse particular, importa destacar a participação brasileira nesse processo, reflexo da política exterior do Brasil no envolvimento com os direitos humanos, intensificada a partir dos anos 90. Não poderia ser diferente com o Estatuto de Roma, cuja natureza jurídica é claramente um tratado internacional de direitos humanos, com

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MOURA, Maria Thereza R. de Assis; ZILLI, Marcos A. Coelho; GHIDALEVICH, Fabíola G. M. Informes Nacionales: Brasil. In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Org.). Jurisprudencia latinoamericana sobre derecho penal internacional. Berlin: Konrad Adenauer Stiftung, 2008.


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caráter protetivo. A Constituição Federal, por sua vez, não apenas resguarda, mas reafirma a proteção dos direitos da pessoa humana. Nesse sentido, a Emenda Constitucional nº. 45 acolhe, expressamente, a constitucionalidade dos dispositivos convencionais do Estatuto, proclamando o desejo de vincular-se ao sistema de persecução e repressão criminal internacional previamente declarado pela Constituição. Todavia, a política para a implementação dos dispositivos do Estatuto que permitirão uma cooperação efetiva, ratificando a vocação brasileira na proteção internacional dos Direitos Humanos, mostra-se incipiente e morosa. Embora a elaboração do Projeto de Lei para a concretização da mencionada implementação pelo governo brasileiro represente uma significativa medida rumo ao cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado, a conclusão do processo está demasiadamente lenta, principalmente ao considerarmos que o exercício primário da jurisdição atribuído pelo Estatuto é condicionado pela promoção de uma persecução penal que espelhe os princípios nele consagrados. Somente assim, o Estado brasileiro concretizará seu real interesse em promover a cooperação com o TPI, bem como cumprir com as obrigações internacionalmente assumidas. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLMAND, Warren. The International Criminal Court and the human rights revolution. McGill Law Journal, Montreal, vol. 46, n. 1, p. 263-688, nov. 2000. AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel (Coords). Persecución penal nacional de crímines internacionales en América Latina y España. Montivideo, Uruguay: Instituto Max Planck de Derecho Penal Extranjero e Internacional/Konrad Adenauer Stiftung, 2003. AMBOS, Kai; JAPIASSÚ, Carlos E. A. (Org.). Tribunal Penal Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.


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CAPÍTULO 8 AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E TERRORISTAS NA ERA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO Daniel Amin Ferraz Fernanda R. P. de Moraes

1 INTRODUÇÃO O conceito terrorismo não é elaborado ao acaso visto os elementos políticos que o cerca. Há uma contribuição decisiva da ideologia dominante sobre o conceito, comumente direcionado a desqualificar o adversário político transformando-o em ameaça pública. A demanda mundial, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, é pela adoção de medidas contra o terrorismo. As legislações antiterror normalmente inserem-se no contexto do Direito Penal do Inimigo e é exemplo dessa realidade a Lei nº 13.260/16136 antes as peculiaridades de sua definição de terrorismo. Diante dos últimos acontecimentos mundiais, como os ataques na França em 2015 e as Olimpíadas sediadas no país em 2016, o Brasil editou apressadamente a referida Lei, que reformulou o conceito de organização terrorista. A legislação reproduziu a amplitude e imprecisão do termo vista no âmbito internacional, com penas excessivamente altas e antecipação da proteção penal, em afronta à legalidade/taxatividade penal. A norma, ao conceituar terrorismo e especificar seus atos usa conceitos abertos, revelando a intenção de ampliar o tipo penal. Isso possibilita ao intérprete enquadrar qualquer prática como terrorista, como é o caso das ações das organizações criminosas. Não há conceito claro e objetivo de 136

Lei Antiterrorismo brasileira. BRASIL, 2016.


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terrorismo, visto haver apenas os atributos caracterizadores de seus atos, sendo somente visualizado o autor a quem será imputada a pena e não o fato. Neste cenário, a tentativa do país de associar as organizações criminosas com atos terroristas, em sintonia com os meios de comunicação e com o Direito Penal do Inimigo, será evidenciada pelas características da Lei Antiterrorismo, e do Projeto de Lei nº 9.555/2018137, que pretende alterar as Leis nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo), nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), e nº 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), para “[…] qualificar como ato terrorista e crime hediondo qualquer ato praticado por organização ou facção criminosa”. Portanto, objetiva empreender modificações na Lei Antiterrorismo a fim de nela expressamente encaixar as organizações criminosas e suas atividades serem comparadas com as ações terroristas. 2 TERRORISMO Os tipos principais de terrorismo são o religioso, o étnico, o ideológico e o nacionalista, sendo que o mais encontrado é o primeiro. Em razão de suas diversas formas, sendo complexo e múltiplo, não é de fácil definição. Cada uma das suas definições não é neutra, porque associada a questões políticas, crenças, valores e ideologia daquele que o define, além de historicamente construído. São “[...] conceitos contestados: entendidos de forma diferente por indivíduos e grupos que trazem diferentes origens, crenças e 137

Do Sr. Cabo Sabino. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2167905 Tramitação em 01/03/2018: Apense-se à (ao) PL-7622/2006.Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário Regime de Tramitação: Prioridade (Art. 151, II, RICD). PL-7622/2006. Tipifica o crime de Organização Criminosa e estabelece normas para sua investigação e julgamento, inclusive o acesso de autoridades policiais a informações resguardadas por sigilo, mediante simples requerimento ou ofício. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 1940. Apensado ao PL 1353/1999. Tipifica o crime organizado, qualifica-o como crime hediondo, e dá outras providências.


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convicções políticas para argumentar sobre eles138. Em geral, no aspecto conceitual o terrorismo “[...] envolve o uso da violência ou ameaça de violência, por um grupo organizado visando fins políticos; a violência é direcionada a um alvo que existe atrás das vítimas imediatas, que são civis inocentes […]”139. Neste sentido, é dirigido aos não combatentes e tem como fim instalar o medo. A Organização das Nações Unidas140 define terrorismo como “Atos criminosos pretendidos ou calculados para provocar um estado de terror no público em geral”. Muitos descartam a possibilidade do Estado praticar terrorismo, o que é criticado: “Se você concorda que este ato seja considerado como o terrorismo, então você deve saber que o governo dos Estados Unidos, por meio da Agência Central de Inteligência, também patrocinou diretamente atos secretos que resultaram em mortes de civis em muitos países, tais como Cuba, que é governada por Fidel Castro141”. Um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos de abril de 2000, um ano antes do 11 de setembro, com relativismo assentou: “Nenhuma definição de terrorismo ganhou aceitação universal. Para os propósitos deste relatório, no entanto, nós escolhemos a definição de terrorismo do Título 22 do Código dos Estados Unidos [...]”, de seguinte definição: “o termo “terrorismo” significa premeditadamente, a violência politicamente motivada perpetrada por grupos subnacionais ou agentes clandestinos contra alvos não combatentes, geralmente com a intenção de influenciar uma audiência142”.

138 139

De acordo com o National Research Council. LUTZ, Brenda; LUTZ, James, 2006, p. 292.

140

Declaração sobre Medidas para Eliminar o Terrorismo Internacional (Resolução 49/60 da Assembleia Geral, para. 3).

141 142

GUPTA, 2006, p. 12. U.S. STATE DEPARTMENT, 2000.


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Também é definido como “o uso não oficial ou não autorizado de violência e intimidação na busca de objetivos políticos”, ou seja, uma tática, dificultando sua diferenciação de outras formas de luta, como a resistência143. Neste aspecto, o Sheik Muhammad Hussein Fadlallah, afirmou: "Nós não nos vemos como terroristas [...] porque nós não acreditamos no terrorismo. Nós não vemos resistência ao ocupante como ação terrorista. Nós nos vemos como mujihadeen [guerreiros sagrados] que lutam uma Guerra Santa para o povo”144. Um grupo terrorista pode empregar técnica de guerrilha e um grupo de resistência pode executar atentados terroristas. A diferenciação da resistência é objeto de divergência, dificultando uma definição de terrorismo aceita por todos. Neste sentido, o terrorismo é uma construção política e social, pois sendo a “[...] história escrita pelos vencedores, o terrorismo é uma disputa de palavras na qual quem domina a retórica sai ganhando145”. Com a globalização, as superpotências comandam as representações do terrorismo e quais terroristas devem ser combatidos. A análise da "tentativa de controle" é um ponto de partida para teorizarmos acerca do terrorismo e analisarmos os terroristas como objetos e sujeitos dessa tentativa146. Com efeito, a construção social de um "pânico moral" associado ao terrorismo, constituiu uma forma de legitimar uma "sobre regulação social", já que as representações exageradas disseminadas pelos discursos políticos e midiáticos, favoreceram a criação de níveis de medo e de pânico na consciência pública, que legitimaram mudanças legislativas com consequências sociais graves147. Desse modo, as interpretações do terrorismo podem ser diversas, pode ser um ato criminoso, de guerra, religioso ou político. 143

OXFORD Dictionary. Apud HOFFMAN, 2006, p. 23. 145 SEIXAS, 2008, p. 9-26. 146 GIBBS, 1989; BLACK, 2002. 147 COHEN, S., 1972, p. 9. 144


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Isso não significa haver perspectiva certa ou errada148. Todavia, o relativismo do termo contribui para manter padrões duvidosos e o meio acadêmico e os cidadãos não deveriam concordar, pois uma definição adequada estabelece parâmetros para o debate e a agenda da comunidade149, visto na ausência de consenso, não há acordo em se criar normas. 2.1 LEI ANTITERRORISMO O conceito terrorismo não é elaborado ao acaso haja vista os elementos políticos que o cerca. Há uma contribuição decisiva da ideologia dominante sobre o conceito, comumente direcionado a desqualificar o adversário político transformando-o em ameaça pública. Diante do pós 11 de setembro de 2001 e dos últimos acontecimentos mundiais, como os ataques na França em 2015 e as Olimpíadas sediadas no país em 2016, o Brasil editou a Lei nº 13.260/2016, que regulamentou o inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, bem como reformulou o conceito de organização terrorista. O repúdio à prática é um dos princípios regedores das relações internacionais do país150, signatário de tratados internacionais em favor de seu combate, entre eles a Convenção Interamericana contra o Terrorismo151. Há uma reação aos “[...] perigos que põem em xeque a existência da sociedade152”. Contudo, “ignora-se, em primeiro lugar, que a percepção dos riscos (...) é uma construção social que não está relacionada com as dimensões reais de determinadas ameaças de legalidade153. A norma, ao tratar da conceituação de terrorismo e especificar seus atos usa conceitos 148

SCHMID, 2011, p. 2. Idem, p. 40. 150 Art. 4º, VIII, CF. 151 Aprovada pelo Decreto Legislativo no 890/2005 e Promulgada pelo Decreto Presidencial nº 5.639/2005. 152 JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 76. 153 DELMANTO, 2016. 149


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abertos, revelando a intenção do legislador em ampliar o tipo penal. Isso autoriza ao intérprete enquadrar qualquer prática de resistência como terrorista. Não há conceito claro e objetivo de terrorismo, visto apenas conceituados os atributos caracterizadores de seus atos. Tão somente é visualizado o autor a quem será imputada a pena e não o fato154. Tal aspecto, é extraído do artigo primeiro da lei155, que ao regulamentar o citado inciso XLIII, do art. 5º da CF, não especifica o que o mesmo seria. A Lei prevê que terrorismo é a prática de determinados atos por (I) um ou mais indivíduos, (II) por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, (III) com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, (IV) expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública (art. 2º). E ao dispor “com a finalidade de (...)”, percebe-se a existência de dolo específico para a configuração do tipo, consistente no direcionamento da vontade para a realização de determinado resultado156. Os bens jurídicos tutelados são a pessoa, o patrimônio, a paz e a incolumidade pública e, para ser enquadrado no tipo, os atos devem ser motivados por xenofobia, discriminação ou preconceito visando causar terror social ou generalizado. Disso advém duas conclusões antagônicas: dada a amplitude dos conceitos qualquer conduta poderá ser terrorismo a depender da interpretação ou, ante a exigência de duas finalidades especiais e da criação de risco, dificilmente uma conduta será terrorismo. O termo “terror social ou generalizado”, do mesmo modo, merece questionamentos pois ausente de definições concretas, tornando-o vulnerável a diversas interpretações. O termo “terror social” possui “conteúdo semântico vago e impreciso”, inviabilizando 154

JAKOBS, Günther.; MELIÁ, Manuel Cancio, 2005. Art. 1º. Esta Lei regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista. 156 DELMANTO, 2016. 155


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a compreensão e o alcance do tipo penal, violando o princípio da legalidade em sua função de “[…] garantia por uma máxima determinação e taxatividade aos tipos penais157”. Portanto, “[…] quanto mais imprecisão (do tipo penal), menos limitação (ao poder punitivo estatal) e, por conseguinte, menos garantia158”. A lei caracteriza como atos de terrorismo: “I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”. Dos dispositivos, extrai-se não prescindirem de dano concreto, sendo a mera ameaça punível. Dessa forma, trata-se de crime de perigo abstrato. De acordo com o princípio da lesividade, somente há a configuração de um ilícito penal quando o interesse já selecionado pela lei sofre uma ofensa efetiva, que represente um dano ou um perigo concreto. Os incisos II e II foram vetados, porém, mantidos os incisos 159 IV e V . O inciso V é crime de atentado, isto é, a mera tentativa configurará o terrorismo. A pena cominada, semelhante à do homicídio qualificado poderá ser aumentada no caso de concurso formal impróprio160. Assim, caso algum dos atos preparatórios acabe por resultar em morte ou lesão corporal grave, o agente responderá pelos dois crimes, somando as penas, conforme art. 7º161. O §2º surgiu com o objetivo de afastar os fundados temores de criminalização dos movimentos sociais162. 157

BARBOSA, 2016. PINHO, 2006. p. 84. 159 DELMANTO, 2016. 160 Idem. 161 “Salvo quando for elementar da prática de qualquer crime previsto nesta Lei, se de algum deles resultar lesão corporal grave, aumenta-se a pena de um terço, se resultar morte, aumenta-se a pena da metade.” 162 “[...] § 2º. O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”. 158


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A abertura do tipo penal poderá autorizar interpretações arbitrárias. O art. 3º dispõe: “[...] promover, constituir, integrar ou prestar auxílio, pessoalmente ou por interposta pessoa, a organização terrorista (...)”. Outro tipo penal de perigo abstrato. Pelo crime respondem não só os executores, como também os mandantes e até mesmo aqueles que, podendo evitá-lo, se omitirem. A lei amplia seu alcance, tipificando atos preparatórios no artigo 5º163 com o intuito de prevenir crimes de terrorismo e enfraquecer as organizações que se articularem no país. Portanto, atos preparatórios de quaisquer espécies, como “[...] recrutar, organizar, transportar ou municiar indivíduos que viajem para país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade” ou de “[...] fornecer ou receber treinamento em país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade”, com o objetivo de praticar terrorismo, são delitos autônomos, com a mesma pena do crime consumado (12 a 30 anos), diminuída de 1/4 a 1/2. O tipo permite ampla discricionariedade do julgador na avaliação do que entende como atos preparatórios, podendo levar a incriminação de simples estados ou condições existenciais, de acordo com os interesses do Estado. Isso possibilita um direito penal de autor, pois a abertura semântica facilita o enquadramento no tipo dos tachados de “terroristas”. Os crimes tipificados no referido art. 3º e seguintes, são crimes ligados ao terrorismo mas que não prescindem de dano concreto para sua tipificação. O art. 6º164 trata da do 163

O art. 5º diz o seguinte: Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito: Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.§ l º. Incorre nas mesmas penas o agente que, com o propósito de praticar atos de terrorismo: I -recrutar, organizar, transportar ou municiar indivíduos que viajem para país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade; ou II -fornecer ou receber treinamento em país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade.§ 2º. Nas hipóteses do § 1ª, quando a conduta não envolver treinamento ou viagem para país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade, a pena será a correspondente ao delito consumado, diminuída de metade a dois terços”. 164 “Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei: Pena -reclusão, de quinze a trinta anos. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem oferecer ou


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financiamento do terrorismo, com pena mais alta, a partir de 15 (quinze) anos de reclusão. Como visto, o crime prevê severa pena de reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) anos e não substitui as sanções dos delitos conexos correspondentes à ameaça ou à violência praticada. De modo que o agente que realiza o tipo poderá incidir em outros delitos cumulativamente. O crime é inafiançável e fechado o regime inicial de cumprimento. O delito é insuscetível de graça ou anistia165. Ressaí a propensão legislativa em responder com dureza contra o perigo, incrementando as penas. Os tipos do art. 6º possuem a pena mais alta entre todos os da lei, visto sua pena mínima ser de 15 (quinze) anos. A promulgação da Lei nº 13.260/16 atendeu pressões internacionais e os irreais temores dos brasileiros, através da falsa segurança trazida pela norma. Durante a tramitação do Projeto de Lei, muitas críticas também foram feitas. O Observatório dos Direitos Humanos classificou como “amplas e vagas” as definições adotadas e “imprecisas”, dando “margem à potencial utilização indevida da lei contra pessoas que nada tem a ver com o Terrorismo166”. Alguns dos receios foram contornados pelo citado parágrafo segundo do artigo 2º167, que define terrorismo. O objetivo foi excluir toda manifestação democrática com respaldo constitucional. O PL, porém, foi votado pela Câmara em agosto de 2015 e enviado ao Senado no mesmo mês, que o devolveu com sugestão de emenda/substitutivo a seguir: “[...] equipara-se a ato terrorista a receber, obtiver, guardar, mantiver em depósito, solicitar, investir ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas, associação, entidade, organização criminosa que tenha como atividade principal ou secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei. 165 Ou indulto, por força do art. 2º, I, da Lei nº 8.072/90. 166 HUMAN RIGHTS WATCH, 2015. 167 As pessoas que participarem de “manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”, não praticam este delito.


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prática de qualquer das seguintes condutas, observada a disposição do caput168”. Desta feita, ampliou o critério que define terrorismo, como temia organizações e movimentos sociais. “Essa pressa em legislar temas tão sensíveis é inadmissível169”. A ementa substitutiva não foi aprovada, mas o PL foi e transformado na Lei nº 13.260/2016. Embora sem o parágrafo que dificultava a diferenciação entre terroristas e movimentos sociais, a lei manteve-se ambígua. Antes da rejeição da substitutiva, relatores da ONU afirmaram “[…] receio que a definição de crime estabelecida pelo Projeto de Lei possa resultar em ambiguidades e confusão sobre o que o Estado considera como crime terrorismo170”. Neste sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos - CIDH-OEA171, declarou que: “[...] há jurisprudência e casos abundantes na América Latina que mostram que leis antiterrorismo redigidas em termos vagos e ambíguos servem muitas vezes para de algum modo criminalizar grupos que são vozes muito fortes, dissidentes172”. No âmbito nacional, muitas críticas foram feitas, mesmo sem a mudança do Senado. Um manifesto foi elaborado por movimentos sociais, organizações, intelectuais e personalidades contra a “Lei Antiterrorismo”173. Uma das alegativas mais fortes evolve os tipos dos citados incisos I, IV e V, do artigo 2º, §1º174. Para especialistas, já estão 168

SENADO, 2015. DICHTCHEKENIAN, 2015. 170 EMMERSON, 2015. 171 Relator para a liberdade de expressão, Edison Lanza. 172 CONECTAS, 2016. 173 “[...] Ainda que faça a ressalva explícita de que não se enquadra na lei a conduta individual ou coletiva de movimentos sociais, sindicais, religiosos ou de classe profissional se eles tiverem como objetivo defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, a proposta representa um grande retrocesso para os direitos de participação política no Brasil, porque deixará nas mãos de delegados e promotores o filtro para dizer se tal conduta é ou não de movimento social MST, 2015. 174 BRASIL, Lei 13260, 2016. .: I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; [...] IV -sabotar o 169


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criminalizados pela legislação, quais sejam: I – posse de explosivo (Lei 10.826, Art. 16, Inciso III), IV – vandalismo (Código Penal, Art. 163), e V – homicídio (Código Penal, Art. 121). A criação de uma figura específica atende a pressões externas, sobretudo dos Estados Unidos e de outros países da OCDE, que têm em consideração realidade muito diferente da nossa, sem qualquer histórico de episódios que se assemelhem ao terrorismo”175. Ademais, é tipificada a conduta de financiamento do terrorismo, daquele que o faz para uma ação determinada ou financia uma pessoa ou grupo de forma genérica, sem esperar a realização imediata de uma ação, mas sabedor que essas condutas são por eles praticadas. O dispositivo atendeu acordos internacionais firmados pelo Brasil, especialmente com o Grupo de Ação Financeira GAFI176. O manifesto de organizações e intelectuais o entendeu desnecessário, visto que “[...] a Lei sobre organizações criminosas já se aplica às organizações terroristas internacionais cujos atos (...) ocorram ou possam ocorrer em território nacional177”. Conclui-se que a Lei nº 13260, desde seu início com o PL, age em prol de grupos majoritários. Os oito vetos ao PL referem-se a condutas tipificadoras de terrorismo vistas como excessivamente amplas e imprecisas, que violariam a liberdade de expressão. funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento; V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa”. 175 MST, 2015. Disponível em: https://mst.org.br/2015/11/11/lei-antiterrorismo-da-insegurancajuridica-a-derrota-da-democracia/. Acesso em: 23 jan. 2020. 176 Entidade intergovernamental criada em 1989, que tem a função de definir padrões e implementar as medidas legais, regulatórias e operacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento ao terrorismo e o financiamento da proliferação e outras ameaças à integridade do sistema financeiro internacional relacionadas a esses crimes. 177 MST, 2015.


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3 PROJETO DE LEI N.º 9.555/2018 O Estado, na atual sociedade mundial do risco, incentivado pela opinião pública178, começa a traçar, através da excessiva criação de tipos penais abstratos e indeterminados, o direito penal moderno, a fim de combater a criminalidade moderna. Neste cenário, o “[…] venerável princípio da subsidiariedade ou a última ratio do Direito Penal é simplesmente cancelado, para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução social de conflitos […]”, vendo-o “[…] cada vez mais frequentemente como a primeira, senão a única saída para controlar os problemas”179. Destarte, é necessário agir preventivamente, pois quando o dano surgir será tarde para qualquer medida estatal, sendo os bens coletivos mais importantes que os bens individuais180. Dentre desta perspectiva insere-se o Projeto de Lei nº 9.555/2018181, que pretende alterar as Leis nº 13.260/2016 (Lei 178

Justificativa do projeto: Recentemente, a maior chacina do Ceará, que deixou 14 mortos na periferia de Fortaleza, ocorreu dias após a divulgação das estatísticas criminais pelo governo estadual. Os dados confirmaram que o Estado atingiu em 2017 um número recorde de homicídios em toda a história: foram 5.134 assassinatos, diante de 3.407 em 2016. O crescimento é de 50,7%. O maior aumento ocorreu em Fortaleza, que registrou salto de 96,4% na quantidade de homicídios. No ano passado, foram 1.978 assassinatos; em 2016, houve 1.007 registros. Segundo fontes não oficiais, o evento era promovido por integrantes da facção criminosa Comando Vermelho (CV), que nasceu no Rio de Janeiro, e hoje tem forte presença nos presídios nordestinos e domina o tráfico de drogas no Estado do Ceará. As execuções, também de acordo com informações não oficiais, estão sendo atribuídas à facção rival GDE. Acreditamos que o crime de associação criminosa precisa ter uma pena mais rigorosa, o que acreditamos que estaremos ajudando a diminuir os casos de crime contra as pessoas. Para tanto, propomos o aumento das penas mantendo todos os tipos atuais, somente alterando o quantum da privação de liberdade. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1639739&filename= PL+9555/2018. Acesso em 13 de julho 2020. 179 HASSEMER apud BITENCOURT, 2007, p. 15 180 BITENCOURT, 2007, p. 15. 181 Do Sr. Cabo Sabino (Flávio Alves Sabino). Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2167905 Tramitação em 20/02/2019, Apense-se a este(a) o(a) PL-492/2019; em 01/03/2018: Apense-se à (ao) PL-7622/2006. Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário Regime de Tramitação:


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Antiterrorismo), nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas) e nº 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), para “[…] qualificar como ato terrorista e crime hediondo qualquer ato praticado por organização ou facção criminosa”. Portanto, objetiva empreender modificações na Lei Antiterrorismo a fim de nela encaixar as organizações criminosas e suas atividades serem comparadas com as ações terroristas. Vale transcrever parte da justificativa do projeto: A iniciativa deste Projeto de Lei, visa atender o clamor social por mais segurança. Um dos maiores problemas de nosso país é a falta de segurança pública, sendo considerado problema fundamental e principal desafio ao estado de direito no Brasil. A proposição apresentada tem como escopo combater o crescente poder que as organizações criminosas vêm adquirindo no Brasil. Para atingir esta meta, o trabalho divide-se em três partes. Temos como foco reformular o conceito, tipificação e a pena de associação a organização criminosa, bem como qualificar como ato terrorista e crime hediondo qualquer ato praticado por organização ou facção criminosa, ou seja, pretendemos torna as penas mais rígidas, bem como armar um “cerco jurídico” para os integrantes de facções criminosas, os quais têm seu “papel” facilitado pelas brechas do nosso arcabouço jurídico182.

Com efeito, o projeto estabelece que o artigo 2º da Lei Antiterrorismo, passará a vigorar com a redação a seguir: “Art. 2º. O terrorismo consiste na prática, por um individuo ou organização criminosa (facção criminosa), dos atos previstos neste artigo […]”, a fim de “[…] intimidar a população civil ou segmento da sociedade, Prioridade (Art. 151, II, RICD). PL-7622/2006. Tipifica o crime de Organização Criminosa e estabelece normas para sua investigação e julgamento, inclusive o acesso de autoridades policiais a informações resguardadas por sigilo, mediante simples requerimento ou ofício. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 1940. Apensado ao PL 1353/1999. Tipifica o crime organizado, qualifica-o como crime hediondo, e dá outras providências. 182 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegracodteor=1639739&filename= PL+9555/2018. Acesso em 13 de julho 2020.


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provocando terror social ou generalizado ou expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública e a incolumidade pública.” 183. Na sequência, aponta no § 1º quais seriam os atos de terrorismo: “§1o São atos de terrorismo: (…); III - filiar-se ou associar-se a organização criminosa. IV - qualquer ato de organização criminosa que atentar contra o patrimônio, vida ou a integridade física de pessoa. Pena reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência”. Ressalta a justificativa, ser principal objetivo da equiparação, o agravamento da pena das organizações criminosas, além de, como vimos, atender ao clamor popular, na forma adiante: Um dos temas mais intrigantes no cenário jurídico criminal e tormentoso para os órgãos de segurança pública mundiais é a organização criminosa, que nada mais é, como o nome mesmo já indica, do que a capacidade que os agentes criminosos possuem de se associar para praticarem atividades ilícitas, ou seja, de fato o crime é organizado No entanto, a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, em seu art. 1º, § 1º considerou organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas trazendo um quantitativo de pessoas diversos das legislações anteriores, por esse motivo alteramos a legislação com o intuito de equiparar esses crimes mais graves que possuem penas mais rígidas e dificultam a soltura do condenado184.

Nesta lógica de recrudescimento da punição, destaca-se o § 3 , do sobredito artigo 2º, ao arrolar o “emprego de arma de fogo, o

183 “Art. 2º. O terrorismo consiste na prática, por um individuo ou organização criminosa (facção criminosa), dos atos previstos neste artigo, por meio da força física, ações psicológicas ou emprego de arma de fogo, com o objetivo de extermínio (chacina), ou mesmo com o objetivo de intimidar ou coagir o poder público, bem como o uso de cartas físicas ou por meio eletrônico, com objetivo de intimidar a população civil ou segmento da sociedade, provocando terror social ou generalizado ou expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública e a incolumidade pública.” 184 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1639739&filename= PL+9555/2018. Acesso em 13 de julho 2020.


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artefato explosivo ou incendiário” para prática do terror contra “contra a vida, a integridade física, a liberdade e livre atuação de integrantes das instituições públicas, civis ou militares”; bem como “contra instalações de órgãos do judiciário, legislativo e segurança pública, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás” como qualificadora do crime, ao dispor: “São atos de terrorismo punidos com pena de reclusão de vinte a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça e à violência […]185”. Mais uma vez o raciocínio exposado no projeto: É evidente, no cenário internacional, os esforços das organizações internacionais para se criar legislações que conceituem o crime de associação criminosa e preveja sanção compatível com a gravidade dos atos assim classificados, bem como de mecanismos eficazes para prevenir e reprimir os atos de terrorismo, tão ameaçadores e atentatórios à paz, à ordem e à segurança, ao direito à vida e até mesmo à soberania dos países. Ademais, destacamos que a violência do faz parte do desvio padrão da segurança pública brasileira, que há tempos sofre com problemas graves, como superlotação dos presídios, falta de investimentos, encarceramento em massa e falta de políticas e gestão eficazes para combater a criminalidade. Parece-nos claro, que a falta de politicas públicas efetivas acaba contribuindo para aumentar a sensação de pânico na população. Neste diapasão, todos esses problemas registrados no começo deste ano são um reflexo de uma mazela da segurança pública 185

[…] I –atentar, mediante grave ameaça à pessoa ou violência, com emprego de arma de fogo, artefato explosivo ou incendiário, contra a vida, a integridade física, a liberdade e livre atuação de integrantes das instituições públicas, civis ou militares; II –atentar, com emprego de arma de fogo, artefato explosivo ou incendiário, contra instalações de órgãos do judiciário, legislativo e segurança pública, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás.”


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brasileira, que é o ‘”caos do sistema prisional”, e também de outro grave problema, que é a falta de uma legislação mais rígida. O cenário supramencionado representa a continuidade da crise na segurança pública e no combate ao Crime Organizado, que veio se agravando nos anos anteriores, conforme já alertamos por diversas vezes, e representa a contra face da incapacidade e do descompromisso do Poder Público para planejar, propor e executar políticas penais. Certo dos reflexos positivos que trará para a segurança e a soberania nacional e com a expectativa de que isso se resulte também em melhoria das condições de segurança em nível mais amplo, para todos os cidadãos, conclamo os ilustres Parlamentares a dispensarem o apoio na aprovação deste Projeto de Lei 186.

Outra relevante modificação é a vista no artigo 3º do projeto, ao possibilitar o agravamento da pena das organizações criminosas, bem como sua submissão ao regime inicialmente fechado e em estabelecimento penal de segurança máxima ao estabelecer que os artigos 4º e 9º da Lei nº 13.260/2016 passarão, respectivamente, a dispor: “Art. 4º Fazer, publicamente, apologia de fato tipificado como crime nesta Lei ou de seu autor: Pena - reclusão, de quatro a oito anos, e multa: § 1º Nas mesmas penas incorre quem incitar a prática de fato tipificado como crime nesta Lei; § 2º Aumenta-se a pena de um sexto a dois terços se o crime é praticado pela rede mundial de computadores ou por qualquer meio de comunicação social.” E “Art. 9º. Os condenados por crimes previstos nesta lei cumprirão sua pena inicialmente em regime fechado e em estabelecimento penal de segurança máxima.” Também pune de forma mais gravosa a omissão do diretor do presídio sobre a existência de organização, vez que o art. 5º do projeto prevê que o § 2º do artigo 1º da Lei nº 12.813/2013 (Lei das Organizações Criminosas), disporá: “Art.1º (…). III – Diretor de 186

Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1639739&filename= PL+9555/2018Acesso em 13 de julho 2020.


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estabelecimento prisional que omitir a existência de organização ou facção criminosa no respectivo estabelecimento de sua competência. Pena - reclusão, de quatro a doze anos, além das demais sanções previstas em lei. (…)”. Do mesmo modo, em relação ao financiamento dessas facções, o art. 6º do projeto consigna que o artigo 2º possuirá o teor a seguir: “Art.2º Promover, divulgar, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa. Pena - reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.” Ainda neste sentido, o art. 7º, ao afirmar que o art. 288 do Código Penal (associações criminosas), assim será redigido: “Art. 288 (...). Pena - reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência. (...)”. Por fim, os artigos 8º e 9º do projeto exacerbam as medidas processuais contra o grupo caracterizando-o como crime hediondo, bem como possibilitando a prisão preventiva e bloqueio de bens de seus integrantes, ao consignarem, na sequência, que ao art. 1º da Lei nº 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), será acrescido do seguinte inciso IX: “Art.1º (…). IX - Associação Criminosa ou ato de terrorismo. (…)”, e que o parágrafo único do artigo 312 do Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941), conterá a seguinte redação: “Art.312. (…). Parágrafo único. A prisão preventiva deverá necessariamente ser decretada nos casos de crimes de hediondos, como terrorismo, associação criminosa e homicídio de agentes de segurança pública, assim como o bloqueio dos bens, também poderá ser decretada no caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares187.

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Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=9B8850767C08C7 D5545923BEEBA1CC8D.proposicoesWebExterno2?codteor=1642455&filename=Avulso+PL+9555/2018.


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4 CONCLUSÃO O conceito terrorismo não é elaborado ao acaso haja vista os elementos políticos que o cerca. Há uma contribuição decisiva da ideologia dominante sobre o conceito, comumente direcionado a desqualificar o adversário político transformando-o em ameaça pública. A demanda mundial, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, é pela adoção de medidas contra o terrorismo. As legislações antiterror normalmente inserem-se no contexto do Direito Penal do inimigo, sendo esse o caso da Lei nº 13.260/16188. A norma reproduziu a amplitude e imprecisão do termo vista no âmbito internacional, com penas excessivamente altas e antecipação da proteção penal, em afronta à legalidade/taxatividade penal, aos princípios constitucionais e aos direitos humanos. Ao tratar da conceituação de terrorismo e especificar seus atos usa conceitos abertos, revelando a intenção do legislador em ampliar o tipo penal. Isso possibilita ao intérprete enquadrar qualquer prática como terrorista, como é o caso das organizações criminosas. A tentativa do país de associar as organizações criminosas com atos terroristas, em sintonia com os meios de comunicação e com o Direito Penal do Inimigo, portanto, é evidenciada pelas próprias características da Lei Antiterrorismo, recentemente corroborada expressamente pelo Projeto de Lei nº 9.555/2018, que pretende alterar as Leis nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo), nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas) e nº 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), para “[…] qualificar como ato terrorista e crime hediondo qualquer ato praticado por organização ou facção criminosa”.

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BRASIL, Lei 13260, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2016/Lei/L13260.htm. Acesso em: 20 jan. 2020.


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CAPÍTULO 9 INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE SEGURANÇA, DESENVOLVIMENTO E DEFESA NACIONAIS: PRINCIPAIS CONCEITOS E ABORDAGENS Peterson Ferreira da Silva

1 INTRODUÇÃO Segurança é um termo essencialmente contestado, ambíguo e “sem dúvida possui significados diferentes para diferentes pessoas” (WILLIANS; MCDONALD, 2018, p. 2, tradução nossa). Segurança também pode ser visualizada de várias formas, como “uma condição, valor, parte das políticas públicas, prática, utopia etc.” (CAVELTY; BALZACQ, 2018, p. 2, tradução nossa). O conceito de segurança também é inevitavelmente político, sendo um dos conceitos facilmente observados nos debates sobre política internacional e doméstica. É comum, por exemplo, líderes políticos e autoridades governamentais buscarem enquadrar algum assunto da agenda política (ex. desenvolvimento tecnológico) no âmbito da ‘segurança’ e, assim, atrair atenção - e recursos - para aquele determinado assunto em meio a outras diversas questões e prioridades no campo das políticas públicas (ex. saúde, educação, economia, meio ambiente etc.). Discutir segurança implica em se deparar com algumas questões fundamentais e fazer escolhas, mesmo de forma indireta. Por exemplo, quem ou o que pode ser objeto de referência de segurança? A nação? O Estado? O indivíduo? O meio ambiente? A economia de um país ou a de um bloco econômico? Como determinados problemas domésticos ou internacionais se tornam uma ameaça?


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Aliás, ainda é possível a distinção entre ameaças externas e internas? Em que medida envolver forças armadas, forças policiais ou órgãos de inteligência? Qual é o ponto de equilíbrio entre segurança e direitos individuais? Essas são apenas algumas das questões verificadas na literatura cujas respostas variam conforme contextos, perspectivas, teorias e autores (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 10-13; GALBREATH; MAWDSLEY; CHAPPELL, 2019, p. 4-5). Nesse sentido, cabe ressaltar a assertiva de Robert Cox (1981, p. 128) de que “teoria é sempre para alguém e para algum propósito.” Isso explica em parte porque segurança é entendida como um ‘conceito hifenizado’, ou seja, “sempre ligado a um objeto de referência específico, associado a demarcações internas e externas, a um ou mais setores e a uma forma particular de pensar sobre política” (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 10, tradução nossa). Daí a profusão de termos como segurança humana, segurança alimentar, segurança cibernética etc. (CAVELTY; BALZACQ, 2018, p. 2). Discutir segurança é, portanto, necessariamente navegar entre os muitos autores e diferentes perspectivas sobre o tema. Buzan e Hansen (2009, p. 1, traduções nossas), por exemplo, utilizam Estudos de Segurança Internacional - ESI (International Security Studies – ISS) como um rótulo guarda-chuva para incluir os trabalhos de acadêmicos que se enxergam como integrantes do campo da ‘segurança internacional’, ou dos Estudos de Segurança (Security Studies), ou dos tradicionais Estudos Estratégicos (Strategic Studies), ou da Pesquisa da Paz (Peace Research) ou de vários outros termos mais especializados.189 Torna-se importante sublinhar que esses dois autores reconhecem que os ESI em geral, assim como Relações Internacionais (RI), são uma seara eminentemente ocidental, largamente

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Doutor (USP), mestre (Programa de Pós-graduação San Tiago Dantas – UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e bacharel (USP) em Relações Internacionais. Especialista em Gestão Pública (FESPSP) e professor da Carreira do Magistério Superior Federal na Escola Superior de Guerra (ESG). As ideias, pontos de vista e opiniões deste texto expressam o pensamento de seu autor, sendo de sua inteira responsa


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desenvolvida em países da América do Norte, Europa e Austrália com “todos os centralismos ocidentais que isso acarreta”. Embora não haja uma definição universalmente aceita sobre seus limites de abrangência, considera-se que os ESI surgiram após a II Guerra Mundial (1939-1945), distinguindo-se dos tradicionais Estudos da Guerra (War Studies), da História Militar e da Geopolítica, ampliando-se ao longo do tempo para “distintos, mas interrelacionados, fluxos de literatura”. Desse modo, observa-se uma grande variedade de correntes de pensamento e abordagens, derivadas não somente das abordagens teóricas consideradas dominantes nas Relações Internacionais (ex. Realismo, Liberalismo e Construtivismo), como também influenciadas por outros campos da Ciência Política e Sociologia (ex. Estudos Críticos de Segurança, Estudos Feministas de Segurança, Estudos de Segurança Pós-Coloniais etc.) (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 1, 2, 8 e 35-37, tradução nossa). Embora os ESI, de uma forma geral, sejam entendidos como uma subárea da disciplina Relações Internacionais (RI), autores vêm apontando cada vez mais a relevância de abordar problemas de segurança por meio da contribuição de outras disciplinas, até mesmo em função dos conhecimentos específicos que tangenciam algumas das questões mais prementes da agenda internacional. Temas como a proliferação de Armas de Destruição em Massa (ADMs), por exemplo, tendem a demandar conhecimentos científicos e técnicos bem específicos. As causas do terrorismo e do extremismo violento envolvem dimensões psicológicas, históricas, sociológicas, culturais etc. Alguns estudos sobre o enfrentamento ao crime organizado transnacional podem requerer conhecimentos do Direito, entre outros exemplos. Afinal, muitos dos “problemas de segurança contemporâneos são tão complexos e interdependentes que requerem análises e soluções que RI não pode prover sozinha” (WILLIANS; MCDONALD, 2018, p. 5, tradução nossa). Nessa altura do capítulo, já deve ter ficado claro para o leitor que não há um rol de conceitos e abordagens inequívocos no quadro do debate sobre segurança, desenvolvimento e defesa


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nacionais – e dificilmente existirá, o que de certa forma é positivo, porque demonstra a complexidade, diversidade e ininterrupta transformação dessas discussões. O objetivo deste texto, portanto, é oferecer apenas uma síntese dos principais conceitos e abordagens atinentes ao contínuo debate sobre segurança, desenvolvimento e defesa nacionais no âmbito do que é conhecido na literatura como Estudos de Segurança Internacional (ESI). Nessa direção, busca-se somente indicar caminhos para aprofundamentos, levando em consideração (i) a complexidade e as implicações desse debate, (ii) a disponibilidade de obras mais detalhadas sobre esses temas (embora grande parte apenas em língua inglesa) e (iii) tendo em mente os alunos de graduação e de pósgraduação iniciando seus estudos nesse extenso campo. Até porque esses conceitos e abordagens dependem do contexto, da perspectiva dos atores em questão (ex. Estados, organizações internacionais e organizações não-governamentais), das particularidades de cada país, do enfoque conferido a determinado debate etc. Assim, na primeira parte, é apresentado um rápido panorama sobre o debate acerca do conceito de segurança após a II Guerra Mundial, no contexto do que ficou conhecido como o movimento de ampliação e aprofundamento dos ESI. Em seguida, são abordados, em linhas gerais, conceitos de segurança humana, o nexo entre segurança e desenvolvimento, segurança nacional, defesa nacional, segurança pública e segurança interna. 2 PANORAMA SOBRE O CONCEITO DE SEGURANÇA NO QUADRO DO DEBATE SOBRE AMPLIAÇÃO E APROFUNDAMENTO DOS ESTUDOS DE SEGURANÇA INTERNACIONAL (ESI) Os ESI emergiram após a II Guerra Mundial se distinguindo das literaturas anteriores basicamente em três pontos, conforme Buzan e Hansen (2009, p. 1-2). Primeiro, seu conceito norteador era ‘segurança’ (em vez de ‘defesa’ ou de ‘guerra’). Apesar das questões


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envolvendo seu significado, o uso de ‘segurança’ possibilitou abranger uma série de questões políticas, como a importância da coesão societal, assim como a relação entre ameaças e vulnerabilidades militares e não-militares. Em segundo lugar, essa nova literatura lidou com os novos problemas decorrentes da Guerra Fria e das armas nucleares. Como desdobrar, empregar e não empregar meios militares eram questões bem distintas nas condições da era nuclear. Por fim, de acordo com os mesmos autores, tanto nas experiências com mobilização nacional no Reino Unido e nos EUA durante a II Guerra, quanto nas condições estratégicas peculiares criadas pelos armamentos nucleares, os ESI se mostravam muito mais um empreendimento civil do que a literatura anterior de cunho estratégico e militar. Isso porque na II Guerra Mundial, por exemplo, ficou evidente a importância de atingir a economia e a infraestrutura do inimigo – e não apenas derrotar suas forças armadas. Daí o envolvimento de matemáticos, linguistas, engenheiros, especialistas em logística, dentre outros ‘resolvedores de problemas’ (KENNEDY, 2013): Bombardeios estratégicos e armas nucleares transcenderam a experiência tradicional de combate militar de tal forma que exigiu, ou pelo menos abriu a porta, trazer especialistas civis variando de físicos e economistas a sociólogos e psicólogos (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 2, tradução nossa).190

Escrito em plena efervescência da Guerra Fria, certamente um dos marcos do início desse debate foi o artigo “‘Segurança Nacional’ como símbolo ambíguo”, de Arnold Wolfers (1952). Para ele, segurança aponta para algum grau de proteção de valores previamente adquiridos. Segurança em si seria também um valor do qual uma nação pode ter menos ou mais, bem como pode conferir bilidade, não representando necessariamente posições oficiais de qualquer órgão ou entidade do governo brasileiro. 190 Os Estudos em Segurança Nacional (National Security Studies), em Defesa (Defence Studies), em Inteligência (Intelligence Studies) e em Seguran


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menor ou maior importância. Ainda segundo o mesmo autor, segurança mede, em um sentido objetivo, a ausência de ameaças a valores adquiridos e, em um sentido subjetivo, a ausência de medo de que tais valores sejam atacados (Ibid., p. 485). Nesse contexto, Buzan e Hansen (2009, p. 1) afirmam que, ao apresentar a capacidade das políticas públicas de segurança de subordinarem todos os outros interesses aos da nação, Wolfers destacou a força política e retórica que esse termo carregava, apesar de segurança possuir muito pouco significado intrínseco. Arnold Wolfers (1952, p. 488) também sublinhou que existiriam inúmeros fatores incidentes (ex. ameaças externas, tradições e preferências) no processo de estabelecimento, em linhas gerais, do nível de segurança desejado por um país. Segundo o mesmo autor, o nível de segurança, geralmente visto como um fardo pelas sociedades em geral, tenderia a permanecer abaixo do considerado ideal para estadistas, líderes militares ou qualquer outro participante do processo decisório afeito ao campo da segurança. Embora o conceito de segurança tenha se tornado chave no pós-II Guerra, suas implicações para um entendimento mais amplo da temática, e não exclusivamente político-militar, não seriam plenamente sentidas até quase o final da Guerra Fria. Segundo Buzan e Hansen (2009, p. 2 e 29), ao longo da maior parte do período, os ESI foram definidos pela centralidade do Estado, por uma extensa agenda militar de questões gravitando em torno de armas nucleares e por uma suposição amplamente incorporada de que a União Soviética representava uma profunda ameaça militar e ideológica ao Ocidente, ou seja, um oponente nuclearizado que eclipsava todas as outras preocupações. A partir das décadas de 70 e 80, contudo, houve um amadurecimento das relações entre as duas superpotências e, ao mesmo tempo, uma desilusão com a estreiteza da política de poder. Os adeptos da visão mais tradicionalista de segurança encontravam dificuldades explicativas diante de questões como a relevância da opinião pública dos EUA no contexto da Guerra do Vietnã (1955-


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1975), o choque do petróleo (1973), conflitos intraestatais, degradação do meio ambiente (ex. a destruição da camada de ozônio), a disseminação do vírus da AIDS etc. Richard Ullman (1983), por exemplo, alertou que definir segurança nacional meramente em termos militares era uma profunda falsa imagem da realidade, duplamente enganosa e perigosa. Primeiro, porque direcionava os Estados a focar em ameaças militares, ignorando outros perigos potencialmente mais danosos. Em segundo lugar, porque contribuía para a militarização das relações internacionais no longo prazo. Nesse contexto, o alcance original do termo segurança de Wolfers começou a ser retomado, pressionando tanto para o alargamento (broadening) da agenda de segurança internacional em relação ao foco original político-militar (ex. para trabalhos voltados para segurança econômica e ambiental), quanto para o aprofundamento (deepening) dessa agenda para além da centralidade do Estado (ex. nível das coletividades e do indivíduo) (WALT, 1991; BUZAN; HANSEN, 2009, p. 2). Também é nessa época que autores associados ao Copenhagen Peace Research Institute (COPRI), como Barry Buzan, Ole Wæver e Jaap de Wilde, obtiveram projeção no meio acadêmico em função de suas contribuições para o campo, como os conceitos de securitização e de dessecuritização, a flexibilidade de objetos referentes de segurança e a teoria dos complexos regionais de segurança (BUZAN; WÆVER, 2003). Outro aporte significativo desses autores é a abordagem envolvendo o uso de cinco setores (ou dimensões), entendidos como partes inseparáveis de conjuntos complexos: os setores (i) político (envolvendo relações de autoridade, governo e reconhecimento), (ii) econômico (relações entre comércio, produção e finanças), (iii) societal (relações entre identidades coletivas), (iv) ambiental (relações entre atividade humana e a biosfera terrestre) e, por fim, (v) militar (relações de coerção pela força). O propósito da utilização desses setores seria, portanto, apenas o de reduzir a complexidade a fim de


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facilitar análises (BUZAN et al., 1998, p. 7-10; BUZAN; HANSEN, 2009, p. 212-213). Para os integrantes da Escola de Copenhague, securitização “se refere mais especificamente ao processo de apresentar um certo assunto em termos de segurança, isto é, em uma ameaça existencial” (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 214, tradução nossa).191 Assim, um tema público poderia ser inserido em um continuum entre nãopolitizado, passando por politizado (ou seja, já no âmbito da agenda política) e securitizado (isto é, apresentado como uma ameaça existencial, exigindo medidas emergenciais): Segurança ‘enquadra a questão como um tipo especial de política [politics] ou como acima política’ e um espectro pode portanto ser definido abrangendo desde questões públicas não politizadas (‘o Estado não lida com isso e não está de alguma outra forma inserindo tal questão no debate público e de tomada de decisão’), passando por politizadas (‘a questão faz parte de políticas públicas [policy], exigindo decisão governamental e alocação de recursos ou, mais raramente, alguma outra forma comum de governança’) à securitização (nesse caso, um problema não é mais debatido como uma questão política [political], mas tratada em ritmo acelerado e de maneira que pode violar as regras legais e sociais normais) (BUZAN et al., 1998, p. 23 apud BUZAN; HANSEN, 2009, p. 214, tradução nossa).192

ça Interna (Homeland Security/Internal Security) podem ser, em grande medida, visualizados como parte desse abrangente enquadramento, embor a suas temáticas sejam cada vez mais transdisciplinares e menos restritas às Relações Internacionais. 192 “Strategic bombing and nuclear weapons transcended traditional military warfighting expertise in ways that required, or at least opened the door to, bringing in civilian experts ranging from physicists and economists to sociologists and psychologists.” 192 “Securitisation refers more precisely to the process of presenting an issue in security terms, in other words as an existential threat.” 192 “Security ‘frames the issue either as a special kind of politics or as above politics’ and a spectrum can therefore be defined ranging public is


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Entretanto, autores da vertente realista como Stephen Walt (1991, p. 213, tradução nossa), visualizaram nesse movimento de ampliação o risco de expandir excessivamente os Estudos de Segurança. Sem a definição de um limite para tal expansão, Walt salienta que temas como “poluição, doenças, abuso infantil ou recessões econômicas” poderiam ser enxergados como ameaças à segurança. Tal movimento de ampliação, segundo o mesmo autor, poderia culminar na destruição da coerência intelectual do campo em si e tornar mais difícil a concepção de soluções para qualquer desses importantes problemas. Conforme abordado na segunda parte deste capítulo, constata-se que esse movimento de ampliação-aprofundamento influenciou fortemente esse campo de estudos. 3 BREVE INTRODUÇÃO SOBRE ALGUNS DOS PRINCIPAIS CONCEITOS E ABORDAGENS NO QUADRO DO DEBATE SOBRE SEGURANÇA, DESENVOLVIMENTO E DEFESA NACIONAIS Segurança humana. Originado de forma intimamente associado à Pesquisa da Paz e aos Estudos Críticos de Segurança, esse conceito defende como objeto de referência primordial os seres humanos (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 36). Um dos marcos desse conceito é o Human Development Report (ONU, 1994), o qual chamava a atenção para as crises silenciosas do subdesenvolvimento, da pobreza global, das pressões populacionais e da degradação do meio ambiente. O debate em torno de segurança humana também detém estreita ligação com o conceito de desenvolvimento humano sustentável, ou seja, “aquele que não apenas gera crescimento econômico, mas também distribui seus benefícios equitativamente, regenera o meio ambiente no lugar de destruí-lo e empodera as pessoas em vez de marginalizá-las”.


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Outra publicação relevante nesse quadro é o documento “Segurança em Teoria e Prática” (ONU, 2009), cujo slogan transparece alguns dos principais componentes associados a esse conceito: “livre do medo” (ex. segurança individual, política, comunitária etc.), “livre de necessidades” (ex. segurança alimentar, da saúde, ambiental etc.) e “viver com dignidade” (ex. educação, igualdade, direitos humanos etc.). Tais elementos seriam mais adiante reforçados pela Resolução da Assembleia Geral da ONU 66/20 de 2012. Os debates sobre segurança humana, portanto, ganharam um espaço importante nos ESI nas últimas décadas. Nesse contexto, autores como Reveron e Mahoney-Norris (2019, p. 10, tradução nossa) vão afirmar, por exemplo, que “a segurança nacional dos Estados não pode ser alcançada sem primeiro garantir a segurança humana”. Nexo entre segurança e desenvolvimento. Podendo ser entendido como fruto do debate em torno de segurança humana, refere-se, basicamente, ao “entendimento de que segurança e desenvolvimento são fatores que se reforçam mutuamente e o reconhecimento de que eles estão intrinsecamente ligados” (DCAF, 2012, p. 48, tradução e grifo nossos). Segurança nacional. Sinteticamente, até porque o Estado é um tema central na literatura de Ciência Política e Relações Internacionais, garantir a segurança do Estado seria, na visão mais tradicional, o ‘melhor’ caminho para proteger outros objetos de referência, sejam o indivíduo, coletividades, o meio ambiente, interesses e valores de uma sociedade. Por isso, ‘segurança nacional’ deveria ser rotulada mais especificamente como ‘segurança estatal’. Porém, o sentido do próprio termo no quadro da Guerra Fria foi justamente propagar a fusão entre nação e Estado, o que não corresponde à realidade em muitos Estados (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 11). Além disso, em alguns países, o uso do termo ‘segurança do Estado’ de forma isolada pode provocar algum tipo de estranhamento na medida em que pode sugerir a proteção de uma


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estrutura de poder talvez ilegítima contra uma dissidência interna (MCINTYRE, 2020, p. 14). Não por acaso, conforme já abordado, as discussões sobre segurança nacional tem incorporado paulatinamente elementos de desenvolvimento e segurança humana. De acordo com Chuter (2011, p. 19-20, tradução nossa), por exemplo, uma política pública de segurança nacional é considerada “uma política de alto nível e que envolve diversos setores do governo, a partir da qual uma série de tarefas concretas emergem para várias partes do setor de segurança, incluindo defesa”. Essa política pública segue uma relação hierárquica que se inicia com as políticas de mais alto nível emanadas dos governos (government policy), podendo ser vista como um subconjunto das políticas mais abrangentes voltadas para relações exteriores e para o ambiente doméstico (foreign policy/interior policy). A política pública de segurança (security policy), portanto, provê direcionamentos para as políticas de defesa nacional, de inteligência e de segurança pública/forças policiais de maneira geral (defence/police/inteligence policy). Defesa Nacional. Genericamente, falar em defesa nacional significa tratar do envolvimento de forças armadas e seu papel precípuo de prover segurança militar externa ao Estado e ao seu povo, protegendo sua integridade territorial, sua soberania e seus interesses nacionais. Conforme mencionado anteriormente, uma política pública de defesa nacional compõe a política de segurança, ao lado de políticas voltadas para inteligência e segurança pública. Nesse quadro, Chuter (2011, p. 92, tradução nossa),193 por exemplo, ressalta ainda as duas funções básicas que um governo espera de seus militares: (1) planejamentos para operações e condução de operações direcionadas para interesses nacionais (a função de comando) e (2) o fornecimento de aconselhamento militar sobre questões de política de defesa (a função consultiva).

sues from the non-politicised (‘the state does not deal with it and it is not in any other way made an issue of public debate and decision’), through politicised (‘the issue is part o


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No entanto, observam-se forças armadas em vários países atuando também em operações de ajuda humanitária, missões de paz e treinamento de forças militares estrangeiras, assim como apoiando no desenvolvimento de instituições de justiça, de segurança e de aplicação da lei (REVERON; MAHONEY-NORRIS, 2019, p. 4-5). Isso ocorre porque forças armadas em geral não atuam isoladamente. Vencer guerras e conquistar a paz envolve, por exemplo, outros fatores (ex. desenvolvimento tecnológico), setores (ex. político, econômico e societal) e políticas públicas (ex. inteligência e relações exteriores). Ademais, os desafios de segurança se mostram cada vez mais complexos e multifacetados, demandando respostas muito além da dimensão estritamente militar. Não por acaso, “se durante a Guerra Fria segurança era algo fortemente confinado aos ministérios da defesa, agora múltiplos ministérios estão envolvidos” (CHAPPELL; GALBREATH; MAWDSLEY, 2019, p. 10, tradução nossa). Desse modo, mesmo os conflitos convencionais envolvem não só a necessidade de forças armadas flexíveis, como também uma combinação de instrumentos civis e militares, atuando sob uma abordagem ampla e integrada (comprehensive approach) (GALBREATH; MAWDSLEY CHAPPELL, 2019, p. 8). Segurança Pública (public safety/public security). Apresentando diversos níveis de amplitude e possibilidades organizacionais, observa-se que, genericamente, trata-se de uma função governamental que pode compreender várias esferas (ex. federal, estadual, distrital etc.), reunindo múltiplos setores da sociedade e agências governamentais (ex. forças policiais, corpos de bombeiros, organizações corretivas/penais, de primeiro-socorros, de fiscalização de trânsito etc.) voltadas para a proteção dos cidadãos e comunidades, de seus direitos e patrimônio e para a manutenção da ordem pública em geral, abrangendo diferentes vertentes (ex. de educação, preventivas, de cumprimento da lei, de pronta-resposta, legislativas, judiciais, corretivas, de reintegração etc.). Uma das peças fundamentais dessa engrenagem são as forças policiais, uma vez que são partes integrais dos sistemas judiciários.


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Afinal, a polícia “é um provedor da segurança do Estado com a principal tarefa de proteger pessoas e propriedades por meio de assistência pública, da aplicação da lei, do controle e prevenção do crime e da manutenção da ordem pública” (DCAF, 2015, p. 2, tradução nossa).194 Segurança interna. A partir dos anos 90, alguns temas antes eclipsados pela disputa EUA-URSS ganharam maior atenção nas agendas domésticas e internacionais, como as diversas facetas do crime organizado transnacional. Outras questões adquiriram novas roupagens, como demonstra os ataques terroristas ocorridos nos Estados Unidos da América (1993, 1995 e 2001), em Tóquio (1995), em Madrid (2004), em Londres (2005), em Mumbai (2008), na Noruega (2011), na França (2015) e na Bélgica (2016), apenas para citar alguns exemplos. Soma-se a isso as conexões entre o crime organizado transnacional e, por exemplo, a proliferação de bens sensíveis, como o descobrimento, em 2003, do mercado negro de tecnologias nucleares envolvendo o cientista paquistanês Abdul Qadeer Khan. Desastres provocados pelo furacão Katrina (EUA 2005) e o acidente nuclear de Fukushima (Japão - 2011) também entram nesse rol de problemas que demandam respostas coordenadas entre os níveis da segurança nacional e da segurança pública (MCINTYRE, 2020). Nos EUA, esse debate em especial ganhou maior espaço na agenda política com a criação do Departamento de Segurança Interna (Departament of Homeland Security – DHS) após os ataques de 11/09. Criado por meio do Homeland Security Act (2002), o DHS foi inaugurado formalmente em 2003 e reúne diversas agências federais atuando em tópicos como segurança das fronteiras, segurança de infraestruturas críticas, cibersegurança, controle alfandegário e de imigração, respostas a grandes desastres, entre outros.

f public policy, requiring government decision and resource allocations or, more rarely, some other form of communal governance’) to securitisation (in which case an issue is no longer debated as a political question,


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Entre os países europeus, até em função de comprometimentos na esfera da União Europeia (UE), esse debate tem apresentado uma dimensão regional relevante. Conforme autores como Bossong e Hegemann (2019, p.101, traduções nossas), tópicos como terrorismo, imigração ilegal, crime organizado e outras ameaças transnacionais e não-militares de segurança são tipicamente consideradas sob o rótulo de ‘segurança interna’, embora tal termo (como muitos outros) não seja puramente analítico ou neutro: A provisão de paz e segurança na esfera doméstica pode ser considerada a base do Estado moderno, mas também convida a interpretações concorrentes da fronteira entre liberdade e segurança. A utilização deste termo ‘segurança interna’ não deve, portanto, ser vista como algo neutro ou puramente analítico, mas pode contribuir para a securitização da política [politics] europeia.195

Pawlak (2012, p. 23, tradução nossa) também salienta o aspecto regional europeu, lembrando que a Estratégia de Segurança Interna Europeia (UE, 2010, p. 12) estabeleceu que segurança interna na UE significava “proteger as pessoas e os valores da liberdade e da democracia, de forma que todos possam desfrutar de suas vidas diárias sem medo”. Sob o enfoque geral da segurança da sociedade e do Estado, é possível afirmar, portanto, que as discussões sobre segurança interna nos EUA e na Europa apontam para diferentes possibilidades de preenchimento de uma lacuna importante de atuação situada entre a parcela do setor de segurança voltada em grande medida para ‘fora’ do Estado (ex. ministérios/departamentos de defesa, de relações exteriores e de inteligência) e a parte do setor de segurança voltada but dealt with at an accelerated pace and in ways that may violate normal legal and social rules).” 195 “Planning for and conducting operations in pursuit of national interests – the command function; The provision of military advice on defence policy issues – the advisory function”. 195 “Police are the state security providers with the primary task of protecting people an


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para ‘dentro’ do Estado, mas no nível mais elementar dos seus cidadãos (ex. forças policiais, corpos de bombeiros, serviços de emergências de saúde, agências de defesa civil etc.). Entretanto, esse mesmo debate implica em abordar, por exemplo, a difícil delimitação entre o ambiente externo e interno em relação ao Estado, assim como a busca incessante pelo equilíbrio entre segurança e liberdades. No que se refere ao primeiro ponto, a própria distinção entre a esfera doméstica e a internacional de segurança é considerada cada vez mais difusa, trazendo à tona o problema de definição no âmbito de cada sociedade dos limites para a atuação de forças armadas, forças intermediárias (ex. guardas nacionais e gendarmeries) e demais agências de segurança e fiscalização. No que diz respeito ao equilíbrio entre segurança e liberdades, certamente trata-se de um necessário debate contínuo (BOSSONG; HEGEMANN, 2019, p. 104), cujos ajustes em termos de políticas públicas serão influenciados por contextos (ex. Patriot Act nos EUA – 2001, auge da crise imigratória na UE - 2015 e Investigatory Powers Act no Reino Unido - 2016) e pelo nível de engajamento de atores da sociedade civil e organizações internacionais (BALZACQ; CARRERA, 2016). Em resumo, é possível observar que o entendimento sobre segurança transcende a visão estadocêntrica ou restrita a discussões acerca de forças armadas e de ameaças militares interestatais – e os reflexos globais da pandemia de Covid-19 (2020) demonstrou claramente isso. Embora o Estado ainda seja o objeto de referência preponderante, paulatinamente outras importantes discussões ganharam força nas agendas domésticas e internacionais de segurança. Isso inclui, por exemplo, questões relacionadas ao desenvolvimento humano e sustentável, bem como a proteção de direitos e liberdades individuais contra excessos cometidos pelo próprio Estado. Esses diálogos não ocorrem apenas no âmbito de agências governamentais, mas também envolvem inúmeras associações, comunidades epistêmicas, organizações não-governamentais, mídia, think-tanks e outros segmentos da sociedade civil organizada:


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O conceito de ‘segurança’ tem sido tradicionalmente visto em termos puramente estadocêntricos, focando na proteção dos Estados contra ameaças militares. Após o final da Guerra Fria, no entanto, a atenção mudou gradualmente para as pessoas e seu bem-estar. Isso teve um impacto profundo na conceituação de segurança e de ameaças à segurança. Como resultado, a noção de segurança passou a abranger não apenas ameaças militares clássicas, mas também a necessidade de os Estados promoverem e salvaguardarem os meios de subsistência de seu povo - o que hoje é amplamente conhecido como segurança humana (DCAF, 2012, p. 1, tradução nossa).196

4 CONCLUSÃO Neste capítulo foi apresentada uma breve síntese de alguns dos recorrentes conceitos e abordagens verificados na literatura internacional sobre Estudos de Segurança Internacional (ESI), incluindo indicações de possíveis caminhos para aprofundamentos. Sublinha-se novamente que, assim como o próprio campo dos ESI, esses conceitos e abordagens (e seus autores) são provenientes de diferentes realidades, em grande medida elaborados em países da América do Norte, Europa e Austrália, com todas as particularidades e consequências que isso acarreta. Assim, para um campo de estudos que encontra dificuldades em alcançar consenso sobre as questões mais fundamentais de seu debate, como a própria definição do conceito de segurança, não é espantoso encontrar múltiplas divergências sobre o significado e d property through public assistance, law enforcement, the control and prevention of crime and the maintenance of public order”. 196 “The provision of domestic peace and security can be regarded as the foundation of the modern state, but also invites competing interpretations of the boundary between freedom and security. Using this term 'internal security' should, therefore, not be seen as a neutral or purely analytical term, but may contribute to the overall securitisation of European politics.” 196 “The concept of ‘security’ has been traditionally viewed in purely state-cent


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abrangência de termos como segurança nacional, defesa nacional, segurança pública segurança interna etc. Todavia, explorar esse debate em torno de conceitos e abordagens, com todas suas respectivas inconsistências e divergências, pode servir como um ponto de partida para posteriores aprofundamentos e reflexões críticas. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALZACQ, T.; CARRERA, S. (Eds).Security Versus Freedom?. London: Routledge, 2016 BOSSONG, Raphael; HEGEMANN, Hendrik. Internal security In: GALBREATH, David J.;MAWDSLEY, Jocelyn; CHAPPELL, Laura (orgs.). Contemporary European Security. NY: Routledge, 2019, p. 101-119. BUZAN, Barry; HANSEN, Lene. The Evolution of International Security Studies. Cambridge University Press, 2009. BUZAN, Barry; WÆVER, Ole. Regions and Powers: The Structure of International Security. UK: Cambridge University Press, 2003. BUZAN, Barry; WÆVER, Ole; DE WILDE, Jaap. Security – a new framework for analysis. UK: Lynne Rienner, 1998. CAVELTY, Myriam D.; BALZACQ, Thierry. Routledge Handbook of Security Studies. 2nd Edition, 2018. CHUTER, David. Governing & Managing – the defence sector. Institute for Security Studies (ISS), 2011. COX, Robert W. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory. Millennium, 10(2), 1981, p. 126–155. DCAF – The Geneva Centre for Democratic Control of Armed Forces. SSR in a nutshell: manual for introductory training on security sector reform. The International Security Sector Advisory Team (ISSAT). Geneva: DCAF, 2012.


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DCAF – The Geneva Centre for Democratic Control of Armed Forces. The Police: roles and responsibilities in good security sector governance. SSR Backgrounder. Geneva: DCAF, 2015. GALBREATH, David J.;MAWDSLEY, Jocelyn; CHAPPELL, Laura (orgs.). Contemporary European Security. NY: Routledge, 2019. KENNEDY, Paul. Engineers of Victory: the problem solvers who turned the tide in the Second World War. Random House Trade Paperbacks, 2013. MCINTYRE, David H. How to think about Homeland Security: the Imperfect intersection of national security and public safety (vol. 1). NY: Rowman & Littlefield Publishers, 2019, p. 13-23. ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Human Development Report (HDR). UNDP - United Nations Development Programme. NY: Oxford University Press, 1994. ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Human Security in theory and practice: an overview of the human security concept. Human Security Unit, Office for the Coordination of Humanitarian Affairs, 2009. PAWLAK, Patryk. Homeland security in the making: American and European patterns of transformation In: KAUNERT, Christian; LÉONARD, Sarah; PAWLAK, Patryk. European Homeland Security: a European strategy in the making? 2012, p. 15-34. REVERON, Derek S.; MANONEY-NORRIS, Kathleen A. Human and National Security – understanding transnational challenges. NY: Routledge, 2nd Ed., 2019. UE – UNIÃO EUROPEIA. Internal security strategy for the European Union: towards a European security model. European Council, Mach, 2010. ULLMAN, Richard H. Redefining Security. International Security, vol. 8, n. 1, 1983, p. 129–153 WALT, S. The Renaissance of Security Studies. International Studies Quarterly, 35(2), 1991, p. 211-239.


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CAPÍTULO 10 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA, MULTILATERALISMO E SAÚDE: ALGUMAS REFLEXÕES Marcelo M.Valença Monique Sochaczewski

1 INTRODUÇÃO A crise decorrente da pandemia do COVID-19 e as respostas percebidas desde a sociedade internacional sugerem, em um primeiro momento, reações antagônicas em direção a uma reorganização da ordem internacional. Por um lado, potências como os EUA e a Rússia parecem se isolar em busca de soluções domésticas para a crise sanitária. De outro, Estados da Europa, Ásia e América Latina buscam superar os problemas de ação coletiva para promover a cooperação tecnológica visando o desenvolvimento de vacinas e a distribuição de recursos e equipamentos de proteção. Diante da ausência de uma liderança política nacional ou da coordenação de esforços entre os níveis federal, estadual e municipal, o Brasil envia sinais contraditórios, ora buscando a cooperação internacional, ora isolando-se politicamente. Ao mesmo tempo que se aproximam de concertos buscando soluções para conter o avanço da pandemia, autoridades fazem bravatas e ameaçam romper com arranjos multilaterais. Historicamente, contudo, o Brasil se mostra avesso a essas retrações, buscando relevância, autonomia e, mais recentemente, protagonismo no cenário internacional. Desde o final do século XIX, o Brasil construiu sua política externa a partir de bases sólidas e coerentes, elaborando estratégias para o alcance dos interesses nacionais a partir de diretrizes pragmáticas, mas pautadas por


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princípios orientadores de suas ações. Como regras não escritas de sua política externa, a busca por fóruns internacionais que promovessem a cooperação e a construção do consenso foram tidas como uma preferência pela diplomacia brasileira, seja a tradicional, seja a conduzida por atores subnacionais. Principalmente por isso, a atuação internacional brasileira na crise sanitária decorrente da pandemia é vista com desalento por especialistas, analistas e por antigos parceiros internacionais. Neste capítulo nos debruçamos sobre a política externa brasileira para destacar o histórico de predileção pela ação multilateral do país nas suas estratégias de inserção internacional. Mostramos que a ação, conjunta ou isoladamente, de agentes brasileiros estatais e não-estatais contribuiu não apenas para o fortalecimento de fóruns internacionais, mas também promoveu nos planos doméstico e internacional princípios consagrados constitucionalmente, como o desenvolvimento e os direitos humanos, inclusive na questão sanitária. As ações empenhadas pelo Brasil aspiram à construção de uma sociedade internacional justa, igualitária e fundamentada na cooperação e no respeito às normas internacionais. Concluímos destacando que ações que promovem o desenvolvimento doméstico e internacional alavancam a inserção internacional brasileira e são fundamentais para que o Brasil retome seu papel de protagonismo e referência na política internacional. 2 O MULTILATERALISMO NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Uma revisão da literatura de Política Externa Brasileira (“PEB”) nos oferece um panorama das tendências dos formuladores de política exterior quando às estratégias de inserção internacional brasileiras. Aqui nos valemos do enfoque paradigmático da PEB para


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analisar essas estratégias e preferências assumidas.197 O enfoque paradigmático sugere que a atuação internacional brasileira é marcada por sua continuidade e que rupturas são eventuais e apenas reforçam a lógica daquelas continuidades (Carvalho e Valença, 2014). Mesmo quando ocorrem mudanças nas orientações que norteiam a política exterior do país, percebe-se que os objetivos gerais e os elementos distintivos da atuação brasileira se mantêm estáveis. Mas quais objetivos e elementos distintivos são esses? Dois objetivos estão constantemente presentes na atuação internacional do Brasil. São eles a busca por autonomia e por um papel de relevância na política internacional (Valença e Saraiva, 2011, p. 100), ideais que se complementam. O conceito de autonomia é fruto de grande debate, mas sem uma delimitação clara - ela se estrutura conforme o contexto internacional, as estratégias nacionais de desenvolvimento e eventuais oportunidades que surjam no cenário internacional lidas à luz do conceito de interesse nacional predominante (Cervo, 2003, p. 07-08; Valença, 2016, p. 47). Tem-se, contudo, a percepção de que autonomia se refere à uma política externa voltada aos interesses pátrios e à projeção nacional (Pinheiro, 2004, p. 07). O papel de relevância é uma decorrência da busca por autonomia, mas também parte de uma identidade que se constrói a partir do envolvimento internacional brasileiro (Valença, 2016, p. 47) e demandaria o reconhecimento pela potências internacionais da relevância brasileira no plano internacional. Os elementos distintivos da PEB, por sua vez, estruturam a ric terms, focusing on the protection of states from military threats. Following the end of the Cold War, however, attention gradually shifted towards the people and their well-being. This had a profound impact on the conceptualisation of security and threats to security. As a result, the notion of security came to encompass not only classic military threats, but also the need for states to promote and safeguard the livelihoods of their people—what is widely referred to today as human security”. 197 Doutor em Relações Internacionais (2010) e bacharel em Direito (2003) pela PUC-Rio. Professor da Escola de Guerra Naval. Contato: marcelo.valenca@gmail.com / www.marcelovalenca.com. As opi


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retórica política que sustenta as iniciativas e estratégias de política exterior. Essa retórica se pauta a partir de componentes idealistas e pragmáticos (Kenkel, 2012, p. 06; Mello, 2014, p. 111). Os componentes idealistas se manifestam no discurso político que representa a PEB e constrói a identidade internacional brasileira. Eles refletem ideias como a defesa dos direitos humanos, o respeito ao direito internacional e a promoção de uma sociedade internacional normativa e solidarista.198 Os componentes pragmáticos, por outro lado, representam a limitação que o país apresenta nos seus elementos de poder hard, como a limitada capacidade de emprego da coerção militar. Por conta disso, há a preferência por estratégias que promovam a construção do consenso e de fóruns multilaterais para a tomada de decisão coletiva, reforçando a dimensão ideacional da retórica política. A combinação desses dois componentes, idealista e pragmático, refletem os paradigmas da PEB e promovem historicamente os padrões de atuação internacional brasileira. Com isso, o que é possível perceber? Primeiramente, podemos apontar que, independente dos arranjos decorrentes da ordem internacional, o posicionamento assumido pela PEB se caracteriza pelo seu pragmatismo. Há uma escolha racional por estratégias que possibilitem o alcance dos dois objetivos de longo prazo, autonomia e relevância, além da promoção do desenvolvimento nacional. Em segundo lugar, há a preferência pela atuação em fóruns multilaterais internacionais, onde a assimetria de poder em relação às grandes potências é mitigada e há um processo decisório mais democrático. Essas duas características estão presentes, mesmo que de forma menos visível, nos dois primeiros paradigmas da PEB, o Americanismo e o Globalismo. Enquanto o primeiro surgiu no final do século XIX como uma resposta pragmática ao cenário internacional que se construía, dada a ascensão dos EUA na política niões expressas neste capítulo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da EGN, da Marinha Brasileira ou do Governo Federal. 198 Doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV (20


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internacional e sua projeção na América Latina por meio da Doutrina Monroe. O Americanismo sugere que o alinhamento automático ao EUA consistiria na estratégia mais coerente para alcançar os objetivos de política externa brasileiros, além de tornar o país um parceiro estratégico e privilegiado dos EUA em relação aos seus vizinhos, principalmente a Argentina. O Globalismo, por sua vez, surgiu na década de 1950 e se mostrou ferramenta útil ao alcance dos objetivos internacionais brasileiro, permitindo que o Brasil buscasse novos parceiros e assumisse uma postura neutra não apenas nas disputas entre EUA e União Soviética, mas também nas relações com os países não alinhados (Silva, 1995, p. 110-111). Mesmo que diante de uma aparente contradição entre os planos doméstico e internacional, o Brasil atuava internacionalmente de forma pragmática na promoção de seu desenvolvimento e no fortalecimento de questões caras aos seus interesses nacionais, transferindo a tensão entre EUA e União Soviética para um questionamento das desigualdades e assimetrias entre os países desenvolvidos e o chamado Terceiro Mundo, em um eixo Norte-Sul. Ambos os paradigmas proporcionaram o espaço ao Brasil para buscar nos fóruns multilaterais uma atuação de relevância e assegurar a sua autonomia. Durante o Americanismo, o Brasil atuou como membro não-permanente do Conselho da Liga das Nações e da Conferência de Paz de Paris, ao final da Primeira Guerra Mundial. O Brasil também participou das tratativas para a criação da ONU, sendo cogitado, sem sucesso, a um assento permanente no seu Conselho de Segurança. De forma semelhante, durante o paradigma globalista, o Brasil se valeu desses espaços para atuar estrategicamente, construindo sua autonomia e um espírito pragmático de solidariedade internacional. A defesa pela permanência de Cuba na Organização dos Estados Americanos (“OEA”), mesmo contra pressões dos EUA, é um exemplo recorrente, assim como o Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata, quando empreendeu esforços para a promoção da integração regional


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e a construção da sua liderança na América do Sul. Mais recentemente, a busca por autonomia e relevância ganharia novas dimensões com o paradigma institucionalista pragmático, que caracteriza os dois mandatos do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Impulsionado pela estabilidade econômica e um cenário internacional favorável a arranjos multilaterais ao final da Guerra Fria, o paradigma institucionalista pragmático promovia a inserção brasileira desde a participação em organismos e fóruns internacionais. O desenvolvimento econômico do país estaria associado à regulamentação das relações internacionais, com visível preferência pelo multilateralismo como forma de construir uma sociedade internacional (Valença, 2016, p. 48). Em uma tentativa de aproximação aos países do Norte - e também da conquista de uma liderança regional -, o Brasil percebia que a ordem internacional que se construía favorecia a ascensão de atores não-dotados de recursos materiais de poder. Ao contrário do Americanismo e do Globalismo, o Institucionalismo Pragmático visava a construção do protagonismo brasileiro no cenário internacional, o que foi buscado por meio de uma diplomacia presidencial intensa. Mas, tal como os dois paradigmas anteriores, os esforços diplomáticos eram concentrados em atores e agências pertencentes à estrutura do Estado, reforçando a institucionalização nas mãos da presidência da República e do Itamaraty. A busca pelo protagonismo se intensificou durante os mandatos de Lula da Silva (2002-2010), mas a partir de bases e premissas diferentes. O chamado paradigma autonomista, que caracterizou os governos de Lula e Dilma Roussef, rompeu com as premissas do institucionalismo pragmático não apenas no tocante às estratégias de inserção, mas também na pluralidade e capilaridade dos atores envolvidos na formulação da política externa (Milani e Nery, 2019). Com viés claramente desenvolvimentista, o autonomismo marcou um projeto de inserção internacional a partir do


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protagonismo e de representatividade do Sul Global em detrimento à busca por apoio e parcerias com países desenvolvidos (Valença, 2016, p. 48). Seu pressuposto revisionista envolvia a ideia do Brasil como liderança global por meio de iniciativas multilaterais, onde o país se colocava como porta-voz do Sul Global e estabelecia diálogo direto, ainda que com tensões, principalmente relacionadas ao comércio exterior, com os países do Norte. A expressão ”cooperação Sul-Sul” se tornou recorrente no discurso da política exterior, ainda que não fosse algo inédito (Valença e Affonso, 2019, p. 199), abrangendo uma miríade de parceiros, iniciativas e blocos (Pinheiro e Gaio, 2014; Milani e Nery, 2019; Amorim e Reis da Silva, 2020). O Brasil aproveitava esse espaço, ainda que se valendo pontualmente de estratégias de hard power mascaradas pela retórica do soft power (Carvalho e Valença, 2014). As mudanças ocorridas desde o 11 de setembro, a multipolarização da ordem internacional (Hirst, Soares de Lima e Pinheiro, 2010), bem como a fungibilidade do emprego do poder, permitiam que as aspirações brasileiras se potencializassem. Essa breve revisão nos permite observar que a continuidade da PEB é, de fato, algo real. E nela fica evidente a predileção do Brasil por espaços políticos onde os componentes idealistas e pragmáticos de sua política externa convergissem. As limitações que o país enfrenta nos seus componentes de poder material estimularam o desenvolvimento de estratégias que minimizam a importância do poder, tal como tradicionalmente percebido, na construção da liderança internacional. Isso se reflete na escolha de fóruns e organismos multilaterais para promover a sua participação na política internacional. Com isso, a atuação brasileira ganharia legitimidade para questionar as bases da ordem internacional contemporânea. Tal preferência fica ainda mais clara nas últimas três décadas, quando as estratégias de inserção internacional dos paradigmas institucionalista pragmático e, principalmente, autonomista elegem estes espaços para a construção da liderança brasileira.


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3 UMA POLÍTICA EXTERNA PLURAL A PEB tradicionalmente apresenta características de forte institucionalização e centralização de sua formulação e atuação por meio do Itamaraty. Em outras palavras, diplomacia e política externa apareciam como atividades privativas de diplomatas. Contudo, isso não impediu que, em diferentes momentos de sua história, esforços importantes fossem conduzidos por indivíduos ou grupos de fora da diplomacia atuando em nome do país em prol de seus objetivos de longo prazo, autonomia e relevância. A pluralização de atores de diferentes categorias e status federativos passou a ser mais constante durante o governo Lula.199 Havia no autonomismo a ideia de construção de uma ordem internacional mais democrática, com maior envolvimento e voz do Sul Global, tradicionalmente marginalizado nas relações internacionais. No plano doméstico, essas características podem ser percebidas a partir de dois movimentos por parte do governo federal. O primeiro foi o aumento do número de vagas para o concurso anual de ingresso ao Itamaraty, em um discurso de democratização do acesso ao corpo diplomático.200 O segundo, e que nos focamos aqui, foi o desenvolvimento de ações que levaram à descentralização 12). Contato: moniquesgoldfeld@gmail.com 199

Paradigmas são, grosso modo, grupos de conceitos que destacam certas variáveis e observações empíricas para explicar variações nos comportamentos (Carvalho e Valença, 2014, p. 69). Amado Cervo (2003, p. 07-08) destaca que paradigmas operam como ferramentas metodológicas que permitiriam (i) destacar valores e elementos culturais formadores de uma identidade de uma comunidade política, (ii) explicar os interesses e percepções das elites formuladoras de políti

cas e (iii) evidenciar arranjos políticos que explicariam rupturas com arranjos anteriores, afetando o processo decisório e tomada de escolhas estratégicas. Para uma visão didática dos paradigmas da PEB, Valença e Saraiva (2011). 200

A visão solidarista privilegia os direitos humanos e o respeito aos indivíduos pelo Estado e submete os princípios da não-intervenção e da soberania ao respeito àqueles. Nesse sentido, diante da tensão entre ordem e justiça, esta


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da PEB das mãos do Itamaraty, com a entrada de novos atores estatais, como agências federais, subnacionais e ministérios, e nãoestatais, movimentos sociais, partidos políticos e grupos de interesse (Milani e Nery, 2019, p. 7-8).201 A participação desses atores não implica, a priori, a politização ou captura das agendas políticas de forma distinta aos interesses formais brasileiros, mas deve ser lida conforme as agendas políticas desses grupos - e a do próprio Brasil são constituídas. Conforme a área em que o debate ocorre e a importância da agenda para o Brasil, o país assume uma posição mais ou menos defensiva de seus interesses e o envolvimento desses novos atores ganha mais peso. Em questões de saúde, por exemplo, a agenda do país opera de forma mais agressiva visando à promoção dos direitos humanos e a redução da desigualdade - como ficaria evidente na questão da quebra de patentes de uma série de medicamentos e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (”SUS”) como instrumento de política pública. Assim, visando atingir objetivos comuns, a coordenação de estratégicas da diplomacia brasileira junto a organizações não-governamentais (“ONG”) e organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (“OMC”) e a OMS, além obviamente da ONU, são mais evidentes. Já em questões como direitos humanos e meio ambiente, quando o país assume uma posição mais defensiva e as agendas oficial e de atores não-estatais tendem a ser conflitantes, o governo e esses atores acabam por operar em campos opostos, dificultando a ação coordenada. deve prevalecer. 201

Aqui não lidamos diretamente com o debate sobre paradiplomacia. A literatura que trata do tema e do papel de atores estatais subnacionais - como o caso dos estados e municípios - tem características análogas àquelas que apontamos aqui, mas evidenciam uma construção de interesse que não corrobora, em um primeiro momento, o projeto de inserção internacional brasileiro ou a busca pelos objetivos de longo prazo da PEB. Sobre paradiplomacia, Soldatos (1990), Vigevani (2006) e Onuki e de Oliveira (2013).

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Talvez como um reflexo das aspirações internacionais brasileiras e das oportunidades que abriam em função des


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Nesse processo de descentralização e de pluralização, há a incidência de elementos ideológicos e também de ordem técnica na condução das estratégias de política exterior. No primeiro caso, é importante destacar o papel do Partido dos Trabalhadores (“PT”), que teve seu secretário de Relações Internacionais, Marco Aurélio Garcia, alçado à função de assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais (Saraiva, 2010, p. 50). Garcia aconselhava e influenciava as escolhas de Lula, eclipsando o tradicional papel do Itamaraty de assessor do Executivo federal em temas de política exterior. O então assessor especial era um dos maiores defensores das alianças Sul-Sul que marcaram o paradigma autonomista, sendo uma das vozes mais ativas na busca por mecanismos de integração regional na América Latina, como a Unasul e a Celac. Comenta-se que, em qualquer sinal de crise na região sul-americana ou envolvendo parceiros estratégicos brasileiros, Garcia era logo enviado, mesmo antes de movimentos diplomáticos oficiais, para garantir que eventuais animosidades não afetassem os interesses do Brasil. Seu envolvimento em questões internacionais era alvo de críticas por uma ideologização da política externa dos governos Lula e Dilma. Todavia, sua atuação refletiam também o componente idealista da retórica da PEB, de forma a construir a ideia de uma sociedade internacional justa e normativa, imprimindo coerência na forma como o país se relacionava com grandes potências e aliados de menor peso político. Mas, ideologias à parte, é de mister perceber o papel de atores subnacionais na construção das estratégias da PEB. Assim, olhar para a dimensão técnica em que operam, por meio de suas expertises, de forma a viabilizar iniciativas que promovam os objetivos internacionais brasileiros, principalmente em temas onde as agendas de ação sejam convergentes com o governo brasileiro. Exemplo é a atuação internacional da Fundação Oswaldo Cruz, conhecida mais popularmente como Fiocruz, na construção de parcerias estratégicas. A Fiocruz colabora na cooperação Sul-Sul em diferentes contextos atuando, desde ao menos 1994, na promoção de esforços de cooperação sanitária com países da Comunidade Países de Língua


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Portuguesa (“CPLP”) visando a capacitação de pessoal na área da saúde (Roa e Silva, 2015, p. 160-161). Essa cooperação se dá por meio da chamada Diplomacia de Saúde, que se destina a abordar questões transnacionais e de impacto global, promovendo o desenvolvimento sanitário de países parceiros. A premissa subjacente à Diplomacia de Saúde envolve o estabelecimento de políticas, reflexões e ações internacionais baseadas na ideia de que a saúde é um direito humano fundamental e parte determinante do desenvolvimento (Fiocruz, sd). Isso facilita, também, a operação por meio da cooperação estruturante, promovendo o desenvolvimento dos sistemas de saúde dos países parceiros, tal qual a lógica da cooperação para o desenvolvimento defendida pelo governo brasileiro durante o período autonomista (Fiocruz, sd). A Fiocruz também trabalha na cooperação Norte-Sul, por meio de processos de colaboração por meio da assessoria especializada a setores governamentais e particulares em organismos e reuniões internacionais multilaterais por meio do planejamento de ações e monitoramento dos avanços. De forma similar à atuação brasileira internacional, a Fiocruz opera a partir do princípio da solidariedade internacional e da promoção da equidade e da justiça, sendo neste caso na área privilegiada a da saúde (Fiocruz, sd), reforçando a construção da liderança brasileira e de seus objetivos de longo prazo buscados em sua história diplomática. Cabe ressaltar que a Fiocruz atua em parceria, mas de forma independente, do governo federal na sua atuação exterior. Dessa forma, em uma situação de crise sanitária, como a atualmente enfrentada pela pandemia do COVID-19, a atuação internacional da Fiocruz promoveria a relevância do Brasil no plano internacional, dada à expertise desenvolvida pela Fundação, a capacitação de seus pesquisadores e funcionários e a reputação por ela construída ao longo das três últimas décadas.


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4 O ENVOLVIMENTO BRASILEIRO NA OMS Vale destacar aqui que essa pluralização de atores e a - até certo ponto - descentralização das questões de PEB das mãos do Itamaraty não é algo exclusivo dos governos recentes ou do paradigma autonomista. Na jornada de inserção internacional do Brasil, e em consonância aos objetivos de longo prazo apontados, cidadãos brasileiros tiveram papel de destaque em momentos marcantes de organismos internacionais e fóruns multilaterais, principalmente a ONU e suas agências especializadas. Oswaldo Aranha é talvez nome recorrente nessas lembranças dada a sua liderança na sessão especial que tratou da Partilha da Palestina em 1947. Outro exemplo mais recente é a trajetória de Sérgio Vieira de Mello no Alto Comissariado das Nações Unidas, o ACNUR. Suas atuações, contudo, partiam de premissas diferentes. Enquanto o primeiro claramente seguia um papel institucional validado pelo Brasil, o segundo justamente acreditou por um tempo considerável que atuar na ONU queria dizer que atuava de maneira mais ampla que a nacional, uma vez que guardava rancor pela forma como o Brasil havia tratado seu pai diplomata (Power, 2008: p. 24) Contudo, e considerando o histórico da preferência pelo multilateralismo, busca por protagonismo e construção de uma sociedade internacional mais justa e igualitária - e também pelo espaço proporcionado pela Fiocruz na cooperação sanitária internacional -, o papel do Brasil na concepção e liderança inicial da Organização Mundial da Saúde é menos conhecido do que se deveria. A idéia da criação de uma organização internacional focada na saúde na ordem internacional que se construía no pós-II Guerra Mundial partiu não de concertos interestatais, mas de especialistas do campo da saúde. O médico sanitarista paulista Geraldo Horácio de Paula Sousa (1888-1951)202 e o médico chinês, e educado em sa pluralização da PEB, mas também em função da flexibilização das regras para a abertura de cursos superiores promovidas por FHC, houve durante a década de 2000 o aumento no número de cursos de graduação em Relações Internacionais pelo país. Este crescimento se estendeu pela


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Cambridge, Szemin Sze foram dois importantes atores nãosubordinados a Estados que deram origem ao debate que culminariam na constituição da OMS (Cueto, Brown & Fee, 2019). Ambos eram membros da UNRRA (United Nations Rehabilitation Administration), organismo estabelecido em 1943 com 44 nações, e participaram da Conferência de São Francisco, em 1945. Apesar de operarem no âmbito da ONU, os membros da UNRRA não poderiam apresentar propostas sobre suas áreas temáticas. Desta forma, os médicos foram incluídos nas delegações de seus respectivos países. Conjuntamente, e de forma articulada com o representante da Noruega, Karl Evang, e com alguns membros dos EUA e GrãBretanha, inseriram o conceito de uma agência de saúde na constituição da ONU. Uma declaração conjunta das delegações do Brasil e da China, em 28 de maio de 1945, afirmava que a Conferência de São Francisco e, consequentemente, também a organização internacional que estava em formação, não deveriam se esquivar da criação de uma agência de saúde. Segurança internacional, mais do que nunca, se tornava questão de preocupação imediata e urgente, mas havia a expectativa que outras questões afetas à estabilidade internacional deveriam ser tratadas de forma séria. A declaração afirmava ainda que uma organização de saúde deveria ser parte do Conselho Econômico e Social, que deveria cuidar dos papéis específicos das agências especiais da ONU. Desta declaração conjunta surgiram frutos que levaram à propositura da criação da OMS, que aconteceu em 7 de abril de 1948, data que passou a ser celebrada como Dia Mundial da Saúde203. década de 2010, mas mostrou-se mais perceptível durante os governos Lula. 202

Podemos dizer, de certa forma, que essa pluralização de ato

res na política externa pode ser lida como uma analogia ao que os militares se referem como relações inter-agências. Os militares concentravam as questões de paz e guerra em suas mãos, dada à competência que a eles cabia de executar certas tarefas. Principalmente com o maior envolvimento em operações de paz multidimensiona


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Primeiramente, estabeleceu-se uma Comissão Técnica Preparatória, em Paris. Em 1946, realizou-se a Conferência Internacional de Saúde, em Nova Iorque, com a participação de 64 países. O envolvimento de Paula Sousa não se encerrou quando da Conferência de Paris. O médico sanitarista foi ainda membro integrante da Comissão Técnica Preparatória, Vice-Presidente da Conferência Internacional de Saúde e foi apontado delegado permanente do Brasil na OMS, integrando seu Conselho Executivo por mais de uma vez. Paula Sousa marcou seu nome na história da OMS, colaborando para a construção do protagonismo e relevância do Brasil na ordem internacional que se consolidava na segunda metade do século XX. Mas ele não foi o único brasileiro com atuação de destaque na Organização. O segundo brasileiro com profunda história com a OMS foi o médico carioca Marcolino Gomes Candau. Ele ingressou no corpo técnico da ONU em 1950, onde tornou-se diretor da Divisão da Organização de Saúde Pública, em Genebra. De 1953 a 1973 foi o diretor-geral da OMS, sendo o segundo indivíduo a ocupar tal posto, após o canadense George Brock Chisholm. O histórico profissional de Candau refletias as expectativas que uma organização internacional de saúde sugerem. Professor e pesquisador, antes de ser indicado à OMS, dentre outras designações, ele coordenou o Serviço Especial de Saúde Pública, uma iniciativa de cooperação na área da saúde pública entre o governo brasileiro e o Institute of Inter-American Affairs, agência dos EUA de promoção de cooperação no continente americano (OMS, sd.). A atuação de Candau, ainda que desvinculado institucionalmente do governo brasileiro, corrobora o papel plural que atores não-estatais desempenham na promoção da inserção internacional brasileira. Seus vinte anos de gestão marcaram não apenas o crescimento exponencial de Estados membros da OMS - passando de 81 a 138 países, muito em decorrência dos processos de descolonização africano e asiático -, mas também vivenciou crises sanitárias de grandes proporções, como a catapora, malária e oncocercose, quando a OMS teve papel chave no desenvolvimento de


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políticas e coordenou ações para promover a redução e contenção da incidência dessas doenças (OMS, sd.). A Organização, assim, mostrava liderança e capacidade de desenvolver estratégias para lidar com crises internacionais e regionais, coordenando a atuação conjunta de seus Estados e promovendo incentivos em questões onde, tal como na atual pandemia do COVID-19, a ação coletiva promove uma solução mais eficiente para a mitigação dos danos. Após a sua saída do cargo, foi nomeado Diretor-Geral Emérito da OMS. 5 CONCLUSÃO Os exemplos de Geraldo Horácio Paula Sousa e de Marcolino Candau refletem duas experiências distintas na inserção internacional brasileira na área da saúde. O primeiro, vinculado a um organismo internacional, agiu em coordenação ao governo brasileiro na promoção de seus ideais e valores. Candau, por sua vez, atua sem vínculos ao Brasil, mas projetando a reputação do país internacionalmente, tanto em termos técnicos quanto políticos. Ambos atuam de forma coerente às estratégias e interesses brasileiros na promoção do consenso e na cooperação multilateral em uma área cara ao país, que é a da promoção dos direitos humanos - no caso, a partir da promoção do desenvolvimento sanitário. Tais experiências, somadas às iniciativas de cooperação SulSul e Norte-Sul da Fiocruz, ilustram a tradição brasileira de busca por protagonismo e relevância no plano internacional na promoção dos direitos humanos e na construção de uma sociedade internacional mais justa, seja por meio da atuação institucionalizada no âmbito do Itamaraty, seja pela atuação plural de atores subnacionais. Por isso, não à toa as ações brasileiras na cooperação à prevenção da pandemia do COVID-19 geram inquietação e incômodo. A atuação internacional visando à redução de desigualdades e a promoção do desenvolvimento e da justiça faz parte da agenda internacional brasileira desde ao menos a década de 1950, época do paradigma globalista. Tais ideais, consolidados na Constituição


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Federal de 1988, se inserem, contudo, como princípios na política exterior brasileira há mais tempo que isso (Lopes e Valente, 2016). Eles acabam por entremear, também, iniciativas voltadas para a promoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento doméstico. No caso específico da saúde, temos iniciativas como a da quebra de patentes de medicamentos e da promoção do SUS como programas de inclusão social e de promoção de direitos humanos e de justiça social. Estratégias como essas, que promovem o desenvolvimento social doméstico do Brasil de modo coerente às suas ações e iniciativas internacionais, ajudaram a promover o país como um player global. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, C.; REIS DA SILVA, A. L. Os think tanks brasileiros e a agenda de política externa de Lula da Silva e Rousseff para a África. Carta Internacional, v. 15, n. 1, p. 1–26, 2020. CARVALHO, G.; VALENÇA, M. M. Soft Power, Hard Aspirations: the Shifting Role of Power in Brazilian Foreign Policy. Brazilian Political Science Review, v. 8, n. 3, p. 66–94, 2014. CASARÕES, G. Multilateralismo na política externa brasileira (1889- 1964): um ensaio. Revista de Economia Relações Internacionais, v. 9, n. 17, p. 43–57, 2010. CERVO, A. L. Política Exterior e Relações Internacionais do Brasil: enfoque paradigmático. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 46, n. 02, p. 5-25, 2003. CUETO, M., BROWN, T., FEE, E. “The Birth of the World Health Organization, 1945–1948”. The World Health Organization: a global History. Cambridge: Cambridge University Press, 2019 DE CAMPOS MELLO, F. Política Externa Brasileira: contextos e objetivos da diplomacia multilateral. In: LAZAROU, E. (Ed.). Multilateralismo nas Relações Internacionais: visões cruzadas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 109–126.


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CAPÍTULO 11 COVID-19: MUCH MORE THAN A PUBLIC HEALTH RISK Rashmi Singh Maria Luiza S. Batista

1 INTRODUCTION In December 2019, cases of the novel coronavirus, now referred to as the severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2; formerly 2019-nCoV), were identified amongst the local outbreak of a pneumonia-like respiratory illness in the city of Wuhan (Hubei Province) of China. China reported it to the World Health Organisation (WHO) on 31 December 2019. Over the course of January, the virus spread to every province of mainland China and, by the end of January, was also identified in twenty-six other countries. Wuhan is a key air transportation hub in central China which potentially contributed to the spread of the virus via infected travellers not only locally across China but also internationally, a fact that was exacerbated by the huge number of people travelling for Chinese New Year. The WHO named the disease caused by SARSCoV-2 COVID-19, an acronym derived from ‘coronavirus disease 2019’. On 30 January, the WHO declared COVID-19 a global health emergency. As the virus spread rapidly across the globe accompanied by an exponential rise in deaths, the WHO declared a global pandemic on 11 March 2020, the first time it had done so after the 2009 H1N1 influenza crisis. As we have moved forward it has become obvious that the complications of COVID-19 are long-term and farreaching. Moreover, all indicators seem to suggest that the pandemic will continue to rage on for months yet, if not years.


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Perhaps one of the most astonishing characteristics of the Covid-19 crisis however was not its rate of contagion but rather the slow response and crass politicisation of the situation by some governments and political leaders. The United States, where the crisis clearly emerged as a partisan issue, had an extremely slow response relative to other countries. It is therefore perhaps not surprising that the largest proportion of Covid-19 cases worldwide have consistently emerged from the US. Brazil, which has more recently emerged as the new epicentre of the disease with the second highest number of cases worldwide, has had its efforts against the virus hampered by blatant politicisation as well. Brazil’s president, Jair Bolsonaro, has consistently downplayed the dangers of the disease and personally flouted preventive measures such mask wearing and social distancing. This complacency and criminal irresponsibility on part of many governments has served to not only exacerbate the human toll of the crisis but is also contributing more generally to the increasing volatility of the international system. Undoubtedly, Covid-19 presents a public health challenge perhaps unseen since the Spanish Flu outbreak of 1918. The most obvious consequence of this pandemic has been the systematic breakdown of health systems in countries most heavily impacted by the virus, with hospitals and their intensive care units overwhelmed and struggling to treat the high numbers of infected individuals admitted, a large proportion of them exhibiting life-threatening symptoms. However, the virus also represents the tipping point for a host of other calamities around the world. Another key fallout of the pandemic has been a global economic recession. As the virus puts supply chains under strain, prices rise and unemployment increases, we are seeing long-standing economic ties amongst nations fraying; for instance, amongst the stronger and weaker economies in the European Union. A key corollary of economic recession is rising unemployment and consequently, growing poverty and food insecurity. Moreover, as the crisis brews and economic interdependency wanes in the international system the


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chances of hard security tensions flaring amongst rivals becomes more real. This is especially true as the crisis seems to be providing some countries with the perfect conditions to pursue their national ambitions and interests. China, for instance, is using the cover of the crisis to once again not only expand in the South China Sea (SWARAN, 2020) but also to flex its muscles along its southern border with India (GOLDMAN, 2020). On perhaps a more unconventional security front there is arguably a parallel pandemic spreading across the world, that of sexual and physical violence against women and children. Various reports have indicated that lockdown conditions imposed by governments to contain the spread of the virus have increased the risks associated with domestic violence and abuse for women, children and LGBTQ+ individuals. Initial data is demonstrating a clear spike in phone calls made to hotlines across various countries and all indicators suggest that victims are finding themselves trapped and isolated from support networks as refuges and shelters close and lockdown regulations forcibly cut them off from family and friends (UN WOMEN, 2020). We are also seeing a number of non-state violent actors, i.e. insurgents, terrorist groups and criminal organisations, leveraging the unstable conditions generated by the crisis to garner legitimacy, strengthen their narratives and expand their operational capacity and reach. In this chapter, we provide an overview of some of the key global insecurities that have been highlighted as a direct result of the covid-19 crisis. The chapter begins with addressing the challenges and opportunities presented by the pandemic for terrorist actors as well as for those engaged in countering terrorism and violent extremism. We then move on to address two significant, but often overlooked aspects of security, namely domestic violence and cyber security. The aim of this paper is to make clear that the Covid-19 crisis is much more than merely a public health emergency. Instead, the pandemic is generating conditions where other, pre-existing insecurities and threats – both traditional and non-traditional – are being exacerbated. Of course, it


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is well beyond the scope of this paper to address any more themes than those already covered here. Whilst we recognise that this perforce provides a limited view of the influence of the Covid-19 crisis on an extremely wide range of pre-existing insecurities and threats, nonetheless we argue that this modest selection is sufficient to demonstrate the varied ways in which the pandemic is impacting different areas of risk and insecurity today. 2 TERRORISM AND COUNTER-TERRORISM In late April, the media announced the arrest of British jihadist and Islamic State (ISIS) member Abdel Majed Abdel Bary in Spain. It was reported that Bary, one of the five British ISIS fighters nicknamed ‘The Beatles’, had used the outbreak of the corona virus to sneak into Spain (HARLEY, 2020; DOLZ, 2020). Furthermore, at least the initial reports claimed that Bary and his associates had managed to successfully disguise their appearance thanks to the use of the surgical masks mandated by the Spanish government’s guidelines to stem the spread of Covid-19. Certainly, different terrorist and insurgent groups have attempted to leverage the conditions and new possibilities generated by the Covid-19 crisis to their advantage. However, while the pandemic certainly presents unique opportunities for unconventional non-state actors to increase their power and influence it also brings very specific risks and challenges. In short, we must seek to understand the opportunities and challenges of this crisis in a measured and nuanced manner, without exaggerating the opportunities offered to terrorist groups by this pandemic or underestimating the challenges and risks faced by these organisations. In Bary’s case for example, it was soon revealed that not only had Spanish authorities been expecting him for several months but also that they had him under surveillance almost immediately after he entered the country (MULLINS, 2020). In short, irrespective of the media’s portrayal, Bary’s arrival in Spain may have had little to do


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with the Covid-19 crisis and instead it seems that he had been planning to enter the country for some time. However, while we must certainly be wary of the media’s attempts to link all terrorist activity to the pandemic, we do know that as the virus spread various terrorist organisations attempted to leverage it for their own nefarious purposes. Thus, from neo-Nazis and left-wing extremist groups to jihadists, all of them encouraged their supporters to take advantage of the crisis to conduct attacks and, in some cases, even incited them to weaponize the virus (MULLINS, 2020; ICG, 2020; OSBORNE 2020; WALKER AND WINTER, 2020). Certainly, the pandemic has presented terrorist groups with some unique opportunities. For one, the lockdown has provided many terrorist actors with a captive audience with time on its hand and easy access to the internet; enabling these groups to expose a greater number of people to their radical ideas. Although the relationship between online activity and radicalisation, especially to the point of adopting violence, is unclear and complex there is no doubt that this increased exposure presents a key area of concern for counter-terrorism operatives (CTED 2020). Other opportunities presented to terrorist organisations by the Covid-19 crisis include the fact that not only are these groups leveraging the pandemic to further their own particular narratives but also that the disease provides a golden opportunity to frame themselves as alternative service providers, especially in areas where the presence and reach of the state is weak and/or limited (CTED 2020). This, in turn, allows these groups to garner legitimacy and shore up support from local communities, i.e. strategically and structurally strengthening the group in the long term. However, even a cursory glance of the media suggests a great deal of variance in the terrorist response to the crisis, which is worth exploring in order to grasp more accurately the full scope of challenges and opportunities presented to terrorist actors by the pandemic.


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We know that ISIS, for instance, initially greeted the news of the virus with unabashed glee. In its publication al-Naba, ISIS categorised the virus as God’s punishment meted out upon ‘Crusader nations’ and encouraged supporters to exploit the crisis by launching more attacks on western countries (BURKE, 2020). However, with time ISIS seemed to accept that the virus could also spread amongst Muslim communities and recommended that its members take precautions so as not to catch or transmit the disease (TAMIMI, 2020b). The group now moved to provide clear health guidelines for its members, including counselling “that the healthy should not enter the land of the epidemic and the afflicted … should not exit from it” (TAMIMI, 2020a), which in plain words was a directive for its supporters to desist from international travel. At the same time, the group cunningly combined this rhetoric of precaution with that of strategic advantage, encouraging supporters who were already in Europe to exploit the pandemic in order to launch new attacks in their own countries. The fact that this narrative was being taken to heart by ISIS supporters became evident when in April 2020, German police arrested four suspected Tajik members of the group who were allegedly plotting to bomb US Air Force bases located in Germany (COLEMAN, 2020). In another case, Boko Haram’s stance was quite similar to that of ISIS. Abubakar Shekau, the leader of Boko Haram, like ISIS framed the virus as God’s divine punishment for the nonpayment of zakat and indulging in sodomy. He further argued that measures such as lockdown and social distancing were an assault on the Muslim faith and a ruse to prevent congregational prayers and pilgrimage to Mecca (KISHOR AND MURALIDHARAN, 2020). Even al-Qaeda, which framed the arrival of the virus in the Muslim world as punishment for “our sins and … the obscenity and moral corruption … widespread in Muslim countries” (BURKE 2020), lauded the detrimental economic impact the virus was having upon America’s economy (JOHNSON, 2020) and urged Muslims to not only “turn this calamity into a cause for uniting our ranks” (JOHNSON, 2020) but to use the crisis “to spread the correct creed,


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call people to jihad in the way of Allah and revolt against oppression and oppressors” (BURKE 2020). In other words, to continue with the project of global jihad. It is not only jihadist groups who have been proposing to exploit the crisis for their own strategic advantages. Far-right groups, white supremacists and others spouting extremist ring-wing ideologies have also demonstrated their intention to exploit the impact of Covid-19. Already in March, the FBI shot and killed a white supremacist while attempting to arrest him for plotting a car bomb attack against a hospital treating Covid-19 patients in Missouri, USA (PEREZ AND SHORTELL, 2020). Far-right extremists and white supremacists have also been extremely active online, engaging in hate speech, promoting conspiracy theories, spreading disinformation, and encouraging violent attacks against minorities as well as critical infrastructure (JOHNSON, 2020; WITHER, 2020). Examples of extremist propaganda abound. For instance, on March 31, a neo-Nazi Telegram channel posted a graphic stating, “Covid-19 – If you have the bug, give a hug – Spread the flu to every Jew. Holocough” (NOVAKHOV, 2020). This is just one of many examples where extreme right-wing propaganda deliberately frames Jews as responsible for the pandemic and identifies the Jewish and Indian communities in particular, but also other minority communities along with law enforcement and other state agencies, as legitimate targets of attack. Analysts argue that, “[r]ight-wing chat groups have gone further than Salafi-jihadist groups in identifying specific targets and attack methods. Techniques discussed include the use of spray bottles filled with bodily fluids from infected persons or the spread of the virus by coughing or touching any surface handled by people in shops or public transport” (WITHERS, 2020, p. 3). That these discussions are being put into practice by those aligned with this ideology is evidenced by posts on sites such as Telegram, Facebook, 4Chan, NeoNazi chatrooms etc.


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At the same time, in direct contrast to the groups discussed thus far, we also have several examples of terrorist groups responding in a much more responsible and measured manner to the Covid-19 crisis. In Lebanon for instance, Hezbollah has not only volunteered dozens of ambulances to assist the government during the crisis but also dispatched members of the Islamic Health Society to disinfect public spaces. Hezbollah is offering its services through the government to appeal to as many sectors of Lebanon’s religiously diverse population as possible (CLARKE, 2020). The Afghan Taliban, in its tun, offered to assist humanitarian organisations helping victims of Covid-19, is cooperating with the local authorities in some parts of the country and has even said it will declare a temporary ceasefire in areas of Afghanistan impacted by the disease (BURKE, 2020). The group has also been distributing images of its members in protective gear treating people in health centres in the areas that it controls, enforcing social distancing, distributing soap, masks and gloves and speaking with community leaders about the precautions required to stop the spread of the virus (BURKE, 2020; TANEJA AND PANTUCCI, 2020). Similarly, in northern Syria the former alQaeda affiliated group, Hayat Tahrir al-Sham (HTS) is attempting to demonstrate its governance capability by supporting the quasigovernment that is administering the region. Recently, HTS has cancelled all Friday prayers in the areas under its control and has also placed a ban on all markets and bazaars (TANEJA AND PANTUCCI, 2020). Somalia’s al-Shabaab has a long track-record of targeting humanitarian aid workers and opposing help from international aid agencies (BBC, 2020). Thus, when the group described Covid-19 as being “spread by crusader forces” (CLARKE, 2020) it raised alarm bells not only in the region but amongst the international community. However, in June the group announced that its coronavirus prevention and treatment committee had established a Covid-19 centre in Jilib, approximately 380 kms south of the capital Mogadishu. Additionally, al Shabaab also advertised that it had


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vehicles at its disposal to transport patients to the treatment centre (AL JAZEERA, 2020) – certainly a volte-face from its past behaviour. One explanation for the differences in attitude between terrorist organisations regarding Covid-19 is whether or not they require local community support. Those groups which do not depend on such support can afford to be much more hard-line in their stance. However, some analysts believe that social service is more a cynical effort to garner legitimacy and create a counter-narrative on part of these groups as opposed to a genuine effort to establish a health care system to battle Covid-19. Certainly, nearly all the groups we have discussed here have in the past either targeted aid workers and/or actively prevented the provision of public health services, often in the same towns and regions they are operating these services today. In most cases, analysts claim that these efforts are mostly fanfare as the majority of groups lack the capacity to organise and run health care systems in the areas they control and the services and care they offer is, in reality, fairly limited and in some cases even hijacked from charity and international aid groups (TANEJA AND PANTUCCI, 2020). All the same, this deliberate attempt to build legitimacy during the pandemic is important to underscore because the conditions of this global health crisis are making traditional terrorist activities, such as attacks, much more difficult to organise and undertake. Terrorist groups take advantage of elements like freedom of movement and expression to organise attacks, access targets and attract potential recruits. However, the safety measures instituted by governments to limit the spread of the virus have also restricted freedom of movement, not only for citizens but also for terrorists. Hence, there are fewer crowded spaces to target with traditional attack tactics of bombings, stabbings and vehicle rammings (DAVIS, 2020). Moreover, not only has international travel been more limited there is also heightened border security, which is also potentially impacting the movement of terrorist actors. Finally, the global economic recession combined with the disruption of global, regional and local supply chains has translated into


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difficulties in accessing resources such as food, medicine, money and weapons. “Restrictions on the movement of people and goods” may also be depriving terrorist groups revenue from activities like taxation and extortion (CTED, 2020, p. 3). Thus, to reiterate, while undoubtedly the Covid-19 crisis presents some unique opportunities for terrorist actors it also presents serious challenges for these groups. Just as terrorist organisations are confronted with a host of opportunities and challenges, so too are agencies engaged in countering terrorism (CT) and violent extremism (CVE), albeit the challenges seem to far outweigh the opportunities. For one, the economic recession and resulting financial pressure that countries are under means that states are already reallocation resources. In many cases, this means that peacekeeping forces and armed forces involved in operations against transnational terrorist groups, such as ISIS and al-Qaeda, are being relocated (CTED 2020; WITHERS 2020). In many cases, even when forces are not being relocated, their on-the-ground CT and CVE operations are being severely limited due to a combination of health risks and budget restrictions. Moreover, armed forces are being directly drawn into state efforts against the virus, often providing reinforcement to the police, building and running emergency hospitals as well as helping with the provision of medical supplies, transportation and communication. Not only does this have an impact on domestic military readiness but it also limits international cooperation and interoperability against terrorism and violent extremism (WITHERS 2020). All this promises to provide terrorist actors a security vacuum which they will surely exploit (WALLNER AND WHITE 2020). However, in addition to the shortterm impact of these shifts are also the repercussions that may be more difficult to mitigate in the longer-term. For example, the pandemic has severely impacted the humanitarian aid work of civil society organisations, whose activities (religious support, education, public health services etc.) often form the backbone of the long-term prevention and pre-emption policies aimed at countering violent activity. Travel and trade restrictions have also impacted


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humanitarian aid work, with the result that vulnerable populations like refugees and internally displaced persons who are attempting to flee terrorist groups are now, both directly and indirectly, impacted by the consequences of the pandemic (CTED 2020). All this not only represents a greater pressure on state CT and CVE resources but is also creating conditions for increasing and cementing the underlying grievances that may become the drivers of future terrorist activity. The advantages presented by the pandemic for CT/CVE have been few. Some analysts argue that the spate of online mis/disinformation has enabled states to hone their response to such online activity. State responses have included “charging individuals for spreading Covid-19 related mis/dis-information” (CTED, 2020: 5; ROSAND, KOSER AND SCHUMICKY-LOGAN) although it would be fair to underscore that much of the responsibility for addressing this issue has fallen upon private sector actors. Moreover, despite attempts by the private sector who have “de-platformed individuals and organisation, promoted authoritative voices, increased the use of verification mechanisms and banned adverts using misinformation to sell medical products, significant challenges remain” in this area (CTED, 2020, p. 5). States have also, in some cases, leveraged antiterrorism charges for individuals deliberately attempting to infect others with the disease (ROSAND, KOSER AND SCHUMICKYLOGAN). On the one hand, this represents an evolution in terms of the boundaries of terrorism and the practical inclusion of responses to future incidences of bio-terrorism. On the other hand, one can argue this is weakening and blurring an already fragile and ill-defined terrorism legislation, opening up possibilities for its misuse. Similarly, the use of mass, digital surveillance technology, some of which was previously used for CT purposes, to track and trace infected people and the spread of the virus as well as to monitor quarantined people, is raising concerns about the limits of government power after the pandemic ends (KHARPAL, 2020). Certainly, it is unclear how the data for this digital surveillance is being used and stored and it definitely has the potential for misuse.


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Privacy experts and rights groups are increasingly concerned that invasive government surveillance may be a distinct future outcome of the current policy. Thus, in general, the Covid-19 crisis has had a negative impact on both CT/CVE as well as human rights issues related to CT/CVE. 3 DOMESTIC VIOLENCE This brings us to the issue of domestic violence. It is widely known that crises do not affect everyone with the same intensity and/or to the same degree. Aspects as varied as gender, religious and ethnic affiliation, age, economic and migration status and sexual orientation are some of many drivers which contribute to the vulnerability of specific groups in contexts of crises (BARGHOUTI; SAID-FOQAHAA; SAID, 2020, p. 5). Such scenarios of catastrophe also often either generate or facilitate conditions for specific actors to exercise violence against vulnerable groups in society. This is exactly what we are observing in the case of violence perpetrated against women, children and LGBTQ+ individuals. In other words, many of the safety measures implemented by governments to contain the coronavirus outbreak have resulted in the confinement of vulnerable individuals in unsafe homes where they are forced to spend more time in close proximity with their abusers. Their abusers, in turn, often take advantage of this atypical context to intensify the use of physical and/or psychological violence and harm against them. For instance, China’s Hubei province, where the virus first emerged and which was the first region to have had lockdown imposed, had reports of domestic violence more than triple in February 2020 when compared to the same period in the previous years (GRAHAMHARRISON; GIUFFRIDA; SMITH; FORD, 2020). As quarantine measures spread to other countries beyond China, the increase in reports of domestic violence also became a pattern perceived on a global scale. This incredible surge in domestic violence has even prompted some to dub it as a parallel pandemic to Covid-19.


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Domestic violence against women is the product of strong patriarchal structures present in many cultures, which generate deep gender inequalities that serve to diminish, negatively impact and constraint the daily lives of women and girls around the world. Hence, as was seen in the case of terrorism, it is important to highlight that the pandemic was not necessarily responsible for creating perpetrators of violence, at least in the majority of cases. Rather this context of crisis acted as a facilitator, aggravating the discriminatory and harmful conditions these vulnerable groups were already subjected to. We know that there are specific factors that can lead to an aggravation of the violence. These include: “the aggressor’s increased stress due to fear of falling ill, uncertainty about the future, impossibility of social contact, the imminent threat of reduced income (especially in the underprivileged classes, where a large proportion make their living from informal labour), and the consumption of alcoholic beverages and other psychoactive substances. Overload on the woman with housework and care for the children, elderly, and sick family members can also reduce her ability to avoid conflict with the aggressor, in addition to leaving her more vulnerable to psychological violence and sexual coercion” (MARQUES et al., 2020, p. 2). We know that women in nearly all cultures are generally framed as inferior to men. However, this cultural positioning has real life, far-reaching, structural repercussions. This discrepancy is reflected in women’s legal status, their access to capital, social assistance, opportunities etc. (AOLAIN, 2011, p. 2). The case of Gaza stands out as a clear example of not only how gender inequalities are a part of women’s lives irrespective of the pandemic but also how the crisis has exacerbated the situation. The context in Gaza is already oppressive with limited access to public health and clear restrictions on the freedom of movement due to the Israeli blockade, not to mention the constant exposure of the Palestinians to violence due to conditions of protracted conflict in the region (BARGHOUTI; SAIDFOQAHAA; SAID, 2020, p. 17). Culturally, this combination of


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poverty, occupation and strongly gendered social roles has translated into a deeply unequal society for women in the Occupied Palestinian Territories. “Despite high education levels among women, stark gender disparities persist, including high unemployment, low wages and low participation rates in the formal labour market. Female unemployment tends to be highest among better-educated women, demonstrating the continued mismatch between the skill sets of educated women and labour market demands” (UNESCWA, 2015, iv). Palestinian women are not only underrepresented in public life, but conditions of occupation also hit them the hardest, severely impacting their access to health care, education and other resources. Violence against women and girls is also a serious issue. However, the quarantine measures introduced as a result of Covid-19 have only served to reinforce pre-existing patriarchal norms and perceptions about women, exacerbating inequalities, now under the excuse of keeping women safe from the virus. In cases where women were already in an abusive relationship, being confined at home has only increased their chances of experiencing a higher frequency of domestic violence episodes. At the same time, lockdown measures have also restricted their access to help while keeping their abusers constantly in close proximity. A 16-year old, female resident of Gaza stated in an interview with a UN women’s agency, “We have always been home and not able to really leave. We don’t really go out anyway. The difference right now is everyone else is with us” (BARGHOUTI; SAID-FOQAHAA; SAID, 2020, p. 17). However, a similar scenario can be found elsewhere. In Spain and Italy, for instance, where lockdown rules were extremely strict, a 20% increase in domestic violence reports were already noted in the first days of confinement (GRAHAM-HARRISON; GIUFFRIDA; SMITH; FORD, 2020). It is important to underscore that it is quite likely that these numbers do not reflect the reality. We know that cases of domestic violence are chronically underreported as many women in such precarious situations either cannot find or access assistance. More significantly, even those incidences of


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domestic violence that are reported tend to be based on acts of physical violence. This neglects that fact that abusers almost always rely on psychological aggression in such situations, including manipulating information, isolating victims from structures of safety and support and withholding finances in order to exert complete control. During the Covid-19 crisis, there has been some evidence to suggest that abusers are leveraging the fear of virus contagion to further manipulate their victims and to make them believe that their survival depends upon them (PETERMAN; POTTS; O`DONNEL; THOMPSOM; SHAH; OERLET-PRIGIONE; GELBER, 2020, p. 14). A host of factors, such as the social status of women for instance, play an important role in determining their ability to seek, and actually receive, help. This represents a structural difficulty for women of colour who experience domestic violence because their access to the legal system to denounce their abusers is often hampered by deeply problematic, racist standards that are still present in the justice systems of many societies (JEFFRIES, 2020). It is important to mention that in addition to women and girls, there are other groups who have become more vulnerable to violence during this pandemic. Quarantine measures have means that members of the LGBTQ+ community have also been confined in sometimes hostile environments, where their exposure to violence is increased by being in constant contact with unsupportive family members (UN, 2020). In addition, we know that there has been a systematic increase in homophobic and transphobic speech with clear repercussions for the LGBTQ+ community, including the misuse of Covid-19 directives by law enforcement to attack and harass LGBTQ+ organisations, communities and individuals. For instance, in the Ugandan capital of Kampala, 23 people were arrested by the police for living in a shelter serving LGBTQ+ individuals. The individuals were charged with “a negligent act likely to spread infection of disease” and “disobedience of lawful orders” (GHOSHAL, 2020) and 20 of them were remanded to prison. It was initially presumed that the police were enforcing the presidential directive forbidding gatherings of more than 10 people.


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However, it must be underscored that the presidential order does not apply to the number of residents in a private home or shelter. Instead, according to local human rights groups, the arrests were homophobic in origin and the result of the shelter’s neighbours complaining to local leaders about the presumed sexuality of the residents. The complaints eventually prompted the city’s mayor to lead the raid on the shelter. A video released by Human Rights Watch shows the mayor rebuking shelter residents for ‘homosexuality’ and beating them with a stick (GHOSHAL, 2020). Again, homophobia in Uganda is not a new phenomenon and we know that homosexuality is an extremely volatile social and political issue for the country. However, it is clear that, once again, the Covid-19 crisis has served to exacerbate what had been a pre-existing issue. However, this crisis in domestic violence also presents an opportunity for governments and civil society groups to formulate a holistic and effective response to the problem of violence against women and girls. Unfortunately however, evidence seems to suggest that governments are more than willing to blunder along rather than dedicating time, energy and resources into providing effective and long-term solution for this scourge. 4 CYBER-SECURITY Crises are generally responsible for causing a myriad of transformations in society by changing people’s habits, as well as increasing their fears and vulnerabilities. The context of the Covid-19 crisis has been seen as an opportunity for cybercriminals to expand their operations as companies, governments, institutions, and individuals find themselves in a situation in which they are more dependent on virtual platforms to enable the continuation of their daily activities. In view of this, cybercrimes are defined as illegal activities that use an information technology (IT) infrastructure in order to compel internet users to share personal or sensitive information which is then used for either launching physical or


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cyber-attacks (NAIDOO, 2020, p. 2). Hence, virtual networks provide cybercriminals the opportunity to operate anonymously, which is a crucial element for the success of their operations as they employ mainly two tactics: (i) they appear to be a trustworthy source for the victims to share personal information; or (ii) they secretly invade targeted computers in order to seize important and sensitive data (NAIDOO, 2020, p. 3). As stated above, the challenges posed by the pandemic essentially pushed companies and organizations towards drastically increasing their reliance upon online operations. However, the speed with which such measures had to be adopted did not necessarily allow for better security arrangements to be implemented, i.e. measures that would prevent computers from being attacked (AHMAD, 2020, p. 2). Consequently, this atypical scenario has provided cybercriminals with a golden opportunity to adapt their tactics in order to exploit these new vulnerabilities and perpetrate more attacks against selected targets. Having said that, it has been noted that cybercriminals are exploiting the pandemic to mainly achieve three key goals: i) to make money; ii) to build political advantage; and iii) to spread chaos (ROPEK; 2020). As a criminal activity it is already expected that most cybercrimes share the ultimate goal of making a profit with their operations. One of the tactics used by cybercriminals is to infiltrate company networks in order to scope out and exfiltrate important data as a means to extort these organizations. However, these operations often need time to be carried out as perpetrators need to first identify essential data and then determine its value to the targeted company in order to effectively negotiate the return of this data to their victims in exchange for a ransom (STUPP, 2020). In view of this, the pandemic has allowed these actors to adapt their tactics and operate at a much faster pace. Hospitals and other institutions on the frontlines of the fight against Covid-19, in particular, have become much more vulnerable to attacks by cybercriminals. In fact, Interpol “issued a warning to organisations that are on the forefront of the global response to the Covid-19 outbreak that have … become


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targets of ransomware attacks, which are designed to lock them out of their critical systems in an attempt to extort payments” (INTERPOL, 2020). Interpol has reported how cybercriminals are holding hospitals and medical services digitally hostage by preventing them from accessing vital files and systems until the ransom demanded of them has been paid (INTERPOL, 2020). Just to give the reader an idea, there was a 25% increase in ransomware attacks against healthcare organisations in the first quarter of 2020 alone as compared to the same period in the previous year (WOOD, 2020). In addition to the aforementioned cases, specific actors are also exploiting the pandemic and conducting attacks as a means to obtain political power. As previously discussed, cybercrimes generally share an ultimate goal of financial gain in their operations. However, when state-backed actors are involved, stealing information has tremendous value (BOGLE, 2020). In this sense, cybercriminals have been using COVID-19 related themes to lure people into responding to phishing attacks and scams, attempting to get their targets to click on malicious links and download corrupted files (HUNTLEY, 2020). According to the US Cybersecurity and Infrastructure Security Agency (CISA) and the UK’s National Cyber Security Centre (NCSC) there have been constant hacking attacks against their healthcare and research institutions which were facilitated by security vacuums caused by employees working from home as a result of the pandemic. Although the origin of the attacks was not confirmed, these agencies have been constantly accusing governments from Iran, China and Russia to back hackers in order to “collect bulk personal information, intellectual property and intelligence that aligns with national priorities” (ALJAZEERA, 2020). On a similar note, political and health organizations in Australia also suffered cyber-attacks which, according to Australian Prime-Minister Scott Morrison, given the scale of sophistication, could only be conducted by a statesupported perpetrator (SMYTH, 2020). In view of this, these actors are exploiting the disruption caused by the pandemic to carry out attacks against not only health organizations but also critical


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infrastructure and service providers. As a consequence, such criminal operations are responsible for increasing hostilities and tensions between countries, a development that can also impact areas beyond the pandemic and the state’s responses to it. Although the identity of these perpetrators cannot be confirmed yet, the attacks are drastically exposing cyber-security vulnerabilities of many countries as well as potentially compromising their efficiency in responding to the current crisis. Finally, the pandemic has also being exploited by cybercriminals as a means to proliferate false information about the new coronavirus and, consequently, not only hampering effective public health responses but also causing distrust and confusion among people (THE UNITED NATIONS DEPARTMENT OF GLOBAL COMMUNICATIONS, 2020). In view of this, an infodemic is defined as “an overabundance of information – some accurate and some not – that makes it hard for people to find trustworthy sources and reliable guidance when they need it” (PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION, 2020). The magnitude of the spread of misinformation about Covid-19 can be as dangerous as the virus itself as it “obfuscates critical information, stimulates speculation and fearmongering, and makes finding the truth seem impossible” (NEKMAT; YUE, 2020). The dissemination of inaccurate information about the coronavirus involves a series of subjects such as the discovery of non-scientific cures for the virus, fake campaigns to raise money for research funds, distrustful assumptions about the origin of the pandemic, etc. Nonetheless, although fake news issues have been present on the internet for a long time, what it is alarming about the mis/disinformation campaign during the coronavirus outbreak is that politicians and government officials have also been contributing to the infodemic (DINO, 2020). For instance, only a few hours after President Donald Trump’s suggestion that injections of disinfectant could prevent coronavirus infection, reports about cleaning product poisoning more than doubled in New York’s hospitals (FRENKEL; ALBA, 2020). In a similar manner, the constant


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statements made by Bolsonaro on his Twitter account about the use of chloroquine in the treatment of Covids-19 have led many people to self-medicate, even without the presence of any scientific evidence, thereby potentially exposing themselves to serious side-effects of the drug. The dissemination of misinformation about the virus, specially by political leaders, is causing many people to distrust international health organizations and research institutions that are dedicated to combating the virus which is, as a consequence, compromising effective public health policies and responses to the crisis. 5 CONCLUSION The aim of this paper was to demonstrate that the Covid-19 crisis is much more than merely a public health emergency. In order to do so, we chose three distinct yet pre-existing threats to security, traditional and non-traditional, in order to demonstrate how they had been impacted and exacerbated by the conditions of the pandemic. We first addressed how the Covid-19 crisis has impacted terrorism and counter-terrorism. We demonstrated that it is important to be careful and not link all recent occurrences in terrorism to actors attempting to leverage the crisis for their own nefarious aims. However, we stressed it was also important to recognize that the pandemic presented both unique opportunities as well as specific challenges for terrorist groups. As such, it was important to neither exaggerate these opportunities nor to underestimate the challenges and risks faced by terrorist organisations today. We demonstrated how the pandemic presented terrorist groups with a captive audience online which they could target with their radical ideas. The pandemic also provided them with the chance to further their own particular narrative whilst garnering legitimacy within target populations, especially through the provision of Covid19 related social services. At the same time, the challenges of the crisis were also unique and ranged from the inability to travel and utilise traditional attack tactics to the lack of key resources. We also


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demonstrated how different terrorist groups responded to these challenges and opportunities in widely divergent manners, which seemed to largely depend upon whether or not they relied upon the support of the local community. When it came to CT and CVE we underscored how the pandemic has presented more challenges than opportunities. For one, we saw how the crisis has placed armed forces under considerable pressure thanks to their involvement in efforts against the virus as well as increasingly limited budgets thanks to the economic recession generated by the pandemic. We underscored how this would create a security vacuum that would certainly be exploited by terrorist actors. In addition, we also highlighted that the biggest concerns in relation to counter-terrorism and counter violent extremism was the increasing reach of the state when it came to surveillance and the invasion of citizen privacy. Having outlined the opportunities and challenges for terrorist actors and CT/CVE we moved on to discuss the ‘parallel pandemic’ of domestic violence. Here we demonstrated how the measures implemented by governments to curb the spread of the virus exacerbated the situation for victims of domestic violence by isolating them with their abusers. Once again, it was underscored that the pandemic did not create the situation of domestic abuse, but the conditions generated by the crisis facilitated the discriminatory and harmful conditions vulnerable individuals were already exposed to. We also illustrated that this situation transcended national and cultural boundaries as data clearly showed that there was a global spike in the number of cases reported, irrespective of geographical location. Furthermore, it was also highlighted that quarantine measures have also impacted other vulnerable groups, such as those individuals who identify as LGBTQ+. Finally, we engaged with the opportunities presented by the pandemic for incidents of cybercrime. We first highlighted that the key aims of cybercrime are to make money; build political advantage; and to spread chaos. Having identified these three clear goals, we moved on to illustrating how the institutions and agencies on the


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forefront of the global response to the Covid-19 outbreak have become the main targets of ransomware attacks. Thus, we demonstrated how cybercriminals are holding hospitals and medical services digitally hostage and financially benefitting from the pandemic by preventing these actors from accessing vital files and systems until they pay the ransom demanded of them. We also showed how specific actors are exploiting the conditions generated by the pandemic as a mechanism to obtain political power. Often sponsored by a state, these actors aim to collect bulk personal information, intellectual property and intelligence which essentially aligns with the national interests of their state sponsor(s). However, a key consequence of such criminal activity is that it increases hostilities amongst nation-states in the international system. Finally, we illustrated how, for a final group, the key opportunity offered by the pandemic is to spread mis/disinformation about the pandemic in order to generate confusion and chaos. This infodemic is not only problematic in and of itself, but also because several heads of states are engaged in the dissemination of false information Overall then, we conclude that Covid-19 not only offers rare opportunities but also poses some significant challenges. It is best perhaps to see these in terms of short-term and long-term opportunities and challenges. Certainly, actors who can leverage the short-term opportunities offered by Covid-19 will be best placed to reap the long-term strategic advantages this will generate. While the pandemic has not necessarily created new crises, threats and risks it is certainly generating conditions where pre-existing insecurities are exacerbated. At the same time, the challenges presented by the pandemic are also unique. Thus, while in the short-term the challenge and opportunities may balance out the real risk lies in key actors effectively utilising the conditions of crisis today to yield long-term changes by adapting, innovating and modifying their behaviours. In short, it is keeping up with the long-term consequences of Covid-19 which will prove to be the real challenge.


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The authors would like to thank the Brazilian National Council for Scientific and Technological Development (CnPQ) for the grant that made this research possible. 6 BIBLIOGRAPHY AHMAD, Tabrez. Corona Virus (COVID-19) Pandemic and Work from Home: Challenges of Cybercrimes and Cybersecurity. SSRN Electronic Journal, 2020. Available at:<10.2139/ssrn.3568830>. Accessed on: 20. Jun. 2020. AL JAZEERA. State-backed hackers targeting COVID-19 responders, warn US, UK. Al Jazeera, 05 May. 2020. Available at:< https://www.aljazeera.com/news/2020/05/state-backed-hackers-targeting-covid19-responders-warn-uk-200505171431672.html>. Accessed on: 6 Jul. 2020. AL JAZEERA. Al-Shabab sets up coronavirus treatment centre in Somalia. Al Jazeera, 14 Jun. 2020. Available at: <https://www.aljazeera.com/news/2020/06/al-shabab-sets-coronavirustreatment-centre-somalia-200614053031413.html> Accessed on: 5 Aug. 2020. AL-TAMIMI, Aymenn. Coronavirus and Official Islamic State Output: An Analysis. Global Network on Extremism and Technology , 15 Apr. 2020a. Available at:< https://gnet-research.org/2020/04/15/coronavirus-and-officialislamic-state-output-an-analysis/>. Accessed on: 11 Jun. 2020. AL-TAMIMI, Aymenn. Islamic State Advice on Coronavirus Pandemic. Aymenn Jawad Al-Tamimi Blog , 12 March 2020b. Available at: <http://www.aymennjawad.org/2020/03/islamic-state-advice-on-coronaviruspandemic> Accessed on: 25 Jun. 2020. AOLÁIN, Fionnuala Ní. Women, vulnerability, and humanitarian emergencies. Michigan Journal Gender & Law, v. 18, p. 1, 2011. Available at: <https://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1011&context= mjgl>. Accessed on: 24. Jun. 2020 BARGHOUTI, M.; SAID-FOQAHAA, N.; SAID, S. COVID-19: Gendered Impacts of the Pandemic in Palestine and Implications for Policy and


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CAPÍTULO 12 RELAÇÕES INTERNACIONAIS, POLÍTICA E DEMOCRACIA EM TEMPOS DE PANDEMIA: OS IMPACTOS DA COVID-19 PARA A ORDEM INTERNACIONAL Guilherme Di Lorenzo Pires Danny Zahreddine

1 INTRODUÇÃO O surto da epidemia da Covid-19 apresentou à comunidade internacional inúmeros desafios que envolvem não somente as políticas públicas de saúde de cada país, mas também questões sociais, políticas e econômicas mais amplas. Os impactos foram sentidos em diversos níveis, afetando desde as interações entre indivíduos no cotidiano às interações entre países no âmbito internacional. Ainda que não completamente inesperada pelos técnicos e pesquisadores da área de saúde, a eclosão da pandemia foi um grande choque para a comunidade internacional, e suas repercussões, ainda em curso, ainda não foram bem assimiladas pelas lideranças políticas. Certamente, a pandemia de 2020 não foi a primeira pandemia, e nem a mais letal. Contudo, o atual contexto histórico é completamente distinto do contexto de grandes pandemias do passado. Nos anos mais recentes ocorreram inúmeras epidemias, mas nenhuma na mesma escala que a epidemia de 2020, pelo menos no que diz respeito às repercussões econômicas, sociais e políticas. Até o presente momento, as pesquisas apontam que os primeiros casos do que seria identificado futuramente como a doença Covid-19 ocorreram na região da cidade de Wuhan na China no final de 2019 (GRONVALL, 2020). A ocorrência desses casos foi


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oficialmente informada à Organização Mundial da Saúde em 31 de dezembro de 2019. Em 11 de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou o novo vírus: SARS-CoV-2, causador da Covid-19. E, após um mês do anúncio, a OMS declarou a situação de pandemia (FREEDMAN, 2020)204. Diante de vírus para o qual ainda inexiste uma vacina, os países se viram diante de um conjunto limitado de medidas de combate à doença205. Frente a impossibilidade da imunização por meio da vacina, a principal medida para combater a epidemia é evitar o contágio. Os governos buscaram, em graus distintos, minimizar o contato social. Alguns governos dos países desenvolvidos, tendo à sua disposição mais recursos, buscaram rastrear o contágio por meio do uso de testes em grande quantidade, possibilitando uma ação mais direcionada em regiões mais afetadas, e isolando os indivíduos infectados. Mas, diante da falta de recursos, o meio mais efetivo de contenção do contágio é a limitação do contato social de forma mais generalizada e, nos casos mais afetados pelo contágio, um isolamento social radical. Na prática, o isolamento implicou na limitação das atividades econômicas e sociais diárias (FREEDMAN, 2020). No momento em que este texto foi escrito, passados seis meses do início da crise, aproximadamente a metade dos casos globais da Covid-19 está situada nas Américas (TOBAR, LINGER, 2020)206. is e com a maior interlocução e interação com agências da ONU e com ONGs que atuam nesses conflitos, houve a necessidade de orientar esforços para que objetivos em comum fossem alcançados sem que problemas de coordenação surgissem ou proliferassem. 204

Paula Sousa foi bolsista da Fundação Rockefeller no primeiro curso em Higiene e Saúde Pública realizado pela recém-inaugurada School of Hygiene and Public Health,

da Universidade Johns Hopkins. Ao retornar ao Brasil tornou-se diretor do Instituto de Higiene da Universidade de São Paulo, em 1922, tornando-se reconhecida figura na área de saúde pública no Brasil e com importantes articulações internacionais. 205

O Decreto Nº 26.042, de 17 de dezembro de 1948, p

romulgou os Atos firmados em Nova Iorque por ocasião da Conferência Internacional de Saúde, após a aprovação dos


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No caso da América Latina, em particular, essa situação é ainda mais crítica, uma vez que a região é vulnerável aos efeitos adversos da crise por causa da precariedade do sistema de saúde e da grande desigualdade social em diversos países. Em um cenário de indisponibilidade da vacina, espera-se que as regiões mais vulneráveis na América Latina vivenciem surtos recorrentes de contágio mais agudo nos próximos anos (TOBAR, LINGER, 2020). Indubitavelmente, a pandemia é uma crise global que acentuou algumas tendências já existentes e infligiu rupturas em outras. No âmbito global, a pandemia colocou em contenda fenômenos gerais que, até então, demonstravam certa resiliência, tais como a mundialização e princípios neoliberais (BORRELL, 2020). Além disso, o caráter inesperado da crise constitui um desafio formidável para a governança global, que se vê diante da questão de como coordenar a ação dos países e outros atores internacionais para conter uma ameaça que não distingue fronteiras políticas (BORRELL, 2020). Na esfera doméstica de cada país, os governos se veem diante do problema de como articular as demandas do setor de saúde pública junto às outras esferas da gestão pública, e como lidar com os impactos da crise na sociedade. E, em última instância, a própria noção de sistema político e justiça social ganham relevo. Diante de uma situação adversa repentina, é esperado que as pessoas deem um sentido para o que está acontecendo, buscando no passado sinais daquilo que realmente precipitou a situação. É um exercício de racionalizar, a posteriori, um conjunto de elementos que até então eram avaliados separadamente (BORRELL, 2020). Para outros, há ainda a necessidade de atribuir sentido político, identificando os responsáveis pela situação. Contudo, é importante observar que, em muitos casos, essa batalha de narrativas sobre a origem e a responsabilidade do problema nem sempre se preocupa em discutir como o problema deve ser solucionado (BORRELL, 2020). É evidente que a pandemia de 2020 constitui um momento de inflexão histórica importante. Contudo, ainda é incerto quais


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serão exatamente as repercussões dessa crise global e nem a profundidade das rupturas advindas dela. Uma visão mais prudente sobre esse momento histórico é considerar que a pandemia acelerará tendências de mudanças já presentes nos anos anteriores (BORRELL, 2020). Contudo, é importante reconhecer que ela introduziu novos elementos nas relações internacionais no futuro mais imediato. Em que medida esses novos elementos permanecerão só será possível dizer futuramente. Contudo, compreender o mundo em que vivemos e para onde ele vai é um exercício importante. Apesar da dificuldade em avaliar os impactos políticos e sociais a médio e longo prazo de um evento ainda em curso, é possível apontar algumas questões que merecem ser apreciadas doravante com uma atenção especial. A primeira questão a ser considerada é apreender os inúmeros impactos no processo de globalização. A segunda questão é examinar a relação entre as grandes potências internacionais diante da crise. Por fim, cabe avaliar como a crise afetará a política doméstica e as relações sociais dos diversos países. 2

EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO

PANDEMIA

NO

PROCESSO

DE

Entre os primeiros efeitos perceptíveis da pandemia para as relações internacionais, de forma geral, estão as dificuldades impostas à integração econômica e social entre os países. Nos primeiros meses, a pandemia criou de imediato uma fissura nas cadeias de fornecimentos de bens necessários para a contenção da epidemia, ocasionando uma corrida entre os países para garantir o fornecimento de equipamentos, recursos e medicamentos indispensáveis (FARRELL, NEWMAN, 2020). Na dimensão social, a epidemia fez com que os países limitassem e controlassem o movimento de pessoas entre países e regiões, a fim de mitigar a rápida difusão mundial do vírus.


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A pandemia de 2020 é indubitavelmente um momento de inflexão histórica, sobretudo no que tange o processo de globalização. Contudo, é precipitado afirmar que a pandemia marcará o fim da globalização. Uma visão mais razoável é esperar que ela subverta ou perturbe algumas dinâmicas dentro do processo de globalização (BORRELL, 2020). Particularmente importante, é avaliar qual o impacto da pandemia para as cadeias de produção global, as quais vinham se tornando cada vez mais extensas e dispersas nas últimas décadas. As redes entrelaçadas de produção que unem os países em uma economia mundial produzem tanto benefícios como vulnerabilidades. A internacionalização dessas cadeias permite uma redução significativa do custo de produção das mercadorias, mas, por ouro lado, torna os países mais vulneráveis à propagação de vírus altamente contagiosos oriundos do exterior e menos preparados para mobilizar de imediato recursos para a contenção da epidemia (BORRELL, 2020). No entendimento de alguns autores, a pandemia induzirá uma revisão na concepção de uma economia global fortemente sustentada em cadeias flexíveis e desagregadas (FARRELL, NEWMAN, 2020). Isso, pois, a situação excepcional da pandemia expôs os limites da ideia de que um fornecedor poderia ser substituído facilmente por outro fornecedor. 2.1 INTERDEPENDÊNCIA OU DEPENDÊNCIA? A pandemia deixou evidente a dependência de muitos países (incluindo economias desenvolvidas) da importação de bens vitais da área da saúde. É importante observar aqui que a crise de saúde causada pela Covid-19 não se restringe unicamente à capacidade dos países em conter a epidemia e tratar dos enfermos pela doença, mas engloba o funcionamento dos sistemas de saúde de forma mais ampla. Isso, pois, com um sistema de saúde sobrecarregado no atendimento de um número vultuoso de contaminados pela Covid19, o tratamento de outras doenças fica igualmente comprometido,


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diante de recursos limitados. Nesse sentido, é igualmente importante assegurar a importação de recursos de saúde não diretamente ligados ao Covid-19. Mesmo em economias desenvolvidas há a dependência da importação de medicamentos cruciais. A situação é ainda mais delicada quando a importação depende de poucos fornecedores (BORRELL, 2020). O problema do acesso a materiais e produtos médicos vitais para a contenção do vírus perpassa por pelo menos dois obstáculos. O primeiro, diz respeito à dinâmica de oferta e demanda similar a qualquer bem comerciável. A explosão de casos em escala global sobrecarregou a indústria de saúde voltada aos bens usados na contenção do vírus, que não conseguiu suprir uma demanda inesperadamente alta. O segundo obstáculo é a dimensão política da escassez dos materiais e produtos médicos que, por um lado, incita uma corrida entre os países para garantir o fornecimento desses bens, e, por outro, empodera os países que detém parte significativa da cadeia produtiva de tais bens (FARRELL, NEWMAN, 2020). Com isso, a pandemia provocou uma nova relação de poder entre as grandes economias globais ao introduzir uma nova ferramenta de pressão na política internacional. A pressão exercida por um país fornecedor de bens cruciais é ainda mais abrangente na medida em que os demais países, no momento da eclosão da pandemia, não estavam bem preparados para a crise. Nestas condições, é possível constatar que o período de crise é também um período de oportunidade para aqueles que detém os recursos estratégicos de exercerem uma maior influência no sistema internacional (FARRELL, NEWMAN, 2020). A vulnerabilidade decorrente da interdependência entre os países é tema bastante explorado na literatura dentro Relações Internacionais. Mas, ainda assim, os países não estavam preparados pera uma crise de saúde global repentina. O fato da crise ter iniciado na China fez com que o governo chinês não somente direcionasse a indústria doméstica para o combate à epidemia, como também fez com que a China comprasse bens e equipamentos produzidos em


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outros países. O efeito disso foi a diminuição do estoque disponível no mercado global quando a epidemia se difundiu para outras regiões do globo (FARRELL, NEWMAN, 2020). Antes da pandemia, a China já detinha uma porcentagem significativa da produção global de bens essenciais, tais como máscaras de proteção. Após, os primeiros meses, esse descompasso ficou ainda mais evidente. Quando a epidemia atingiu os demais países, os governos tomaram diversas medidas protecionistas com o objetivo de a garantir o fornecimento dos bens essenciais para a contenção e para o tratamento da doença, tais como as máscaras e respiradores. Desta forma, o imperativo da contenção da epidemia colocou em xeque princípios liberais em duas dimensões. Por um lado, a ideia de mercado livre entre os países foi abalada pelas medidas protecionistas. Mesmo em zonas de livre comércio, os governos se viram obrigados a favorecer as demandas internas com medidas assertivas em detrimento do livre fluxo dos bens necessitados (FARRELL, NEWMAN, 2020). Por outro lado, o princípio de um Estado enxuto deu lugar a Estados mais interventores diante da contração da economia dos países afetados e do esforço dos Estados em impedir o colapso econômico e social. 2.2 IMPORTÂNCIA DA COMUNIDADE EPISTÊMICA E A NECESSIDADE COOPERAÇÃO A integração global, contudo, não é composta exclusivamente pela dimensão econômica. Como foi argumentado, a interdependência entre os países os deixou mais vulneráveis à escassez de bens essenciais, e o deslocamento de pessoas entre os países intensificou a difusão da doença em escala global. Contudo, a globalização apresenta um lado positivo para a contenção da pandemia: a crescente integração das comunidades científicas para além das fronteiras nacionais potencializou o avanço do conhecimento sobre o vírus.


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De fato, as ações tomadas por muitos governos foram demasiadamente morosas e ineficazes, esperando o agravamento da crise para adotar medidas mais concretas. Em outros casos, a falta de transparência comprometeu uma ação coordenada mais sólida desde o início. Contudo, o entendimento e concordância dentro da comunidade científica internacional diante da crise impediu que a crise fosse muito mais grave (GRONVALL, 2020). A comunicação e o acesso à informação se tornaram uma ferramenta indispensável para a contenção da pandemia. Como Gigi Gronvall aponta, na epidemia de 2003, o envio de amostras do vírus da China para os Estados Unidos levou semanas, sendo atrasado por barreiras burocráticas na importação. Na pandemia de 2020, em contraste, a sequência genética completa do vírus foi carregada na nuvem e compartilhada por pesquisadores em todo mundo (GRONVALL, 2020). Outra dimensão que demanda uma cooperação em âmbito global é o desenvolvimento de uma vacina. O esforço de desenvolvimento de vacinas geralmente envolve diversas frentes, englobando a iniciativa privada farmacêutica, governos, instituições de pesquisa e organizações internacionais. O financiamento da pesquisa e o desenvolvimento de vacinas para uso global necessita da ação coordenada dessas diversas instâncias (FELTER, 2020). A urgência colocada pela crise sanitária e econômica obriga um esforço comum com a finalidade de acelerar a produção da vacina, que em condições normais levaria anos. O processo de disponibilização da vacina passa por várias etapas: pesquisa, preparação pré-clínica, ensaios clínicos, aprovação, fabricação e distribuição. Para que a vacina esteja disponível em escala global, especialmente para os países mais afetados e os mais pobres, é fundamental a coordenação dos diversos setores nacionais e internacionais, públicos e privados (FELTER, 2020). Importante ressaltar que a epidemia não respeita fronteias políticas. Portanto, um país só estará realmente protegido caso a ameaça seja dissipada no âmbito internacional. Ou seja, trata-se de uma questão de segurança coletiva.


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Em suma, para alguns, é inequívoco que a Globalização potencializou a crise na medida em que a integração econômica e social tornou os países dependentes do fornecimento externo de bens essenciais e vulneráveis ao contágio trazido pelo deslocamento volumoso de pessoas em escala global (FARRELL, NEWMAN, 2020). Contudo, cabe observar que, se a crise foi potencializada pela globalização, a solução para ela perpassa invariavelmente pela maior integração entre os países e as sociedades. A saída exige uma articulação e coordenação das ações entre os países e o compartilhamento, na comunidade internacional, de informações e tecnologias fundamentais para a contenção da epidemia. A ação conjunta é fundamental, pois a diminuição do contágio não depende unicamente de políticas públicas de saúde de cada país, mas de um sistema internacional menos vulnerável a uma ameaça que não distingue fronteiras políticas. 3. DIMENSÃO GEOPOLÍTICA: COMPETIÇÃO ENTRE EUA E CHINA Outro impacto importante da pandemia se refere às relações de poder entre as grandes potências. China e Estados Unidos se comportaram diferentemente durante a crise, reflexo, em parte, da leitura da realidade feita pelas lideranças e seus objetivos. O governo chinês buscou capitalizar a crise para promover a liderança chinesa alicerçada em uma narrativa que ressalta o sucesso de Pequim na contenção da epidemia. Os Estados Unidos, por sua vez, aprofundaram uma tendência, já presente antes da crise, de contestar o valor de iniciativas multilaterais na política internacional (FARRELL, NEWMAN, 2020). A diferença de postura é atribuída também ao momento, em termos de conjuntura internacional, em que cada país foi afetado pela epidemia. A China foi o primeiro país a ser afetado, e de lá o vírus se difundiu para os demais países. Os Estados Unidos, por sua vez, só entraram na fase crítica alguns meses após a China ter passado pelo


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pico. Com isso, no momento em que a China conteve internamente a epidemia, os Estados Unidos ainda se via diante do desafio de mitigar a crise. Diante desse cenário, Pequim buscou utilizar o descompasso na evolução da epidemia entre os países a fim de firmar a ascendência do modelo chinês na luta contra a epidemia. Essa situação, em termos materiais, permitiu que a economia chinesa começasse a esboçar uma recuperação no exato momento em que as economia dos demais países estavam sendo afetadas pela epidemia. Todavia, cabe ressaltar mais uma vez que ainda não está claro a extensão do aparente trunfo da China, uma vez que uma conjuntura internacional marcada pela retração da economia em inúmeros países gera um quadro desfavorável para a exportação de produtos chineses não vinculados ao setor da saúde (FARRELL, NEWMAN, 2020). Outro fator importante a ser destacado é o próprio processo de ascensão da China e as tentativas estadunidenses de conter o aumento da influência chinesa. A ideia de ganhos relativos é frequente na política internacional, e a todo momento Estados Nacionais promovem cálculos acerca da ascensão e queda de potencias mundiais. Neste sentido, o embate entre China e Estados Unidos, que já ocorre em vários setores, como no 5G, no mar da China e na guerra comercial, ganha na Pandemia da Covid-19 mais uma arena de disputa. 3.1 REPUTAÇÃO E IMAGEM A pandemia afeta não somente a dimensão material nas relações entre os países, mas influencia também as dimensões imateriais nas relações internacionais. A depender da forma como um país conduz a crise, a sua imagem perante outros países pode ser alterada. Trata-se de uma questão de prestígio e reputação que, apesar de ser um fenômeno subjetivo, pode suscitar algum grau de autoridade ou admiração.


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Ainda não há estudos exaustivos e comparativos sobre o impacto da pandemia na imagem dos países, mas há indícios de que alguns países se saíram melhores que outros na percepção da comunidade internacional. Países como Alemanha, Coréia do Sul, Nova Zelândia ganharam um destaque positivo na mídia sobre o modo como conseguiram lidar com a epidemia de maneira eficiente. No caso alemão, a atuação precisa diante da crise reafirmou a capacidade da Alemanha em exercer sua liderança política no âmbito europeu, garantindo o prestígio e respeito de um país que reivindica tal posto (BRUNO, 2020). Por outro lado, há países que tiveram a imagem desgastada pelo fracasso em lidar com a crise, causado por fatores ideológicos ou pela simples incapacidade de mobilizar e organizar recursos e estrutura para combater a epidemia (BRUNO, 2020). Países, tais como Estados Unidos, Brasil, Suécia e Reino Unido, que minimizaram a extensão da crise e priorizaram interesses eleitorais em detrimento da contenção da crise, tiveram um desgaste da imagem perante os outros países. No caso dos Estados Unidos, o impacto é mais evidente. O status dos Estados Unidos como líder global não deriva exclusivamente dos recursos materiais, mas da imagem e reputação que provém do reconhecimento dos demais países de sua autoridade. Parte desse reconhecimento se origina da política e governança norteamericana, apresentada como um modelo a ser emulado pelas demais democracias. A incapacidade dos Estados Unidos em apresentar uma resposta assertiva à crise coloca em questionamento a reputação da governança doméstica norte-americana (BRUNO, 2020; CAMPBELL, DOSHI, 2020). Por outro lado, a comunidade internacional espera dos Estados Unidos, enquanto a grande potência mundial, que eles exerçam sua liderança, como foi no caso de crises anteriores, e assumam o protagonismo no esforço global de combate à pandemia. A ação do governo norte-americano, contudo, foi de se distanciar das iniciativas multilaterais e de contestação das organizações


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internacionais incumbidas de facilitar a ação conjunta dos países frente à pandemia (CAMPBELL, DOSHI, 2020). A China, por outro lado, empreendeu uma campanha diplomática assertiva para apresentar a China como um modelo a ser emulado, valorizando a experiência chinesa como um caso de sucesso na contenção da epidemia. A China busca retirar o foco da percepção internacional da má gestão inicial da crise e a falta de transparência com uma narrativa que enfatiza a recuperação rápida e uma aparente volta à normalidade, reafirmando seu papel como ator fundamental na recuperação global (CAMPBELL, DOSHI, 2020). Além disso, os órgãos de comunicação e propaganda chineses divulgam os esforços da China para ajudar os demais países afetados pela doença com recursos e informações, impulsionando a narrativa de ascensão da China enquanto liderança global (CAMPBELL, DOSHI, 2020). A China vem divulgando o seu comprometimento em enviar aos demais países ventiladores, máscaras, respiradores, roupas de proteção, kits de teste e equipes médicas aos países afetados (CAMPBELL, DOSHI, 2020). No caso do Brasil, contudo, ainda não está claro qual será o impacto na imagem. Aos olhos da mídia internacional, há um desgaste claro da imagem e reputação do Brasil. Há uma condenação da abordagem ideológica com que o governo brasileiro vem conduzindo a crise (BRUNO, 2020). Mas ainda é indeterminada a dimensão exata desse desgaste. 4. IMPACTO NA POLÍTICA DOMÉSTICA A epidemia afetou também a política interna de diversos países. Um desafio mais geral colocado é a efetividade das diversas formas de governo em lidar com a crise. Há o movimento daqueles que questionam a adequação e capacidade dos regimes democráticos em mobilizar recursos e coordenar os esforços nacionais para lidar com uma situação de exceção. Por outro lado, outros reafirmam a resiliência dos regimes democráticos, e apontam a falta de


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transparência e limitação da comunicação em regimes autoritários como um dos fatores que propiciaram a difusão da epidemia em escala global (HEISBOURG, 2020). Próximo a este debate, é possível ainda apontar a oposição entre tendências populistas e o aspecto técnico do gerenciamento da crise. Em países onde foram eleitos representantes políticos com projetos populistas de questionamento das elites políticas e do aparato técnico e burocrático estabelecido se encontraram em uma situação bastante complexa com a difusão da pandemia (BORRELL, 2020). Em alguns casos, essa conjuntura aprofundou ainda mais a polarização política existente, comprometendo a adoção de medidas eficazes na contenção da epidemia. Se, por um lado, a pandemia impõe uma realidade que é difícil de negar a partir de recursos retóricos, por outro, ela fornece a oportunidade aos governos de encontrar diversos “bodes expiatórios” (BORRELL, 2020). O embate discursivo sobre quem é responsável pela crise visa validar e legitimar a autoridade política em uma situação que necessita a união nacional diante de um inimigo comum. Entretanto, é importante ressaltar que o embate discursivo pela responsabilização da crise não aponta as possíveis soluções para crise, o que pode ter por efeito o agravamento da situação pela inércia dos governos, preocupados em achar algum culpado. Outra repercussão a ser considerada é o impacto da pandemia no ciclo político dos países afetados. No caso da América Latina, por exemplo, houve o adiamento das eleições para o segundo semestre ou para o ano de 2021 em diversos países (TOBAR, LINGER, 2020). Por enquanto, a maior parte das eleições adiadas estão no âmbito municipal ou regional. Contudo, ainda não está claro se nos próximos meses haverá condições para a realização das eleições e nem quais são as alternativas mais viáveis. No caso do Brasil, os efeitos políticos ainda não estão claros. Ainda é incerto se a crise gerada pela epidemia vai agravar a crise política oriunda das investigações de corrupção envolvendo os filhos do presidente. Fundamental no cenário político dos próximos


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meses será a avaliação da população acerca da condução da crise pelos diversos atores políticos, e a identificação de responsável, aos olhos da população, pela crise social e econômica e pelas vidas perdidas. 4.1 IMPACTOS SOCIAIS É importante salientar que a vulnerabilidade engloba não apenas a disponibilidade de bens de saúde, mas a própria estrutura social dos países. Há indícios claros que sociedades desiguais são mais vulneráveis à epidemia. No caso brasileiro, um estudo realizado pela Fiocruz aponta que no Rio de Janeiro morrem mais negros pela Covid-19 que os demais grupos. As regiões mais pobres e periféricas são particularmente mais vulneráveis (FIOCRUZ, 2020). Um estudo realizado pelo IBGE aponta que negros e mulheres são os grupos mais afetados pela Covid-19. A interseção entre pobreza, precariedade nas condições de vida e informalidade torna as populações pobres, majoritariamente negra, mais vulneráveis ao contato com a doença207. Há uma preocupação também em relação às populações indígenas, menos protegidas pelo sistema de saúde. É crucial, portanto, abordar a crise sanitária pela sua dimensão social. Os impactos no desenvolvimento não se restringem à retração econômica, mas na acentuação da situação de desigualdade. Alguns setores da sociedade além de estarem mais vulneráveis à doença, são também os mais afetados pela retração da economia e prestação de serviços básicos, tais como auxílios sociais e educação (HEVIA, NEUMEYER, 2020). Os impactos para a educação, principalmente no ensino básico e médio nas escolas públicas, são reveladores do profundo abismo que separa as classes mais pobres dos ricos no Brasil. A atos pelo Congresso Nacional brasileiro. Com este documento, o Brasil oficializou sua participação na OMS, tornando-se um dos países fundadores da Organização. 207

Rashmi Singh is an Associate Professor of International Relations at PUC Minas and a High Research Produc


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incapacidade das escolas públicas, em sua maioria, de prover plataformas de ensino à distância em tempos de distanciamento social, compromete o ano letivo dos alunos, enquanto instituições de ensino particulares apresentam alternativas que buscam viabilizar o processo ensino aprendizado durante a pandemia. Neste sentido, as desigualdades já existentes entre o ensino público e privado no Brasil se aprofundarão ainda mais, tornando a sociedade brasileira mais desigual. 4.2 TOMADA DE DECISÃO E EXPERTISE TÉCNICA EM TEMPOS DE CRISE É preciso assinalar que o esforço da comunidade científica é dependente, em última instância, do âmbito político para que o conhecimento adquirido seja concretizado em políticas públicas. Nesse sentido, um risco para o agravamento da crise é a politização do tema e o descompasso entre a natureza real da ameaça a ser combatida e as representações feitas da ameaça pelas lideranças políticas. Por diversos motivos, as lideranças políticas podem buscar minimizar a gravidade do problema ou entender que os custos da contenção da crise são maiores que os custos de uma ação menos assertiva. A reação à crise perpassa, invariavelmente, pela leitura política da conjuntura, assim como das possíveis consequências das ações tomadas. Nesse sentido, é importante ressaltar que, por mais que a comunidade científica detenha o conhecimento sobre o fato, ela não arca com as consequências políticas das decisões. O processo de tomada de decisão na política externa é um elemento crucial em tempos de crise, e a necessidade de sinalizar coerência e previsibilidade nas ações dos Estados um fator gerador de estabilidade. A busca pelo pragmatismo nas decisões em política externa se contrasta com as ações tomadas por rompantes ideológicos, o que diminui a possibilidade de sucesso de iniciativas internacionais. Nenhuma política externa é desprovida de ideologia ou viés, porém,


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há de se respeitar os limites dos cálculos de ganhos e perdas, além do papel da política externa como uma política pública. A falta de assessoramento adequado nas ações de política externa tem criado problemas para uma série de países. Mudanças abruptas de posicionamento, ações imprevisíveis no cenário internacional e discursos excessivamente ofensivos e desprovido de moderação institucional gera retaliações em várias frentes, ocasionando maior dificuldade para obtenção de insumos, respiradores, material de EPI para profissionais de saúde e contratos para futuras vacinas. Neste sentido, os membros da sociedade internacional têm se dividido entre aqueles que negam a existência de um problema real (negacionistas), e aqueles que avaliam como graves os desdobramentos futuros da pandemia. Estados Unidos, Brasil e Suécia são alguns exemplos de países que têm insistido na relativização dos efeitos danosos à saúde da Covid-19, e estimulam visões concorrentes entre economia e saúde pública, como se fosse um jogo de soma zero. Tais ações têm polarizado as disputas políticas nacionais e politizado as ações de saúde pública, diminuindo a eficiência dos programas de combate à doença e a retomada da economia. O crucial, portanto, é que haja um diálogo profundo entre os tomadores de decisão e aqueles que detém o conhecimento técnico e científico, e que haja uma minimização de visões equivocadas e dúbias. É importante que haja uma clareza quanto às possíveis consequências dos atos tomados, e que as lideranças não ajam a despeito dos aconselhamentos científicos. Isso, pois, a falta de assessoramento adequado pode fazer com que as decisões tomadas não sejam as melhores (GRONVALL, 2020). 5 OLHANDO PARA O FUTURO: CONCEPÇÃO DE SEGURANÇA

POR UMA NOVA

É fundamental que a preocupação com a biossegurança saia do âmbito teórico e comece a pautar as decisões políticas dos


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governantes. A Pandemia de 2020 além de representar uma crise sanitária em escala global chama a atenção para a necessidade da comunidade internacional em rever profundamente as concepções de segurança estatal. Em 2014, foi concretizada a iniciativa informal internacional denominada Agenda Global de Segurança em Saúde, englobando 67 países, organizações internacionais, empresas e ONG’s com a finalidade de facilitar a troca de informações e a coordenação de ações para lidar com riscos de saúde em escala global (GRONVALL, 2020). As doenças infecciosas constituem um novo tipo de ameaça à ordem política que extrapola o âmbito da saúde. Uma crise grave pode interromper o fornecimento de suprimentos essenciais, induzir o agravamento de conflitos sociais e propiciar uma corrida entre as grandes potências pelos recursos escassos, sendo que a forma de lidar com tais ameaças, caso os países não estejam preparados, pode levar muito tempo (GRONVALL, 2020). Para alguns analistas, a crise da Covid-19 demonstrou a falta de clareza acerca das prioridades de segurança nacional dos Estados Unidos, um dos países mais afetados apesar de todos os recursos investidos na área de segurança, estavam erradas (HATHAWAY, 2020; BOOTH, 2020). Após 2011, os Estados Unidos reorientaram radicalmente o aparato de segurança para lidar com ameaças não convencionais e investiram significativamente no combate ao terrorismo internacional, visto como uma das principais ameaças à segurança nacional. Contudo, a crise da Covid-19 expõe a fragilidade do sistema norte-americano no combate à epidemia, evento mais nocivo para os Estados Unidos que o fenômeno do terrorismo. A epidemia é um risco até para o funcionamento regular das forças convencionais de segurança. Como apontam Koblentz e Hunzeker (2020), o porta-aviões norte-americano USS Theodore Roosevelt se viu obrigado a desembarcar a maior parte da tripulação e suspender as atividades por um determinado período em função da identificação de casos de Covid-19 a bordo. Caso isso ocorra em outros porta-aviões, a capacidade dos Estados Unidos de projeção de


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poder seria comprometida em algum grau. Este cenário, contudo, seria menos ruim que o quadro de uma epidemia grave e totalmente fora de controle em território estadunidense, onde o próprio funcionamento do Estado estaria comprometido. Para lidar com a contenção da epidemia, muitos países adotaram procedimentos emergenciais, similares em algum grau a esforços excepcionais feitos em tempos de guerra. Em termos de vidas perdidas, os números comprovam essa comparação. Nos Estados Unidos, a estimativa é que mais americanos morram em função da crise sanitária do que morreram nas guerras que envolveram os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial (BOOT, 2020). Isso é mais grave se levar em consideração que nos últimos anos houve um corte dos recursos destinados aos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, Centers for Disease Control and Prevention), e aos setores do Departamento de Defesa destinados à segurança de saúde (GRONVALL, 2020). Além disso, o governo norte-americano reduziu os fundos de saúde global e cortou o apoio financeiro destinado à OMS, comprometendo o funcionamento da organização (GRONVALL, 2020). O desafio imposto pelo novo Corona vírus indica que o Brasil e o mundo não serão mais os mesmos após a pandemia. As concepções sobre a economia, consumo, sociedade, saúde pública, ensino, segurança internacional e governança global serão alteradas razoavelmente. As lideranças nacionais que não conseguirem lidar com os efeitos da doença enfrentarão a possibilidade de perder eleições futuras, transformando mais uma vez as diretrizes gerais que organizam a ordem internacional. Este inimigo invisível que tem paralisado o mundo por quase um ano, impôs ao Estado Nacional uma lição importante, de que o ser humano não é um ator à parte da natureza, e assim como os demais seres e elementos que habitam a terra, estamos expostos a todo tipo de sorte, mesmo com os grandes avanços tecnológicos adquiridos nos últimos séculos. Cabe à humanidade rever seus conceitos e reavaliar as verdadeiras ameaças que colocam em risco a


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continuidade da raça humana, para que as gerações futuras possam continuar existindo e prosperarem. Em suma, como foi argumentado no início do capítulo, os efeitos a longo prazo desse momento disruptivo ainda não são claros. Mas, tendo em vista as rupturas profundas ocorridas em um espaço de tempo relativamente curto, é razoável esperar que alguma transformação de caráter global mais significativa ocorra nos próximos anos. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORRELL, Josep. COVID-19: le monde d’après est déjà là... In: Politique Étrangère. n.2, 2020. BOOT, Max. Covid-19 Is Killing Off Our Traditional Notions of National Defense. In: Washington Post, 31 de março, 2020. Link:https://www.washingtonpostcom/opinions/2020/03/31/covid-19-is-killingoff-our-traditionalnotions-national-defense/?arc404=true BRUNO, Valerio Alfonso. COVID-19 Management and Soft Power: Ideas for a Geopolitics of Science and Expertise. In: Georgetown Journal of International Affairs. 14 de julho, 2020. Link: https://gjia.georgetown.edu/2020/07/14/covid19-management-and-soft-power-ideas-for-a-geopolitics-of-science-and-expertise/ CAMPBELL, Kurt; DOSHI, Rush. 2020. The Coronavirus Could Reshape Global Order: China Is Maneuvering for International Leadership as the United States Falters. In: Foreign Affairs. 18 de março, 2020. FARRELL, Henry. NEWMAN, Abraham. Will the Coronavirus End Globalization as We Know It? The Pandemic Is Exposing Market Vulnerabilities No One Knew Existed. In: Foreign Affairs. 16 de março, 2020. FELTER, Claire. What Is the World Doing to Create a COVID-19 Vaccine? In: Council of Foreign Relations. 23 de julho, 2020. Link: https://www.cfr.org/backgrounder/what-world-doing-create-covid-19-vaccine


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FIOCRUZ. Boletim Socioepidemológico da COVID-19 nas favelas: análise da frequência, mortalidade e letalidade por COVID-19 em favelas cariocas. n.1, 2020. Link:https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/boletim_ socioepidemiologicos_covid_nas_favelas_1.pdf FREEDMAN, Lawrence. Strategy for a Pandemic: The UK and COVID-19. In: Survival. v.62, n.3, 25-76, 2020. GRONVALL, Gigi Kwik. The Scientific Response to COVID-19 and Lessons for Security. In: Survival. v.62, n.3, p.77-92, 2020. HATHAWAY, Oona. ‘COVID-19 Shows How the U.S. Got National Security Wrong’. In: Justsecurity. 7 de abril, 2020. Link: https://www.justsecurity.org/69563/covid-19-shows-how-the-u-s-got-nationalsecurity-wrong/ HEISBOURG, François. From Wuhan to the World: How the Pandemic Will Reshape Geopolitics. In: Survival. v.62, n.3, p.7-24, 2020. HEVIA, Constantino; NEUMEYER, Andy. A Conceptual Framework for Analyzing the Economic Impact of COVID-19 and its Policy Implications. In: UNDP. COVID19 Policy Documents Series. 2020. KOBLENTZ, Gregory D.; HUNZEKER, Michael. National Security in the Age of Pandemics. In: Defense One, 3 de abril, 2020 Link:https://www.defenseone.com/ideas/2020/04/national-securityagepandemics/164365/?oref=d-river MULHERES e negros são os mais afetados pela covid-19 no Brasil, aponta IBGE. In: Deutsche Welle. 24 de julho, 2020. Link: https://www.dw.com/ptbr/mulheres-e-negros-s%C3%A3o-os-mais-afetados-pela-covid-19-no-brasil-apontaibge/a-54303900 PERRY, Andre M.; HARSHBARGER, David; ROMER, Carl. Mapping Racial Inequity amid COVID-19 underscoores Policy Discriminations Against Black Americans. In: Brookings Institute. April 16, 2020. Link: https://www.brookings.edu/blog/the-avenue/2020/04/16/mapping-racialinequity-amid-the-spread-of-covid-19/


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PHILIPPIDIS, Alex. Vanquishing the Virus: 160+ COVID-19 Drug and Vaccine Candidates in Development. In: GEN: Genetic Engineering and Biotechnology News. 13 de abril, 2020. Link: https://www.genengnews.com/alists/vanquishing-the-virus-160-covid-19-drug-and-vaccine-candidatesindevelopment/ TOBAR, Sebastian; LINGER, Carlos. Resposta da América Latina e Carbie à COVID-19. In: Cadernos Cris-Fiocruz: Panorama da Resposta Global à COVID-19. Fundação Oswaldo Cruz. Julho 2020.


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CAPÍTULO 13 REDESENHOS E NOVOS CONTEXTOS: UMA ANÁLISE PROSPECTIVA SOBRE A CONFIGURAÇÃO DA ORDEM INTERNACIONAL PÓS COVID-19208 Fábio Albergaria de Queiroz Guilherme Lopes da Cunha

1 INTRODUÇÃO Em dezembro de 2019, os chineses identificaram na cidade de Wuhan, província de Hubei, o epicentro de uma enfermidade desconhecida em seres humanos. Semanas depois da notificação dos primeiros casos, o que era um problema local transformou-se em calamidade nacional e mobilizou todos os setores da sociedade no enfrentamento de um oponente invisível e implacável: o coronavírus ou Covid-19. A doença que se alastrava em uma velocidade impressionante e que se tornaria um dos maiores desafios enfrentados pela humanidade em muito tempo desencadeou uma era de incertezas e de instabilidades.

tivity Fellow at CNPq (Level 2). She holds a doctorate from the London School of Economics and Political Science (United Kingdom). She is co-founder and co-director of the Collaborative Researc


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Fig. 1 - Cronologia da Epidemia de COVID-19 na China Fonte:https://www.em.com.br/app/noticia/ciencia/2020/03/06/inter na_ciencia,1126530/coronavirus.shtml Enquanto a China, em maior escala, e seus vizinhos mais próximos empreendiam esforços de guerra, outros países, inclusive nos lugares mais remotos do planeta, infectavam-se em velocidade avassaladora. De maneira sutil, ignorando fronteiras e distâncias, o coronavírus chegava em países do Oriente Médio, da Europa, da África, das Américas materializando-se no que todos temiam: uma pandemia, a sétima registrada desde a fatídica gripe espanhola de 1918.209 Como em situações precedentes, marcadas por momentos de grande apreensão e tensão, nesse complexo cenário, os destinos de seus atores se entrelaçam de forma inevitável. Naturalmente, analistas interrogaram-se sobre os rumos que tomariam os movimentos no 209

Em 1918, um novo vírus influenza, até então restrito às aves, passou a se manifestar também em seres humanos. Saindo de uma base militar no Kansas, Estados Unidos, o vírus chegou à Europa durante a Primeira Guerra Mundial e de lá se espalhou para o restante do planeta com consequências devastadoras. Em apenas um ano, causou a morte de cerca de 100 milhões de pessoas (Barry, 2020).


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tabuleiro geopolítico, sobremodo, quanto aos vetores de poder dos Estados. Assim, surgem muitas questões paradigmáticas, dentre as quais, aquela para a qual buscaremos respostas: que rearranjos de poder se desenham para a ordem internacional pós Covid-19 em tempos em que abundam incertezas? Esse esforço em entender a ontologia dos novos tempos, ora traduzido nas páginas seguintes, revela-se, pois, oportuno. Parte de sua rationale encontra fundamentos nas inseguranças que despontam repentinamente, conferindo densidade ao que nos lembra Stuenkel (2020): momentos de grande instabilidade geopolítica, historicamente, costumam marcar o fim ou o início de uma época. E não necessariamente pela crise em si, mas por seu poder de revelar realidades que, em situações cotidianas, não são facilmente visíveis. 2 NOVOS TEMPOS, NOVO MUNDO? O QUE NOS DIZEM OS ESTUDOS PROSPECTIVOS E A LITERATURA CONTEMPORÂNEA SOBRE A ESTRUTURA DA ORDEM GLOBAL? O cerne dos estudos prospectivos está na verificação de futuros prováveis. Por intermédio de metodologia própria, analistas que se dedicam a essa área monitoram sinais do presente que tenham como resultado possíveis evoluções. Segundo Marcial e Grumbach, (2017, p.18): Os estudos prospectivos não têm como objetivo prever o futuro e, sim, estudar as diversas possibilidades de futuros plausíveis existentes e preparar as organizações para enfrentar qualquer uma delas, ou até mesmo criar condições para que modifiquem suas probabilidades de ocorrência, ou minimizar seus efeitos. Apesar de serem muitas vezes confundidos com previsões ou projeções, trata-se de estudos do futuro com abordagem completamente diferente.


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Dessa maneira, a projeção de cenários prospectivos210 sobressai por utilizar metodologia que contempla variáveis como incertezas, tendências de peso, fatos portadores de futuro, entre outros211. Nota-se, portanto, a validade em associar essa metodologia com nosso objeto de estudo, pois o planejamento estratégico é vital para que se compreenda a maneira mais eficiente de tomar decisões e de elaborar políticas capazes de evitar ou de minimizar potenciais efeitos de um fenômeno (Wright e Spers, 2006; Costa, 2012). Em relação ao Covid-19, alguns estudos prospectivos anteviram fortes tendências que ora materializam-se no quadro de uma pandemia. Ainda em 2004, o relatório Mapping the Global Future: Report of the National Intelligence Council’s 2020 Project, produzido pelo Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos, considerava que: (...) it is only a matter of time before a new pandemic appears, such as the 1918–1919 influenza virus that killed an estimated 20 million worldwide. Such a pandemic in megacities of the developing world with poor health-care systems—in SubSaharan Africa, China, India, Bangladesh or Pakistan—would be devastating and could spread rapidly throughout the 210

A relevância dos cenários pode ser bem compreendida nas palavras de Marcial et al (2020, p.15), para quem "a grande vantagem da utilização dos cenários como subsídios do processo decisório é que eles apresentam antecipadamente as consequências futuras de nossas decisões. Eles representam o melhor tipo de produção de informação sobre o futuro, visto que conseguem capturar as características do futuro, em especial o fato de ser múltiplo e incerto. Cabe lembrar que, cenários são um conjunto de histórias relevantes, desafiantes, verossímeis e claras sobre o que poderia ocorrer – e não sobre o que ocorrerá (previsão/prognóstico) nem sobre o que deveria ocorrer (desejo/proposta)." 211 Incertezas são acontecimentos com trajetória/ocorrência ainda indefinida e cujo comportamento no futuro não sabemos. Normalmente, uma incerteza decorre de um Fato Portador de Futuro, que é um sinal existente no ambiente, ínfimo por sua dimensão, mas imenso em suas consequências e potencialidades. Já Tendências de Peso são eventos que estão em curso, cuja perspectiva de direção e sentido está consolidada e visível para admitir-se sua permanência no horizonte temporal considerado. (Marcial e Grumbach, 2017).


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world. Globalization would be endangered if the death toll rose into the millions in several major countries and the spread of the disease put a halt to global travel and trade during an extended period, prompting governments to expend enormous resources on overwhelmed health sectors (The United States, 2004, p.30). (Grifos nossos)

As tendências sinalizavam o potencial risco pandêmico. Isso ganha renovada expressão no documento Global Trends 2025: A Transformed World, publicado em 2008, em que o Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos previu: The emergence of a novel, highly transmissible, and virulent human respiratory illness for which there are no adequate countermeasures could initiate a global pandemic. If a pandemic disease emerges by 2025, internal and cross-border tension and conflict will become more likely as nations struggle—with degraded capabilities—to control the movement of populations seeking to avoid infection or maintain access to resources. (...) Experts consider highly pathogenic avian influenza (HPAI) strains, such as H5N1, to be likely candidates for such a transformation, but other pathogens— such as the SARS coronavirus or other influenza strains—also have this potential. (...) If a pandemic disease emerges, it probably will first occur in an area marked by high population density and close association between humans and animals, such as many areas of China and Southeast Asia, where human populations live in close proximity to livestock (The United States, 2008, p.75). (Grifos nossos).

Ambos relatórios enfatizam a previsibilidade de eclosão de pandemias com características muito próxima àquela identificada em 2020. Dessa maneira, as tendências - se devidamente tratadas por ferramentas específicas que subsidiem a formulação de políticas públicas - poderiam evitar ou mitigar riscos de potenciais surpresas


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estratégicas212 capazes de fragilizar as estruturas da ordem internacional (Sus e Hadeed, 2020). Nesse processo, os estudos de inteligência estratégica constituem uma ferramenta útil para lidar com a gestão de recursos, a mensuração da exequibilidade dos objetivos e interesses nacionais, além da consciência sobre eventual óbice a eles. No caso da pandemia, os relatórios anunciaram uma advertência estratégica213, notificando as autoridades sobre uma possível ameaça biológica. Ademais, os documentos, públicos, ofereceram a decision makers, com antecedência, a oportunidade de um planejamento destinado a neutralizar riscos de uma potencial crise: serviram de alerta para impedir que a pandemia representasse uma surpresa estratégica. A crise da pandemia demonstrou que as incertezas confirmaram-se como ameaças objetivas, o que põe sob os holofotes as transformações geopolíticas em curso. Cumpre pontuar que avaliações mais substanciosas sobre as causas e as consequências da crise enfrentam limitações metodológicas: por se tratar de um fenômeno que ainda não exauriu seus efeitos até o momento em que se escreve este texto, gera imprecisões analíticas. Por isso, demanda diálogo com as diversas interpretações oferecidas pelo Estado da Arte da produção acadêmica. Assim, começando pelo nível sistêmico de análise, convém indagar sobre o grau das mudanças que vivenciamos. Frente ao panorama que se descortina, estaríamos diante de uma revolução 212

Os termos surpresa ou surpresa estratégica são utilizados com frequência no nível estratégico, operacional e tático militar, geralmente, enfatizando a percepção de ataque (Clausewitz, 1989; Handel, 2008; Wirtz, 2005). Em uma concepção mais ampla, na linguagem de analistas de inteligência, surpresa estratégica remete a um efeito prejudicial que pode ser evitado (Omand, 2013; Shulsky e Schmitt, 2005; Cancian, 2018). 213 O termo advertência estratégica é usado para aconselhar o decisor, frente a comportamento de ator que conduza a um resultado esperado. Para Cynthia Grabo (2011, p.11) "... strategic warning is generally viewed as relatively long-term, or more or less synonymous with the "earliest possible warning" which the warning system is supposed to provide". Embora não tenha havido um ator envolvido, os relatórios cumpriram a função de advertir sobre a pandemia, oportunizando um planejamento de contenção.


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paradigmática? Observamos que, na perspectiva analítica das Relações Internacionais, as principais leituras acerca da possível natureza da ordem pós-Covid divergem em muitos aspectos. Isso ocorre - tal qual sugere Thomas Kuhn (1970) - em contextos em que os paradigmas vigentes já não oferecem respostas satisfatórias aos desafios interpostos pelas anomalias que surgem, levando, então, à profusão de ideias que apontem caminhos alternativos para a interpretação da realidade. Essa divergência na comunidade intelectual, evidencia a existência de múltiplas percepções. Dessa forma, Henry Kissinger (2020) entende que a pandemia do coronavírus transformará permanentemente a ordem internacional, notadamente dependente do comércio global e da livre circulação de pessoas, fomentando o ressurgimento de “cidades muradas”. Por sua vez, Alain Badiou (2020; p.70), cético em relação a qualquer possível transformação estrutural decorrente da Covid-19, entende que a epidemia nada mais é do que a dissolução da atividade intrínseca da razão. Em uma linha de pensamento intermediária, há quem defenda que a pandemia teria um efeito catalisador em certos eventos já em curso, afinal, nem toda crise se traduz em ponto de inflexão. É nesse sentido que Richard Haass (2020) assevera que o que testemunharemos será: i) o acirramento da rivalidade entre as grandes potências; ii) a proliferação de ameaças nucleares e de Estados frágeis; iii) o recrudescimento de movimentos nacionalistas e; iv) um menor protagonismo dos EUA na cena global. Logo, Haass sugere que o que mudará como resultado da pandemia não será a “desordem global”, mas o alcance e densidade dela. Por sua vez, Yuval Noah Harari (2020) enfatiza que viveremos, sim, em um mundo diferente, mas as principais mudanças ocorrerão nos padrões de organização social que decorrerão das escolhas que faremos. Assim, dois dilemas sobressaem, verificando-se, portanto, uma dualidade entre: 1) conviver com um estado de vigilância totalitária ou usar as ferramentas de combate à pandemia como meios de empoderamento dos indivíduos e; 2) o isolacionismo


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nacionalista ou a solidariedade global. Como em outras situações ao longo da história em que medidas de exceção foram tomadas para conter ameaças igualmente excepcionais, Harari alerta para a possibilidade de que o provisório - com seus riscos e/ou benefícios se torne permanente estabelecendo, pois, um “novo normal”. 3 RELAÇÕES CHINA-ESTADOS UNIDOS Quanto ao nível de análise dos agentes, ou atores, nas possíveis configurações da estrutura internacional, o componente científico-tecnológico apresenta-se como um dos principais elementos de colisão entre as grandes potências. Os principais pontos de fricção estão evidentes no desenvolvimento do que Mearsheimer (2001) chama de poder latente, considerando que as emergentes tecnologias terão grande impacto nas disputas globais entre Estados Unidos e China - dentre elas a quinta geração da telefonia móvel (ou 5G). Essa alavancagem tecnológica é um ingrediente crucial nas relações de poder. Ela serve de base empírica para a continuidade do pensamento de Arrighi (1996), para quem os componentes tecnológicos são relevantes, uma vez que definirão as condições de um novo ciclo sistêmico de acumulação de ativos que permitirá a projeção de poder em escala mundial de quem o dominar. Nesse contexto, a revolução informacional desencadeada nos anos 1970 anuncia nova competição entre Estados, os quais materializam seu poder em escala exponencial no presente, sobretudo quando se constata uma evolução hiperbólica no campo científicotecnológico214. Contudo, as adversidades no campo da saúde tem imposto a sobreposição entre essas duas disrupções globais - a epidemiológica e a tecnológica. De maneira bastante promissora, esse núcleo 214

Entre outras modalidades que denotam a transição da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento, podem-se mencionar: satélites quânticos, veículos hipersônicos, tecnologia de informação e comunicação (TICs), criptomoedas, blockchain, financeirização digital (fintechs), machine learning, realidade aumentada e manufatura aditiva.


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tecnológico desponta com grande capacidade de moldar os próximos anos de nossa história (Harari, 2016). E, na ordem que nos aguarda, o futuro das relações entre as maiores potências globais, Estados Unidos e China e, por conseguinte, a clareza quanto aos propósitos de cada lado, coloca o mundo em compasso de espera e apreensão e, por certo, se destaca como outra grande questão capaz de causar mudanças importantes. Nesse sentido, Yan Xuetong, um dos mais destacados teóricos chineses das Relações Internacionais na atualidade, argumenta que o mundo caminha para uma nova configuração de poder. No entanto, o que nos chama a atenção em sua análise é que, em oposição ao senso comum de que o Sistema Internacional do século XXI será inexoravelmente multipolar, Xuetong (2019) sustenta que uma nova bipolaridade se desenha com nítidos contornos. No entanto, ao contrário do que prevaleceu durante a Guerra Fria, nessa nascente configuração, capitaneada por Washington e Pequim, as alianças formadas serão específicas, conjunturais e fluídas. Significa dizer que, em vez de tomar parte em blocos econômicos-militares claramente definidos e ideologicamente antagônicos, a maioria dos Estados adotará uma política externa pendular. Assim, Xuetong (2019) acredita que o sistema será formado por países que estariam apoiando-se nos Estados Unidos em algumas questões e na China em outras. Estaríamos, então, diante de uma nova manifestação da Realpolitik redefinida pelas externalidades da crise?215 Ou essa seria somente uma percepção à moda ocidental, em que deveríamos interpretar esse fenômeno mais próximo do que preleciona Qin Yaqing (2018), por meio da Teoria Relacional da Política Mundial?216

215

Nas palavras de Kissinger (1999, p.147) "A Realpolitik é a política externa baseada em cálculo de poder e nos interesses nacionais". 216 Embora Pye (1988) tenha refletido sobre a importância da mentalidade como elemento seminal na compreensão sobre como os chineses concebem o mundo, a teoria elaborada por Qin (2018, p. xi) demonstra que o fator relacional está para a China, assim como o elemento racional está


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É importante destacar que a escalada da disputa entre Estados Unidos e China assumiu nova nuance em 2011. Isso ficou mais bem pronunciado quando, na redefinição da grande estratégia norte-americana para o século XXI, sob a presidência de Barack Obama, a então secretária de Estado, Hillary Clinton, anunciou a reorientação das prioridades estratégicas dos Estados Unidos para a Ásia-Pacífico na política que ficou conhecida como “pivô asiático”.

Fig. 2 - Área de Abrangência da Política do “Pivô Asiático” Fonte:https://www.semanticscholar.org/paper/The-Pivot-to-Asia%3ASouth-Korea-as-a-Strategic-forHale/8e56ba9f86f3bde15a051f326b7893f04ddc879b/figure/0 Essa mudança de rumos pressupunha a utilização de amplos instrumentos que iam da esfera político-militar à econômicodiplomática, em resposta a predições feitas em várias análises geopolíticas de que, em caso de inação por parte de Washington, uma dupla realidade poderia definir o jogo de poder entre as grandes potências: 1) o declínio relativo do poder americano e; 2) o deslocamento do epicentro da economia mundial para a região da Ásia-Pacífico (Fiori, 2008; Carmona, 2019). para o Ocidente. A subjetividade inerente à maneira chinesa de conceber o mundo é fundamental para que se possa compreender o comportamento e a mentalidade daquele país.


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Em tom de continuidade, Donald Trump, ainda no primeiro ano de sua presidência, em 2017, anunciou a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos (ESN) que reafirma e aprofunda o foco norte-americano na Ásia. Entre os objetivos identificados na ESN, enfatiza-se a necessidade de se preparar para um potencial conflito contra potências revisionistas, dentre as quais a China, externando, assim, o esboço de uma política de contenção217. Essa percepção foi reforçada em relatório encomendado pela Comissão de Estratégia Nacional de Defesa do Congresso a um grupo de especialistas independentes, em 2018. No documento, enfatizou-se que "o papel global que os Estados Unidos têm desempenhado por muitas gerações é baseado em um poder militar inigualável (...) no entanto, essa histórica margem de superioridade, salvaguarda da liderança norte-americana, tem sido minada em áreas importantes". O relatório apontou, ainda, um cenário em que habilidades tradicionais terão que ser reaprendidas e os novos desafios, analisados e redirecionados, pois "os gastos dos EUA excedem os de seus principais rivais militares, mas sem conseguir obter frutos proporcionais aos investimentos” e que essa “superioridade militar diminuiu para um nível perigoso".218 Por sua vez, a China, com a posse de Xi Jinping, em 2013, adotou um novo modelo orientador da relação com os Estados Unidos. A partir da premissa central de que a ascensão chinesa não deve ser acompanhada por conflito e guerra - tal como ocorreu em 217

Dois trechos da ESN são reveladores para a argumentação aqui descrita. Em um primeiro momento, o documento afirma que “China and Russia challenge American power, influence, and interests, attempting to erode American security and prosperity. They are determined to make economies less free and less fair, to grow their militaries, and to control information and data to repress their societies and expand their influence”; em um segundo momento, assevera que “China and Russia are developing advanced weapons and capabilities that could threaten our critical infrastructure and our command and control architecture.” (NSS, 2017; p.02; 08). Disponível em: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-182017-0905.pdf 218 O relatório foi presidido por Eric Edelman - ex-funcionário do Pentágono durante o mandato de George W. Bush - e Gary Roughead, ex-chefe de operações navais.


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muitos momentos da história, em que a potência estabelecida e a potência emergente colidem inexoravelmente, destaca-se a situação que ficou conhecida como “Armadilha de Tucídides”219. Contrapondo-se ao cenário de necessária colisão, Xi Jinping defendeu a busca por um jogo de soma positiva onde, essencialmente, todos ganham. Em outras palavras, Pequim prometia não desafiar o domínio global dos EUA que, em troca, deveriam respeitar os interesses centrais da China. De maneira contundente, essa proposta sinalizava que, em boa medida, ia ao encontro dos esforços de longa data de Washington para integrar uma China em ascensão ao sistema internacional estabelecido. Entretanto, a compressão espaciotemporal defendida por Santos (2008) sopesa as novas características da sociedade contemporânea, o que torna uma eventual rivalidade um elemento corrosivo para a estabilidade do sistema. Assim, além dos tradicionais aspectos inerentes ao jogo de poder entre as grandes potências, as disputas entre China e Estados Unidos ocorrem, não nos esqueçamos, em tempos em que a velocidade no fluxo de informações nos aproxima do que o filósofo canadense Marshall McLuhan chamou, ainda nos anos 1960, de “aldeia global”. A isso se soma o arsenal tecnológico de aparelhos e aplicativos que tem capacidade de ações de rastreamento, de acesso a dados e de difusão de mídia adversa sem consentimento.

219

Há mais de 2.400 anos, observando a escalada de tensões entre as duas maiores e mais importantes cidades-estados da Grécia antiga - Esparta e Atenas - o historiador Tucídides concluiu que a percepção de insegurança gerada em Esparta, então potência dominante, decorrente do risco associado a uma possível ruptura do equilíbrio de poder em favor de Atenas, a potência em ascensão, tornou o conflito inevitável. Estava lançado o corolário do que se convencionou chamar de a Armadilha de Tucídides: ações de potências estabelecidas para resistir ou conter as pretensões de potências emergentes podem conduzir a um desfecho indesejado e, o que as evidências empíricas têm demonstrado é que o conflito tem sido o resultado predominante. De acordo com Graham Allison (2018), artífice do conceito, ao longo dos últimos 500 anos, em 12 dos 16 casos em que houve tal situação, o resultado foi a guerra.


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Nesse contexto, tornaram-se (mais) comuns e intensas as “guerras de narrativas”220. Em síntese, trata-se de fenômeno em que as palavras, mais do que símbolos semânticos, são instrumentos de ação da política externa capazes de “construir” ameaças e gerar instabilidades imediatas. E, exacerbado por mútuas acusações quanto a responsabilidade pelo surto de coronavírus, esse tem sido o tom recorrente nas tumultuadas relações entre Washington e Pequim, em momento que coincide com exponencial crescimento do protagonismo chinês, colocando, não poucas as vezes, os dois gigantes em rota de colisão. Outra mudança em curso, igualmente importante, está na reestruturação das cadeias globais de produção decorrente. O ponto nevrálgico dessa constatação tem influência direta, sobretudo, da grande dependência de boa parte do mundo de insumos provenientes da China. As dificuldades de acesso a produtos tidos como essenciais, evidenciadas pela epidemia, fizeram com que países, como o Japão e a Índia, investissem vultosos recursos na repatriação de empresas instaladas na China, demonstrando, destarte, a opção pela segurança de produzir in loco ao invés do acesso ao menor preço. Desse modo, nos esforços de recuperação e adaptação da economia aos novos tempos, o primeiro-ministro Shinzo Abe anunciou aporte financeiro inédito, na ordem de quase US$ 1 trilhão em estímulos, dos quais US$ 2,2 bilhões são destinados a empresas que queiram retornar ao Japão. De igual maneira, o primeiroministro indiano, Narendra Modi, aprovou pacote equivalente a cerca de 10% do PIB, algo em torno de US$ 265 bilhões, objetivando fortalecer as cadeias de suprimentos locais e, concomitantemente, 220

Corroborando o potencial das narrativas para a construção da compreensão, Leng e Leng (2020) refletem sobre em que medida as narrativas influenciam as ciências e demonstram a capacidade para impulsionar percepções, interesses e negócios. Para os autores, acreditando não haver narrativa desinteressada, a persuasão induz a sociedade a criar memória, aqui entendida como um mecanismo que permite criar referências para os objetos e as relações a nossa volta. Isso fortalece a percepção sobre a relevância de se elaborar meios hábeis para lidar com guerra de narrativas, que pode ter origem na manipulação, na guerra psicológica ou nos interesses individuais de indivíduos e atores.


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posicionar a Índia como hub alternativo à China ao criar ambiente propício para o investimento em setores estratégicos. 4 CONCLUSÃO A análise, ainda que limitada em sua capacidade de oferecer respostas às perguntas lançadas, denota que está em curso uma reconfiguração da arquitetura internacional de poder. Entretanto, ainda são muitas as incertezas que obstam o adequado entendimento da ontologia e da natureza das mudanças que se desenham para o mundo pós-Covid 19 quanto aos seus principais impactos. Trata-se de uma crise global em seu alcance, talvez a maior de nossa geração. Contudo, dentre as interpretações aqui citadas, aquela que toma forma com maior nitidez, pelo menos quanto às evidências até o momento observadas, é a de que a pandemia será agente acelerador das mudanças em curso. São transformações patentes na erosão de uma ordem anacrônica: não se originam de uma força disruptiva primária e inédita. Ademais, embora a correta avaliação das consequências geopolíticas da pandemia ainda demande tempo, observa-se que a instabilidade conjuntural do sistema internacional vem ensejando a reorganização das forças de produção vinculadas ao desenvolvimento científico-tecnológico. Assim, a partir dos fatos narrados, dentre as possíveis configurações que nos são apresentadas, sugerimos algumas tendências com potencial de moldar a ordem internacional pós Covid-19: 1) rearranjos estruturais nas cadeias produtivas acentuadas por crescente nacionalismo e concomitante estímulo a compras domésticas; 2) revisão dos instrumentos multilaterais de governança; 3) acirrada disputa pelo domínio do mercado de tecnologias disruptivas; 4) novos padrões de controle e monitoramento, sobretudo, do comportamento social;


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5) maior demanda por políticas econômicas não convencionais, amparadas em modelos que contemplem a saúde pública em sua implementação; 6) ascensão chinesa em tons mais assertivos, ainda que Pequim enfatize na versão atual de seu Livro Branco de Defesa Nacional, divulgado em Julho de 2019221, que não busca hegemonia, expansão ou esferas de influência e; 7) declínio relativo do protagonismo e liderança norte-americanos uma vez prevalecentes ações unilaterais contestatórias da existência de uma ordem marcada pela ascensão de uma miríade de atores relevantes em termos de poder. Por fim, a literatura e os estudos prospectivos que fundamentam esta análise demonstraram que a pandemia foi contemplada com antecedência de, aproximadamente, 15 anos. Não somente os relatórios prospectivos do Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos, de 2004 e 2008, mas também expoentes da comunidade epistêmica, como Viola (2005), já alertavam sobre os fatores que constituíam crescente risco ao sistema de segurança global, entre os quais o surgimento de pandemias. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLISON, Graham (2018). Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap? Boston & New York: Mariner Books. ARRIGHI, Giovanni (1996). O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo, Rio de Janeiro: Contraponto. BADIOU, Alain (2020). “Sobre la situación epidêmica”. Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Editorial ASPO. BARRY, John M.(2020) A Grande Gripe. A História a Gripe Espanhola: a pandemia mais mortal de todos os tempos. São Paulo: Intrínseca. 221

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CAPÍTULO 14 CLASH OF GENERATIONS: THE NEW CORONAVIRUS PANDEMIC AND INTERNATIONAL CRISIS MANAGEMENT Jorge M. Lasmar Leonardo Coelho Assunção Santa Rita

1 INTRODUCTION The new Coronavirus pandemic has become a truly international systemic crisis. In fact, this is the very meaning of ‘pandemic’: the formal recognition that it has directly reached all continents (WHO, 2020). However, what makes this crisis remarkable is not its global reach. Rather, it is the massive disruptive cascade effects it causes. In this sense, German Chancellor Angela Merkel classified the current events as the worst crisis since World War II (HUGGLER, 2020). In the same vein, former US Secretary of State Henry Kissinger points to the future consequences of the crisis and how it can permanently impact global order (KISSINGER, 2020). Thus, in the face of such important changes and challenges, we discuss the COVID-19 pandemic in the light of the crisismanagement model developed by the Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD). To do so, we will first discuss the COVID-19 crisis and the structural environment in which it is embedded (1). Then, we will understand how the new and old approaches of crisis management can be applied to the COVID-19 crisis (2). Having pondered over the crisis and how states have been responding to it, we will conclude by perusing the lessons that can already be learned from this event (3).


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2 THE PANDEMIC IN THE CONTEXT OF THE NEW CRISES Even though political risk models long predicted the threat of a global pandemic, the way the new Coronavirus crisis stroke was somewhat unexpected. Certainly, the reach and scale of disruption were unprecedented. But above all, the COVID-19 speed of dissemination was frightening. This could be seen as surprising given that its infection rate (known as R0) is lower than diseases such as SARS. However, according to a research conducted by the World Health Organisation, from the beginning of the Pandemic - in midDecember 2019 - until end of June 2020, the virus had already infected more than 9.4 million people in virtually all countries causing over 480 thousand fatalities (WHO, 2020b). Meanwhile, SARS - that was active between 2002 and 2004 – recorded a total of 8,098 infections and 774 deaths during this period (WHO, 2020c). Thus, it is clear that in addition to issues related to the biology of the virus itself other external factors greatly contributed to the COVID-19 global dissemination. In this sense, one must recognise that the structure of international society combined with the very states’ responses to the pandemic also shaped much of the dynamics of the crisis. Globalisation and the intensification of transnational flows, the relevance of non-state actors and technological innovations in the fields of communication and transport are some of the feature of the international society’s structure that impacted this new crisis. This is important because crises that are set within this environment hold particularities that set them apart from past international crisis. To illustrate this relationship between the biological characteristics of SARS-CoV-2 and the social and material characteristics of international society that make this crisis so unique, by January 2020 the virus had already been detected in Europe, the Middle East, Australia and North America (HEALTH MAP, 2020; FINK, BAKER, 2020). Often the infected people who brought the virus to their country were not necessarily coming from China or the


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Wuhan region, specifically, but from other places where the virus was already present but silent. This speed of dissemination only becomes possible in a reality where there is a large flow of people using modern means of transport such as airplanes and high-speed trains. This situation reveals, among other things, the cross-border nature of the crisis, which is one of the main characteristics of contemporary crises. A greater intensity of flows, coupled with an increasing difficulty in controlling them, are crucial elements of what we term ‘new crises’ (OECD, 2013). Another important element of the new crises present in the COVID-19 Pandemic is its capacity to trigger systemic cascade effects in other areas. This phenomenon not only prolongs a crisis through time and space, but also greatly increases its disruptive effects by impacting other key areas of social life (OECD, 2013). This can be clearly seen in the effects of the Pandemic over global economy. According to an IMF estimate, the new Coronavirus crisis could lead to a retraction of up to 3% of the world’s GDP (IMF, 2020). Although the IMF's projections are based on solid econometric models, they are still predictions that may or may not come to fruition. However, the effects of the COVID-19 crisis are already being felt in the world's second largest economy. Chinese officials reported that in the first quarter of the year the country's economy contracted by 6.8%, the worst result since 1992 (TANG, 2020). In the same lines, the slowdown in the global economy has sharply affected international demand, which in turn has had serious consequences for the oil market. This commodity - which is so geopolitically sensitive – reached a negative price for the first time in history (FINANCIAL TIMES, 2020). Another key impact of the COVID-19 crises on the international economy is related to the disruption of the global supply chains. This is directly connected to the environment of high-density cross-border interdependent flows in which the crisis is embedded. In many ways, more than the complexity and fragility of global supply chains, this crisis reveals the vulnerability of globalisation itself. Offshore industries everywhere are supplied by a


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complex and intricate network of global supply chains. This widely adopted model greatly reduces the industries stocks and costs. However, it does expose them to a much higher risk of disruption. In the case of the COVID-19 crisis, the shutdown of Asian industrial centres as well as its impact on transport caused an abrupt disruption in the supply chain of several industries worldwide, exposing the fragility in which they find themselves (HAREN, SIMCHI-LEVI, 2020). Another important structural feature that impacts the COVID-19 crisis is the informational environment. Although it must be recognised that access to internet and information is still an issue in many underdeveloped areas, we can arguably say that we live in a in highly interconnected world with widespread access to social media and internet. In 2020, for example, there were 3.5 billion registered smartphone users in the world, i.e. approximately 45% of the world population uses smartphones (STATISTA, 2020). This marks a context in which a growing number of people are having direct access to an increasing number of sources of information. Although access to technology and information should be celebrated, it also brings about some risks and challenges (OECD, 2013). A first challenge is directly related to the way information is produced and disseminated. The same tools that can be used to facilitate the communication and dissemination of vital information can be used as tools for disinformation (OECD, 2013). In fact, it is striking that the COVID19 was followed by a huge dissemination of poor-quality information, misinformation and outright fake information. A series of disinformation about the Pandemic has been published and disseminated through social media, becoming yet another problem to be faced. False information about treatment and prevention and even about the origin of the virus has been widely broadcasted (UN, 2020). Fraudsters, pranksters, companies, states and political and social groups disseminated disinformation using varying methods and degrees of sophistication This wide spectrum of disinformation brought about both short-term and long-term risks and has actually


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proven to be potentially fatal (WATTS, 2020). In fact, there have been cases in which individuals have been arrested for producing and spreading false information, however, due to its decentralized and diffuse nature, these measures tend to be ineffective (DORE, 2020). Another challenge concerns how these tools affect the relationship between government and civil society. These new information tools can work improving the accountability of governmental actions and boost the population access to information. These tools can also enhance the ability of the population and the media to pressure authorities. In a crisis situation, this context creates a greater pressure on the decision makers to respond quicker to the problem (OECD, 2013). Decision makers need to take in consideration another structural change: the decrease in the states’ capacity to exert command and control over transnational flows. This reduction of control is related to two transformations: the first is the increasing privatisation and augmented strength of non-state actors222; The second concerns the growth in the capacity of non-state actors - such as the private sector and non-governmental organisations - to dictate the agenda and implement different approaches when dealing with crisis (OECD, 2013). These structural changes dramatically impact the ability of central governments to provide an independent response on their own. Consequently, cooperation with other sectors becomes an essential element in international crisis management (OECD, 2013). This is clear in the COVID-19 crisis as states greatly depend on the private sector for both the development of equipment and drugs as well as for the research related to it. The crisis revealed that governments are heavily dependent on private companies for the production of products that range from simple items such as masks and gloves to more complex and technology-intensive equipment such as mechanical fans and vaccines. In many cases, the 222 It is noteworthy that some countries that underwent privatization processes and increased strength in the private sector, especially in the 1990s, still maintain high political centralization. Two of the main examples of this situation are China and Russia.


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governments actually had to request large industries that normally do not produce this type of equipment to actively modify their lines of production and supply crisis-related items to attend the sudden increase in demand (WARD, 2020). Another structural element of the new crises is the increased relevance of international organisations and cooperation. This need arises not necessarily from the decrease in the states’ capacity of command and control. Rather, it emphasizes the need for coordination in multiple areas and geographic spaces. As new crises have a strong transnational, cross-border, nature, unilateral and uncoordinated responses become increasingly a less effective option (OECD, 2020). Although one can certainly question how well the World Health Organisation (WHO) handled the Coronavirus crisis, there is no doubt that the organisation does play a key role in the international management of health crises. WHO does have an important part in improving the coordination amongst actors, reducing uncertainties and providing a space for collective action (MINGST, KARNS, 2012). The WHO also functions as an important international epistemic community as it produces specialised knowledge about a specific area influencing the behaviour of other actors (HAAS, 1992). Thus, the COVID-19 crisis can be seen as what has been termed a ‘global shock’. According to the OECD (2011) “A global shock is a major rapid-onset event with severely disruptive consequences covering at least two continents” (OECD, p. 3, 2011). Global shocks can only occur within the context of vulnerability that marks today's international society. The increase in the quantity and intensity of transnational flows, interdependent growth, the more complex informational environment and an increasingly intricate global supply chain provide ideal conditions for the emergence of such disruptive crises (OECD, 2013). And it is precisely because of these elements that the new Coronavirus crisis is seen as unprecedented. Other pandemics have scorched humanity. Yet, they


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have not achieved the same degree of combined global reach and large-scale disruptive effects. 3 RISK ASSESSMENT AND RESPONDING TO CRISES: OLD AND NEW APPROACHES Dealing with a systemic crisis requires a complex risk management structure. This structure includes tools for risk identification and crisis preparedness, response teams and policies for crises management as well as mechanisms to evaluate the crisis afterwards (feedback and lessons learned). In this section, we evaluate how new and old approaches to risk management can be applied to the COVID-19 crisis. Thus, we demonstrate the importance of decision and policy makers to think within the framework of a more updated model of crisis management. Effective crisis management begins even before the crisis. Identifying threats and adequately preparing for them is essential to mitigate the potential consequences of a crisis. In this sense, the first step to prepare to a large-scale disruptive crisis is to do a risk assessment (OECD, 2013). Risk assessment can be defined as “...that part of risk management which provides a structured process that identifies how objectives may be affected and analyses the risk in terms of consequences and their probabilities before deciding on whether further treatment is required” (ISO, p. 6, 2009). Thus, the risk assessment is related to the general approach adopted by a government or organization to identify possible threats and risks. Traditional risk assessment approaches are built using “sectoral analysis based on historical events” (OECD, 2013). This means that the entire crisis preparation and identification framework must first be divided into specific sectors (industrial, economic, sanitary, military, etc.) and be based on other historical events of the same type (OECD, 2013). In other words, to predict, identify and prepare for the COVID-19 crisis, states should have built preparedness structures dedicated exclusively to deal with a pandemic


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crisis based on the experience of past events such as the Influenza AH1N1 Pandemic. In fact, places such as Taiwan, Singapore and Hong Kong did so and were heralded for keeping their cases count low at the beginning of the pandemic. However, the COVID-19 pandemic is not a traditional crisis. The systemic cascading effect of the pandemic - which can be observed on the immediate social and economic consequences of the crisis – makes it inappropriate to adopt a sectorial and approach. Likewise, the new structural environment in which the crisis is embedded, makes it difficult to adopt measures based on past events. Crises of this nature require a different risk assessment approach to be able to deal more effectively with both uncertainty and complexity (OECD, 2013). In these cases, it is necessary to develop a national risk assessment designed with a broader view of risk. In other words, it is necessary to understand that there are multiple threats, a great number of unknowns and that any threat can trigger cascade effects in other areas (OECD, 2013). This broader view of risk assessment cannot be restricted to just one sector as it needs to hold a systemic view. Central governments must also coordinate with other stakeholders such as private companies and NGOs in identifying and anticipating threats. Therefore, cooperation between the central government and the various sectors of civil society is essential for the development of a national risk assessment (OECD, 2013). Once the risk has been identified, the next step is to develop an action plan. This is especially important when the risk identified has either a high probability of occurrence or a significant consequence. The planning of traditional crisis emergencies is generally based on scenarios. In this technique, each agency and/or government sector, develop a series of response protocols that must be adopted if a certain situation arises. Scenario-based planning depends directly on a fixed chain of command and predetermined procedures designed to deliver the right response at the right time (OECD, 2013). However, new crises, such as the new Coronavirus, no longer allow planning based on fixed scenarios and protocols. The


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uncertainty of contemporary crises and the fact that they are unprecedented, require approaches that are more flexible and capable of adapting better to the threat as it evolves. Planning for current crises requires building a response network whose focus is on capacity building rather than scenario planning (OECD, 2013). Multiple agencies must focus on coordinating their actions rather than preparing for specific threats. Leadership, innovation capacity and systems that allow cooperation are essential to prepare for new crises (OECD, 2013). Once the main risks have been identified and adequately planned to address them, it is necessary to have activation mechanisms that trigger the response to the crisis. The traditional policy is the development of early warning systems that detect the occurrence of a threat and quickly initiate the response protocols. These systems are able to identify threats through intense monitoring and information sharing, such as natural disaster monitoring systems, for example (OECD, 2013). New crises, due to their diffuse nature and the speed with which they arise, are often not detected by traditional means of early warning. These novel situations call for the development of strategic foresight capabilities in order to perceive and identify the weak signs present at the beginning of a crisis that often goes unnoticed. To develop such capabilities, it is necessary to set up a multidisciplinary intelligence network (OECD, 2013). This is clearly the case with the COVID-19 pandemic. States and organisations long ago already identified the high risk of pandemiclike crises. In the same lines, a significant number of government agencies, scientists and even CEOs of large companies already recognised the destructive potential that a highly contagious virus could cause and how unprepared we were (DAVIES, 2020). In fact, a study published in the journal Nature in 2015, a group of researchers warned precisely about the possibility of a new virus of the type "Coronavirus" escaping from bats and contaminating humans (MENACHERY, et al, 2015). Yet – although we do recognise the technical difficulties of early warning in biological threats - despite all


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the risk assessments and the various methods that countries and organisations had at their disposal to identify threats, there was no early warning. This brings us back to an already mentioned interesting aspect of new crises. In addition to studies in the field of medicine and virology, some researchers in the field of social sciences have already identified the destructive potential of a global Pandemic. In his article on existential security submitted in September 2019, Nathan Sears (2020) pointed out that pandemics are one of the main “catastrophic” threats to humanity (SEARS, 2020). In the risk assessment document published by the American agency FEMA (Federal Emergency Management Agency) in 2019, the possibility of a global pandemic was identified as one of the main threats that the organization was preparing for (FEMA, 2019). More recently, a report published by ABC News revealed that the National Center for Medical Intelligence (NCMI) had already been reporting the possibility of a pandemic from China since November 2019. However, the Pentagon denied the claim and stated that the intelligence service began reporting the situation only in January 2020 (MARGOLIN, MEEK, 2020). Thus, if intelligence agencies and researchers were already aware of the risk of a global pandemic, what brought the COVID-19 crisis to the level it reached? Here comes an interesting aspect of the current scenario. The problem was not that of an intelligence failure, but rather that of a political botch. The failure laid not on the misidentification or wrong risk assessment. Instead, the failure was located on the initial response phase. Political rivalries, ideological extremism and lack of leadership negatively impacted the initial response phase and were among the main drivers of the crisis. Hence, this demonstrates the clear - more-than-ever entanglement between politics and crisis management. This entanglement aggravates yet another problem of the initial response to new crises. Traditionally, at the beginning of the crisis, those involved in its management construct what is termed the ‘operational picture’. In traditional crises, the operational picture is


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designed through an accurate monitoring of the development of the crisis. In other words, the authorities identify the dimension of the problem, estimate its reach and impact, predict how it can evolve and plan the authorities' responsibilities in the response process (OECD, 2013). Nonetheless, because new crises are unprecedented or have discreat effects, they may not present a clear operational picture. Their threats and effects are diffuse, fast and unprecedented. The authorities, thus, need engage in a sense-making process to first understand what is actually happening and how big the problem is (OECD, 2015). The need for sense-making is clear with the COVID19 crisis. Many authorities dealt with the pandemic in a state of complete dearth of information. As the crisis evolved, questions became more frequent and answers became scarcer and more imprecise. Even “simple” questions - such as: whether We should use protective masks (ROBERTS, 2020); What is the most appropriate method of social isolation? (KATZ, 2020), or; What drugs should be used against the virus (GOODMAN, GILES, 2020)? - became problematic. This reaffirms the importance of both engaging in factbased sense-making as well as employing a multidisciplinary networked response combining civil society and governmental specialists to provide decision makers with the necessary tools to properly understand the crisis (OECD, 2018). It is important to note that there is some debate about a certain inability of scientists to communicate with the public. The use of elitist language combined with the almost exclusive use of the English in publications can create barriers between scientists, the population and the decision makers (LARIVIÈRE, SHU, SUGIMOTO, 2020). This is an important point. A key point for science is that the results of academic research should be published and made available for scrutiny. The results should reach not only peer scientists but also the civil society as a whole. Thus, the communication of the results of scientific researches should aim at adopting a simple and direct language to effectively broadcast its finds to a broader audience without losing its scientific rigour.


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However, the fact that this is not always the case, is not an excuse. Unscientific practices and lack of coordination with specialists can seriously hamper the ability of sense-making. One striking example of how this can be so is the Turkmenistan president, Gurbanguly Berdymukhamedov, who came to condemn the use of the word ‘Coronavirus’ and recommended the use of the smoke of medicinal herbs to supposedly kill the virus (ABDURASULOV, 2020). The same can be said about crisis management guidelines and protocols. In crisis management it is equally important to coordinate the response process and establish how it will be managed. To respond adequately to a crisis, governments usually construct certain operating standards (Standard Operating Procedures or SOP) in advance. These pre-set standards have typically a hierarchical order in which units at a lower level directly depend on guidelines and instructions for units at a higher level. Nonetheless, the transnational, complex, diffuse and disruptive nature of modern crises requires a networked response. Managing a large response network requires sharing the responsibility with several stakeholders ranging from the central government, passing through sub-national units and international organisations and reaching the private sector. This response network, although diverse, must be in constant communication and maintain a high level of coordination of its actions (OECD, 2013). However, several of the international responses to the COVID-19 crisis went exactly on the opposite direction: they were centralised, inward-centric, and refused to cooperate with different stakeholders such as other states, international organisations and the civil society. Managing a large-scale response network has proven to be a major challenge for the authorities during the COVID-19 crisis. Examples of poor coordination amongst central governments, subnational entities, non-state actors and international organisations abound. Even within the context of the European Union, many countries have given unilateral responses to the crisis (THE GUARDIAN, 2020). In fact, this lack of coordination directly


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impacted the crisis in Italy, one of the most affected countries. According to Italian Prime Minister Giuseppe Conte, the EU project may fail if it is unable to respond adequately to the crisis (LOWEN, 2020). It is also possible to identify a lack of coordination between the public and private sectors. For example, in early March 2020 the United States’ main companies such as Google, Amazon and Apple were already implementing home office working while the government was questioning social isolation (BUSINESS INSIDER, 2020). Another example of poor coordination between government and the private sector was the attempt to make use of a wartime law to force industries to manufacture equipment to fight the pandemic (SIRIPURAPU, 2020). The lack of a cohesive cooperation between some important countries and the WHO is also striking. Perhaps, the most notable example is the U.S. decision to cut the WHO’s funding on the grounds that the organisation is flawed and lenient with China (BBC, 2020). Despite the fact that one can certainly question WHO’s conduct during the crisis, reducing its funding during a global pandemic is not the best way to establish a response network amongst international stakeholders. Managing an international network depends heavily on cooperation between the major actors. Unfortunately, examples such as the altercations between United States and China were a common feature of this crisis (FEIGENBAUM, 2020). These examples also point to another key factor in crisis management: leadership. Implementing an integrated and coordinated response network requires trust and resilience. Leadership is essential in this process as it is key to mobilise the different stakeholders and communicate with civil society (OECD, 2013). To manage the population's trust and expectations, leaders must constantly communicate with the public during the crisis. In traditional communication approaches, leaders usually update the status of the crisis, provide technical information and inform about the measures being adopted (OECD, 2013). Although this


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communication with civil society is still very important, such an approach is not enough to deal with crises set within the new information environment (OECD, 2013). In view of the characteristic uncertainties of the new crises, adjusting expectations and building trust is essential for good leadership. To be able to achieve this, the communication must not only inform about the state of affairs but must also transmit values to the audience and manage anxieties. The leadership, thus, have a key role in this process as it must convey sincerity, stability and competence in order to manage civil society’s ever-changing expectations. This is a process called meaning-making (OECD, 2015). In order to establish a successful communication during crisis, leaders must make extensive use of new communication strategies, tools and vehicles. This is not only because social media has a broader reach but also because it is precisely in this environment that the greatest amount of misinformation is spread (OECD, 2015). Another related aspect enhanced by social media is the need for leaders to be accountable. Leaders have to respond adequately to the civil society’s demands and expectations related to the crisis (OECD, 2015). The new communication tools allow the population to promote a more intense and detailed scrutiny of each measure adopted by the authorities. That is why leaders must be prepared to answer all questions however sensitive they may be. Leaders need to transmit to the audience the fundamental confidence and serenity needed in times of crisis (OECD, 2015). In the COVID-19 crisis, international leaders made extensive use of the new media to establish dialogue with civil society. In fact, the use of social media has been the main means of communication used by some government officials for some time. However, during the crisis of the new Coronavirus, social networks have not been a platform for building meaning-making. The US Defense Department accused the Russian government of using tweets and blogs to falsely accuse the United States of being the creators and responsible for the new Coronavirus (BROAD, 2020; RANKIN, 2020). The European Union also made similar accusations. The Russian government


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denied accusing, instead, the USA of engaging in a fake news campaign (BBC, 2020). This “blame-game” between great powers is very harmful and hardly an adequate communication strategy in times of crisis (OECD, 2015). Instead of using the internet to reassure and provide answers to the population, states engaged in a politically motivated “semantic war” (AL-JAZEERA, 2020; ROSENBERGER, 2020). Likewise, there are no apparent attempt to coordinate a joint international effort to manage the crisis of the new Coronavirus. This leadership role was expected, in large part, from the United States. However, the American government displayed a lack of coordination even with its closest allies. Both Germany and France accused Washington of committing “modern piracy” by diverting shipments of protective masks that were heading towards these countries (BBC, 2020. OKELLO, 2020). The European Union also failed to display leadership even within Europe as it was unable to coordinate actions amongst its own members. In fact, the European Commission President Ursula Von Der Leyen even apologised for not being able to assist Italy properly (HERSZENHOR, WHEATON, 2020. HENLEY, 2020). Likewise, at the beginning of the pandemic, there was a high expectation that China would take up the role as the main international leader during the crisis filling up the Western leadership void. Nevertheless, China also failed to do so. Finally, the new Coronavirus crisis revealed that accountability is a more sensitive issue than expected. Several states did not react well to the intense scrutiny that the new informational environment allowed and end up intensifying authoritarian measures. An interesting example beyond authoritarian regimes is that of Hungary. The country stands out as a young democracy, but it was shaken when the prime minister, Viktor Orbán, approved a bill granting power to govern without submitting decisions to the parliament with no set deadline. The measure was based on the argument that the urgency of the crisis requires faster political action (HOCKENOS, 2020). Actions such as this contribute negatively


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impact the trust-building between the government, its population and the international community. 4 LESSONS AND FEEDBACK It is evident that the extent of the COVID-19 crisis and the series of inappropriate responses are sources of great concern. Hence, they can provide important lessons for the future. The first, and probably most important lesson is that contemporary crises call for new approaches. As much as similar events have occurred in the past – such as past pandemics - current global crises require a different strategy. This new approach is necessary because the structural environment in which the crises are embedded is fundamentally different from the past. It presents a series of new possibilities and limitations that were not available before. As an example, even though social media has been available for a while, it did not have the same reach and impact it has today. This can clearly be seen when comparing the role of social media during the 2009 H1N1 and the 2020 New Coronavirus pandemics. Another important lesson that can be learned from the COVID-19 crisis is the importance of cooperation and information sharing between different stakeholders. It is no longer possible to face today's crises by centralizing responses as the characteristics of the events and the environment in which they take place require joint, multilevel and multisectoral actions. It is essential that all different stakeholders coordinate their preparedness and responses in order to effectively build a more resilient society. The design of a network that shares common values, principles and approaches amongst its members successfully creating collective action becomes increasingly important. In this sense, it is also important that these shared principles and values are aligned with the scientific and technical specialised knowledge. As described above, sense-making and meaning-making are a crucial element in the management of unique


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crisis. Scientific and technical knowledge are fundamental to obtain situational awareness in diffuse and unprecedented crisis. The COVID-19 Pandemic also raises question about the importance of effective leadership in times of crisis. The inability of several international leaders to communicate effectively combined with the constant “blame-game” - especially among the great powers seriously hindered a joint international response. Of course, world leaders such as German Chancellor Angela Merkel and New Zeland’s Prime Minister Jacinda Arden played a good role as communicators during the crisis. (RISING, MOULSON, 2020). However, as a whole, the pandemic clearly highlights the necessity for world leaders to improve their communication with the larger audience while, at the same time, also demonstrating that civil society also have a key role in improving the choices of the leaders in future crisis. Several other measures to prevent the occurrence of new global pandemics on such a large scale have also been suggested. It is beyond the scope of this chapter to describe and discuss all of them. However, the calls for the reform of the World Health Organization stands out. Australia made one of the most prominent proposals for WHO reform. According to Australian Prime Minister Scott Morrison, WHO needs to be equipped with tools that guarantee more autonomy to the international organisation. In this manner, it could investigate in advance a potential health crisis or even propose containment strategies in lieu of state members. Additionally, Australia also proposed the creation of an independent auditing body that would oversee WHO's performance in a global crisis such as COVID-19 (FARR, 2020). For all these reasons, it is essential to carry out a complete review of the procedures, strategies, techniques, tactics and tools employed during the COVID-19 crisis (OECD, 2020). The COVID-19 Pandemic underlined a fundamental element present in contemporary crises: the breach of confidence. Rebuilding civil society's trust in science, governments and international organisations is perhaps the most challenging element present in the twilight of the


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new Coronavirus crisis. The ability to rebuild trust and subsequently build resilience are the major challenges that we are confronted with in face the uncertainties of new crises (OECD, 2013). 5 CONCLUSION The new Coronavirus Pandemic quickly became a systemic crisis. Its effects caused a systemic shockwave that reached several areas. Its disruptive power was unprecedented. However, one of the most prominent factors of this crisis is how it has been managed. With few exceptions, the majority of the international response to the Pandemic were at odds with the principles of modern crisis management. The individualistic responses, the semantic battle, the blame-game, the lack of coordination and cooperation and even the complete denial of science can be seen in the reaction of several government officials. Various speculations about the post-crisis world arose due to the lack of capacity of many leaders to respond adequately to the Pandemic. Some advocated that the crisis exposed the flaws in neoliberal economic models and that it is time to rethink the relationships between economy, government and society, as the market would no longer be able to meet people's real needs. Others go further in their criticism by arguing that the government difficulty in responding the crisis is directly related to the vulnerabilities of liberal democracy itself. If that is case, we should rethink not only the economic issues of neoliberalism, but rather the very values of liberalism in all its dimensions. This is a fundamental and much needed discussion. However, we must also seek to understand better the nature of the new crisis as well as improve the strategies, methods and techniques of international crisis management. This is especially important in a scenario in which these unprecedented events are becoming increasingly fast, more diffuse and disruptive. To meet the challenges ahead - rather than trying to predict what will happen in the future - it is essential to develop response capabilities that are


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adaptative, flexible, networked and resilient. Hence, as the COVID-19 pandemic was not the first nor the last global crisis, we must first prepare and improve our capacity to face the crises of the future. 6 REFERENCES ABDURASULOV, Abdujalil. Coronavirus: Why has Turkmenistan reported no cases?. BBC News. 2020. Available at: <https://www.bbc.com/news/worldasia-52186521>. Accessed: May 11, 2020. AL-JAZEERA. Trump defends calling coronavirus the 'Chinese virus'. AlJazeera. 2020. Available at: <https://www.aljazeera.com/programmes/newsfeed/2020/03/trump-defendscalling-coronavirus-chinese-virus-200323102618665.html>. Accessed: May 16, 2020. BBC. Coronavirus: US to halt funding to WHO, says Trump. BBC News. 2020. Available at: <https://www.bbc.com/news/world-us-canada-52289056>. Accessed: May 14, 2020. BBC. Coronavirus: US accused of ‘piracy’ over mask ‘confiscation’. BBC News. 2020. Available at: <https://www.bbc.com/news/world-52161995>. Accessed: May 15, 2020. BBC. Coronavirus: Russia denies spreading US conspiracy on social media. BBC News. Available at: <https://www.bbc.com/news/world-us-canada51599009>. Accessed: May 15, 2020. BROAD, William J. Putin’s Long War Against American Science. The New York Times. 2020. Available at: <https://www.nytimes.com/2020/04/13/science/putin-russia-disinformationhealth-coronavirus.html>. Accessed: May 15, 2020. BUSINESS INSIDER. Oracle, Apple, Google, and Amazon are among the largest global companies who have restricted travel or asked their employees to work remotely as a precaution against the novel coronavirus. Here's the full list. Business Insider. 2020. Available at: <https://www.businessinsider.com/companies-asking-employees-to-work-from-


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Os artigos apresentados na presente obra tratam de aspectos relevantes vinculados ao desenvolvimento sustentável, política exterior e democracia em tempos de profundas transformações trazidas não só pela pandemia, mas também pelas alterações econômicas, sociais, políticas e culturais nos quatros cantos do mundo, o que demanda por parte dos pesquisadores uma análise das relações internacionais a partir de uma crise sem precedentes. Pretende-se, portanto, contribuir para que a discussão sobre a crise sanitária não se atenha tão-somente a uma perspectiva isolada do desenvolvimento sustentável, das políticas públicas (especialmente a externa), bem como da democracia, valor esse que tangencia e deve fundamentar, como já se disse toda e qualquer ação, por parte de quaisquer dos sujeitos, sejam eles públicos e privados, nacionais ou internacionais. A concretização desta obra deu-se graças ao financiamento tanto da Comissão Europeia no âmbito da Cátedra Jean Monnet da UFMG, Projeto (565401-EPP-1-2015-1-BREPPJMO-CHAIR) e do Centro de Excelência Jean Monnet, Projeto (611700-EPP-1-2019-1-BR-EPPJMO-CoE).

ISBN 9786586138603

9 786586 138603


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