DIREITO PÚBLICO EM PERSPECTIVA Estudos em homenagem aos procuradores do estado do Paraná

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Luiz Henrique Sormani Barbugiani

Fernando Alcantara Castelo ORGANIZADORES

Direito Público em

Perspectiva

ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS PROCURADORES DO ESTADO DO PARANÁ

Prefácio: Ministro André Mendonça

Direito Público em

PersPectiva

estuDos em homenagem aos

ProcuraDores Do estaDo Do Paraná

LUIZ HENRIQUE SORMANI BARBUGIANI FERNANDO ALCANTARA CASTELO (OrganizadOres)

Direito Público em PersPectiva

estuDos em homenagem aos ProcuraDores Do estaDo Do Paraná

Belo Horizonte 2023

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CONSELHO EDITORIAL

Álvaro Ricardo de Souza Cruz

André Cordeiro Leal

André Lipp Pinto Basto Lupi

Antônio Márcio da Cunha Guimarães

Antônio Rodrigues de Freitas Junior

Bernardo G. B. Nogueira

Carlos Augusto Canedo G. da Silva

Carlos Bruno Ferreira da Silva

Carlos Henrique Soares

Claudia Rosane Roesler

Clèmerson Merlin Clève

David França Ribeiro de Carvalho

Dhenis Cruz Madeira

Dircêo Torrecillas Ramos

Edson Ricardo Saleme

Eliane M. Octaviano Martins

Emerson Garcia

Felipe Chiarello de Souza Pinto

Florisbal de Souza Del’Olmo

Frederico Barbosa Gomes

Gilberto Bercovici

Gregório Assagra de Almeida

Gustavo Corgosinho

Gustavo Silveira Siqueira

Herta Rani Teles Santos

Jamile Bergamaschine Mata Diz

Janaína Rigo Santin

Jean Carlos Fernandes

Jorge Bacelar Gouveia – Portugal

Jorge M. Lasmar

Jose Antonio Moreno Molina – Espanha

José Luiz Quadros de Magalhães

Kiwonghi Bizawu

Leandro Eustáquio de Matos Monteiro

Luciano Stoller de Faria

Luiz Henrique Sormani Barbugiani

Luiz Manoel Gomes Júnior

Luiz Moreira

Márcio Luís de Oliveira

Maria de Fátima Freire Sá

Mário Lúcio Quintão Soares

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Nelson Rosenvald

Renato Caram

Roberto Correia da Silva Gomes Caldas

Rodolfo Viana Pereira

Rodrigo Almeida Magalhães

Rogério Filippetto de Oliveira

Rubens Beçak

Sergio André Rocha

Sidney Guerra

Vladmir Oliveira da Silveira

Wagner Menezes

William Eduardo Freire

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora.

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2023.

Coordenação Editorial: Produção Editorial e Capa: Revisão:

Fabiana Carvalho Danilo Jorge da Silva Responsabilidade do Autor

Direito público em perspectiva: estudos em homenagem aos procuradores

D598 do estado do Paraná / [organizado por] Luiz Henrique Sormani 2023 Barbugiani [e] Fernando Alcantara Castelo. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2023. 385 p.

ISBN: 978-65-5929-325-4

ISBN: 978-65-5929-318-6 (E-book)

1. Direito público. 2. Políticas públicas – Brasil. 3. Arbitragem. 4. Feminicídio. 5. Federalismo fiscal – Brasil. 6. Direito à saúde. I. Barbugiani, Luiz Henrique Sormani (Org.). II. Castelo, Fernando Alcantara (Org.). III. Título.

CDDir – 341

CDD (23. ed.) – 342.81

Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700

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Belo Horizonte 2023

ALEXANDRE BARBOSA DA SILVA

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista CAPES no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, com estudos na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito – Mestrado – do Centro Universitário Univel. Professor nos cursos de Graduação, Especialização e Mestrado em Direito do Centro Universitário Univel. Professor na Escola da Magistratura do Paraná. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Civil-Constitucional “Virada de Copérnico” do PPGD da Universidade Federal do Paraná e do Grupo de Pesquisa “Direito e Regulações” do PPGD do Centro Universitário Univel. Procurador do Estado do Paraná. E-mail: alexxandreb@uol.com.br

ALICE SILVEIRA DE MEDEIROS

Advogada. Mestre em Direito do Estado pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. Pós-graduada em Contratações Públicas pela Universidade de Coimbra. Especialista em Licitações e Contratos Públicos com Tópicos Especiais em Direito das Concessões pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente é Membro da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da Administração da OAB/PR.

ANDRÉ VITOR QUIRINO DOS SANTOS

Bacharel em Direito pela Unicuritiba. Assessor jurídico na Procuradoria-Geral do Estado do Paraná.

AUDREY SILVA KYT

Procuradora do Estado do Paraná. Especialista em direito público (FDUSP).

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autores

BEATRIZ SPINDLER DE OLIVEIRA LEITE

Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Pós-Graduada em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná; Promotora de Justiça/MPPR; Integrante do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Criança e do Adolescente e da Educação/ MPPR; Coordenadora da Comissão Permanente da Educação do Grupo Nacional de Direitos Humanos.

BRUNO RABELO DOS SANTOS

Especializado em Direito Processual Civil (2016) e Mestre em Direito (2023), pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. brunorabelosantos@gmail.com.

CRISTINA BICHELS LEITÃO

Procuradora do Estado do Paraná, lotada na Procuradoria Administrativa e integrante do Grupo Permanente de Trabalho 2 – Mediação, Conciliação e Arbitragem. Ex-presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná - APEP. Ex-conselheira da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná - PGE-PR.

Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Professora de Direito Processual Civil, Negociação, Mediação e Arbitragem da FAE – Centro Universitário. Ex-conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Paraná. Presidente da Comissão de Arbitragem da OAB/ PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Associada ao Comitê Brasileiro de Arbitragem - CBAr.

DIOGO LUIZ CORDEIRO RODRIGUES

Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Regulação Comercial e Financeira pela London School of Economics and Political Science (LSE). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professor do Departamento de Direito do Estado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Procurador do Estado do Paraná.

EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE

Doutor em Direito Privado pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris (Nouvelle Sorbonne), Pós-Doutor em Direito de Família pelo Centre du Droit de la Famille, Université Jean Moulin – Lyon (França); Professor Titular de Direito Civil – UEM/Paraná; Professor Titular da Faculdade de Direito da UFPR; Membro de APLJ – Academia Paranaense de Letras Jurídicas; Membro fundador da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões – São Paulo; Escritor, Professor, Advogado e Parecerista.

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EDUARDO MOREIRA LIMA RODRIGUES DE CASTRO

Doutor em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Procurador do Estado do Paraná. E-mail: eduardo.moreira@pge.pr.gov.br.

FERNANDO ALCANTARA CASTELO

Procurador do Estado do Paraná. Mestre em Direito pela UFPR. Presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná.

GUSTAVO HENRIQUE RAMOS FADDA

Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduado em Direito Previdenciário pela Universidade Gama Filho. Procurador do Estado do Paraná com atuação na Procuradoria da Dívida Ativa. e-mail: gustavofadda@pge.pr.gov.br

HAMILTON BONATTO

Procurador do Estado do Paraná; Mestre em Planejamento e Governança; Engenheiro Civil; Licenciado em Ciências (Licenciatura Curta) e Matemática (Licenciatura Plena); Especialista e Direito Constitucional; Especialista em Advocacia Pública; Especialista em Construção de Obras Públicas; e Especialista em Ética e Educação; É Autor do livro “Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia, Editora Fórum; Autor do livro “Contratação de Obras Públicas”, UEPG, Programa de Residência Técnica; Autor do Livro “Critérios Éticos para a Construção de Obras Públicas Sustentáveis”, Editora NP. Autor do Livro: Governança e Gestão de Obras Públicas: do Planejamento à Pós-Ocupação, Editora Fórum; Autor do Livro BIM para Obras Públicas – Ed. CON; Co-autor do Livro “Contrato Públicos Built to Suit”, Editora Fórum; autor da Coletânea com 13 Cadernos Orientadores para Contratação de Obras e Serviços de Engenharia. Professor convidado para ministrar temas de obras e serviços de engenharia das seguintes Instituições de Ensino Superior: UNIBRASIL – Curitiba, PR; CERS – Centro Educacional Renato Saraiva – Recife, PE; Faculdade Baiana de Direito – Salvador – BA; Faculdade Pólis Civitas – Curitiba, PR; Instituto Goiano de Direito.

ISABELA CRISTINE MARTINS RAMOS Procuradora do Estado do

Paraná.

JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO

Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado). Professor do Programa de Pós-graduação

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em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da UNIVEL, Cascavel. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Procurador do Estado do Paraná (aposentado). Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

JOE TENNYSON VELO

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Master em Criminologia Critica, Sicurezza e Prevenzione Sociale pela Università degli Studi di Padova, Italia. Procurador do Estado do Paraná. Advogado criminal. E-mail: joevelo@icloud.com

KARINA LOCKS PASSOS

Procuradora do Estado do Paraná.

LINCON COELHO DE SOUZA

Acadêmico do 8º semestre do curso de Direito e Monitor da disciplina “Direito Penal: Introdução e Teoria do Crime” no Centro Universitário Univel. Bolsista PIBIC de iniciação científica pelo Grupo de Estudos “Criminologia Crítica e Ciências Criminais” do Centro Universitário Univel. Membro do Grupo de Pesquisa “A Reputação no Direito” do PPGD do Centro Universitário Univel. Estagiário de Direito na Procuradoria-Geral do Estado do Paraná. E-mail: linconcoelhodesouza@gmail.com.

LUIZ EDUARDO GUNTHER

Professor da Graduação e do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Desembargador do Trabalho do TRT 9. Membro da Academia brasileira de Direito do Trabalho. E-mail: luiz.gunther@uol.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq. br/1314611892212586. https://orcid.org/0000-0001-7920-3406

LUIZ GUILHERME MARINONI

Prof. Titular da Universidade Federal do Paraná. Membro Honorário do Presidium da International Association of Procedural Law.

LUIZ HENRIQUE SORMANI BARBUGIANI

Procurador do Estado do Paraná, Diretor de Estudos Jurídicos da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná (APEP), Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), membro da Comissão da Advocacia Pública da

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Ordem dos Advogados do Brasil, seção Paraná, professor da Academia Brasileira de Direito Constitucional e da Escola Nacional da Advocacia Pública – ESNAP.

MARCELO ALBERTO GORSKI BORGES

Procurador Federal, Especialista em Direito Socioambiental pela PUC-PR, mestrando em Gestão Pública pela FGV-RJ, ex-Presidente da Comissão de Advocacia Pública da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Paraná, Procurador Federal atualmente em exercício na Universidade Federal do Paraná – UFPR.

MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE

Professor Concursado Permanente da Graduação e do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da UFSC. Coordenador da Especialização em Direitos e Processos do Trabalho e Previdenciário da Academia brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Advogado. Membro da Academia brasileira de Direito do Trabalho. E-mail: marcovillatore@ gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6658857270253086. https://orcid. org/0000-0001-6365-6283

MATEUS OLIVEIRA DE CASTRO

Procurador do Estado do Paraná. Especialista em Direito Processual Civil Aplicado pelo Centro Universitário UMA e em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade de Direito do Complexo de Ensino Renato Saraiva.

RAMON GRENTESKI OUAIS SANTOS

Procurador do Estado do Paraná. Mestre em Direito da Universidade Federal do Paraná.

THIAGO SIMÕES PESSOA

Mestre em direitos fundamentais e democracia. Pós Graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar. Pós graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Procurador do Estado do Paraná.

VICENTE MARTINS PRATA BRAGA

Presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Estado e do Distrito Federal – ANAPE. Advogado. Doutor em direito processual-USP. Pós-doutorando em Direito UERJ.

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VITOR HENRIQUE MALIKOSKI

Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Bacharel em Direito pela FAE Centro Universitário. Advogado no escritório Gaia Silva Gaede Advogados.

WILSON CALMON ALVES FILHO

Procurador do Estado do Paraná. Especialista em Direito Empresarial pelo programa GVLAW da Fundação Getúlio Vargas – São Paulo.

11 sumário PREFÁCIO 15 APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 17 CapítulO 1 A RESPONSABILIDADE DOS ENTES FEDERATIVOS PELO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DA PESSOA IDOSA E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO ÂMBITO DO SISTEMA ÚNICO ASSISTÊNCIA SOCIAL Alexandre Barbosa da Silva; Lincon Coelho de Souza ............................................ 19 CapítulO 2 A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: PARÂMETROS PARA O TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS PELO PODER PÚBLICO Audrey Silva Kyt 37 CapítulO 3 LINGUAGEM JURÍDICA COMO FERRAMENTA DE ACESSO À JUSTIÇA: ESTADO DA ARTE Bruno Rabelo dos Santos 79 CapítulO 4 A ARBITRAGEM NA LEI DE LICITAÇÕES E NO DECRETO ESTADUAL Nº 10.086/2022 - PR Cristina Bichels Leitão; Vitor Henrique Malikoski .................................................. 89 CapítulO 5 A DELIMITAÇÃO INSTITUCIONAL DA DISPENSA DE LICITAÇÃO EM RAZÃO DO VALOR: O CONCEITO DE UNIDADE GESTORA Diogo Luiz Cordeiro Rodrigues ................................................................................. 103

CapítulO

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6 FEMINICÍDIO: A VIOLÊNCIA NOSSA DE CADA DIA Eduardo de Oliveira Leite; Beatriz Spindler de Oliveira Leite ................................ 133 CapítulO 7 O FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO E AS NORMAS GERAIS DE DIREITO FINANCEIRO Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro 153 CapítulO 8 PROCESSOS ESTRUTURAIS E A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE Fernando Alcantara Castelo; André Vitor Quirino dos Santos ............................... 167 CapítulO 9 A EXECUÇÃO FISCAL DE EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL COM A REFORMA DA LEI Nº 11.101/2005 Gustavo Henrique Ramos Fadda .............................................................................. 189 CapítulO 10 O PREÇO DAS OBRAS PÚBLICAS NAS CONTRATAÇÕES FINANCIADAS COM RECURSOS INTERNACIONAIS Hamilton Bonatto ...................................................................................................... 211 CapítulO 11 TEMA 1157/STF – VÍNCULOS PRECÁRIOS ANTERIORES À POSSE NO CARGO PÚBLICO EFETIVO – (IM)POSSIBILIDADE DE EFEITOS FUNCIONAIS Isabela Cristine Martins Ramos; Karina Locks Passos 223 CapítulO 12 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, MATÉRIA PENAL E OS TRIBUNAIS SUPERIORES Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Alice Silveira de Medeiros 233 CapítulO 13 COMENTÁRIOS SOBRE WHY THEY DO IT, INSIDE THE MIND OF THE WHITE COLLAR CRIMINAL, DE EUGENE SOLTES Joe Tennyson Velo 251 CapítulO 14 O MANDADO DE INJUNÇÃO NA ATIVIDADE PÚBLICA Luiz Eduardo Gunther; Marco Antônio César Villatore ......................................... 265

CapítulO

CapítulO 16

ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL: A CHANCELA E O DESTAQUE DO STF PARA A SUA IMPORTÂNCIA COMO FUNÇÃO ESSENCIAL À JUSTIÇA COMO MODELO A SER

CapítulO

CapítulO

CapítulO 19

INSTRUMENTOS DE COLETIVIZAÇÃO PARCIAL E COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA NOS JUIZADOS ESPECIAIS

CapítulO 20

A MEDIAÇÃO COMO CAUSA SUSPENSIVA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA: UM OLHAR SOBRE A JUSTIÇA MULTIPORTAS E O ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ

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A QUESTÃO CONSTITUCIONAL ENQUANTO QUESTÃO PREJUDICIAL Luiz Guilherme Marinoni ......................................................................................... 277
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IMPLEMENTADO PELOS GESTORES PÚBLICOS DOS ENTES FEDERADOS Marcelo Alberto Gorski Borges; Luiz Henrique Sormani Barbugiani .................... 303
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AMICUS CURIAE COMO INSTRUMENTO
LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA
JULGAMENTOS Luiz Henrique Sormani Barbugiani; Vicente Martins Prata Braga ...................... 313
O
DE
DOS
18 A DELIMITAÇÃO DA RATIO DECIDENDI DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: UMA ANÁLISE A PARTIR DE JULGADOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ramon Grenteski Ouais Santos ................................................................................. 319
DA FAZENDA PÚBLICA Thiago Simões Pessoa .................................................................................................. 341
Wilson Calmon Alves Filho; Mateus Oliveira de Castro 361

PreFácio

Foi com alegria que recebi o convite para prefaciar o livro “Direito do Estado em perspectiva: estudos em homenagem aos Procuradores do Estado do Paraná”, organizado e coordenado pelos Procuradores Luiz Henrique Sormani Barbugiani e Fernando Alcantara Castelo.

Na obra são realizadas reflexões sobre temas como (a) os direitos das pessoas idosas e com deficiências e a responsabilidade dos entes federativos no âmbito do sistema único de assistência social; (b) o tratamento de dados pessoais pelo poder público, notadamente no âmbito das políticas públicas na área da saúde; (c) a simplificação da linguagem na contemporaneidade como forma de viabilizar o acesso à justiça; (d) a arbitragem e a Lei de Licitações; e, (e) a dispensa de licitação em razão do valor e o conceito de unidade gestora.

Ainda, são lançadas importantes discussões sobre (f) o feminicídio e as políticas públicas para seu enfrentamento; (g) o federalismo fiscal brasileiro; (h) os processos estruturais e a efetivação do direito à saúde; (i) o processo de execução fiscal em face de empresas em recuperação judicial; (j) o preço das obras públicas financiadas com recursos internacionais; (k) o acesso a cargos públicos efetivos e os efeitos funcionais decorrentes de anteriores vínculos precários com a Administração Pública; e, (l) a interpretação, pelos Tribunais Superiores, da Lei de Improbidade Administrativa, após as reformas de 2021.

Fechando a obra, são trazidos comentários sobre a obra Why They Do It: Inside the Mind of the White-Collar Criminal, de Eugene Soltes, bem como reflexões sobre (n) o mandado de injunção; (o) a questão constitucional como questão prejudicial no processo; (p) a importância da Advocacia Pública municipal; (q) o Amicus Curiae como instrumento de legitimação democrática dos julgamentos; (r) a delimitação da ratio decidendi nos recursos extraordinários; (s) os instrumentos de coletivização parcial e cooperação judiciária

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nos juizados especiais da Fazenda Pública; e, (t) a mediação e seus efeitos em relação à pretensão executória contra a Fazenda Pública.

Cuida-se de excelente obra coletiva. Como se vê, é composta por artigos que abordam diversos e importantes temas de direito processual e de direito material, todos eles relacionados com a atuação da Advocacia Pública e com políticas públicas no Brasil. Enfim, traz uma reflexão transversal e aprofundada de vários tópicos relevantes no Direito Público, sendo fonte de contribuição para todos aqueles que atuaram nessa seara, especialmente para os Advogados Públicos do Brasil.

E referindo-me especificamente à Advocacia Pública, faço menção a uma observação que lancei em artigo de minha autoria que constou da obra “O olhar dos Ministros do Supremo Tribunal Federal sobre a Constituição Cidadã”, recém publicada pelo STF. Na oportunidade assim anotei: “Uma das inovações institucionais projetadas na Carta de 1988 é a Advocacia Pública. Constituída como Função Essencial à Justiça —ao lado do Ministério Público, da Advocacia privada e da Defensoria Pública—, está constitucionalmente regulada nos artigos 131 e 132 da Constituição Federal. Trata-se de instituição dotada do status constitucional de essencialidade, que, ao longo destes 35 anos, alcançou protagonismo e posição jurídico-institucional de primeiríssima grandeza na vida do país”.

Assim, sem sobra de dúvidas, nestes 35 anos de vigência da Constituição Cidadã, a Advocacia Pública alcançou protagonismo e posição jurídico-institucional de primeiríssima grandeza na vida do país. Trata-se de função essencial à Justiça e, acima de tudo, de uma importantíssima e indispensável instituição para garantir a implementação de políticas públicas e para a concretização de direitos fundamentais.

Por tudo isso, meus parabéns aos autores e aos organizadores! E que os leitores desfrutem de uma agradável e enriquecedora leitura.

Brasília, outubro de 2023.

ANDRÉ MENDONÇA

Ministro do Supremo Tribunal Federal

aPresentação

É com imensa satisfação que a Associação dos Procuradores do Estado do Paraná, a APEP, apresenta a presente coletânea, abordando o Direito Público em Perspectiva, em homenagem aos Procuradores do Estado do Paraná.

Apresentamos um livro eclético e estruturado em que os temas de Direito Público são abordados em caráter multidisciplinar de acordo com a experiência, a percepção e a área de pesquisa dos ilustres autores convidados.

A dinâmica da seleção foi desenvolvida no intuito de demonstrar a riqueza e a importância dos estudos em Direito Público, em diálogo constante com outros ramos e sub-ramos jurídicos, em uma justa homenagem aos Procuradores do Estado do Paraná, que labutam no cotidiano de suas manifestações e proposições jurídicas na defesa da Administração Pública, com diversos institutos e instrumentos jurídicos.

A adesão maciça dos convidados visando participar dessa coletânea de artigos científicos demonstra o valor de seus estudos e o respeito que todos nutrem pela carreira dos Procuradores do Estado do Paraná.

Em um prazo de tempo relativamente curto, foram elaborados e direcionados aos coordenadores dezenas de estudos aprofundados sobre temas intrincados do Direito, todos com o objetivo de participar de mais um episódio e um marco de valorização da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, agora com destaque especial aos seus quadros funcionais, reforçado, recentemente, pela reestruturação da carreira implementada pelo Poder Executivo, sempre em busca de uma constante e perene autonomia técnico-jurídica e financeira, postuladas e defendidas pela Associação dos Procuradores do Estado do Paraná.

A obra “Direito Público em Perspectiva”, ao render a devida homenagem aos Advogados Públicos, foi integrada não só por Procuradores do Estado,

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como também por professores, desembargadores, promotores e juristas de renome nacional, com alta e ampla especialização em suas áreas de conhecimento, o que proporciona a divulgação do conteúdo científico abalizado para todos os interessados em disfrutar da vastidão de questões, com suas inúmeras ponderações e possibilidades de direcionamento, em busca de um resultado jurígeno adequado.

Com essas considerações, agradecendo uma vez mais os nossos brilhantes colaboradores, os coordenadores apresentam a presente obra com o anseio efusivo de que todos possam de alguma forma colher no material disponibilizado ponderações e aperfeiçoamentos em suas atividades profissionais e respectivas pesquisas científicas.

Desejamos a todos uma ótima leitura.

Curitiba, primavera de 2023.

LUIZ HENRIQUE SORMANI BARBUGIANI

Diretor de Estudos Jurídicos da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná

FERNANDO ALCANTARA CASTELO

Presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná

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caPítulo 1

a resPonsabiliDaDe Dos entes FeDerativos Pelo acolhimento institucional Da Pessoa iDosa e Da Pessoa com DeFiciência no Âmbito Do sistema único assistência social

Alexandre Barbosa da Silva Lincon Coelho de Souza

O Sistema Único de Assistência Social – SUAS, como é de conhecimento geral, caracteriza-se pela descentralização administrativa. Também se sabe que é configurado na divisão de competências e de atribuições entre os entes federativos. Aludido formato de gestão administrativa costuma gerar dúvidas a atores externos, como no exemplo do Poder Judiciário que por vezes necessita determinar a competência de cada ente para o Acolhimento Institucional da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência.

O presente artigo busca trazer elementos para uma compreensão mais facilitada sobre a competência de Estados e Municípios para a efetivação do direito ao acolhimento institucional de pessoas idosas e de pessoas com deficiência no âmbito do sistema de assistência. Neste contexto, emerge o seguinte problema de pesquisa: é de competência do Estado ou do Município prestar diretamente o acolhimento a pessoa idosa ou a pessoa com deficiência?

Trabalha-se com duas hipóteses: a) responsabilidade do Município, independentemente de seu porte; b) responsabilidade do Município, mas que, a depender de seu porte, conta com a atuação conjunta do Estado para a construção de uma capacidade financeira viável.

Com vistas a tornar coerente a estrutura do pensamento, mister lembrar a organização do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, analisar como se dá o acolhimento institucional no âmbito da assistência social brasileira, comparar a distribuição de competências entre os entes federados no SUAS e a responsabilidade pelo acolhimento, inclusive em âmbito judicial, para, ao final, demarcar as responsabilidades dos entes públicos para o acolhimento da pessoa idosa e da pessoa com deficiência.

Para tanto, o trabalho foi estruturado da seguinte maneira: o primeiro capítulo é dedicado a análise de importantes bases de sustentação do Sistema Único de Assistência Social. O segundo capítulo tem como escopo o estudo das principais formas de acolhimento institucional da pessoa idosa e da pessoa com deficiência no âmbito do SUAS. O último capítulo pretende demonstrar a configuração adequada de competências e a operacionalização eficiente do acolhimento, indicando o exemplo do Estado do Paraná, com proposta de estruturação das responsabilidades para o âmbito judicial.

1. O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO PANORAMA CONSTITUCIONAL ATUAL

A Constituição Federal de 1988, além de organizar política e administrativamente a República Federativa do Brasil, se ocupa de prescrever os rumos da sociedade brasileira.

Sob essa perspectiva, importante entender que houve relevante inovação no tema da assistência social, uma vez que anteriormente à promulgação da CF/88 a Ordem Social sequer era tratada constitucionalmente. (STRAPAZZON, 2018, p. 349). Atualmente, no aspecto da seguridade social, compõe-se pelo tripé da saúde, previdência social e assistência social.

O art. 203 deixa claro que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, com objetivo de proteger, dentre outros, a família, a infância, a velhice e as pessoas com deficiência.

Dada a relevância que a Constituição Federal atribui a assistência social, faz-se necessário compreender a forma como é concebida. O presente capítulo trata da descentralização administrativa como princípio constitucional do Sistema Único de Assistência Social – SUAS (art. 204 da CF) e sua consequência primeira: a municipalização.

1.1. Descentralização Administrativa como Fundamento da Prestação Estatal de Assistência Social

Para regular a assistência social nos moldes determinados na Constituição Federal, foi editada a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, Lei Federal n° 8.742 de 1993, e, para materializá-la, nasce posteriormente o Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Giaqueto (2010, p. 83) entende que esta norma e seus regulamentos apresentam os mais importantes eixos estruturantes da assistência social, em especial o conceito de descentralização político-administrativa.

Franzese e Abrucio (2009, p. 26) estabelecem dois possíveis modelos de descentralização: competitiva e cooperativa. A competitiva é marcada pela distribuição de competências nas esferas de governo conforme a área da política

Henrique
/
aLcantara caSteLo (orgS.) 20
Luiz
Sormani BarBugiani
Fernando

PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 21 pública, ou seja, cada ente fica integralmente responsável pela área de atuação designada. Já no caso da descentralização cooperativa, todos os entes são responsáveis por todas as áreas, organizando-se através da divisão de tarefas.

A escolha pela descentralização ocorre em razão da universalidade da assistência social, que deve ser prestada a quem necessitar, tendo como condição a residência em território nacional. (CHAVES, 2013, p. 99). A universalidade da assistência social é vista a partir de duas perspectivas: a primeira é o acesso aos direitos materialmente garantidos na LOAS de forma mais individualizada. A segunda é a atuação coordenada dos entes federativos para a criação de um sistema de proteção social que envolve políticas em diversas áreas. (GIAQUETO, 2010, p. 90).

Veja-se que, como diretriz da assistência social, a descentralização está prevista em sede constitucional, no art. 204, inciso I, da mesma maneira na LOAS, em seu art. 5, inciso I, e ainda, na Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS.1

Conforme Giaqueto (2010, p. 84), a descentralização ocorre nos países latino-americanos também como uma resposta social dada pela transição de regimes autoritários para regimes democráticos, como no Brasil da década de 1980. Isso, para reformular um novo contrato social entre a sociedade civil e o Estado. Portanto, tal princípio emerge de uma crise essencialmente político-social.

Chaves (2013, p. 147) ressalta que tal modelo cooperativo de gestão pode até parecer óbvio no contexto constitucional atual, mas que se deve atentar para o fato de que historicamente o poder e as competências tendiam a ficar centralizadas na União (principalmente nos períodos autoritários). Os Municípios, inclusive, só foram posicionados com maior relevância federativa em 1988.

A descentralização político-administrativa, dentre os princípios norteadores da assistência social, tem espaço de destaque principalmente pela conformação histórica brasileira. Além do mais, se conclui que a assistência social opera no modelo cooperativo, em razão da divisão que é feita através de tarefas e não somente por áreas de atuação.

União, Estados, Municípios e Distrito Federal, assim, dividem as competências entre si, de forma cooperativa, para concretizar a assistência social no Brasil.

1 Sobre a universalização e a descentralização, veja: […] o fato de a universalização das políticas sociais ter entrado na agenda constitucional junto com a diretriz de descentralização e em um contexto de redemocratização do Estado, influenciou fortemente a conformação do federalismo brasileiro pós 1988, bem como a estrutura criada no âmbito de cada política setorial analisada. Além disso, a coincidência temporal entre o momento de implementação da diretriz de universalização de políticas sociais – típica do Estado de Bem-estar Social – e o momento de crise fiscal do Estado e implementação de políticas de redução de sua atuação foi decisiva para a definição de uma estratégia de universalização por meio da descentralização, adotada a partir de meados da década de 1990 (FRANZESE e ABRUCIO, 2009, p. 41).

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1.2. Assistência Social como Política Pública e o Fenômeno da Municipalização

Dada a dicotomia entre os modelos de descentralização, observa-se que ambos apresentam problemas inerentes às suas especificidades. No caso do modelo cooperativo, adotado pelo Brasil, percebe-se, não raras vezes, alguns obstáculos a serem superados quando da tomada de decisões conjuntas, em especial na concretização das responsabilidades dos entes. Tudo isso somado ao jogo político inerente a uma democracia (FRANZESE e ABRUCIO, 2009, p. 27). Uma efetiva distribuição de tarefas torna-se essencial para a melhor operacionalização da assistência social. Em alguma medida o assunto está razoavelmente estruturado no direito brasileiro, como se verá.

De acordo com Oliveira e Pinto (2005, p. 55) as competências dos entes federados estão devidamente expostas de forma a prevalecer a lógica da municipalização. O fenômeno da municipalização, por sua vez, é organizado através das instâncias de deliberação, de forma a facilitar a operacionalização do sistema. São elas o Conselho Nacional de Assistência Social, os Conselhos Estaduais e os Conselhos Municipais e do Distrito Federal.

Nos termos da Lei do SUAS, o sistema de assistência social será integrado, além das esferas de governo, pelos respectivos Conselhos (art. 6º, § 2º) que, conforme exposto no art. 16, parágrafo-único, “estão vinculados ao órgão gestor de assistência social, que deve prover a infraestrutura necessária ao seu funcionamento”.

Tais Conselhos foram criados com a intenção de instrumentalizar o controle social e fomentar uma melhor formulação de políticas públicas por meio de organizações de representação e da sociedade de uma forma geral. Os Conselhos devem ter um número paritário de representantes da sociedade e representantes governamentais. Fica caracterizado, portanto, uma inovação democrática no campo das políticas públicas (CHAVES, 2013, p. 104).

A partir desse modelo de criação de redes descentralizadas, hierarquizadas e com incentivo à participação popular, os Municípios, aderindo a tal, conforme o prescrito na LOAS, ficam obrigados a instituírem os Centros de Referência da Assistência Social – CRAS e os Centros de Referência Especializada em Assistência Social – CREAS. (FRANZESE e ABRUCIO, 2009, p. 37).

A municipalização, conforme o contexto acima, deve ser entendida, para além de um simples método de operacionalização, como um processo de aproximação da população com o ente governamental, para a construção de políticas públicas, o que reflete como importante conquista democrática/cidadã.

A ideia se fortalece na realidade de que o indivíduo vive no Município, lá constrói a sua história e alcança cidadania. No Município, sem dúvidas, há um maior exercício do controle social sobre as políticas públicas. (GIAQUETO, 2010, p. 87).

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A União e o Estado, como entes gestores, não alcançam satisfatoriamente as necessidades das pessoas. O ente municipal, pela proximidade direta com o viver comunitário, tem melhores condições de gerir e de organizar a vida no “micro” contexto social.

Os Municípios, no entanto, a depender de seu porte, nem sempre alcançam recursos financeiros suficientes para fazer acontecer de forma coerente o atendimento à população, em especial no tema da assistência social.

Caberá, conforme a realidade local, e para realizar-se no mundo fenomênico a política pública, o chamamento da União ou do Estado para aporte financeiro e estrutural adequados à sua concretização.

Assim é com relação a assistência social, no campo específico do acolhimento do idoso e da pessoa com deficiência. O Município tem maior facilidade, por sua rede constituída de atenção à assistência social, de conhecer a realidade de quem precisa de auxílio. Se acaso, por seu porte e limitações financeiras, não conseguir atender à pessoa necessitada, serão chamados à responsabilidade a União ou o Estado.

Conforme a legislação e as normas administrativas aplicáveis à assistência social, como se verá, as competências e os recursos para este campo são geridos por Estados e Municípios. A União participa indiretamente.

Conclui-se, portanto, que o processo de concentração de competências de operacionalização nas mãos dos Municípios – a municipalização –, é intrínseco a um sistema baseado em uma divisão cooperativa de competências que tende a fortalecer a participação popular no processo de elaboração de políticas públicas, bem como o aproveitamento da situação de realidade das pessoas, que estão mais próximas do ente municipal do que do estadual ou do federal.

2. O DIREITO À MORADIA DA PESSOA IDOSA E DA PESSOA

COM DEFICIÊNCIA EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL

O acolhimento institucional da pessoa idosa ou da pessoa com deficiência acontece quando não existe a possibilidade de que os cuidados necessários à manutenção de sua vida sejam dispensados por familiar ou pessoas próximas.

Quando a pessoa idosa ou com deficiência tem familiares, mas precisa de cuidados especializados, o sistema atende por sua rede hospitalar, de apoio inclusivo ou de apoio terapêutico.

A situação do presente estudo tem como objeto aquela pessoa que não tem familiares disponíveis e não tem condições de moradia digna ou de cuidados minimamente especializados.

Para o apropriado atendimento a essas pessoas vulneráveis é preciso falar em moradia e em atendimento de saúde constante.

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O direito à moradia da pessoa idosa e da pessoa com deficiência em situação de vulnerabilidade, sob a perspectiva da Lei Orgânica de Assistência Social, do Estatuto da Pessoa Idosa e da Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência, além de outras normas pertinentes, acontece com o denominado acolhimento institucional em instituição de longa permanência para idosos e em residência inclusiva ou terapêutica para pessoa com deficiência.

2.1. Instituição de Longa Permanência para Pessoa Idosa em Situação de Vulnerabilidade

O artigo 230 da Constituição Federal estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado “amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. Prevê, ainda, no § 1º, que “os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.

Esses dispositivos constitucionais se realizam e vão exatamente ao encontro da aplicação do princípio da primazia regional e da ideia de descentralização administrativa, em face da necessidade de apoio da rede especializada municipal às pessoas vulneráveis em tais condições.

O Estatuto da Pessoa Idosa classifica o processo de envelhecimento como um direito personalíssimo e a proteção deste direito torna-se um dever social.

O referido conjunto normativo, que tem como objetivo a garantia da dignidade humana da pessoa idosa, estabelece igualmente o direito a uma moradia que a acolha em situações de vulnerabilidade social e financeira.

As Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) foram criadas para ser locais de atendimento às pessoas idosas em situação de vulnerabilidade, sejam estas pessoas independentes nas atividades rotineiras ou não, que, por algum motivo, não têm condições de permanecer em convívio com seus familiares. Podem ser estatais ou privadas. É, por fim, uma instituição assistencial de caráter residencial e assistencial para as pessoas com 60 anos ou mais (FAGUNDES, et al, 2017, p. 212).

A Tipificação Nacional de Serviços Sociais – Resolução n° 109 de novembro de 2009 – classifica a ILPI como um serviço de proteção social especial de alta complexidade, constituindo-se como uma modalidade de acolhimento institucional, dentre outras possíveis. Estabelece também os objetivos do acolhimento em ILPI: proteção, restabelecimento de vínculos familiares, promoção de acesso à rede socioassistencial, promover a independência, lazer, cultura, esporte e atividades de interesses.

Segundo Fagundes (et al, 2017, p. 213) existem três tipos de modalidades de acolhimento: a) para pessoas independentes que se utilizam de aparelhos de autoajuda, como andadores; b) para pessoas idosas que precisam de cuidados

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Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 25 especiais com profissionais da saúde, independentes ou não; c) para dependentes, ou seja, aqueles que necessitam de auxílio total em ao menos uma atividade no dia.

A Tipificação Nacional de Serviços Sociais estabelece que as ILPI são destinadas aos idosos que não têm condições de convívio com os familiares, cuja possibilidade de autossustento e convívio estão esgotados, seja por violência, negligência, abandono, situação de rua e fragilidade de vínculos com a família. Contudo, prevê também a temporariedade da medida.

O Estatuto da Pessoa Idosa estabelece que a toda pessoa idosa é garantida moradia digna, e que a modalidade de longa permanência será prestada quando ausente o grupo familiar, casa lar, ou haja insuficiência de recursos próprios ou familiares e no caso de abandono. Amplia, portanto, a possibilidade do acolhimento institucional.

Como se trata de medida excepcional, Freitas (2017, p. 5) atenta para o fato de que a vulnerabilidade deve ser contingenciada com outros mecanismos de assistência social antes de se utilizar do acolhimento institucional do idoso em ILPI. Cita, por exemplo, a possibilidade de utilização do Benefício de Prestação Continuada (BPC) como tentativa inicial de mitigação da vulnerabilidade e, uma opção legislativa, seria a redução da idade de requisito do benefício para 60 anos.

Por fim, fica claro que o acolhimento em ILPI é medida de caráter assistencial, na modalidade de acolhimento institucional, como um serviço de proteção social especial de alta complexidade. Deve atender a pessoas com mais de 60 anos em situação de vulnerabilidade econômica e/ou social/familiar. Guarda caráter residencial, temporário e excepcional, que visa concretizar o direito à moradia e à dignidade da pessoa idosa.

2.2. Residência Inclusiva ou Terapêutica para Pessoa com Deficiência em Situação de Vulnerabilidade

Como se sabe, é constitucionalmente garantido às pessoas com deficiência a habitação e reabilitação. Também é previsto que o Estado promoverá a integração da vida da pessoa com deficiência na comunidade. Tais ações estão delineadas de forma expressa no art. 203, IV, da Constituição Federal, como objetivos da assistência social.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), se ocupou, no art. 31, de garantir à pessoa com deficiência o direito a uma moradia digna no seio familiar, ou, ainda, em Residências Inclusivas, se necessário, de forma a lhe propiciar uma vida independente. De acordo com Muñoz (2017, p. 80), existem dois tipos de moradias de apoio para a pessoa com deficiência: as moradias independentes com

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in dividualização no apoio e as residências assistidas ou inclusivas. No primeiro caso os espaços são individualizados e o apoio para a realização de atividades acontece em momentos específicos. Já no segundo caso, os espaços são compartilhados e o apoio é permanente e integral.

Fala-se, ainda, em Residência Inclusiva para pessoas com deficiência que tenham condições de razoável independência no lidar da vida cotidiana, e de Residência Terapêutica para situações em que a pessoa necessite de cuidados mais especializados. Mister deixar consignado, no entanto, que a terminologia “Residência Terapêutica” guarda alguma resistência entre os especialistas.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece no art. 31, § 2º, que a Residência Inclusiva será prestada no âmbito do SUAS e tem como foco a pessoa com deficiência não autossuficiente, com vínculos familiares frágeis ou rompidos. Trata-se, portanto, de uma ferramenta de proteção integral.

Dadas suas características, a Tipificação Nacional de Serviços Sociais –Resolução n° 109 de novembro de 2009 – classifica a Residência Inclusiva como um serviço de proteção social especial de alta complexidade, constituindo-se como uma modalidade de acolhimento institucional, dentre as possíveis.

O objetivo da Residência Inclusiva é romper com o isolamento das pessoas com deficiência e mudar a estrutura de prestação de serviços de acolhimento, de forma a incentivar a convivência em comunidade. A finalidade é a construção da independência e do protagonismo nas atividades diárias da pessoa vulnerável, em condições de igualdade possível com as demais, nos exatos moldes do que determina a Convenção de Nova Iorque sobre a proteção das pessoas com deficiência, devidamente internalizada como Emenda Constitucional no Brasil.2

2 Sobre o tema leia mais em:

FRANÇA, Phillip Gil; SILVA, Alexandre Barbosa da. Proteção Estatal, Informação e a Capacidade das Pessoas com Deficiência na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista Jurídica vol. 04, n°. 53, Curitiba, 2018. P. 129-155. Disponível em: <https://revista.unicuritiba.edu.br/index. php/RevJur/article/view/3213>.

SILVA, Alexandre Barbosa da. O Estatuto da Pessoa com deficiência e o regime das incapacidades: breve ensaio sobre algumas possibilidades. In: EHRHARDT, Marcos Jr (Org.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil brasileiro. 1ª Ed. Belo horizonte: Fórum, 2016. P. 241256.

PEREIRA, Elizabete Aparecida; SILVA, Alexandre Barbosa da. Direitos Fundamentais consagrados à pessoa com deficiência na Constituição de 1988 e sua emenda convencional: preliminares apontamentos sobre o novo marco civil de capacidade legal. In: SANTANO, Ana Claudia; LORENZETTO, Bruno Meneses; GABARDO, Emerson (Orgs.). Direitos fundamentais na nova ordem mundial. Livro do I Congresso Internacional Direitos fundamentais na nova ordem mundial. Curitiba: Ithala, 2018. P. 335-354.

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A Residência Inclusiva, ou na modalidade terapêutica, em casos de real necessidade, também acolhe pessoas com deficiência que tenham dificuldades, limitações ou impossibilidade para a convivência independente, no intuito de absoluta proteção.

Assim, o acolhimento em Residência Inclusiva, semelhante a ILPI, é medida de caráter assistencial de apoio institucional de alta complexidade, que se destina às pessoas com deficiência em condição de vulnerabilidade social/ familiar que não tem a possibilidade de autossustento.

2.3. Políticas Públicas de Assistência Social na Norma Operacional Básica

A idealização de políticas públicas da assistência social pode ser vista de duas perspectivas: a perspectiva do Estado e a perspectiva da população. A perspectiva estatal é marcada pela ótica da necessidade de conceder apoio em nível assistencial, ao passo que a da população é de busca e conquista da cidadania através de direitos socialmente negados. (SPOSATI, 1986, apud OLIVEIRA e PINTO 2005, p. 54).

O fenômeno da municipalização, pela descentralização, gera uma maior participação de todos para o alcance da cidadania, conceito intrinsecamente ligado com a ideia de cidade.

Rizzoti (2010, p. 181) leciona que o processo de implantação do Sistema Único de Assistência Social apresentou um processo para democratizar as políticas públicas que, com o processo de cooperação, articulam os entes federativos sobre as necessidades dos cidadãos.

A edição da primeira Norma Operacional Básica da Política Nacional de Assistência Social (NOB) em 2004/2005 – depois atualizada em 20123 –representou um marco fundamental na estruturação da Política Pública de Assistência Social, por auxiliar na implantação de serviços socioassistenciais em todo o território nacional.

Em seu texto original deixa clara a intenção de ser a “materialidade do conteúdo da assistência social como um pilar do Sistema de Proteção Social Brasileiro no âmbito da Seguridade Social’. Sobre isso, a atenta doutrina enfatiza:

O caso específico da política de assistência social enuncia sua proposição de política organizada sob a égide de Sistema Único a partir de 2004, com a edição do documento que traz em seu primado a reiteração do objetivo desta política como corresponsável pela ampliação dos direitos sociais, sobretudo na

3 Veja o conteúdo completo da NOB SUAS 2012 em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/public/ NOBSUAS_2012.pdf acesso em 15/09/2023.

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circunscrição da seguridade social sob o signo da proteção social. Nessa linha, gestão pública, proteção social e sistema único passam a constituir elementos fundantes da análise do processo de implantação desta política. Associam-se a estes pontos as diretrizes e princípios que embasam as políticas sociais públicas na atualidade. (RIZZOTTI, 2010, p. 2).

Essas políticas públicas devem ser elaboradas de acordo com a capacidade do ente federativo que a constitui, observando sempre o princípio da cooperação. Devem estes entes preservar uma abertura, um canal constante de comunicação entre si, reforçando a instância regional, tal qual recomenda o princípio da primazia da realidade regional na assistência social.

Ainda, a referida Norma Operacional estabelece que as políticas de assistência social, em cada nível da federação, tenham sua expressão, devendo constituir-se como um conjunto integrado de ações com foco na heterogeneidade territorial e na desigualdade social local. Isso, por certo, materializa a opção pela descentralização.

Conforme Giaqueto (2010, p. 81), a efetivação da assistência social se dará nos Centros de Referência da Assistência Social – CRAS, quando se tratar de proteção social básica e nos Centros de Referência Especializados da Assistência Social – CREAS, quando se tratar de proteção especial.

Dito isso, possível e recomendável concluir que a formulação de políticas públicas no âmbito da Assistência Social está correlacionada com a própria implementação do SUAS. Devem, portanto, ser voltadas à busca da cidadania e envolver um esforço conjunto das três esferas de governo, conforme a competência, mas que terá efetividade, de forma primária, em nível municipal.

Não se deve perder de vista que, como já mencionado, os entes federados obrigados ao acolhimento institucional de idosos e de pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade, são o Município e o Estado.

O Município atenderá sozinho ao dever de configuração do acesso às políticas públicas de acolhimento se detiver autonomia financeira e econômica, bem como gestão plena da saúde e da assistência social. Caberá ao Estado financiar ou auxiliar no custeio dos acolhimentos, se o Município não demonstrar capacidade financeira e operacional de fazê-lo, por conta de não ser enquadrado como de gestão plena da saúde e da assistência social.

3. A RESPONSABILIDADE DOS ENTES FEDERADOS NO ÂMBITO DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

Após superar-se os temas relativos às bases estruturantes do SUAS, assim como depois de se entender sobre as Instituições de Longa Permanência e sobre as Residências Inclusivas ou Terapêuticas, faz-se necessário verificar a

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distribuição de competências dos entes federados nesse sistema de descentralização cooperativa, além da responsabilidade de cada um deles em prestar efetivamente o serviço.

3.1. Distribuição de Competências no Sistema Único de Assistência Social e a Primazia da Realidade Regional

A distribuição de competências dos entes federativos no âmbito da assistência social está disposta nos artigos 12, 12-A, 13, 14 e 15 da Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS. Aludida norma deixa claro o modelo de descentralização cooperativa no art. 11, no sentido de que as ações serão elaboradas nas três esferas de governo, de modo articulado.

Nesse sistema, a União ficou competente (art. 12 e 12-A da LOAS) pela manutenção dos benefícios previstos no art. 203 da Constituição Federal, pelo cofinanciamento junto aos demais entes, por atender em conjunto as situações de emergência, e, também, por realizar o monitoramento e avaliação das políticas públicas elaboradas pelos outros entes federativos. Pelo dispositivo legal, percebe-se o escopo de competência financiadora, supervisora e diretora da União.

Aos Estados compete (art. 13 da LOAS) a destinação de recursos aos Municípios para o pagamento de benefícios, nos moldes do art. 22 da LOAS, cofinanciá-los para o desenvolvimento dos programas de assistência social, bem como atender em conjunto as situações de emergência. Cabe ao ente estadual, ainda, estimular e apoiar tecnicamente as associações e consórcios municipais de assistência social, prestar os serviços assistenciais cujos custos ou ausência de demanda municipal justifiquem uma rede regional de serviços, desconcentrada, no âmbito do respectivo Estado. Por fim, os Estados devem realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social e assessorar os Municípios para seu desenvolvimento.

Destaca-se, e repisa-se, o inciso V do art. 13: “prestar os serviços assistenciais cujos custos ou ausência de demanda municipal justifiquem uma rede regional de serviços, desconcentrada, no âmbito do respectivo Estado”. Aqui está a responsabilidade direta dos Estados nas situações de acolhimento de pessoas vulneráveis.

Para os Municípios ficou reservada uma atuação mais prática, finalística de operação concreta, conforme art. 15 da LOAS. Além da atribuição de destinar recursos financeiros para auxílios e benefícios de que trata o art. 22 da LOAS, de executar os projetos de enfrentamento da pobreza, de prestar os serviços assistenciais de que trata o art. 23, de cofinanciar o aprimoramento da gestão, os serviços, os programas e os projetos de assistência social em âmbito local e, ainda, de realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social

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em seu âmbito, o Município tem o dever de, conforme o inciso IV do art. 15, atender às ações assistenciais de caráter de emergência.

Este o ponto fulcral: o Município deve atender às ações assistenciais de emergência, tais como o acolhimento de idosos e de pessoas com deficiência. Veja-se que a União e os Estados, nos termos do art. 12, III, e do art. 13, III, mencionados, devem agir de forma suplementar, atendendo “em conjunto com o Município”.

Conhecer como se dá esse “atendimento em conjunto”, no campo prático e dos fatos, é sobremaneira importante para evitar que se determine, inclusive pela via judicial, um fazer geral, ambíguo e não realizável a todos os 3 entes federativos.

A concentração de competências operacionais aos Municípios reflete o princípio da primazia da realidade regional, previsto de forma implícita nos diversos documentos normativos que regem o SUAS. Neste sentido, a lição de Giaqueto: “A realidade de cada município revela uma experiência específica e diversificada quanto à forma, tempo de organização, capacidades operacionais, dinâmicas e políticas próprias, e principalmente, a capacidade de organização e pressão da sociedade civil”. (2010, p. 86).

Nesse sentido, conclui-se que a lógica de se concentrar as atividades de execução em nível municipal reside, justamente, na possibilidade de maior transparência, adaptação, flexibilidade e agilidade nos afazeres. Visa maior controle popular e engajamento por parte da sociedade, além de uma proximidade maior do gestor local com a população no que se refere a concretização de políticas públicas.

3.2. As Responsabilidades dos Entes no Acolhimento Institucional:

O Exemplo do Estado do Paraná

Já se afirmou mais do que uma vez que o modelo de descentralização da assistência social brasileira é cooperativo. Isso, como se viu, significa que cada ente irá cooperar de forma distinta em uma mesma atividade prestada dentro do Sistema Único estabelecido. Cabe, agora, verificar qual a função de cada ente para a efetivação do serviço de acolhimento em Instituto de Longa Permanência ou em Residência Inclusiva/Terapêutica.

O estudo doravante levado a efeito tem por recorte normativo o exemplo do Estado do Paraná, mas que não diverge de outros Estados da federação, uma vez que o SUAS é nacional.

Acolhimento institucional, seja por Instituição de Longa Permanência para Idosos ou por Residência Inclusiva para pessoas com deficiência, é serviço de alta complexidade. A indicação é de que se desenvolvam com abrangência local (municipal) ou regional, com a regionalização efetivada entre Municípios de pequeno porte localizados em um raio de proximidade.

O processo de implantação dos acolhimentos, portanto, deve ser coordenado pela administração municipal, necessita estar previsto no Plano Municipal

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da Assistência Social e precisa ter a aprovação do Conselho de Assistência Social. Esta fase documental e de gestão independe de fonte de cofinanciamento a cargo de União ou Estado. Há também a necessidade de articular os serviços dos CRAS e dos CREAS para o direcionamento.

Não se olvide, contudo, que os serviços prestados pelo Estado (lato sensu) esbarram no princípio da reserva do possível, que, por sua vez, tem como princípio antagônico o mínimo existencial. Assim, há a previsão de se ofertar serviço de acolhimento institucional em Residência Inclusiva (ou ILPI) em parceria com os Estados-Membros, cabendo à administração municipal a iniciativa, organização, legalização e publicização da parceria.

Segundo SOUZA (2018, p. 271), o papel dos Estados é diferente dos demais entes quando se trata do desenvolvimento de políticas de assistência social. A participação dos Estados-Membros na formulação e financiamento das políticas assistenciais está diretamente ligada com a atividade financeira e com o afazer burocrático.

O Estado do Paraná, de forma a regulamentar o art. 13 da LOAS, editou a Lei Estadual n° 17.544/2013, a qual prevê transferências automáticas fundo a fundo para os Municípios, independente da celebração de convênio.

Os recursos recebidos pelos Municípios devem ser alocados conforme o plano de assistência social local devidamente aprovado pelos Conselhos de Assistência Social. A norma prevê, ainda, que os atos de repasse serão regulamentados por ato infralegal. (ESTADO DO PARANÁ, 2013).

Nesse sentido, a Deliberação n° 069/2022 do Conselho Estadual de Assistência Social regulamenta o repasse no âmbito do serviço de acolhimento institucional de pessoa idosa e da pessoa com deficiência. Estipula o repasse direto de R$ 3.500,00 por acolhido4, direcionado aos Municípios de pequeno porte que, por conta da incapacidade financeira, precisam de cofinanciamento. Analise-se o conteúdo normativo:

Art. 2º. A gestão municipal deverá selecionar e viabilizar, com recursos deste repasse, a contratação de Organização da Sociedade Civil ou instituição privada com fins econômicos que executa serviço similar ao Serviço de Acolhimento Institucional para Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência, conforme previsto nas normativas e orientações técnicas que emanam do SUAS.

§ 1º. É prioritária a utilização da rede socioassistencial vinculada ao SUAS para oferta de serviços de acolhimento institucional providos por meio de recursos disponibilizados por meio desta Deliberação.

§ 2º. Caso haja saldo do recurso, a gestão municipal poderá optar por aplicar o saldo em ações para fortalecimento de vínculos familiares e comunitários do usuário acolhido.

4 Valores para meados de setembro de 2023.

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Art. 3°. Os Municípios de pequeno porte I e II serão elegíveis para receber o repasse, desde que apresentem demanda para o atendimento em Serviço de Acolhimento Institucional para Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência, decorrentes das seguintes situações: I – As demandas encaminhadas pelas gestões municipais de assistência social; II – As demandas do Sistema de Justiça. (ESTADO DO PARANÁ, 2022).

Fica evidente, desta maneira, a concentração de atividades e a função executiva que os Municípios desempenham no SUAS, principalmente em relação a prestação do serviço de acolhimento institucional da pessoa idosa e da pessoa com deficiência.

Note-se que a participação do Estado varia de acordo com as possibilidades financeiras dos Municípios, bem como com a construção dos mecanismos de cofinanciamento por meio de norma específica. Os Municípios têm a obrigação fim de organização e gestão, ao passo que o Estado, por conta da situação regionalizada que exclui a União deste processo direto, deve auxiliar economicamente na efetivação dos fluxos e processos de concretização do direito fundamental à moradia da pessoa idosa e da pessoa com deficiência. Os Municípios de grande porte, com gestão plena na saúde e na assistência social, e que dispõe de recursos destinados pela União ou Estado diretamente para este fim, devem arcar sozinhos com as políticas de moradia dos vulneráveis aqui tratados.

Veja-se que, por serem cofinanciados, no Estado do Paraná, os Municípios de pequeno porte ficam incumbidos de organizar a prestação do serviço da melhor forma, podendo ser regionalizados ou de forma municipal, levando em consideração a capacidade e a demanda da população, o que privilegia o princípio da realidade regional do SUAS.

3.3. Fixação das Responsabilidades pelo Poder Judiciário: A Necessária Especificação das Atribuições

Da mesma maneira como ocorre a judicialização do direito à saúde, ocorre também a judicialização da assistência social, em menor escala, evidentemente, mas com relevante impacto no sistema administrativo de Estados e de Municípios, assim como no sistema de justiça. O Poder Judiciário se vê chamado a decidir tais questões que passam por diversos ramos do Direito, tais como o direito constitucional, o administrativo, o financeiro, dentre outros.

A atuação no espaço do acolhimento institucional é eminentemente político-administrativa, devendo ser iniciada a partir da sintonia entre os atores municipais. O movimento de resolução de conflitos que envolvem decisões

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políticas pelo Poder Judiciário pode ser entendido como a judicialização da assistência social (MADEIRA, 2016, p. 161).

A judicialização é um movimento natural quando se tem em mente a efetivação dos direitos sociais. Para Esteves (2006, p. 50) existem dois fatores que influenciam este fenômeno. O primeiro é o amplo complexo normativo que garantem os direitos sociais que se inaugura com a CF/1988. E o segundo é a defesa das minorias que, não conseguem contar somente com órgãos legislativos e executivos eleitos pela maioria.

Percebe-se, disso, uma aparente contradição: há o aumento de direitos sociais, ao passo que, na esfera executiva, reduz-se a aplicabilidade e efetividade.

O processo de judicialização, portanto, se dá em meio a um conflito que envolve a sociedade, na busca pela proteção social, envolvendo o Poder Judiciário e o Poder Executivo. Tudo, na perspectiva do federalismo, que estabelece o sistema de pesos e contrapesos e a garantia de autonomia entre os poderes orgânicos (SIERRA, 2011, p. 259).

A discussão sobre a legitimidade do Judiciário em determinar ao Executivo algumas condutas específicas voltadas ao atendimento de políticas públicas já está pacificada. Mas faz-se necessário compreender que os comandos veiculados em decisão judicial devem ser claros, objetivos e com atribuição específica de afazeres ao gestor público.

Exatamente por esse motivo que se torna indispensável refletir sobre algumas premissas a nortear as decisões judiciais sobre o tema.

É bastante comum que as decisões judiciais fixem a obrigação pelo acolhimento de forma genérica, fundamentando meramente na responsabilidade solidária entre Município e Estado5.

Existem, também, decisões que fixam a responsabilidade primária ao Município, mas que determina ao Estado a responsabilidade integral de arcar com os custos do acolhimento institucional6.

As decisões, em regra, carecem dos fundamentos base para a fixação das atribuições derivadas das competências de cada ente federativo. Não basta simplesmente determinar, genericamente, que todos os entes federativos têm todas as obrigações na efetivação do direito aqui em debate.

Faz-se indispensável a fixação pormenorizada das atribuições de cada ente, conforme a distribuição constitucional e legal descrita nos capítulos anteriores. Em outras palavras, é passada a hora de se aplicar as leis de regência aos casos concretos envolvendo a necessidade de acolhimento, quer pela ILPI ou pela Residência Inclusiva/Terapêutica.

5 Como no caso do julgado de n° 0018112-30.2022.8.16.0000, o qual, em agravo de instrumento determina aos dois entes do cumprimento da medida liminar (ESTADO DO PARANÁ, 2022).

6 É o caso do processo n° 0008946-68.2020.8.16.0056.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 33

Quando o magistrado determina de maneira aberta que todos os entes devem acolher, na verdade está a permitir que nenhum deles o faça, por conta da ausência de especificação dos deveres de cada um.

A prática demonstra que os entes envolvidos se defendem atribuindo a responsabilidade ao outro e deixam de cumprir, inclusive manejando embargos de declaração – que são processualmente adequados e necessários para delimitar o alcance da decisão, que é omissa – em prejuízo da urgência do resultado prático a alcançar-se com a decisão a ser cumprida.

Para que a decisão judicial seja efetiva e de cumprimento facilitado, conforme a urgência que geralmente os casos determinam, mister que dela fique clara a atribuição de cada um dos entes requeridos, atendendo-se ao primado de que o sistema de assistência social brasileiro é sustentado na descentralização político-administrativa e na municipalização.

Deve prevalecer o princípio da primazia da realidade regional nas ações socioassistenciais, próprio da municipalização do operador do sistema. Somente isso viabiliza o atendimento das demandas sociais de forma personalizada, com maior adesão e participação social na elaboração de políticas públicas.

O modelo cooperativo, próprio da descentralização, determina que a atividades sejam efetivadas em conjunto pelos entes federados, mas com a especificação do que cada qual deve realizar, ou seja, a União viabiliza o orçamento, o Estado coopera na organização do sistema e financia os Municípios de pequeno porte, repassando verbas fundo a fundo.

A gestão municipal, por sua vez, efetiva os aspectos operacionais dos acolhimentos, encaminhando os vulneráveis aos espaços assistenciais públicos ou privados, conforme a disponibilidade, na própria cidade ou na região. Ainda que o custeio, no caso concreto, venha a ser efetivado pelo Estado.

Atendendo-se à necessária resposta objetiva ao problema de pesquisa apresentado na introdução deste trabalho, portanto, fica eleita a hipótese de resposta que se traduz em que a responsabilidade pelo acolhimento institucional de idosos e de pessoas com deficiência, por meio dos Institutos de Longa Permanência para Idosos ou das Residências Inclusivas para pessoa com deficiência, é do Município, na perspectiva da operacionalização e da realização dos atos práticos tendentes ao acolhimento, ao passo que ao Estado cabe, conforme o porte do ente municipal, o financiamento fundo a fundo, com vistas e atender à necessidade financeira do ente operacionalizador.

A responsabilidade não é só do Município e nem unicamente do Estado. Ambos devem trabalhar em sintonia. Os Municípios de pequeno porte recebem apoio financeiro direto, de acordo com os casos concretos apurados nos CRAS e nos CREAS, e os Municípios de gestão plena devem sustentar por si o sistema, pois já recebem financiamento em ordenação orçamentária da União e do Estado.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 34

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Uma adequada prestação jurisdicional é aquela cuja decisão fixa, conforme os fundamentos demonstrados nos capítulos anteriores, a obrigações de cada ente federativo.

Em simples palavras, o Município de gestão plena financia e efetiva a política pública de acolhimento. O Estado sequer deve compor a lide nestes casos. Aos Municípios de pequeno porte, que demonstrem a insuficiência de recursos, que se fixe ao Estado a obrigação de objetiva de eventualmente custear fundo a fundo os gastos do acolhimento. Jamais se deve determinar que o Estado ou a União realizem, de forma operacional, o ato de acolhimento.

Ao Estado não cabe operacionalizar essa política pública assistencial, buscando instituição acolhedora e realizando os atos próprios do Município. Lembre-se dos artigos 12, inciso III, 13, inciso III e 15, inciso IV: o Município deve atender às ações assistenciais de emergência. É o caso do acolhimento de idosos e de pessoas com deficiência. A União e os Estados devem agir de forma suplementar, atendendo “em conjunto com o Município”.

Registre-se, por fim, que o conjunto legislativo é claro em determinar aos Municípios a atenção imediata e, apenas se necessário, ao Estado eventual cooperação econômica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Sistema Único de Assistência Social é descentralizado e cooperativo.

Cada ente federativo tem sua obrigação definida em lei, em que pese a Constituição, que é por natureza genérica, fixar a solidariedade das ações ente todos. Isso, no entanto, é efetivado a partir de políticas públicas descritas na legislação de regência.

Aos Municípios cabe efetivar e operacionalizar a realidade do sistema na vida de cada cidadão vulnerável que precise de acolhimento, quer por ILPI, quer por Residência Inclusiva ou Terapêutica.

União e Estado não tem função operacional, mas de cofinanciamento e de colaboração, uma vez que as normas legais e infralegais determinam que atuam “em conjunto” com o Município.

Uma decisão judicial clara, juridicamente adequada e de fácil cumprimento é a que identifica e especifica essas responsabilidades para cada ente federativo requerido em ação judicial, respeitando, fielmente, o dever de fundamentar do magistrado determinado no art. 93, IX, da Constituição Federal e no art. 489, § 1º, do CPC.

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caPítulo 2
a lei geral De Proteção De DaDos Pessoais e as Políticas Públicas De saúDe: ParÂmetros Para o tratamento De DaDos Pessoais Pelo PoDer Público

1. LGPD. ORIGEM E NOÇÕES GERAIS.

1.1. Avanços tecnológicos e economia digital: a proteção de dados pessoais no âmbito internacional.

A origem de legislações relativas à proteção de dados pessoais está diretamente ligada ao rápido e intenso desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e, por consequência, ao desenvolvimento da economia digital. Ingressou-se, rapidamente, na era da informação, do denominado Big Data, que “representa uma enorme quantidade de dados contida em bancos de dados interligados entre si por uma diversidade de servidores em rede no universo da internet”1. Os dados estão no cerne da sociedade da informação, sendo elemento-chave e o “combustível” da nova economia2.

É o processamento, com grande velocidade, de enorme volume de dados, de variadas fontes disponíveis e interações nos meios digitais (redes sociais,

1 CAVALCANTI, Natália. Peppi; SANTOS, Luiza Mendonça da Silva Belo Santos. A Lei geral de proteção de dados do Brasil na era do big data In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (coord.).Tecnologia Jurídica & Direito Digital: II Congresso internacional de direito, governo e tecnologia 2018. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 352. Disponível em: https:// www.forumconhecimento.com.br/livro/1788/1884/18042. Acesso em: 19 fev. 2023.

2 SALVIO, Gabriella G. L. de; ROGENFISCH, Sandra; LADEIRA, Roberta. Privacidade e proteção de dados pessoais: evolução do cenário legislativo no Brasil. In: BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues; BEPPU, Ana Claudia (coord.). Proteção de dados pessoais no Brasil: Uma nova visão a partir da Lei nº 13.709/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 16. Disponível em: https://www. forumconhecimento.com.br/livro/3906/4035/23424. Acesso em: 19 fev. 2023.

Audrey Silva Kyt

e-mails, aplicativos de smartphones, documentos eletrônicos, câmeras de vídeo, comércio eletrônico etc.).

Observou-se a criação de plataformas que viabilizam negócios digitais, com a lógica da coleta de dados e extração de “valor” dos mesmos. Toda essa interação com o mundo digital produz enorme quantidade de dados a respeito das pessoas, cuja utilização por terceiros é certa e, ao mesmo tempo, incerta em relação à sua finalidade.

No direito internacional, o direito à privacidade encontrou primeira previsão normativa na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de 19483. Porém, com a popularização, anos mais tarde, de computadores e do acesso à Internet, logrou novos contornos.

Essas novas tecnologias trouxeram riscos inéditos às liberdades individuais decorrentes do tratamento de dados pessoais em meios digitais. A ideia de privacidade passou a contemplar a “privacidade informacional” ou o “direito à autodeterminação informacional”4, reconhecendo-se o direito fundamental autônomo da proteção aos dados pessoais5 e se desenvolvendo normas específicas a esse respeito.

A preocupação internacional com a proteção dos dados de pessoas naturais não teve origem com o advento da General Data Protection Regulation (GDPR) de 2016 da União Europeia - UE.

Nos Estados Unidos da América o tema da privacidade era objeto de estudos desde o século XIX, sendo emblemático, a propósito, o artigo “The right of privacy” de Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado em 18906.

Nas décadas de 1970 e 1980 vários países da Europa iniciaram a implementação de normas para regulamentação do uso de dados pessoais dos cidadãos nas esferas pública e privada, havendo, inclusive, grande inquietação sobre como os governos utilizariam esses dados, em especial no seu tratamento por autoridades policiais e judiciárias.

3 O artigo 12 da DUDH dispõe: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências e ataques”.

4 SALVIO, Gabriella G. L. de; ROGENFISCH, Sandra; LADEIRA, Roberta. Privacidade e proteção de dados pessoais: evolução do cenário legislativo no Brasil. In: BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues; BEPPU, Ana Claudia (coord.). Proteção de dados pessoais no Brasil: Uma nova visão a partir da Lei nº 13.709/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 20. Disponível em: https://www. forumconhecimento.com.br/livro/3906/4035/23424. Acesso em: 19 fev. 2023.

5 MENDES, Laura Schertel Ferreira. Autodeterminação informativa: a história de um conceito. In: Pensar: Revista de ciências jurídicas. Fortaleza, v. 25, n. 4, p 1-18, out/dez 2020, p. 2. Disponível em: https://ojs.unifor.br/rpen/article/view/10828. Acesso em: 10 abr. 2023.

6 DONEDA, Danilo. Panorama histórico da proteção de dados pessoais. In: MENDES, Laura Schertel et al. Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 49.

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Nesse sentido, no ano de 1983, o Tribunal Constitucional Alemão proferiu decisão inédita, em reclamação constitucional contra o recenseamento geral da população determinado pela Lei do Censo de 1983. Embora a Corte tenha confirmado, em geral, a constitucionalidade da lei, reconheceu a Corte alemã, pela primeira vez, a “autodeterminação sobre a informação”, “direito fundamental que garante o poder do indivíduo de decidir ele mesmo, em princípio, sobre a exibição e o uso de seus dados pessoais”7.

Apontou que “um dado em si insignificante pode adquirir um novo valor: desse modo, não existem mais dados ‘insignificantes no contexto do processamento eletrônico de dados’”8. Ainda, consignou que o referido direito não é garantido de forma absoluta, contudo, eventuais limitações dependem de uma base legal que “defina a finalidade de uso por área e de forma precisa, e que os dados sejam adequados e necessários em face dessa finalidade”9. A decisão do Tribunal Constitucional Alemão estabeleceu parâmetros utilizados nas regulamentações atuais, inclusive para o poder público.

As normas implementadas na Europa a partir da década de 1980, todavia, como, por exemplo, o documento “Diretrizes sobre Proteção da Privacidade e o Fluxo Transnacional de Informações Pessoais” de 1980 da Organization for Economic Cooperation and Development (OECD)10, e a Convenção 108 de 1981, firmada pelos Estados integrantes do Council of Europe (COE)11, exigiam que seus conteúdos principiológicos fossem incorporados nas legislações nacionais. Contudo, além de não terem conteúdo cogente imediato, resultaram em atividade legiferante desigual nos países europeus.

Posteriormente, em 1995, a Diretiva 95/46/CE estabeleceu diretrizes para a proteção de dados pessoais e exigiu que os países membros da EU tivessem uma ou mais autoridades públicas responsáveis pela sua aplicação das disposições eventualmente adotadas12.

Em 2016, foi aprovado o GDPR, com a finalidade de instituir normas para a proteção ao tratamento e livre circulação de dados pessoais de pessoas

7 BVERFGE 65, 1 (VOLKSZÄHLUNG) In: MARTINS, Leonardo. Tribunal Constitucional Federal Alemão. Decisões anotadas sobre direitos fundamentais. Volume 1: dignidade humana, livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental à vida e à integridade física e igualdade. São Paulo: Konrad-Adenauer Stiftung – KAS, 2016, p. 56-59. Disponível em: https://www.kas.de/c/document_library/get_file?uuid=4f4eb811-9fa5-baeb-c4ce996458b70230&groupId=268877. Acesso em: 23 fev. 2023.

8 Ibid, p. 59.

9 Ibid. p. 58.

10 Trata-se de organização criada na Europa em 1948. https://www.oecd.org

11 https://www.coe.int/en/web/portal/home

12 COE. Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de outubro de 1995. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/diretiva-europeia.pdf .Acesso em: 25 jul. 2023.

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físicas. Esta regulação vinculou uniforme e imediatamente os países integrantes, ao contrário das normas anteriores implementadas pela UE, que exigiam que seus conteúdos principiológicos fossem incorporados nas legislações nacionais, não tendo efeito cogente imediato. Além disso, exigiu-se legislação igualmente protetiva dos países que tratassem dados de pessoas físicas na UE. O Regulamento previu o prazo de dois anos, ou seja, até 25 de maio de 2018, para que os países se adequassem, quando, partir de então, passariam a ser aplicadas as penalidades13.

Patricia Peck Pinheiro destaca a repercussão do GDPR em relação aos demais países, em especial da América Latina, como o Brasil:

Este, por sua vez, ocasionou um “efeito dominó”, visto que passou a exigir que os demais países e empresas que buscassem manter relações comerciais com a EU [União Europeia] deveriam ter uma legislação do mesmo nível que o GDR. Isso porque o Estado que não possuísse lei de mesmo nível passaria a poder sofrer algum tipo de barreira econômica ou dificuldade de fazer negócios com os países da EU. Considerando o contexto econômico atual, esse é um luxo que a maioria das nações, especialmente as da América Latina, não poderia se dar.14

Por seu turno, desde 2005, havia debate no âmbito do Mercosul a respeito da proteção de dados pessoais, o que refletiu na elaboração de um anteprojeto de lei no Brasil15.

Logo, a discussão no plano internacional influenciou de maneira significativa o cenário legislativo brasileiro, o que refletiu no advento da LGPD, publicada em 15 de agosto de 2018.

1.2. Tutela jurídica da proteção de dados pessoais no Brasil.

1.2.1. Noções gerais.

A Constituição Federal de 1988 previu como fundamento da República Federativa do Brasil o respeito à dignidade da pessoa humana. Mais adiante, no artigo 5º, inciso X, ao tratar dos direitos fundamentais garantiu “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”, tendo em vista o livre desenvolvimento da personalidade. Contudo, não previu especificamente, na redação original, um direito à proteção de dados pessoais.

13 PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais. Comentários à Lei n. 13.709/2018 (LGPD) [e-book]. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 23.

14 Ibid, p. 23.

15 DONEDA, Danilo. Panorama histórico da proteção de dados pessoais. In: MENDES, Laura Schertel et al (coord.). Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 66-67.

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Igualmente, no âmbito infraconstitucional, leis como o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/1990 (CDC), Lei de Acesso à Informação, Lei 12.527/2011 (LAI), Lei do Cadastro Positivo, Lei 12.414/2011, Marco Civil da Internet, Lei 12.965/2014, tangenciaram a temática de proteção de dados das pessoas naturais por meio de normas esparsas setoriais.

A LGPD, que entrou em vigor em sua integralidade em 1º de agosto de 202116, padronizou o que seriam “atributos qualitativos da proteção de dados pessoais”, tendo como inspiração o GDPR17.

A Emenda Constitucional 115, de 10 de fevereiro de 2022, acresceu o inciso LXXIX ao artigo 5º da Constituição Federal, dispondo que “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”, reafirmando a índole fundamental e reconhecendo sua autonomia e amplitude em relação aos direitos à intimidade e privacidade18.

Dado pessoal, nos termos do artigo 5º, inciso I, da LGPD é “informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável”, observada em qualquer tipo de suporte (papel, eletrônico, ambiente virtual, imagem, som, etc.).

Também pode ser considerado como “pessoal” qualquer dado que possa relacionar o seu titular a algum perfil comportamental (profiling ou perfilamento). O artigo 12, §2º, prevê: “poderão ser igualmente considerados como dados pessoais, para fins desta Lei, aqueles utilizados para a formação do perfil comportamental de uma determinada pessoa natural, se identificada”.

Em contrapartida, nos termos do artigo 12, caput, dados anonimizados não seriam considerados dados pessoais para a LGPD “salvo quando o processo de anonimização19 ao qual foram submetidos for revertido, utilizando exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido”.

Logo, “dados pessoais implicam vínculo objetivo com a pessoa natural, de modo que proteger o tratamento de dados pessoais é proteger a própria personalidade da pessoa, eis que aqueles constituem as características ou o conjunto de características que a distinguem”20.

16 A LGPD originariamente entraria em vigor após decorridos 18 (dezoito) meses de sua publicação. Contudo, normas posteriores alteraram o artigo 65 da lei e postergaram a entrada em vigor, estabelecendo datas diferentes para alguns artigos (em especial os que trataram da ANPD).

17 PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais. Comentários à Lei n. 13.709/2018 (LGPD) [e-book]. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 24.

18 SARLET, Ingo Wolfgang. Fundamentos constitucionais: o direito fundamental à proteção de dados. In: MENDES, Laura Schertel et al (coord.). Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 86.

19 Segundo o artigo 5º, inciso III, da LGPD, dado anonimizado é o “relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento”.

20 PIRONTI, Rodrigo; ZILIOTTO, Mirela Miró. O direito à autodeterminação informativa e a questão do consentimento. In: PIRONTI, Rodrigo (coord.). Lei Geral de Proteção de Dados no setor

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Cabe observar que “na era do Big Data, que permite a correlação rápida de grandes e variadas bases de dados, praticamente todo e qualquer dado pode, eventualmente, ser considerado pessoal e, assim, submetido aos ditames da lei”21. Como ponderou o Tribunal Constitucional alemão no julgado de 1983, não existem dados pessoais insignificantes.

A dimensão objetiva da proteção de dados pessoais preconiza que há um “dever de atuação estatal protetiva no sentido de estabelecer condições e procedimentos aptos a garantir o exercício e fruição desse direito fundamental”22.

O titular do dado é a “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais” objeto de tratamento (artigo 5º, inciso V, da LGPD). A proteção conferida pela lei não é a do dado pessoal em si mesmo, mas da pessoa natural titular do mesmo23. Assim, no aspecto subjetivo, a proteção de dados pessoais constitui “liberdade negativa do cidadão, oponível diante do Estado, demarcando seu espaço individual de não intervenção estatal”24.

Do mesmo modo, “o problema não está na coleta dos dados, mas na forma de coletá-los e de usá-los”25. A LGPD não estabelece a proibição ao tratamento de dados pessoais, mas o legitima por regras e boas práticas de governança de dados.

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21 CAVALCANTI, Natália. Peppi; SANTOS, Luiza Mendonça da Silva Belo Santos. A Lei geral de proteção de dados do Brasil na era do big data. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (coord.).Tecnologia Jurídica & Direito Digital: II Congresso internacional de direito, governo e tecnologia 2018. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 355. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/1788/1884/18042. Acesso em: 19 fev. 2023.

22 MENDES, Laura Schertel; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz.; FONSECA, Gabriel Campos Soares da. O Supremo Tribunal Federal e proteção constitucional dos dados pessoais e a positivação superveniente de um direito fundamental autônomo. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coord.) Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 68.

23 CAVALCANTI, Natália. Peppi; SANTOS, Luiza Mendonça da Silva Belo Santos. A Lei geral de proteção de dados do Brasil na era do big data. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (coord.) Tecnologia Jurídica & Direito Digital: II Congresso internacional de direito, governo e tecnologia 2018. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 356. Disponível em: https:// www.forumconhecimento.com.br/livro/1788/1884/18042. Acesso em: 19 fev. 2023.

24 MENDES, Laura Schertel; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz.; FONSECA, Gabriel Campos Soares da. O Supremo Tribunal Federal e proteção constitucional dos dados pessoais e a positivação superveniente de um direito fundamental autônomo. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coord.) Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 68.

25 SALVIO, Gabriella G. L. de; ROGENFISCH, Sandra; LADEIRA, Roberta. Privacidade e proteção de dados pessoais: evolução do cenário legislativo no Brasil. In: BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues; BEPPU, Ana Claudia (coord.). Proteção de dados pessoais no Brasil: Uma nova visão a partir da Lei nº 13.709/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 42. Disponível em: https://www. forumconhecimento.com.br/livro/3906/4035/23424. Acesso em: 19 fev. 2023.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 42

Nesse contexto, estão excluídos da aplicação da LGPD o tratamento de dados pessoais para determinadas finalidades: particulares e não econômicas de pessoa natural, jornalísticas, artísticas, relacionados a segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação e de repressão de infrações penais (artigo 4º da LGPD).

O tratamento é considerado, na forma do artigo 5º, inciso XII, da LGPD:

[...] toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.

Os dados pessoais são classificados como sensíveis quando vinculados à pessoa natural “sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, saúde, vida sexual, genética ou dados referentes a biometria”, nos termos do artigo 5º, inciso II, da LGPD. Ela conferiu maior proteção a esses dados, condicionando o seu tratamento a condições específicas.

Mario Viola e Chiara Spadaccini de Teffé ponderam que esse rol não é taxativo, uma vez que “[...] essencial para se determinar se um dado é sensível ou é verificar o contexto de sua utilização, além das relações que podem ser estabelecidas com as demais informações disponíveis e a potencialidade de seu tratamento servir como instrumento de estigmatização e discriminação”26.

Enquanto o artigo 7º da LGPD prevê as bases legais para o tratamento de dados pessoais em geral, o artigo 11 trata especificamente das hipóteses para os dados sensíveis. Estes somente poderão ser objeto de tratamento se houver o consentimento, de forma específica e destacada, do titular ou responsável legal, para finalidades específicas. Ou, quando ausente o consentimento, nas hipóteses por ela arroladas no inciso II do mencionado artigo.

A LGPD é uma lei densa e, ainda, possui normas sobre boas práticas e governança de dados, responsabilidades e severas sanções administrativas aplicáveis pela Autoridade Nacional de Dados - ANP27 decorrentes de infrações cometidas.

26 VIOLA, Mario.; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais dos artigos 7º e 11. In: MENDES, Laura Schertel et al (coord.).Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 310.

27 Vale mencionar que é o ente responsável, em suma, por “zelar pela proteção dos dados pessoais”. Outrora criada como órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República, alçou a natureza jurídica de autarquia especial, dotada de autonomia técnica e decisória e patrimônio próprio, por força da Lei 14.460/2022, que alterou a redação do artigo 55 da LGPD.

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Tendo em vista a delimitação temática do estudo, dar-se-á mais destaque, adiante, ao capítulo da LGPD sobre o tratamento de dados pessoais pelo poder público, em especial à base legal relacionada a políticas públicas.

1.2.2. Princípios da proteção de dados pessoais na LGPD.

No artigo 6º da LGPD se encontra rol de princípios que devem informar a proteção de dados pessoais. Destacam-se os princípios da finalidade, da adequação e da necessidade.

Esses, com efeito, assemelham-se aos elementos da regra da proporcionalidade, que são a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito28. Não se trata de coincidência, já que a proporcionalidade é “uma regra de interpretação e aplicação do direito [...] empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais”29. São balizas para a restrição ao direito à proteção de dados pessoais.

O princípio da finalidade estipula que o tratamento de dados pessoais deve ocorrer “para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades” (artigo 6º, inciso I).

De acordo com Miriam, o princípio da finalidade “pode ser compreendido como um desdobramento da autodeterminação informativa”30. Esta é “precondição para uma ordem comunicacional livre e democrática, distanciando-se, nessa medida, de uma concepção de privacidade individualista e mesmo isolacionista”31. É o controle do titular sobre o uso e o fluxo de seus próprios dados32.

28 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais 798, 2002, p. 34. Disponível em: https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002-RT798-Proporcionalidade.pdf. Acesso em: 09 abr. 2023.

29 Ibid, p. 24.

30 WIMMER, Miriam. Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p. 134, 2021. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/7136-29768-1-PB.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.

31 SARLET, Ingo Wolfgang. Fundamentos constitucionais: o direito fundamental à proteção de dados. In: MENDES, Laura Schertel et al (coord.). Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 106.

32 PIRONTI, Rodrigo; ZILIOTTO, Mirela Miró. O direito à autodeterminação informativa e a questão do consentimento. In: PIRONTI, Rodrigo (coord.). Lei Geral de Proteção de Dados no setor público. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 416. Disponível em: https://www.forumconhecimento. com.br/livro/4178/4365/29924. Acesso em: 19 fev. 2023.

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Em observância ao princípio da finalidade, o consentimento, quando aplicável para o tratamento dos dados, “deverá referir-se a finalidades determinadas, e as autorizações genéricas para o tratamento de dados pessoais serão nulas” (artigo 8, §4º da LGPD). Se existir mudança na finalidade do tratamento dos dados não compatível com o consentimento original, o controlador deverá informar previamente ao seu titular, podendo este revogá-lo, caso discorde da alteração (§6º). Em hipótese que se não exija o consentimento, o tratamento posterior será possível se for compatível com os propósitos e as finalidades originalmente informados.

O princípio da adequação diz respeito à “compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento”, a teor do inciso II do artigo 6º da LGPD.

O princípio da necessidade, por sua vez, exige a “limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados” (artigo 6º, inciso III, da LGPD).

É importante destacar, ainda, o princípio da não discriminação, de fundamental observância para o tratamento de dados pessoais sensíveis, a fim de se evitarem práticas discriminatórias “que reforçam preconceitos sociais e acarretam na segregação dos indivíduos, muitas vezes de forma equivocada e prejudicial”33. Ele impede a “realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos” (artigo 6º, inciso IX, da LGPD).

O princípio da prevenção previsto no artigo 6º inciso VIII, da LGPD, que trata da “adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais”, preconiza que a proteção de dados pessoais deve ser, em primeiro lugar, preventiva. A ideia da autodeterminação informativa deve ser incorporada nos próprios “sistemas, códigos, arquiteturas e procedimentos tecnológicos” 34. A propósito, o artigo 46, §2º da LGPD prescreve o dever de adoção de “medidas de segurança” adequadas à proteção de dados “desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução”.

O princípio da segurança determina “a utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e

33 SALVIO, Gabriella G. L. de; ROGENFISCH, Sandra; LADEIRA, Roberta. Privacidade e proteção de dados pessoais: evolução do cenário legislativo no Brasil. In: BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues; BEPPU, Ana Claudia (coord.). Proteção de dados pessoais no Brasil: Uma nova visão a partir da Lei nº 13.709/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 42. Disponível em: https://www. forumconhecimento.com.br/livro/3906/4035/23424. Acesso em: 19 fev. 2023.

34 MENDES, Laura Schertel; FONSECA, Gabriel Campos Soares da. Proteção de dados para além do consentimento: tendências de materialização. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coord.) Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 214.

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de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão” (artigo 6º, inciso VII).

Os agentes responsáveis se obrigam a garantir a segurança da informação durante todo o ciclo de tratamento dos dados pessoais por medidas de governança e boas práticas. Pelo viés do titular dos dados, essa garantia consiste na confiança depositada nos sistemas de informação e que não pode ser maculada.

O princípio da transparência estabelece “garantia aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento” (artigo 6º, inciso VI, da LGPD).

Nesse contexto, para o regular cumprimento da LGPD, esses princípios informadores devem ser observados em cada operação de tratamento.

1.2.3. Tratamento de dados pessoais pelo poder público.

A disciplina legal da proteção de dados pessoais para os agentes privados não pode ser simplesmente reproduzida para o poder público, já que o tratamento desses dados é fundamental para o exercício das suas atribuições e prerrogativas estatais típicas.

A LGPD possui base legal específica sobre o tratamento de dados pessoais pelo poder público, que não se restringe apenas ao capítulo IV da lei.

O norteador das bases legais para o poder público é o artigo 23 da LGPD, que vincula o tratamento de dados ao “atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público”. Pode-se dizer que ele complementa as bases legais aplicáveis ao poder público dos artigos 7º e 11 da LGPD35.

No aspecto de incidência subjetivo da LGPD, relacionado ao poder público, Miriam Wimmer adverte para a imprecisão técnica da lei, salientando que a expressão “poder público” é mais ampla que “Administração Pública” (que não engloba Poderes Legislativo e Judiciário) e que “pessoa jurídica de direito público” (que não abrange as pessoas jurídicas de direito privado da administração indireta)36.

De qualquer forma, poder público, para fins da LGPD, abrange os órgãos e entidades da administração pública direta (incluindo-se Poderes Executivo,

35 ESSEROLLI, Eduardo Ramos Caron; PIRONTI, Rodrigo. A Lei Geral de Proteção de Dados e o tratamento de dados sensíveis pela Justiça Eleitoral. In: Fórum Administrativo - FA, ano 20, n. 237, p. 67, nov. 2020. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/124/41989/92492. Acesso em: 14 fev. 2023.

36 WIMMER, Miriam. Proteção de dados pessoais no poder público: incidência, bases legais e especificidades. In: Revista do Advogado, n. 144, 2019, p. 137. Disponível em: https://aplicacao.aasp. org.br/aasp/servicos/revista_advogado/paginaveis/144/125/indexhhtml . Acesso em: 28 mar. 2023.

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Legislativo e Judiciário, Ministério Público, Defensoria e Corte de Contas) e Indireta, da União, Estados e Municípios (tanto de personalidade jurídica de direito público, quanto de direito privado). A LGPD, ainda, sujeita os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado à mesma disciplina no artigo 23, §4º.

Nesse sentido, a ANPD, em Guia Orientativo, esclarece:

8. O termo “Poder Público” é definido pela LGPD de forma ampla e inclui órgãos ou entidades dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), inclusive das Cortes de Contas e do Ministério Público. Assim, os tratamentos de dados pessoais realizados por essas entidades e órgãos públicos devem observar as disposições da LGPD, ressalvadas as exceções previstas no art. 4º da lei.

9. Também se incluem no conceito de Poder Público: (i) os serviços notariais e de registro (art. 23, § 4º); e (ii) as empresas públicas e as sociedades de economia mista (art. 24), neste último caso, desde que (ii.i.) não estejam atuando em regime de concorrência; ou (ii.ii) operacionalizem políticas públicas, no âmbito da execução destas.37

Nos artigos 7º, incisos II e III, e 11, inciso II, alíneas “a” e “b”, combinados com o artigo 23 da LGPD, encontram-se as bases legais para o tratamento de dados pessoais pelo poder público no exercício de suas atividades: cumprimento de obrigação legal e regulatória e execução de políticas públicas.

A LGPD, como regra, dispensa o consentimento, livre, informado e inequívoco, para o tratamento de dados pessoais pelo poder público em suas atividades38, o que não lhe retira as obrigações de que “sejam informadas as hipóteses em que, no exercício de suas competências, realizam o tratamento de dados pessoais, fornecendo informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades, em veículos de fácil acesso, preferencialmente em seus sítios eletrônicos” (artigo 23). No meio eletrônico se exige documento informativo que descreva a “política de privacidade de dados” do órgão ou entidade, que deve contemplar, no mínimo, os elementos do artigo 9º da LGPD. O consentimento, expressão livre e informada de concordar com o tratamento de dados pessoais, é base legal excepcional em relação ao poder

37 ANPD. Guia orientativo – Tratamento de dados pessoais pelo poder público. Brasília, DF, jan. 2022, p. 7. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/guia-poder -publico anpdversao-final.pdf. Acesso em: 09 ago. 2022.

38 ESSEROLLI, Eduardo Ramos Caron; PIRONTI, Rodrigo. A Lei Geral de Proteção de Dados e o tratamento de dados sensíveis pela Justiça Eleitoral. In: Fórum Administrativo - FA, ano 20, n. 237, p. 67, nov. 2020. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/124/41989/92492. Acesso em: 14 fev. 2023.

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público e considerado nesse contexto “problemática, dada a dificuldade de se caracterizar como livre um consentimento dado no contexto de relação de poder profundamente assimétrica, como é aquela que transcorre entre Estado e cidadãos”39.

Assim, segundo a orientação da ANPD:

19. Não obstante, o consentimento poderá eventualmente ser admitido como base legal para o tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Para tanto, a utilização dos dados não deve ser compulsória e a atuação estatal não deve, em regra, basear-se no exercício de prerrogativas estatais típicas, que decorrem do cumprimento de obrigações e atribuições legais.

20. Assim, a utilização da base legal do consentimento no âmbito do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público pressupõe assegurar ao titular a efetiva possibilidade de autorizar ou não o tratamento de seus dados, sem que de sua manifestação de vontade resultem restrições significativas à sua condição jurídica ou ao exercício de direitos fundamentais.40

Os artigos 7º, inciso II, e 11, inciso II, alínea “a”, da LGPD, que dizem respeito a base legal de cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador, possuem a mesma redação para os dados pessoais sensíveis ou não.

A expressão “obrigação legal e regulatória” abrange não só as normas de conduta que o poder público deve cumprir, como também as que estão relacionadas à organização, à estrutura, às competências e às atribuições dos próprios entes que o compõem.

A propósito, a ANPD define:

Assim, diferentemente das normas de conduta, que estabelecem obrigações de forma direta e expressa, prevendo uma consequência específica em caso de descumprimento, as normas de organização estabelecem obrigações que estão associadas, de forma mais geral, ao próprio cumprimento e à execução de atribuições legais típicas da entidade ou do órgão público responsável pelo tratamento de dados pessoais.41

39 WIMMER, Miriam. Proteção de dados pessoais no poder público: incidência, bases legais e especificidades. In: Revista do Advogado , n. 144, 2019, p. 137. Disponível em: https:// aplicacao.aasp.org.br/aasp/servicos/revista_advogado/paginaveis/144/125/indexhhtml . Acesso em: 28 mar. 2023.

40 ANPD. Guia orientativo – Tratamento de dados pessoais pelo poder público. Brasília, DF, jan. 2022, p. 7. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/guia-poder -publico anpdversao-final.pdf. Acesso em: 09 ago. 2022.

41 ANPD. Guia orientativo – Tratamento de dados pessoais pelo poder público. Brasília, DF, jan. 2022, p. 10. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/guia-poder -publico anpdversao-final.pdf. Acesso em: 09 ago. 2022.

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No tocante à base legal relacionada às políticas públicas, enquanto o artigo 7º, inciso III, autoriza que a “administração pública”42 realize “o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres”, para os dados sensíveis, cujas bases legais estão no artigo 11, inciso II, alínea “b”, da lei, a permissão é tão-somente para políticas “previstas em leis ou regulamentos”. Assim, para o tratamento de dados pessoais relativos à saúde, a política pública deve encontrar previsão ou ser instituída por lei ou regulamento.

O tratamento de dados pessoais pelo poder público deverá também observar, tal como o agente privado, técnicas, regras, medidas de boas práticas e de governança de dados, em especial quando forem de natureza sensível.

O princípio da finalidade limita o tratamento posterior dos dados pessoais àquela finalidade original ou compatível com a informada pelo poder público ao titular, a qual deve estar sempre relacionada à persecução do interesse público.

A expressão “interesse público” do artigo 23 da LGPD, conceito jurídico indeterminado, não pode ser confundida com o interesse estatal, do aparato administrativo ou do agente público, nem com os interesses da maioria. Segundo Marçal Justen Filho, o seu emprego exige cautela:

[...] situações concretas demonstram a existência de diversos interesses públicos, inclusive em conflito entre si. Logo, a decisão a ser adotada não poderá ser fundada na pura e simples invocação de “interesse público”. Estarão em conflito diversos interesses públicos, todos em tese merecedores da qualificação de supremos e indisponíveis. Qualquer que seja a teoria adotada acerca de interesse público, é impossível afirmar a configuração de situações simples e homogêneas. Uma das características do Estado contemporâneo é a fragmentação dos interesses, a afirmação conjunta de posições subjetivas contrapostas e a variação dos arranjos entre diferentes grupos. Nesse contexto, a utilização do conceito de interesse público tem de fazer-se com cautela, diante da pluralidade e contraditoriedade entre os interesses dos diferentes integrantes da sociedade. Justamente por isso, nem sequer há um modo prático de descobrir ‘o’ interesse da ‘maioria’ do povo. É que não existem maiorias permanentes, que tenham interesses comuns. Não existe um conjunto homogêneo de interesses privados ao qual se possa atribuir a condição de interesse da maioria. Na sociedade moderna, há uma pluralidade de sujeitos, com interesses contrapostos e distintos. (destaques no original)43

42 ANPD define administração pública, para fins das referidas normas, como “órgãos e entidades dos três Poderes e entes federativos, inclusive das Cortes de Contas e do Ministério Público, desde que estejam atuando no exercício de suas funções administrativas, com vistas à execução de políticas públicas” (Ibid,, p 2).

43 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43-44.

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Em relação ao tratamento secundário de dados pessoais pelo poder público, podem-se vislumbrar algumas situações: dados pessoais disponibilizados publicamente e que recebem tratamento posterior, e o compartilhamento de dados entre órgão e entidades do poder público.

Nos termos do artigo 7º, §3º, da LGPD: “O tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização”. O tratamento posterior, então, a teor do §7º do mesmo artigo “poderá ser realizado para novas finalidades, desde que observados os propósitos legítimos e específicos para o novo tratamento e a preservação dos direitos do titular, assim como os fundamentos e os princípios previstos nesta Lei”.

O artigo 26 da LGPD dispõe sobre o uso compartilhado de dados pessoais pelo poder público que, obrigatoriamente, “deve atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas e atribuição legal pelos órgãos e pelas entidades públicas, respeitados os princípios de proteção de dados pessoais”. A ANPD recomenda que o compartilhamento seja previsto em ato formal, tais como, contratos, convênios e instrumentos congêneres44.

O compartilhamento dos dados é, a princípio, entre órgãos e entidades do poder público, vedando a LGPD no §1º do artigo 26 a sua transferência “a entidades privadas dados pessoais constantes de bases de dados a que tenha acesso”, salvo nas hipóteses dos incisos I a V, com destaque para os itens de “execução descentralizada de atividade pública que exija a transferência, exclusivamente para esse fim específico e determinado”; de dados públicos; de previsão legal ou em contratos, convênios ou instrumentos congêneres.

Importante observar que o artigo 25 da LGPD prevê que:

Os dados deverão ser mantidos em formato interoperável e estruturado para o uso compartilhado, com vistas à execução de políticas públicas, à prestação de serviços públicos, à descentralização da atividade pública e à disseminação e ao acesso das informações pelo público em geral.

Enfim, o tratamento dos dados pessoais pelo poder público apresenta particularidades, é compulsório e essencial para a realização de suas atividades administrativas típicas. O poder público possui importante banco de dados públicos e administrativos (não públicos), que são de grande utilidade em todas as fases das políticas públicas, o que, contudo, não prescinde das cautelas para garantir o direito fundamental de proteção de dados pessoais dos cidadãos.

44 ANPD. Guia orientativo – Tratamento de dados pessoais pelo poder público. Brasília, DF, jan. 2022, p. 17. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/guia-poder -publico anpdversao-final.pdf. Acesso em: 09 ago. 2022.

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2. LGPD E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DE SAÚDE.

2.1. Conceito de política pública e LGPD.

A LGPD não define o que são “políticas públicas”. Trata-se de expressão sem conteúdo preciso, de índole multidisciplinar. Para fins da LGPD, as políticas públicas devem estar “previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres”, reiterando-se que para dados sensíveis a base legal é restrita a “lei e regulamentos”.

A Constituição Federal de 1988 alargou as funções sócio econômicas do Estado “como garantidor de prestações, ou quando menos de uma expressiva rede de proteção social; tudo num contexto de ordem constitucional comprometido com a proteção à dignidade da pessoa humana”45. Ela ampliou o rol de direitos fundamentais (em especial os de natureza social) e, por consequência, exigiu instrumentos de ação estatal para sua materialização, como as chamadas “políticas públicas”.

Nesse sentido, Maria Paula Dallari Bucci:

[...] as políticas públicas são necessárias como expedientes de coordenação estratégica da ação governamental, em seus vários focos de competência e decisão (União, Estados, Municípios, entes privados), sem os quais seria impossível materializar os direitos fundamentais.46

Políticas públicas no presente trabalho correspondem às ações do poder público47, não estando, portanto, abrangidas as iniciativas dos entes privados, nas quais aquele atua como mero agente coordenador ou mediador. Elas pretendem oferecer respostas a problemas complexos, devendo prever metas e resultados pretendidos, indicando, se possível, o intervalo de tempo em que estes serão obtidos48

45 VALLE, Vanice Regina Lírio do. O encontro das políticas públicas com o direito. In: VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas Públicas: Direitos Fundamentais e Controle Judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 71. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/1405/1457/9507. Acesso em: 12 mar. 2023.

46 BUCCI, Maria Paula Dallari. Método e aplicações da abordagem direito e Políticas públicas (DPP). In: Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, set./dez. 2019, p. 811-812. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/430-Texto%20do%20Artigo-1816-1775-10-20191218. pdf. Acesso em: 12 mar. 2023.

47 BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Fórum Administrativo - FA, Belo Horizonte: Fórum, ano 9, n. 104, out. 2009, p. 30. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/124/10551/18412. Acesso em: 12 mar. 2023.

48 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula (org.). Políticas públicas. Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 51

O suporte jurídico das políticas públicas são: a Constituição Federal, as leis, as normas infralegais, os contratos, os atos administrativos e os instrumentos congêneres49. Entretanto, as políticas públicas não podem ser entendidas como sinônimos dos instrumentos jurídicos que lhe dão respaldo.

Adota-se no presente trabalho o conceito de Maria Paula Dallari Bucci:

Política é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados.50

A ANPD adota definição semelhante de política pública, recomendando que:

[...] o conceito de política pública seja interpretado de forma ampla, de modo a abranger qualquer programa ou ação governamental, definido em instrumento formal, isto é, lei, regulamento ou ajuste contratual, conforme o caso, cujo conteúdo inclui, em regra, objetivos, metas, prazos e meios de execução.51

Os artigos 7º, inciso III, e 11, inciso II, alínea “b”, da LGPD fazem menção à “execução” de políticas públicas, dando a impressão de que o tratamento de dados pessoais pelo poder público somente teria respaldo legal na “fase” de implementação das políticas públicas.

O denominado “ciclo das políticas públicas” é importante ferramenta analítica que trata dos diferentes estágios sequenciais e interdependentes de uma política pública: identificação do problema; formação da agenda decisória; formulação de alternativas; implementação; avaliação; e extinção52.

Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2753819&forceview=1. Acesso em: 21. ago. 2022. p. 43.

49 Ibid, p. 11-12.

50 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula (org.). Políticas públicas. Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2753819&forceview=1 Acesso em: 21. ago. 2022, p. 39.

51 ANPD. Guia orientativo – Tratamento de dados pessoais pelo poder público. Brasília, DF, jan. 2022, p. 12. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/guia-poder -publico anpdversao-final.pdf. Acesso em: 09 ago. 2022.

52 Adota-se a versão de SECCHI, Leonardo. Ciclo de políticas públicas. In: Políticas públicas. Conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 1ª ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010, p.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 52

As “fases” não podem ser entendidas como etapas sequenciais rígidas. Para Leonardo Secchi, “as fases geralmente se apresentam misturadas, as sequências se alternam”53.

A despeito das críticas à referida abordagem “de livro texto”54, no sentido de não se captar a real dinâmica das políticas públicas, ela facilita o entendimento do processo de formação das mesmas, o qual é decomposto em vários ângulos e envolve diversos atores e processos regulados.

Nesse sentido, pode-se entender que a base legal para o tratamento de dados pessoais pelo poder público abrange todas as fases do “ciclo das políticas”. Ademais, os artigos 7º, inciso III, e 11, inciso II, alínea “b”, da LGPD devem ser interpretados em harmonia com o artigo 23 que permite o tratamento pelo poder público “com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público”.

2.2. Tratamento de dados pessoais para a informação de políticas públicas.

Na realização das suas competências e atribuições legais, o poder público realiza o tratamento de grande número de informações de pessoas naturais, titulares de dados pessoais. A operação da coleta dos dados “não se inicia por uma decisão voluntária, mas como decorrência das exigências do próprio pacto social”55. Após a coleta, que, em regra, não exige o consentimento do titular, esses são arquivados ou armazenados (e, a depender da finalidade e necessidade, processados e avaliados), constituindo um conjunto estruturado de dados pessoais estabelecido em um ou vários locais, em suporte eletrônico ou físico (bancos de dados públicos e administrativos). Ainda, eles podem ser compartilhados (tratamento secundário) entre os órgãos e as entidades do poder público.

O poder público possui excelente banco de dados públicos e administrativos, que podem ser úteis em todos as fases do “ciclo de vida” das políticas

33. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5066895/mod_resource/content/1/ leonardo%20secchi_ciclo%20de%20politicas%20publicas.pdf . Acesso em: 21 mar. 2023.

53 Ibid, p. 33.

54 BUCCI, Maria Paula Dallari; COUTINHO, Diogo R. Arranjos jurídico-institucionais da política de inovação tecnológica: uma análise baseada na abordagem de direito e políticas públicas. In: Inovação no Brasil: avanços e desafios jurídicos e institucionais. São Paulo: Blucher, 2017, p. 321. Disponível em: https://openaccess.blucher.com.br/article-details/12-20820. Acesso em: 27 mar. 2023.

55 WIMMER, Miriam. Proteção de dados pessoais no poder público: incidência, bases legais e especificidades. In: Revista do Advogado, n. 144, 2019, p. 127. Disponível em: https://aplicacao.aasp. org.br/aasp/servicos/revista_advogado/paginaveis/144/125/indexhhtml . Acesso em: 28 mar. 2023.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 53

54 públicas. Quando o Estado se depara com um problema ou necessidade, esses dados são extremamente valiosos para trazer conhecimento sobre a melhor forma de intervenção ou política pública.

De acordo com Miriam Wimmer,

[...] o aprimoramento da governança pública e as exigências de aplicação eficiente de recursos públicos requerem, com crescente intensidade, que políticas públicas sejam formuladas com base em evidências e que sejam monitoradas ao longo de seus ciclos de vida. Para isso, é necessário coletar, analisar e processar dados pessoais dos cidadãos.56

Ana Paula de Barcellos discorre:

Conceber a política pública com base em informações acerca dos problemas e suas dimensões, para além de uma exigência lógica, é fundamental por ao menos duas razões jurídicas: a garantia da igualdade (art. 5o, caput) e a redução das desigualdades (art. 3o, III). Isso sem mencionar o debate da eficiência (art. 37, caput e art. 74, II) [...].57

Cada vez mais se ressalta a importância de que as políticas públicas sejam baseadas ou informadas por evidências58. Sem a intenção de aprofundamento sobre o tema, dados os limites deste trabalho, o conceito de “evidência” é vago e multidimensional. Em uma abordagem mais tradicional, as evidências são os resultados obtidos “a partir de processos rigorosos, sistemáticos e reprodutíveis, principalmente métodos experimentais”59. Respaldadas pela autoridade simbólica da ciência, estas cumpririam papel instrumental na tomada de decisões em políticas públicas, seja para a escolha da intervenção mais eficaz, seja a de melhor relação custo-benefício.

56 WIMMER, Miriam. Proteção de dados pessoais no poder público: incidência, bases legais e especificidades. In: Revista do Advogado, n. 144, 2019, p. 127. Disponível em: https://aplicacao.aasp. org.br/aasp/servicos/revista_advogado/paginaveis/144/125/indexhhtml . Acesso em: 28 mar. 2023.

57 BARCELLOS, Ana Paula de. Políticas públicas e o dever de monitoramento: “levando os direitos a sério”. In: Revista brasileira de políticas públicas. vol. 8, n. 2, ago. 2018, p. 257. Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/viewFile/5294/3967. Acesso em: 11 abr. 2023.

58 Maurício Mota Saboya Pinheiro destaca que o crescente interesse no final do século XX em relação ao uso de informações como elemento para a tomada de decisões na esfera das políticas públicas decorre do “salto da capacidade humana de produzir e utilizar informações em decorrência do desenvolvimento de sistemas computacionais cada vez melhores” ( Políticas públicas baseadas em evidências (PPBEs): delimitando problema conceitual In : Texto para discussão. Brasília: IPEA, 2020, p. 16. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9915 Acesso em 27 mar. 2023.

59 Ibid, p. 60.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.)

Alerta-se que o uso de evidências em políticas públicas, porém, não é neutro, sendo condicionado “pelos propósitos, pelas visões de mundo e pelos interesses dos diversos atores da política”60.

Ademais, há variadas fontes de evidências. Dentre elas, os dados obtidos junto ao público alvo da política pública:

[...] um dos problemas dos modelos de cunho mais racionalista é a tecnocratização do uso das evidências, ou seja, assume-se que apenas os especialistas (cientistas, acadêmicos, técnicos) podem produzir evidências para as políticas públicas. Isso muitas vezes se faz em prejuízo ao uso de informações coletadas de diversos atores sociais – principalmente os cidadãos e o público-alvo das políticas –, consideradas de qualidade inferior, o que gera consequências adversas para a legitimidade das políticas públicas em um regime democrático.61

Entende-se que o tratamento de dados é também de grande importância para se conferir legitimidade democrática à política pública. Os obstáculos residem na qualidade epistêmica dos dados ou no modo como são usados:

Assim como qualquer instrumento que possa causar benefício ou dano, dependendo de seus modos e propósitos de uso, as evidências na política também podem ser objetos de bom ou mau uso – isso, a despeito do rigor científico com o qual tais evidências possam ter sido produzidas. Logo, é possível uma leitura deontológica do uso das evidências em políticas públicas, segundo a qual estas devem ser usadas com prudência e expertise, nunca de forma casual, irresponsável ou mal-intencionada. Nessa linha de pensamento, a qualidade das decisões em políticas públicas – isto é, seu impacto positivo no bem comum – é tanto uma função da qualidade epistêmica das evidências usadas quanto do modo mais ou menos sensato como estas são usadas.62

Nesse contexto, a LGPD preconiza a garantia da qualidade dos dados (artigo 6º, inciso V) no tratamento de dados pessoais (exatos, claros, relevantes e atualizados).

Assim, o bom uso de dados, exatos e atualizados, é essencial para a identificação de problemas públicos, suas possíveis causas e consequências, bem como para subsidiar processos decisórios para a escolha da melhor política pública, de sua revisão, ou da própria continuidade da mesma (ou extinção).

60 PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: Políticas públicas e uso de evidências no Brasil: conceitos, métodos e práticas. Brasília: IPEA, 2022, p. 79. Disponível em: https://repositorio.ipea. gov.br/bitstream/11058/11121/1/Politicas_publicas_e_usos.pdf, Acesso em: 27 mar. 2023.

61 Ibid, p. 70.

62 Ibid, p. 71.

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2.3. Tratamento de dados pessoais em políticas públicas de saúde: medidas governamentais para o enfrentamento da pandemia de Covid-19.

As políticas públicas de saúde no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, são norteadas pelos princípios da integralidade e da universalidade no acesso às ações e serviços de saúde, que configuram “uma rede regionalizada e hierarquizada” e constituem um sistema único, nos termos dos artigos 196 e seguintes. A saúde é direito fundamental de todos e “dever” do Estado. O direito à saúde não possui apenas uma dimensão individual correspondente ao direito de cada indivíduo ao acesso às ações e serviços de saúde. A saúde também é um bem jurídico coletivo, que depende da intervenção do poder público e da cooperação dos cidadãos:

[...] a saúde não tem apenas um aspecto individual e, portanto, não basta que sejam colocados à disposição das pessoas todos os meios para a promoção, proteção ou recuperação da saúde para que o Estado responda satisfatoriamente à obrigação de garantir a saúde do povo. Hoje os Estados são, em sua maioria, forçados por disposição constitucional a proteger a saúde contra todos os perigos. Até mesmo contra a irresponsabilidade de seus próprios cidadãos. A saúde “pública” tem um caráter coletivo. O Estado contemporâneo controla o comportamento dos indivíduos no intuito de impedir-lhes qualquer ação nociva à saúde de todo o povo.63

Luiz Henrique Sormani Barbugiani destaca, quanto à saúde coletiva, a obrigatoriedade da intervenção do poder público nessas situações:

[...] sempre caberá ao poder público intervir nas questões que envolvam a saúde da coletividade por intermédio de todos os órgãos incumbidos de sua proteção, salientando que as exigências legais estabelecidas por qualquer entidade incumbida de sua fiscalização e amparo deverá ser observada pelos administrados, uma vez que o bem jurídico protegido é o mais precioso da humanidade, a vida.64

A pandemia de Covid-19, com a declaração no Brasil de estado de calamidade pública a partir de 20 de março de 202065, trouxe à tona discussões sobre

63 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. In: MINISTÉRIO DA SAÚDE, Direito sanitário e saúde pública. vol. 1. Coletânea de textos. Brasília, DF, 2003, p. 49. Disponível em: https:// bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/direito_san_v1.pdf . Acesso em: 03 abr. 2023.

64 BARBUGIANI, Luiz Henrique Sormani. O direito sanitário no federalismo brasileiro: da legalidade da edição de normas sanitárias pelas diversas esferas de poder e a inexistência de conflito entre elas. In: Revista de direito sanitário. São Paulo, v. 7, 1/2/3, 2006, p. 104. Disponível em: https:// www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/79969/176797. Acesso em: 17 mar. 2023.

65 Decreto Legislativo 6 de 20 de março de 2020.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 56

57 o tratamento de dados pessoais em políticas públicas de saúde, tanto no que se refere à coleta primária, quanto à sua utilização secundária ou o compartilhamento das bases de dados entre órgãos e entidades, sob a autoridade de preservação da saúde coletiva pelo poder público.

Em virtude da ausência de uma resposta central imediata e coordenada da União para conter a proliferação do Covid-19, o enfrentamento da pandemia envolveu, em grande medida, iniciativas de governos estaduais e municipais66.

A Lei Federal 13.979/2020 conferiu aos Estados e Municípios poderes para a adoção de medidas como quarentena, isolamento, realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, e vacinação67.

O tratamento de dados pessoais da população foi fundamental, em muitos países, para enfrentar a pandemia. São inequívocas as vantagens dos processos de inovação aliados ao bom uso de dados pessoais para fins de informar políticas públicas de saúde.

Marcelo Marchesini da Costa e Gabriela Lotta destacam alguns exemplos:

Há diversos exemplos internacionais, como o caso da Itália, cujo governo combinou testes em massa com aplicativos que permitem, com adesão voluntária, a identificação de contatos com pessoas que testaram positivo. Há também casos, como o chinês, de acesso a dados pessoais de forma compulsória, que levantam questionamentos sobre a segurança desses dados e seu uso para outras finalidades. Portanto, nesse aspecto, a resposta à covid-19 acelerou tendências latentes e preexistentes de inovação no uso de dados.68

Miriam Wimmer também ressalta:

66 O que foi validado pelo STF no julgamento da ADI 6341. Sobre o assunto: VASCONCELOS, Natalia Pires de; ARGUELHES, Diego Werneck. Covid 19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual. In: Legado de uma pandemia: 26 vozes discutem o aprendizado para política pública. MACHADO, Laura Muller (org.). Rio de Janeiro: Autografia, 2021, p. 197-204. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wpcontent/uploads/2021/02/legadodeumapandemia-1.pdf . Acesso em: 17 dez. 2021.

67 Embora restringidas e condicionadas por atos do Poder Executivo Federal (VASCONCELOS, Natalia Pires de; ARGUELHES, Diego Werneck. Covid 19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual. In: Legado de uma pandemia: 26 vozes discutem o aprendizado para política pública. MACHADO, Laura Muller (org.). Rio de Janeiro: Autografia, 2021, p. 197-198. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wpcontent/uploads/2021/02/legadodeumapandemia-1.pdf . Acesso em: 17 dez. 2021).

68 COSTA, Marcelo Marchesini da; LOTTA, Gabriela. A gestão pública vigilante. In: Legado de uma pandemia: 26 vozes discutem o aprendizado para política pública. MACHADO, Laura Muller Machado (org.). Rio de Janeiro: Autografia, 2021, p. 212. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wpcontent/uploads/2021/02/legadodeumapandemia-1.pdf . Acesso em: 17 dez. 2021.

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Para além das medidas tradicionais de prevenção e controle de doenças epidêmicas, a atuação de governos de todo o mundo no combate à pandemia de Covid-19 caracterizou-se por dois importantes aspectos: de um lado, pelo uso inédito, em termos de intensidade, de tecnologias digitais e de dispositivos móveis de comunicação nos processos de detecção, notificação e investigação da doença; de outro, pela rápida escalada na coleta, análise e compartilhamento de dados pessoais entre atores públicos e privados, assim como entre distintos órgãos e entidades do Poder Público.69

Por outro lado, o tratamento de dados pessoais em ações governamentais de saúde pode resultar em violação ao direito à proteção de dados pessoais de natureza sensível.

Entende-se que para se verificar se o tratamento de dados pessoais, mesmo quando justificado para a preservação da saúde coletiva, viola ou não direitos fundamentais relacionados a privacidade e intimidade e proteção de dados pessoais, as peculiaridades dos casos concretos devem ser examinadas. Ou seja, essa avaliação não pode ser realizada em abstrato.

Danilo Doneda corrobora a constatação: “[...] uma notável característica da proteção de dados, perceptível em diversas de suas formulações, que é a de procurar responder a demandas concretas com instrumentos disponíveis, sem se filiar diretamente a categorias prévias”70.

Por esses motivos, optou-se por selecionar algumas iniciativas do poder público no enfrentamento da pandemia de Covid-19 para o estudo da sua compatibilidade com a LGPD.

2.3.1. Tratamento de dados pessoais por meio de sistema de geolocalização.

A quarentena e o isolamento, ante a recomendação da Organização Mundial de Saúde – OMS71, foram as medidas iniciais, comprovadamente eficazes, adotadas pelos governos locais no Brasil para se prevenir a proliferação de Covid-19.

Para o monitoramento das pessoas infectadas, assim como medir o isolamento social, foram utilizadas tecnologias de geolocalização, presentes em smartphones e outros aparelhos móveis, para a coleta de dados de usuários.

69 WIMMER, Miriam Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p. 124, 2021. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/7136-29768-1-PB.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.

70 DONEDA, Danilo. Panorama histórico da proteção de dados pessoais. In: MENDES, Laura Schertel. et al. Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 54.

71 OMS. Coronavirus Disease (COVID-19). Mar. 2023. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/question-and-answers-hub/q-a-detail/coronavirus-disease-covid-19. Acesso em: 7 abr. 2023.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 58

O Estado de São Paulo firmou acordo de cooperação técnica, em abril de 2020, pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo e empresas de telecomunicações, para o monitoramento de dados dos aparelhos celulares dos cidadãos para fins de acompanhamento dos índices de isolamento social72.

A coleta dos dados pessoais objetivou subsidiar o Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI-SP), plataforma on line do governo paulista que passou a funcionar em 24 de março de 2020, que, ao calcular índices isolamento social, auxiliou o Poder Executivo na tomada de decisões para o enfretamento da pandemia.

A celeuma em relação à referida medida adotada pelo Estado de São Paulo ocorreu em virtude da circunstância de que, aparentemente, os cidadãos estavam sendo monitorados (por meio do tratamento de dados pessoais) aproximadamente um mês antes da formalização do instrumento administrativo, já que o SIMI-SP exibia dados coletados desde 5 de março de 202073.

A LGPD permite o tratamento de dados pessoais para a execução de políticas públicas sem o consentimento do usuário titular. A prescindibilidade de consentimento, porém, não afasta o dever de se informar ao titular que os dados pessoais estão sendo objeto de tratamento, assim como devem ser fornecidas informações sobre previsão legal, finalidade, duração do tratamento, destino final dos dados e medidas de segurança.

O Comitê Europeu para a Proteção de Dados (European Data Protection Board – EDPB (2020), organismo europeu independente responsável pela uniformização de regras em matéria de proteção de dados na UE, a respeito da utilização de dados de telecomunicações (telecom data), emitiu comunicado, em 19 de março de 2020, no sentido de que a coleta de dados pessoais de localização somente poderia ser realizada quando anonimizados ou com o consentimento do titular e restrito ao período emergencial74.

O Supremo Tribunal Federal – STF teve a oportunidade de tratar do compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras

72 GOMES, Helton Simões. Sem avisar, SP iniciou monitoramento celular antes de acordo formal. UOL notícias, 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/13/sem -avisar-sp-iniciou-monitoramento-22-dias-antes-de-acordo-formal.htm#:~:text=Anunciado%20 em%209%20de%20abril,uma%20fonte%20no%20governo%20paulista . Acesso em: 08 abr. 2023.

73 GOMES, Helton Simões. Sem avisar, SP iniciou monitoramento celular antes de acordo formal. UOL notícias, 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/13/sem -avisar-sp-iniciou-monitoramento-22-dias-antes-de-acordo-formal.htm#:~:text=Anunciado%20 em%209%20de%20abril,uma%20fonte%20no%20governo%20paulista Acesso em: 08 abr. 2023.

74 EDPB. Statement on the processing of personal data in the context of the COVID-19 outbreak. Disponível em: https://edpb.europa.eu/our-work-tools/our-documents/other-guidance/statement-processing-personal-data-context-covid-19_en. Acesso em: 11 mar. 2023 (tradução nossa).

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de serviços telefônicos com o poder público ao referendar a medida cautelar deferida pela Ministra Rosa Weber na Ação Direta de Inconstitucionalidade –ADI 6.387 do Distrito Federal75.

Trata-se de ação ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em face da Medida Provisória 954 de 17 de abril de 2020 (em seu inteiro teor) que dispôs sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado e de Serviço Móvel Pessoal com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Covid -19, de que trata a Lei 13.979/2020. Mais quatro ações, de números 6388, 6389, 6390 e 6393, foram promovidas no STF por partidos políticos contra a medida provisória.

Decidiu-se pela suspensão da eficácia da medida provisória, porque, além desta não definir especificadamente a finalidade do tratamento dos dados pessoais, não haveria um interesse legítimo, vez que a providência não seria adequada e necessária. Ademais, era excessiva ao conservar os dados pessoais coletados por período superior ao necessário para a finalidade declarada, bem como não previu mecanismos para garantir a segurança dos dados e eventual responsabilização pelo mau uso ou vazamento dos mesmos.

Embora a LGPD ainda não estivesse em vigor, adotou-se o arcabouço principiológico nela previsto. Além de tudo, reconheceu-se um direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais, mesmo antes do advento da Emenda Constitucional 115 de 2022.

O ponto nodal foi o de que, embora a edição do ato normativo tenha sido justificada pelo contexto pandêmico, a medida nela prevista não demonstrava relação com a emergência de saúde pública, não se extraindo do seu texto exatamente qual o objeto, finalidade especifica, amplitude e necessidade, da produção estatística oficial pelo IBGE.

Como ressaltou o Ministro Luiz Fux em seu voto: “Faltou ao texto normativo a transparência e informação necessários para uma adequada composição e conciliação entre a necessidade de produção estatística e os direitos fundamentais à proteção de dados e à autodeterminação informativa”76.

75 BRASIL, STF, ADI 6387 MC-Ref , Relator Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 0705-2020, processo eletrônico DJe-270, Divulg 11-11-2020, Public 12-11-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754357629 . Acesso em: 10 jan. 2023.

76 BRASIL, STF, ADI 6387 MC-Ref , Relator Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 0705-2020, processo eletrônico DJe-270, Divulg 11-11-2020, Public 12-11-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754357629 . Acesso em: 10 jan. 2023.

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A decisão foi paradigmática, pois foi a primeira vez que a Corte Suprema se debruçou sobre o tema, estabelecendo balizas para a proteção de dados pessoais. Ademais, foi proferida no cenário da pandemia de Covid-19.

Embora a decisão não tenha tratado especificadamente do compartilhamento de dados de localização dos usuários dos serviços, entende-se que ela serve de parâmetro no exame do tema proposto.

Não se pode desconsiderar que a coleta de dados pessoais pela tecnologia de geolocalização foi fonte de evidências importante para a elaboração e o monitoramento de ações do poder público voltadas à preservação da saúde coletiva durante a pandemia, tais como, por exemplo, o desenvolvimento e o reforço de campanhas informativas sobre a importância do isolamento social, de forma a influenciar comportamentos da população, para embasar decisões dos governos locais sobre a intensificação ou relaxamento de restrições aos estabelecimentos comerciais, por exemplo.

Laura Schertel Mendes e Diego Carvalho Machado ressaltam o potencial dos dados de localização de telefones celulares para a identificação da distribuição geográfica das infecções de Covid-19 e dos principais mecanismos e resultados da implementação de diferentes medidas para se conter a propagação do vírus, permitindo avaliação de riscos e predições futuras77.

O tratamento de dados pessoais obtidos por geolocalização para políticas públicas, ainda que envolvam a saúde pública, deve ser excepcional, decorrente da necessidade de se conterem situações emergenciais e com previsão em ato jurídico formal, bem como perdurar apenas enquanto necessário e adequado para a regressão do problema de saúde pública78.

Importante o alerta de que “[...] dados de localização, mesmo a princípio não sensíveis podem ser manipulados para usos lesivos a seu titular e para a verificação de informações íntimas”79.

Inclusive, o tratamento destes dados pode ser utilizado para fins discriminatórios, decorrentes da associação da pessoa a determinado grupo ligado

77 MACHADO, Diego Carvalho; MENDES, Laura Schertel. Tecnologias de perfilamento e dados agregados de geolocalização no combate à COVID-19 no Brasil: uma análise dos riscos individuais e coletivos à luz da LGPD. In: Direitos Fundamentais & Justiça – RBDFJ. Belo Horizonte: Fórum, ano 14, n. especial, nov. 2020, p. 111. Disponível em: https://www.forumconhecimento. com.br/periodico/136/41992/92537. Acesso em: 19 fev. 2023.

78 BARBUGIANI, Luiz Henrique Sormani. Um ensaio sobre os deslocamentos humanos e novas tecnologias: qual o limite do uso de mecanismos tecnológicos em tempos de pandemia? In: MONTEIRO, A. A; GOMES, E. da S.; AVELINO, Y. D. (org.). Tecituras das cidades: história, memória e deslocamentos humanos. São Paulo: EDUC: PIPEq, p. 361.

79 VIOLA, Mario.; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais dos artigos 7º e 11. In: MENDES, L.S. et al. Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 315.

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a local onde há um número maior de contágios e infecções ou possua uma população com determinada predominância étnica, por exemplo.

Nesse contexto, imprescindível o desenvolvimento, desde a concepção da medida, de procedimentos de proteção dos dados de localização, como salientam Laura Schertel Mendes e Diego Carvalho Machado:

Cumpre destacar que salvaguardas apropriadas podem desempenhar o importante papel de atenuar o risco de desvirtuamento de função e finalidade do uso dos dados agregados de localização durante a situação de emergência sanitária. Para tanto é imperativo a estipulação das salvaguardas de proibição de uso dos dados para fins outros que não o de enfrentamento da pandemia de COVID-19 e o seu apagamento uma vez encerrada a situação de emergência, além das justificações da relevância, adequação e pertinência de categorias ou grupos ad hoc (itálico no original).80

2.3.2. Compartilhamento de dados pessoais de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo Covid-19.

O artigo 6º da Lei 13.979/2020 previu a obrigatoriedade de “compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação”. A obrigação se estendeu a pessoas jurídicas de direito privado “quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária”, conforme o §1º.

Ressaltou-se no §2º que “o Ministério da Saúde manterá dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais”.

Com base na lei e por meio da Portaria 1.434 de 28 de maio de 2020, o Ministério da Saúde instituiu o Programa Conecte SUS e a Rede Nacional de Dados em Saúde – RNDS.

A RNDS é descrita como “plataforma nacional de integração de dados em saúde e é um projeto estruturante do Conecte SUS, programa do Governo Federal para a transformação digital da saúde no Brasil”81. Por seu intermédio, laboratórios de análises clínicas públicos e privados compartilham resulta-

80 MACHADO, Diego Carvalho; MENDES, Laura Schertel. Tecnologias de perfilamento e dados agregados de geolocalização no combate à COVID-19 no Brasil: uma análise dos riscos individuais e coletivos à luz da LGPD. In: Direitos Fundamentais & Justiça – RBDFJ. Belo Horizonte: Fórum, ano 14, n. especial, nov. 2020, p. 140. Disponível em: https://www.forumconhecimento. com.br/periodico/136/41992/92537. Acesso em: 19 fev. 2023.

81 MINISTÉRIO DA GESTÃO E DA INOVAÇÃO EM SERVIÇOS PÚBLICOS. RNDS – Rede Nacional de Dados em Saúde. Disponível em; https://www.gov.br/conecta/catalogo/apis/rnds-rede-nacional-de-dados-em-saude. Acesso em: 23 mar. 2023.

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dos de exames de detecção do Covid-19 de usuários dos serviços. O acesso à RNDS, conforme a portaria mencionada, deverá observar a LGPD.

São objeto de tratamento dados pessoais de natureza sensível de saúde, potencialmente causadores de estigma, em especial no início da pandemia. O compartilhamento teve por base legal ação governamental respaldada por lei e atos normativos infralegais e a finalidade de evitar a propagação do Covid-19.

O STF, posteriormente ao julgamento alusivo à Medida Provisória 954, enfrentou na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 695 questionamentos acerca do compartilhamento de dados pessoais de carteiras nacionais de habilitação coletados e armazenados pelo Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN com o Serviço Federal de processamento de Dados (SERPRO) e com a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), com base no Decreto Federal 10.046, de 9 de outubro de 2019.

Os pedidos foram julgados parcialmente procedentes pelo Tribunal Pleno do STF, em julgamento realizado em 15 de setembro de 2022, que conferiu interpretação conforme a Constituição ao Decreto Federal, estabelecendo orientações para a sua aplicação.

Dentre essas diretrizes se destacaram: a eleição de finalidade legítima, específica, explícita e informada ao titular para o tratamento dos dados (princípio da finalidade); a adequação do tratamento à finalidade indicada e informada (princípio da adequação); e a limitação do compartilhamento ao mínimo necessário (princípio da necessidade)82. A tese jurídica firmada ainda aborda o aspecto do acesso a bancos de dados por órgãos e entidades governamentais, que deve ser limitado à real necessidade, para atingir fins legítimos, específicos e explícitos, e restrito às informações que sejam indispensáveis ao atendimento do interesse público.

Miriam Wimmer, a propósito, ressalta que o poder público não pode consistir em “unidade informacional”, “devendo os dados pessoais ser tratados em conformidade com as funções específicas do órgão público e com a finalidade específica que justificou sua coleta”83. Assim, afigura-se controverso o tratamento secundário de dados pessoais por órgão ou entidade governamental para propósito diverso daquele que justificou a coleta das informações, já que os cidadãos possuem múltiplas relações jurídicas com o Estado, decorrentes de suas diferentes estruturas internas e atribuições.

Nesse contexto, retornando à ação de enfrentamento da pandemia consistente no compartilhamento de dados alusivos à identificação de pessoas infectadas ou

82 Extraídas da ata de julgamento, pois o Acórdão não havia sido publicado até a finalização do presente artigo.

83 WIMMER, Miriam. Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p. 135, 2021. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/7136-29768-1-PB.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023

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suspeitas de infecção pelo Covid-19 com o Ministério da Saúde, não há dúvidas quanto à relevância para a criação de banco de dados e a produção de estatísticas no tocante ao alastramento ou não do vírus no Brasil, possibilitando a comparação entre diferentes regiões, verificação de quais grupos de pessoas são mais afetados etc., de forma a subsidiar os gestores públicos.

Entretanto, o compartilhamento e o uso secundário de dados sensíveis relativos à saúde devem ser baseados em finalidade legítima, específica, explícita. Na hipótese em exame, o fim de controle da propagação do Covid-19 é genérico, sendo necessário explicitar exatamente para quais propósitos os dados serão utilizados, sem a possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível.

2.3.3. Divulgação pública de dados pessoais de vacinados.

Em janeiro de 2021 o Brasil deu início à campanha de vacinação contra o Covid-19. A política pública de imunização, coordenada pelo Ministério da Saúde, teve impacto positivo notório na redução da mortalidade e das internações decorrentes da doença.

Com o envio das primeiras doses (que, contudo, não eram suficientes para atingir toda a população) pela União aos Estados, que, por seu turno, procederam a redistribuição aos Municípios, foi necessário estabelecer prioridades na imunização, dando-se preferência, em geral, aos profissionais da saúde da linha de frente e a pessoas com maior risco de desenvolver formas graves da doença, com base em critérios científicos.

Nesse contexto inicial de escassez de vacinas, houve casos noticiados pela mídia de pessoas que burlaram a ordem de prioridades na imunização, denominados “fura-fila”84 . Por conseguinte, alguns governos locais, por iniciativa própria ou obrigados por medidas judiciais propostas pelo Ministério Público85, passaram a tornar públicas, em sítios eletrônicos, listas contendo a identificação dos vacinados, dados pessoais como CPF ou Cartão Nacional do SUS, e o enquadramento em algum dos grupos prioritários, de forma a fiscalizar a observância da “fila” de imunização, a pretexto de conferir transparência na atuação do poder público.

84 MATOS, Ana Carla Harmatiuk; MASCARENHAS, Igor de Lucena. Os “fura-fila” da vacina, dano social e a responsabilidade civil decorrente da violação da ordem de vacinação. In: RODRIGUES, Francisco Luciano Lima et al (org). Direito e vacinação. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2022, p. 62. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/821/591. Acesso em: 26 mar. 2023.

85 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Dados nacionais de vacinação: acesso à informação, transparência administrativa e proteção de dados pessoais. In: RODRIGUES, Francisco Luciano Lima et al (org). Direito e vacinação. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2022, p. 100-103. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/ view/821/591. Acesso em: 26 mar. 2023.

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Em consulta à internet, verificou-se que, por exemplo, o Município de Imbituba, em Santa Catarina, editou lei que dispôs sobre a divulgação da listagem de pessoas vacinadas contra o Covid-19 no município, contendo “data de nascimento, o número do Cartão Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde), bem como, a data da aplicação, o registro do estabelecimento de saúde onde foi aplicada a dose, o nome do laboratório que forneceu o medicamento, o número de lote e o grupo prioritário da pessoa vacinada”86.

De início, cabe observar que, embora fundamentada no princípio da publicidade a que se submete o poder público, não haveria base legal, dentre aquelas arroladas nos artigos 7º e 11 da LGPD, que amparasse a divulgação de dados pessoais, sobretudo sensíveis, das pessoas vacinadas, sem o seu consentimento. Ainda, há que se questionar a finalidade, a adequação e a necessidade de tornarem públicos os dados pessoais de vacinados, lembrando-se, também, que a LGPD proíbe o tratamento de dados para fins discriminatórios (alguém poderia questionar que determinada pessoa, que não conste da lista pública, não teria se vacinado, por exemplo).

Se o propósito da divulgação da lista seria a transparência ao cumprimento da ordem de prioridade na vacinação, o meio não é adequado, nem necessário, podendo aquela ser atingida por meio menos gravoso aos direitos fundamentais do titular de dados. O tratamento de dados para apurar eventuais irregularidades deveria ser sigiloso, conferindo-se, por exemplo, o acesso aos dados a órgãos de controle no exercício de suas atribuições legais, nos termos do artigo 26 da LGPD.

Por seu turno, considera-se legítima a divulgação pública de dados anonimizados de pessoas vacinadas por iniciativas como o “vacinômetro” do Conselho Nacional de Saúde, integrante do Ministério da Saúde87. Nessa plataforma é possível verificar a situação da vacinação em cada Estado, com informações sobre o número de doses aplicadas por Município, grupo prioritário, gênero, faixa etária, raça ou cor de pele, de forma anonimizada.

3. PARÂMETROS PARA O TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE COM BASE

NA LGPD.

Com fundamento nas ideias desenvolvidas e nas lições aprendidas com algumas ações governamentais de enfrentamento ao Covid-19, é possível estabelecer alguns parâmetros, com base na LGPD, para o tratamento de dados

86 IMBITUBA (Município). Vacinados Covid-19. Mar. 2022. Disponível em: https://imbituba.gestorlgpd.com.br/galeria/pagina-43197/. Acesso em: 30 mar. 2023.

87 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Vacinômetro. Brasília, DF. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/vacinometro. Acesso em: 10 mar. 2023.

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pessoais em políticas públicas de saúde, tarefa que não possui a pretensão de encerrar a complexidade do tema.

3.1. A política pública deve ter base jurídica normativa.

Em primeiro lugar, a política pública de saúde que demandará o tratamento de dados pessoais pelo poder público deverá ter por fundamento lei ou regulamento, nos termos do artigo 11, inciso II, alínea “b”, da LGPD, que trata de dados pessoais sensíveis.

3.2. Finalidade legítima e específica vinculada a persecução de interesse público.

O tratamento de dados pessoais em políticas públicas de saúde precisa estar amparado por finalidade lícita e legítima, ou seja, que não contrarie outros comandos legais.

Do mesmo modo, a finalidade deve ser pública, na persecução de interesse público na proteção da saúde coletiva, conforme dicção do caput do artigo 23 da LGPD.

Invoca-se, de forma corriqueira na doutrina do direito administrativo, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado. E é corrente a noção de que o direito social à saúde coletiva, associado ao princípio da obrigatoriedade da intervenção do poder público, teria prevalência sobre direitos individuais, como a proteção de dados pessoais.

O direito fundamental à proteção de dados pessoais, por garantir o livre exercício da personalidade natural, possibilita o exercício de outros direitos fundamentais, pelo que não pode ser considerado um direito meramente de cunho privado. Possui um viés coletivo e social.

Miriam Wimmer ressalta que:

[...] a discussão sobre privacidade e proteção de dados pessoais é frequentemente caracterizada como um debate referente a um direito eminentemente individual, colocado em contraposição a interesses sociais mais amplos. Dessa forma, a busca pela satisfação do interesse público ou do bem comum, de um lado, e a proteção da privacidade, de outro, são, muitas vezes, apresentados, de maneira reducionista, como objetivos inconciliáveis. A doutrina tem buscado superar tal polarização dando ênfase à dimensão social e coletiva dos direitos associados à privacidade e à proteção de dados pessoais, decorrente inclusive do seu papel habilitador para o exercício de inúmeros outros direitos e garantias fundamentais.88

88 WIMMER, Miriam. Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1.,

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Segundo Bruno Ricardo Bioni, “é um direito que opera fora da lógica binária do público e do privado [...]”89

Ainda, a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado tem sido revista pela doutrina do direito constitucional e administrativo.

Como pondera Paulo Ricardo Schier:

Também pela compreensão da Constituição como sistema, então, interesses (ou direitos) públicos e privados equiparam-se. Os interesses públicos não são superiores aos privados. Os privados não são superiores aos públicos. Ambos são reconhecidos na Constituição em condição de igualdade. Ambos encontram-se no mesmo patamar de hierarquia. Repise-se, pois, que se a Lei Fundamental, em algumas situações, ponderando princípios e direitos in abstrato, reconhece previamente a prevalência (jamais supremacia) de alguns interesses públicos, aí não está a autorizar a extração de um princípio geral de supremacia do interesse público sobre o privado (negrito no original).90

Entende-se que não se pode dizer a priori o que é interesse público, porque é conceito jurídico indeterminado. Assim, a finalidade voltada ao interesse público deve ser averiguada na situação em concreto que lhe dá suporte, como, por exemplo, a emergência sanitária decorrente da pandemia de Covid-19.

Cabe ressaltar, ainda, em relação à finalidade, que esta deve ser sempre clara, explícita, precisa. Trata-se de pressuposto para avaliar, como nos exemplos práticos do presente estudo, se o tratamento dos dados pessoais no contexto fático de determinada política pública saúde é adequado, necessário e proporcional em sentido estrito. Por conseguinte, não se considera suficiente, para justificar a restrição de direito, menção genérica à saúde pública coletiva, ao enfrentamento de pandemia, ao controle de contágio, apenas para apontar alguns exemplos.

A vinculação do tratamento de dados pessoais à finalidade pública legítima, explícita, específica e informada deve subsistir nas hipóteses de uso secundários e compartilhamento dos dados. A finalidade deve ser compatível com a originária e atrelada às atribuições do órgão ou ente público que fará o tratamento secundário e à real necessidade desta operação (os dados não poderiam ser obtidos de outra forma).

2021, p 133. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/7136-29768-1-PB.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.

89 BIONI, Bruno Ricardo Bioni. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento [e-book]. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 140.

90 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional.

Belo Horizonte: Fórum, ano 4, n. 17, jul/set, 2004, p. 98. Disponível em: http://www.revistaaec. com/index.php/revistaaec/article/view/610. Acesso em: 01 abr. 2023.

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A noção de compatibilidade também deve ser examinada no caso concreto, em razão de seu conteúdo indeterminado. Para a solução da questão, Miriam Wimmer sugere alguns critérios para avaliação da compatibilidade do tratamento dados pessoais para finalidade distinta da original:

São eles: a existência de vínculos entre a finalidade original e a nova finalidade; o contexto em que os dados pessoais foram coletados, em particular no que tange ao relacionamento entre o titular dos dados e o controlador; a natureza dos dados pessoais; as possíveis consequências do tratamento adicional dos dados para os titulares; e a existência de salvaguardas apropriadas, que podem incluir o uso de criptografia ou de pseudonimização.91

Então, há de se ter em mente que o tratamento secundário, no mesmo órgão ou ente, ou o compartilhamento de dados entre os mesmos, não pode consistir em “cheque em branco” para a violação de direitos fundamentais.

3.3. Aplicação da regra da proporcionalidade.

Presente a finalidade pública legítima e específica, é possível perquirir se o tratamento de dados pessoais na política pública de saúde é adequado, necessário e proporcional.

Quando se está diante da restrição de um direito fundamental, como o da proteção de dados pessoais, deve-se aplicar a regra da proporcionalidade:

A regra da proporcionalidade é uma regra de interpretação e aplicação do direito – no que diz respeito ao objeto do presente estudo, de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais -, empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais. O objetivo da aplicação da regra da proporcionalidade, como o próprio nome indica, é fazer como que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais.92

De um lado há o direito fundamental à proteção de dados pessoais e de outro o direito à saúde, ambos entendidos em sua dimensão social e coletiva. Uma eventual colisão dos direitos fundamentais, desse modo, deve ser averiguada no caso concreto.

91 WIMMER, M. Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p. 136, 2021. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/7136-29768-1-PB.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.

92 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais 798, 2002, p. 24. Disponível em: https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002-RT798-Proporcionalidade.pdf. Acesso em: 9 abr. 2023.

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Para tanto, a regra da proporcionalidade desempenha o papel de aferição da legalidade de interferências ao direito à proteção de dados pessoais.

Diante de caso concreto, há de se investigar se a restrição ao direito à proteção de dados observa, sucessivamente, as sub-regras da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, constantes dos princípios do artigo 6º da LGPD.

Nesse ponto de vista, o STF, nos recentes julgados que trataram da proteção de dados pessoais, consignou que a medidas de restrição do direito devem ser necessárias, adequadas e proporcionais.

Virgílio Afonso da Silva alerta que “a análise da adequação precede a da necessidade, que, por sua vez, precede a da proporcionalidade em sentido estrito” e que “a aplicação da regra da proporcionalidade nem sempre implica a análise de todas as suas três sub-regras”93.

A ação do poder público é considerada adequada quando o seu emprego resulta que a finalidade pretendida seja alcançada ou, pelo menos, “fomentada”94. Isto é, deve ser apta para o alcance da finalidade proposta e informada (ainda que, eventualmente, não seja atingida) de acordo com o contexto do tratamento. Assim, utilizando-se o exemplo da pandemia de Covid-19, pode-se afirmar que o tratamento de dados pessoais para fins de verificar a adesão ou não à vacinação, realizada de forma anônima, é adequada para o propósito de desenvolver e monitorar ações governamentais de incentivo à imunização.

Por seu turno, a restrição ao direito à proteção de dados pessoais é necessária quando o alcance ou promoção da finalidade pretendida não possa ser obtida por ato menos gravoso ao titular dos dados. Para Virgílio Afonso da Silva, “a diferença entre o exame da necessidade e o da adequação é clara: o exame da necessidade é um exame imprescindivelmente comparativo, enquanto que o da adequação é um exame absoluto”95.

O exame da necessidade exige que seja feita uma comparação da medida proposta com outras que possam promover a mesma finalidade (com igual intensidade) com menos restrições à proteção de dados. Voltando-se à pandemia de Covid-19, cabe indagar se o compartilhamento de dados de localização dos cidadãos por empresas de telefonia era de fato imprescindível para o monitoramento das taxas de isolamento social; se haveria medida menos gravosa à proteção dos dados pessoais (considerando que os dados de localização também podem fornecer informações sensíveis).

93 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais 798, 2002, p. 34. Disponível em: https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002-RT798-Proporcionalidade.pdf. Acesso em: 9 abr. 2023

94 Ibid, p. 35.

95 Ibid, p.38.

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A sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito, embora não mencionada na LGPD com essa terminologia, pode ser extraída do princípio da necessidade do inciso III do artigo 6º. Com efeito, ele prevê a minimização do tratamento de dados, restringido aos dados “pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades”. Ela “consiste no sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”96.

Na hipótese das políticas públicas de saúde, de um lado sempre haverá o direito à saúde e até mesmo, à vida, e de outro o direito à proteção de dados pessoais ou outro direito fundamental. Como vem sendo ressaltado, não há a prevalência em abstrato de um em relação ao outro, já que a proteção de dados possui dimensão social e coletiva no sentido de possibilitar o livre desenvolvimento da personalidade.

Por conseguinte, no caso concreto, deve ser observado se uma restrição à proteção aos dados pessoais é justificada por um direito de peso maior, como a saúde, a depender do contexto que justifique o tratamento de dados.

Cabe observar que a LGPD prevê técnicas para a minimização dos riscos ao titular de dados, como a anonimização e a pseudoanonimização, de forma tornar o tratamento proporcional diante da necessidade de uma política pública de saúde. Observou-se em item precedente que a divulgação de dados pessoais de vacinados em listas públicas na Internet, de forma a fiscalizar os “fura-fila” da vacinação contra o Covid-19, não seria proporcional em sentido estrito (caso ela superasse o teste da necessidade). Em contrapartida, o tratamento sigiloso desses dados por meio de acesso restrito aos mesmos por órgão com finalidade de controle, tal como o Ministério Público, poderia ser considerado proporcional.

3.4. Adoção de salvaguardas para a proteção aos dados pessoais.

Em respeito à autodeterminação informativa, a base legal e a finalidade do tratamento do dado pessoal pelo poder público devem ser informadas ao titular de forma clara e atualizada e em meio acessível, assim como disponibilizadas todas as informações sobre os procedimentos e práticas utilizadas para a execução dessas atividades. É o dever de transparência previsto no artigo 6º, inciso VI, da LGPD.

A mesma cautela deve ser observada em eventual tratamento posterior dos dados:

96 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais 798, 2002, p. 40. Disponível em: https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002-RT798-Proporcionalidade.pdf. Acesso em: 9 abr. 2023

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Assim, é preciso considerar que a despeito dos objetivos frequentemente meritórios e legítimos a justificar o compartilhamento e o uso secundário de dados pessoais no âmbito do Poder Público, a forma concreta de (re)utilização dos dados pode vir a ensejar consequências negativas, decorrentes (i) da quebra de confiança entre o titular dos dados e a organização que os coletou, (ii) da frustração das expectativas do titular quanto ao tratamento que justificou determinada coleta e (iii) da sensação de insegurança quanto à forma em que os dados pessoais serão utilizados no futuro.97

Embora não previsto na LGPD para base legal de políticas públicas, quando possível, deve-se buscar o consentimento do titular de dados para o tratamento secundário, em especial quando diz respeito a dados pessoais sensíveis, pois há quebra de confiança com aquele que se submeteu à coleta dos dados para determinado propósito e que não deseja ou espera que sejam acessadas e utilizadas por órgão ou ente diverso do poder público. O consentimento tem o poder de privilegiar o protagonismo do titular de dados na condução de sua própria vida.

A LGPD, outrossim, obriga que sejam adotadas providências de cunho procedimental e organizacional para se evitar riscos de vazamento ou acessos indevidos aos dados pessoais, que devem ser, primordialmente, preventivas, sem prejuízo de medidas de responsabilização.

Em se tratando de dados sensíveis para a informação de políticas de saúde, devem ser priorizadas técnicas que desvinculem o dado ao seu titular, como a supressão, a generalização, a randomização e a pseudoanonimização98.

O artigo 13 da LGPD, por exemplo, permite a órgãos de pesquisa (inclusive de natureza privada) o acesso a base de dados administrativos do poder público para a realização de estudos sobre saúde pública e recomenda que os dados pessoais tratados sejam, na medida do possível, anonimizados ou pseudoanonimizados. Em hipótese alguma é permitida a divulgação de dados pessoais nos resultados das referidas pesquisas.

Bruno Ricardo Bioni ressalta que:

[...] não há um único método ou uma combinação perfeita ex ante para parametrizar o processo de anonimização, devendo-se analisar contextualmente como

97 WIMMER, Miriam. Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p.122-142, 2021, p.

133. Disponível em: file:///C:/Users/audre/Downloads/7136-29768-1-PB.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.

98 RUARO, Regina Linden; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. O direito fundamental à proteção de dados sensíveis no sistema normativo brasileiro: uma análise acerca das hipóteses de tratamento e da obrigatoriedade do consentimento livre, esclarecido e informado sob o enfoque da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – Lei 13.709/2018. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coord.). Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 421.

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este deve ser empreendido para que os titulares dos dados anonimizados não sejam reidentificados, nem mesmo por quem procedeu à sua anonimização.99

Regina Linden Ruaro e Gabrielle Bezerra Sales Sarlet, contudo, advertem que:

Todo processo de anonimização é [...] circunstancial e precarizado em face do desenvolvimento de novas técnicas, tratando-se de um mito que se impõe de uma maneira geral para o engendramento da proteção sistemática da pessoa na sociedade informacional e que exige uma atenção redobrada e contínua, em particular quando se tem em vista a criação exponencial de algoritmos para desanonimização de bases de dados pessoais, inclusive de dados sensíveis.100

A LGPD adotou um critério de razoabilidade para considerar um dado anonimizado e, portanto, não pessoal. A associação do dado pessoal a um indivíduo deve ocorrer pela utilização de processos tecnológicos “razoáveis e disponíveis no momento do tratamento”, nos termos do artigo 5º, inciso XI.

Para Bruno Ricardo Bioni, a LGPD adotou uma “norma neutra tecnológica”, uma vez que “ao contrário de apontar para uma tecnologia em específico, que poderia se tornar obsoleta ao longo do tempo, utilizou-se de um conceito indeterminado – razoabilidade – a ser significado e atualizado pelo próprio desenvolvimento científico”101.

Importante salvaguarda que deve observada diz respeito ao tempo de vida dos dados, ou seja, a duração do tratamento, conservação, ou exclusão da base de dados. Já foi ressaltado que estes devem ser conservados apenas pelo tempo necessário e adequado para o atingir ou fomentar a finalidade pretendida com o tratamento. Outrossim, apenas os dados necessários, corretos, atualizados e dotados de relevância para a finalidade perseguida devem ser conservados.

Contudo, há situações em que não se pode simplesmente pleitear a exclusão do dado pessoal da base de dados, visto que eles são essenciais para

99 BIONI, Bruno Ricardo. Compreendendo o conceito de anonimização e dado anonimizado. In: BIONI B. R. (coord.). Proteção de dados: contexto, narrativas elementos fundantes [e-book]. São Paulo: B.R Bioni Sociedade Individual de Advocacia, 2021, p. 245.

100 RUARO, Regina Linden; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. O direito fundamental à proteção de dados sensíveis no sistema normativo brasileiro: uma análise acerca das hipóteses de tratamento e da obrigatoriedade do consentimento livre, esclarecido e informado sob o enfoque da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – Lei 13.709/2018. In: MENDES, Laura Schertel et al. (coord.). Tratado de dados pessoais [e-book]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 421-422.

101 BIONI, Bruno Ricardo. Compreendendo o conceito de anonimização e dado anonimizado. In: BIONI B. R. (coord.). Proteção de dados: contexto, narrativas elementos fundantes [e-book]. São Paulo: B.R Bioni Sociedade Individual de Advocacia, 2021, p. 248.

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o desenvolvimento das atividades do poder público, dentre elas as políticas públicas. Nesse sentido, o artigo 16, inciso I, da LGPD autoriza a conservação dos dados para o cumprimento de obrigação legal. Logo, reitera-se que a duração do tratamento e a conservação, ou não, dos dados pessoais pelo poder público devem ser averiguados de acordo como contexto fático.

Por fim, cabe salientar que, embora as salvaguardas devam ter caráter preventivo, há a previsão na LGPD de responsabilização do poder público por inobservância de suas normas e previsão de medidas para cessar eventuais infrações, sem prejuízo da fiscalização de órgãos de controle interno e externo e a sujeição de agentes de tratamento às sanções disciplinares.

A adoção pelos órgãos e entes públicos de medidas de boas práticas de governança e de segurança de dados pessoais, mediante, sobretudo, ferramentas de tecnologia da informação, são essenciais para legitimar o tratamento de dados pessoais em políticas públicas de saúde, de forma a garantir o exercício e fruição desse direito fundamental.

Exige-se mudança de cultura institucional do poder público no sentido de perceber que a sua relação com os cidadãos, no exercício de atividades e prerrogativas típicas, é permanente e, sendo assim, o tratamento dos dados pessoais é contínuo e compulsório. A digitalização dos serviços públicos, também impulsionada pela pandemia de Covid-19, associada à entrada em vigor da LGPD, tornou urgente essa adequação do setor público.

A advocacia pública está em posição privilegiada, no assessoramento do gestor público na construção de soluções jurídicas para impulsionar mudanças de adaptação do poder público às normas da LGPD: seja por meio da consultoria jurídica; pela participação direta nas fases de elaboração e de implementação de políticas públicas; pela elaboração de manuais e cartilhas de interpretação da lei e de orientações aos agentes de tratamento de dados pessoais, de protocolos para segurança de dados.

CONCLUSÃO

O objetivo do presente artigo foi desenvolver alguns parâmetros para o tratamento de dados pessoais pelo poder público em políticas públicas de saúde. Para tanto foram trabalhadas algumas noções gerais sobre tratamento de dados pessoais pelo poder público com fundamento na LGPD. Outrossim, foram apresentadas algumas ideias sobre a base legal de políticas públicas de saúde e a importância do uso de dados para as informar, utilizando-se exemplos relacionados à pandemia de Covid-19.

O direito fundamental à proteção de dados pessoais é alicerce do livre desenvolvimento da personalidade, possuindo autonomia e viés social e coletivo, já que viabiliza o exercício de outros direitos fundamentais;

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A LGPD confere proteção ao titular dos dados pessoais e não aos dados em si mesmos, pelo que não estabelece proibição ao seu tratamento, mas o legitima por meio de boas práticas que garantam a sua efetiva proteção.

O tratamento de dados pessoais da população foi muito importante para o enfrentamento da situação de emergência sanitária ocasionada pela pandemia de Covid-19. Porém, o direito à saúde coletiva não tem prevalência, em abstrato, em relação ao direito à proteção de dados pessoais, cabendo o sopesamento no caso concreto.

A regra da proporcionalidade, decomposta em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, é ferramenta útil para averiguar, no caso concreto, se determinada medida de restrição ao direito de proteção aos dados pessoais é permitida em prol da saúde coletiva.

A aplicação da LGPD pelo poder público em políticas públicas de saúde exige mudanças de cultura institucional e procedimental para a segurança dos dados pessoais, dado o caráter permanente e compulsório do relacionamento com o cidadão, o qual exige o tratamento dos dados de forma contínua e oferece maiores riscos ao direito fundamental. Nesse contexto, a advocacia pública está em posição privilegiada para a construção de soluções jurídicas com o fim de impulsionar mudanças de adaptação do poder público à LGPD.

REFERÊNCIAS

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caPítulo 3

linguagem JuríDica como Ferramenta De acesso à Justiça:

estaDo Da arte

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Bruno Rabelo dos Santos

Este artigo possui como objeto a linguagem jurídica, e sua simplificação, como ferramenta de acesso à Justiça, no contexto do Direito brasileiro. A problemática é construída ao redor das viabilidades e obstáculos fortalecidos nessa relação. O principal objetivo da pesquisa consiste em apresentar o Estado da Arte, do século XXI (2000-2022), sobre o tema. Os objetivos específicos orientam-se para a reflexão acerca da concepção de acesso à Justiça na contemporaneidade; as disputas formais pela manutenção e mudança da linguagem jurídica; e o papel institucional para transformações em seu escopo. Adota-se a revisão bibliográfica e documental, usando plataformas de bancos de pesquisa. Bakhtin (2006) concebe que a linguagem se dá nas esferas física, fisiológica e psicologia da realidade, e destaca que tal conjunto é complexo e construído socialmente. Com isso, o filósofo explicita que há – ou é preciso que haja – uma organização comum na comunidade que compartilha de uma mesma situação social e linguística. Labov (1991) entende, igualmente, que a língua e seu estudo se dão em um contexto social de uso real dentro de uma comunidade. Isso será reiterado por Habermas (1996), que trata dessa troca como “discursos”, considerando-os como processos que se cruzam de modo múltiplo e que legitimam procedimentos sociais. Para o autor, é a institucionalização de discursos que orientam a sociedade para seus objetivos, ou ainda, pressupostos pragmáticos e procedimentais, que envolvem o acesso universal aos direitos. O que Bakhtin (2006) e Habermas (1996) estabeleceram foi trazido para a contemporaneidade e teve sua especificidade no Direito com contribuições que tensionam as mudanças linguísticas, formais e procedimentais, para a garantia do acesso à Justiça a todos.

A linguagem jurídica ganha destaque porque ela está correntemente em um processo de transformação, por demanda institucional e social, encontrando percalços na ordem da tradição. Slaibi (2017) caracteriza o discurso jurídico como a produção oral ou escrita deste campo, com vocabulário próprio, estrutura específica, que, ao longo do tempo, desenvolveu-se e consolidou-se na ciência jurídica, junto à profissionalização e burocratização do Direito, centrado na técnica, em códigos e aspectos formais de sua própria linguagem, fortemente influenciado pelos contextos de ensino e trabalho, afastando-se de conhecimentos e características discursivas de outras ciências às quais era associado, como a política e a filosofia. Apesar de partir dos princípios da estabilidade, publicidade e da ficção do auditório – item que fundamenta o princípio da ignorância que pressupõe que, uma lei, quando publicada, passa a ser de conhecimento geral –há um distanciamento entre o discurso jurídico e a sociedade.

A autorreferencialidade do discurso jurídico reforça obstáculos para o acesso, justamente, ao tornar-se de difícil compreensão para o jurisdicionado. Branco (2006) explicita que a linguagem jurídica figura tanto no âmbito da norma legal, como nos trâmites e procedimentos que envolvem as estruturas dos órgãos jurídicos, de modo que ela se adequa às situações e às pessoas que as compõem, internamente. Além da falta de letramento jurídico para a maior parte das pessoas leigas, outros grupos – como previa Habermas (1998) – como pessoas com deficiência, imigrantes, idosos, e grupos social e politicamente minorizados têm dificuldade de compreender a linguagem jurídica. O encaminhamento comum é que “quanto à linguagem utilizada, ela deve ser compreensível, pois uma legislação transparente e coerente é condição essencial para que a sociedade possa funcionar de acordo com os princípios do Estado de Direito” (BRANCO, 2006, p. 13).

O modelo que se mostra ideal seria aquele em que o juiz dialoga com as partes, buscando a formação de sua convicção. Indo além, não seria possível a pretendida comunicação sem que a linguagem jurídica seja compreensível (e compreendida). Reitera-se que a simplificação da linguagem não é apenas para que o interessado acesse os atos judiciais, mas para que participe ativamente do jurisdicionado na prestação jurisdicional do Poder Judiciário. Isso perpassa pela compreensão do serviço público que é prestado, não podendo a linguagem ser um dos escudos que impede essa interação. Isso está conectado ao direito humano de inclusão do cidadão brasileiro na vida pública em sociedade, independe da condição social, raça, escolaridade e outros marcadores sociais. Delineado esse contexto, justifica-se a relevância da pesquisa que divide-se na apresentação metodológica e sistematização do Estado da Arte (SILVA; SOUZA; VASCONCELOS, 2021). Na sequência, aprofunda-se a reflexão sobre a linguagem jurídica como ferramenta de acesso à Justiça, partindo dos recortes de pesquisa e levantamento propostos. Por fim, o Estado da Arte

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articulado às considerações teóricas reitera o acesso à Justiça como um direito fundamental e, na medida em que a linguagem se constitui como obstáculo, a simplificação desta pode fortalecer sua configuração como ferramenta para a acessibilidade.

ASPECTOS METODOLÓGICOS: ESTADO DA ARTE

A presente pesquisa tem como temática a linguagem jurídica como ferramenta de acesso à Justiça. Assim, debruça-se sobre os eixos “linguagem” e “acesso à justiça”, no contexto do Direito, de modo interrelacionado.

A escolha metodológica parte do projeto mais amplo – que vem sendo desenvolvido no Mestrado Profissional em Direito, da Universidade Estadual de Ponta Grossa – que, em sua integralidade, conta com diferentes abordagens metodológicas, mas que, para o fim de identificar e reconhecer os caminhos da pesquisa brasileira neste século, entre 2000 e 2022, sobre a temática, orienta-se pelo Estado da Arte.

Essa metodologia encontra-se no campo da revisão bibliográfica, sendo relevante na medida em que acompanha as produções científicas sobre determinado tema; e tendo a característica de ser uma abordagem continuada e relacional – pode-se articular diferentes Estado da Arte para obter um panorama da investigação acadêmica ao longo do tempo, em determinado local geográfico (SILVA; SOUZA; VASCONCELOS, 2021).

Silva, Souza e Vasconcelos (2021, p. 2) indicam que “Essa modalidade de revisão bibliográfica nos permite um diálogo com os demais pesquisadores de áreas afins e nos revela a riqueza de dados produzidas em suas pesquisas”. O processo de idenificação e reconhecimento dos caminhos de pesquisa por meio de Estado da Arte pode adotar diferentes formatos, sendo orientado pelo objetivo de cada pesquisador. Neste caso, buscando-se delinear as reflexões que interrelacionam “linguagem” e “acesso à justiça” no campo do Direito, opta-se por realizar a busca de dissertações e teses sobre o tema, publicadas entre 2000 e 2022.

A escolha pela Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, como banco de pesquisa, se dá no contexto em que Silva, Souza e Vasconcelos (2021) fomentam essas fontes, considerando-as um referencial das pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação no país. O período estabelecido acompanha as mudanças de concepção sobre “linguagem” e “acesso à justiça”, ao longo do tempo (BRANCO, 2006).

Na busca avançada, buscando por “linguagem” e “acesso à justiça” em todos os campos, título, resumo e palavras-chave, encontra-se 64 dissertações e 26 teses sobre o tema, totalizando 90 trabalhos publicados entre 2000 e 2022 sobre a temática.

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Pela realização da leitura dos títulos e, posteriormente, dos resumos, reduziu-se o escopo dos trabalhos que tratam de “linguagem” e “acesso à justiça”, de modo interrelacionado, constatou-se que alinhavam-se ao proposto 4 dissertações e 3 teses, totalizando 7 trabalhos. São eles, separados por tipo e organizados cronologicamente:

Dissertações:

(D1) SOUZA, Leonardo Rodrigues. Promessas de acesso à justiça; efeitos de obstáculo à justiça: uma análise de sentenças judiciais de juizados especiais. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.

(D2) MIRANDA, Kleyvson José de. A linguagem como ferramenta de acesso à justiça. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2015.

(D3) MARINHO, Cristhiano Alessi Rabelo. Uma problemática comunicacional entre o judiciário e o cidadão comum: o caso do instituto jus postulandi. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2020.

(D4) MARINHO, Marcos José Pestana. Você sabe com quem está falando? O direito como discurso e a linguagem jurídica como dominação. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2021.

Teses:

(T1) MOTTA, Ester. Sentenças Judiciais e linguagem simples: um encontro possível e necessário. Tese (Doutorado em Letras), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022.

(T2) COSTA, Návia Regina Ribeiro da. A construção discursiva da realidade jurídica no Tribunal do Júri: um olhar com as lentes da linguística forense. Tese (Doutorado em Letras e Linguística), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022.

(T3) CASADEI, Maria Teresa de Mendonça. (In)acessibilidade linguística dos povos indígenas nos Poderes Estatais e a (ex)inclusão social. Tese (Doutorado em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.

A primeira inferência viabilizada pela identificação dos trabalhos é a crescente gradual de publicações a nível de mestrado, sendo a D1 de 2011 e a D4 publicada dez anos mais tarde, em 2021; e o caráter de inovação da discussão em doutoramentos, com todas as teses datadas de 2022.

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Sobre as abordagens propostas, indica-se, na sequência, o objeto, o objetivo geral e a metodologia adotada de cada estudo, segmentados por tipo.

Síntese das dissertações sobre “linguagem” e “acesso à justiça” 2000-2022 (continua)

Item Objeto Objetivo geral Metodologia

D1 Acesso à Justiça; Juizados Especiais.

D2 Sociedade e Direito; Elitização da linguagem; Segregação do conhecimento jurídico; Acesso à justiça.

D3 Instituto do jus postulandi

Discutir o acesso à Justiça do Juizado, em especial em relação aos procedimentos convencionalmente aceitos.

Identificar que um dos motivos do emprego insistente do Juridiquês provém da própria conceituação do que é o Direito, tanto na visão da sociedade quanto para os juristas, advogados, serventuários e estudantes.

Verificar como se processa a construção de sentidos do ato de linguagem no domínio do Direito em processos judiciais de um juizado especial, quando uma das partes não está representada por um advogado

Análise de sentenças judiciais, com fundamento nos estudos de atos de fala.

Abordagem sócio-filosófica, semiótica, e pesquisa de campo local.

Teoria Semiolinguística de Discurso (TSD).

D4 Distanciamento entre sociedade, Direito e Justiça; Linguagem jurídica verbal e não-verbal; Acesso à justiça.

Analisar e propor possíveis soluções para que a linguagem e o discurso jurídico sejam inteligíveis, assegurem o efetivo acesso à justiça dos cidadãos brasileiros.

Fonte: o autor (2023).

Pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais; abordagem sócio-filosófica, semiótica.

Síntese das teses sobre “linguagem” e “acesso à justiça” 2000-2022

Item Objeto Objetivo geral Metodologia

T1 Peculiaridades lexicais e sintáticas da linguagem em uso em Sentenças dos Juizados Especiais Cíveis do Poder Judiciário de um Estado.

Refletir sobre como, pela descrição linguística, pode-se colaborar para promover, por meio dos princípios da Linguagem Simples, a Acessibilidade Textual e Terminológica dessas sentenças.

Descrição linguística; análises de sentenças desses Juizados Especiais Cíveis; procedimentos manuais e computacionais

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T2 Simplificação da linguagem jurídica como meio de acesso à Justiça.

T3 Acessibilidade Linguística no âmbito dos três Poderes do Estado brasileiro; Tradução e/ou interpretação à disposição da população indígena.

Analisar como a prática enunciativa desse processo judicial mobiliza o discurso da simplificação da linguagem jurídica, a fim de que os jurados, como representantes legítimos do povo e juízes de fato, tenham a posse do discurso jurídico, para, por conseguinte, acessarem a Justiça e aplicá-la, por meio de seus votos como membros do Conselho de Sentença no Júri.

Discutir a inacessibilidade linguística e a violação do Direito Humano à linguagem, propondo soluções para a harmonização do sistema monolinguista adotado pela Constituição Federal brasileira.

Fonte: o autor (2023).

Análise discursiva; Estudos foucaultianos e bakhtinianos; Doutrinas jurídicas do campo do Processo Penal

Revisão bibliográfica; Apresentação de dados e a respectiva análise conclusiva dos mesmos. Métodos qualitativo-tipológico e quantitativo.

Nota-se que há prevalência de estudos voltados aos Juizados Especiais, dada sua maior proximidade com cidadãos que não necessariamente demandam do acompanhamento de um advogado e podem representar-se.

Além disso, todas as dissertações e teses apresentam, no escopo de suas metodologias, teóricos da linguagem e abordagens linguísticas, indicando que há uma intersecção entre esses campos de pesquisa quando se estuda “linguagem” e “acesso à justiça”.

Dedicando-se à leitura das teses, é possível estabelecer uma ordem de especialização temática partindo de T1, alcançando T2, e finalizando em T3.

Motta (2022, p. 386) “evidenciou que é possível a redação de uma sentença judicial com uma linguagem mais simples e mais próxima do cidadão que recorre à Justiça para resolver algum conflito”, e reflete sobre a incompatibilidade do Princípio da Obrigatoriedade das Leis, da LINDB, que põe que ninguém pode ser desculpado por não cumprir a lei alegando que não a conhece; enquanto, em verdade, muitos usuários do Sistema de Justiça encontram-se nessa situação.

Costa (2022, p. 269-270) explica:

[...] quando nos voltamos a analisar os enunciados emergentes na prática enunciativa do Processo Penal (perante o Tribunal do Júri), o que enxergamos na superfície deles não são os significados das palavras, mas, antes, as condições ditadas tanto por todas as regras insculpidas no rito jurídico quanto pela or-

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ganização sistêmica de funcionamento do Tribunal. Isso não é da ordem da língua, mas do enunciado. [...] Dito de outro modo, pelo controle exercido pelas regras do rito jurídico, cada gênero discursivo forense, para materializar seu tema, mobiliza um estilo de linguagem adequada à situação comunicativa, bem como uma forma composicional das ideias no enunciado.

Casadei (2022) volta-se à acessibilidade linguística, dialogando com os povos indígenas – no âmbito da linguagem jurídica como ferramenta de acesso à Justiça, isso amplia-se, atingindo grupos social e politicamente minorizados. O autor conclui que “a acessibilidade linguística é um princípio do direito linguístico” (CASADEI, 2022).

Alinhado às outras produções, Casadei (2022) reitera que o acesso à Justiça é deve ser garantido por meio de políticas públicas, sendo a intercompreensão – no caso dos indígenas, solucionada pela tradução e interpretação – um direito que, ao não ser atendido, aprofunda o abismo entre as injustiças sociais e o exercício pleno da cidadania.

Linguagem jurídica como ferramenta de acesso à Justiça

A participação ativa do jurisdicionado na prestação jurisdicional do Poder Judiciário perpassa pela compreensão do serviço público que é prestado, não podendo a linguagem ser um dos obstáculos que impede essa interação. Isso está conectado ao direito humano de inclusão do cidadão brasileiro na vida pública em sociedade, independe da condição social, raça ou escolaridade, como bem ressaltou o atual Ministro de Direitos Humanos, Silvo de Almeida, em seu discurso de posse no cargo, a saber:

[...] Portanto, queremos romper as barreiras de comunicação sobre os direitos humanos, que ainda não fomos capazes de superar. Precisamos construir uma linguagem de direitos humanos que fale não apenas para organismos internacionais, movimentos organizados e beneficiários diretos das nossas políticas públicas. Quero ser ministro dos direitos humanos de um país no qual este conceito ressoe no coração do homem e da mulher comum, dos trabalhadores e trabalhadoras informais e precarizados, um país no qual consigamos levar adiante nossa mensagem [...]1.

Tais palavras, como o próprio Silvio Almeida põe, tratam de proposições para o presente e o futuro, que contam com as tentativas e descobertas do passado – como viemos demonstrando no percurso que identifica e reconhece os

1 O discurso de posse do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, do dia 3 de janeiro de 2023, pode ser lido na íntegra em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/leia-a-integra-dodiscurso-de-silvio-almeida-somos-a-vitoria-dos-nossos-antepassados/ . Acesso em: 25 jan. 2023.

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caminhos da pesquisa brasileira entre 2000 e 2022 sobre “linguagem” e “acesso à Justiça”, de modo interrelacionado.

O Direito, enquanto campo científico e o Poder Judiciário, no âmbito da prestação de serviços públicos, atende às constantes demandas e transformações sociais, visando alcançar o previsto na Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB, de garantir direitos individuais, coletivos e sociais; bem como resolver os conflitos que surgem no contexto do convívio em comunidade. Para isso, garante-se também a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário (BRASIL, 1988).

Seu funcionamento é estabelecido na divisão dos Poderes do Estado brasileiro, no artigo 2° da CRFB de 1988 e, desde então, ultrapassadas três décadas, o Direito, a sociedade e os agentes do Poder Judiciário vêm encontrando mudanças significativas na sua atuação que envolvem desde as questões que atendem, até as maneiras disponíveis, adequadas e melhores para sua realização.

Orientado pela efetividade e eficácia, na busca pela garantia do direito fundamental de acesso ao Direito e à Justiça, e visando a melhoria e celeridade nas atividades do Poder Judiciário, marcadamente a partir do início do século 21, são desenvolvidas e implementadas ferramentas que aprimorem o sistema e seu funcionamento.

Essa discussão acompanha os documentos oficiais que defendem o acesso à Justiça como direito fundamental (BRASIL, 1988; ONU, 2015; CNJ, 2021), e a produção acadêmica sobre o tema, unanimemente, aponta a necessidade de ampliar o acesso à Justiça pela população, indicando caminhos e obstáculos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Autores canônicos do Direito e da Linguagem (BAKHTIN, 2006; HABERMAS, 1996; LABOV, 1991) tratam da consolidação da linguagem nos contextos em que ela se dá na realidade, sendo uma prática complexa que se constrói socialmente. Com a linguagem e o discurso jurídico, interrelacionam-se jurisdicionado e Poder Judiciário e o que as pesquisas realizadas vêm demonstrando é que há um abismo comunicativo entre eles.

A identificação e o reconhecimento dos caminhos da pesquisa brasileira entre 2000 e 2022 sobre linguagem e acesso à Justiça, realizados por meio do Estado da Arte, indicam que há uma lacuna nessas investigações no campo acadêmico, não figurando na primeira década do século XXI.

Depois da primeira publicação (SOUZA, 2011), pesquisas sobre a temática, no âmbito de mestrado, gradativamente cresceram e, em 2022, registraram-se três teses que abordam o tema. Seus encaminhamentos, assim como indicam as reflexões teóricas apresentadas ao longo deste artigo, registram a inacessibilidade da linguagem jurídica no âmbito da prestação jurisdicional, em distintas esferas.

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Destaca-se que o acesso à Justiça constitui um direito fundamental, e que os obstáculos a sua concretização demandam de soluções, dentre algumas apresentadas nos trabalhos acessados no Estado da Arte, a simplificação da linguagem se sobressai.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12 ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.

BRANCO, P. O Acesso ao Direito e à Justiça: um direito humano à compreensão. Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado – Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Oficina n. 305. 2008.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

CASADEI, Maria Teresa de Mendonça. (In)acessibilidade linguística dos povos indígenas nos Poderes Estatais e a (ex)inclusão social. Tese (Doutorado em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/USP_fcbb1e4fceb7f2f121ad7a9026bd0df8. Acesso em: 29 mar. 2023.

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/gestao-estrategica-e-planejamento/estrategia-nacional-do-poder-judiciario-2021-2026/ Acesso em 16 dez. 2022.

COSTA, Návia Regina Ribeiro da. A construção discursiva da realidade jurídica no Tribunal do Júri: um olhar com as lentes da linguística forense. Tese (Doutorado em Letras e Linguística), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFG_d9200ef6e839ed2123335b474e4caf4b. Acesso em: 29 mar. 2023.

HABERMAS, J. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. Curitiba: Edições Loyola, 1996.

LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. Filadélfia: Universidade da Pensilvânia, 1991.

MARINHO, Cristhiano Alessi Rabelo. Uma problemática comunicacional entre o judiciário e o cidadão comum: o caso do instituto jus postulandi. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2020. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/USIN_520bc8 996e40dba9fe0159024a7c876d. Acesso em: 29 mar. 2023.

MARINHO, Marcos José Pestana. Você sabe com quem está falando? O direito como discurso e a linguagem jurídica como dominação. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2021. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/NOVE_70845f3e5e1f2f3778ad4d825607dc48. Acesso em: 29 mar. 2023.

MIRANDA, Kleyvson José de. A linguagem como ferramenta de acesso à justiça Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2015. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UCAP_3ada2768b10dd63cc90693ad42c35b4c. Acesso em: 29 mar. 2023.

MOTTA, Ester. Sentenças Judiciais e linguagem simples: um encontro possível e necessário. Tese (Doutorado em Letras), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022. Disponível em: https://bdtd. ibict.br/vufind/Record/URGS_792cf9f673b324f8490f7150e501d4e8. Acesso em: 29 mar. 2023.

ONU – Organização das Nações Unidas. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, Como as Nações Unidas Apoiam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, 2015. Disponível em: https://brasil.un.org/ pt-br/sdgs. Acesso em: 16 dez. 2022.

SLAIBI. A. L. G. Uma Crítica à Linguagem Jurídica: acesso, técnica, violência e efetividade. UNIFACS, 2017. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/4810. Acesso em: 08 jan. 2022.

SOUZA, Leonardo Rodrigues. Promessas de acesso à justiça; efeitos de obstáculo à justiça: uma análise de sentenças judiciais de juizados especiais. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFG_53f35f2f744a73749e3caf54a63 274e0. Acesso em: 29 mar. 2023.

VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos; SILVA, Anne Patricia Pimentel Nascimento; SOUZA, Roberta Teixeira. O Estado da arte ou o estado do conhecimento. Educação, v. 43, n. 3, 2020.

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caPítulo 4

a arbitragem na lei De licitações e no Decreto estaDual nº 10.086/2022 - Pr

Cristina Bichels Leitão Vitor Henrique Malikoski

1. INTRODUÇÃO

Com muita honra recebemos o convite dos colegas e amigos Luiz Henrique Barbugiani e Fernando Alcantara Castelo para participar da obra coletiva sob sua coordenação: a Coletânea da APEP em Homenagem aos Procuradores do Estado do Paraná. Agradecemos aos Procuradores do Estado e, respectivamente, Diretor de Estudos Jurídicos e Presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná pela confiança e saudamos a todos os colegas advogados públicos pelo empenho na defesa do interesse público.

A proposta deste ensaio é comentar a previsão da arbitragem como meio de resolução de conflitos das contratações regidas pela Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações) e também as disposições da matéria no Decreto Estadual nº 10.086 de 17 de janeiro de 2022 - PR.

No Capítulo XII, a Lei de Licitações traz disposições sobre os meios alternativos de resolução de controvérsias, aludindo expressamente à conciliação, à mediação, ao comitê de resolução de disputas e à arbitragem.

Dispõe referido capítulo da Lei de Licitações:

Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.

Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade. Art. 153. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias.

Art. 154.O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.

Far-se-á a abordagem através de comentários aos dispositivos legais acima transcritos e propostas de parâmetros a nortear a utilização da arbitragem para resolver litígios originários das contratações regidas pela Lei de Licitações. Ademais, ao longo do trabalho serão examinados os dispositivos do Decreto Estadual nº 10.086/2022 - PR (PARANÁ, 2022) que estabelecem normas sobre a arbitragem nas contratações públicas.

Como resultado, apresenta-se padrões a serem aferidos no momento da análise da conveniência da arbitragem quando da elaboração do edital de licitação pela Administração Pública, quando da assinatura do contrato e no surgimento do litígio.

Trata-se de parâmetros relevantes tanto ao administrador público, quanto ao advogado público na orientação pela escolha da arbitragem, que deve ser adequada, factível e atender ao interesse público. No momento em que haja a opção pela arbitragem, é fundamental que a Administração Pública esteja preparada para atuar no processo arbitral e isto demanda conhecer os critérios legais e seus desdobramentos.

A análise levará em conta a legislação brasileira prévia à Lei de Licitações, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina sobre o tema da arbitragem com o Poder Público.

O ensaio é dividido em sete partes, incluída esta introdução, as premissas sobre a arbitragem e o Poder Público e as considerações finais, sendo as quatro partes centrais destinadas à análise e reflexão de cada um dos artigos da Lei de Licitações que envolvem a arbitragem.

Alguns dispositivos da lei têm dimensão mais ampla, tratando não só da arbitragem, como também de outros meios de resolução de disputas decorrentes das contratações regidas pela Lei de Licitações. Embora possam ser mencionadas, não serão objeto deste estudo.

2. PREMISSAS SOBRE A ARBITRAGEM E O PODER PÚBLICO

A arbitragem integra a justiça multiportas1, sendo método heterocompositivo de solução de conflitos. As partes interessadas na arbitragem realizam a opção

1 A expressão original, que se tornou conhecida mundo afora, é “Multi-door Courthouse”. Foi cunhada em uma revista da American Bar Association ao divulgar palestra de Frank Sander sobre o que ele chamava de “centro abrangente de justiça” (MELLO, 2023).

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por esta forma de resolução de seus conflitos em razão dos princípios da liberdade e da autonomia da vontade. Tal escolha implica renúncia à tutela jurisdicional estatal e, por isso, só é permitida quando as partes são capazes de contratar (arbitrabilidade subjetiva) e quando o litígio versa sobre direitos patrimoniais disponíveis (arbitrabilidade objetiva). É o que decorre do artigo 1º da Lei de Arbitragem.2

Algumas características da arbitragem devem ser ressaltadas, a fim de subsidiar a análise dos dispositivos da Lei de Licitações. Ela é facultativa – não há casos de obrigatoriedade da utilização de tal método no Brasil –, possui natureza jurisdicional (CARMONA, 2023; CAHALI, 2020; NERY, NERY JR, 2021; WALD, 2009), tanto é que a sentença arbitral é título executivo judicial3, produz coisa julgada material (CAIVANO, 2000) e o controle do Poder Judiciário, em regra, é feito a posteriori , nas hipóteses do artigo 32 da Lei de Arbitragem.

As vantagens mais relevantes da arbitragem são a especialidade e a possibilidade da escolha do árbitro, a viabilidade de utilização da confidencialidade, a celeridade, a flexibilidade do procedimento, o custo e a exequibilidade das sentenças (ANDREWS, 2021).

Os princípios aplicáveis ao processo arbitral são aqueles mencionados no artigo 21, § 2º da Lei de Arbitragem: contraditório, igualdade das partes, imparcialidade do árbitro e seu livre convencimento. Também é inerente ao processo arbitral o princípio da competência-competência, segundo o qual cabe ao árbitro em primeiro lugar decidir sobre sua própria competência (LA, art. 8º, parágrafo único).

As pessoas dotadas de capacidade para contratar (arbitrabilidade subjetiva) efetivam o princípio da autonomia da vontade ao optarem por esse método de resolução de conflitos através da convenção de arbitragem, cujas espécies são a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.

O art. 4º, caput da Lei de Arbitragem conceitua a cláusula compromissória como “a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato”

A cláusula compromissória é firmada pelas partes previamente à controvérsia, quando ambos preveem contratualmente a atribuição à arbitragem para dirimir eventual conflito, enquanto o compromisso arbitral é firmado após o início do litígio, no qual as partes pactuam em resolvê-lo através da arbitragem (RESKE; MALIKOSKI, 2021).

Não podem ser objeto de arbitragem os litígios envolvendo direitos indisponíveis, como aqueles relativos à capacidade das pessoas e da personalidade,

2 “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

3 CPC, art. 515, VII e LA, art. 31.

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definidos pelo artigo 11 do Código Civil (BRASIL, 2002) como “intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária”.

Quanto aos litígios que envolvem a Administração Pública, a solução de conflitos pela arbitragem é permitida igualmente quando o direito for patrimonial e disponível.

Já foi um problema afirmar que o direito que envolve o Poder Público é disponível. Mas atualmente a própria legislação se encarrega de prever que a Administração Pública direta e indireta pode utilizar-se da arbitragem para dirimir seus conflitos patrimoniais disponíveis.4

3. ART. 151: ARBITRABILIDADE OBJETIVA

No artigo 151, caput, a Lei de Licitações permite a utilização de meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias como a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem nas contratações por ela regidas.

O parágrafo único estabelece que tais meios são aplicáveis às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, indicando um rol exemplificativo: questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.5,6

4 Além de o artigo 1º, § 1º da lei de Arbitragem, na redação incluída pela Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015, ter a previsão de que a administração pública direta e indireta pode se utilizar da arbitragem, outros instrumentos normativos anteriormente já dispunham desta forma, podendo-se citar os seguintes exemplos: Lei nº 9.472/1997, art. 93, XV; Lei nº 9.478/1997, art. 43, X; Lei nº 10.233/2001, art. 35, XVI; Lei nº 10.848/2004, art. 4º, §§ 5º, 6º e 7º; Lei nº 11.079/2004, art. 11, III; Lei nº 8.987/1995, alterada pela Lei nº 11.196/2005, art. 23-A. Posteriormente a 2015, outras leis dispuseram sobre a arbitragem com o Poder Público: Lei nº 13.190/2015, art. 44-A; Lei nº 13.303/16, art. 12; Lei nº 13.448/17, art. 15, III; Decreto nº 10.025/2019, art. 1º; Lei nº 13.867/2019, art. 1º; Lei nº 14.134/2021, art. 31, §§ 5º, 6º e 7º.

5 O legislador inspirou-se no Decreto Federal nº 10.025 que dispõe, no seu art. 2º: “Art. 2º Poderão ser submetidas à arbitragem as controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis. Parágrafo único. Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis, entre outras:

I - as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; II - o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria; e III - o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, incluídas a incidência das suas penalidades e o seu cálculo.

6 O Decreto nº 10.086/2022 (PARANÁ, 2022) reproduziu as hipóteses exemplificativas da Lei de Licitações no artigo 716, º 1º: “A utilização dos meios referidos no caput deste artigo poderá ser prevista quanto à totalidade ou parcela de quaisquer direitos patrimoniais disponíveis decorrentes do contrato, incluindo-se as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômicofinanceiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações”.

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As hipóteses contidas na Lei de Licitações servem de parâmetro, mas não esgotam os casos que possam vir a surgir que sejam de direitos patrimoniais disponíveis e passíveis de convenção arbitral.

A Lei nº 14.134/2021, no seu artigo 31, § 7º apresenta outro exemplo de direitos disponíveis que envolvem o Poder Público: aqueles relativos a crédito e débitos decorrentes da celebração de contratos de compra e venda de gás natural.

Considera-se que o rol constante da norma em comento é exemplificativo, podendo haver outros tipos de conflitos submetidos à arbitragem, tais como: interpretação das cláusulas contratuais; inadimplemento contratual; atraso no início das obras; responsabilidade civil; interpretação quanto à abrangência do objeto do contrato; fixação de multas etc.

Portanto, no que tange à arbitrabilidade objetiva, como ocorre nas arbitragens em geral, o objeto do litígio deve envolver direito patrimonial disponível da administração pública, sem o que não será viável a arbitragem.

Cabe então analisar os conceitos de disponibilidade e patrimonialidade. Direito disponível é aquele que “pode ser ou não exercido livremente pelo seu titular, sem que haja norma cogente impondo o cumprimento do preceito, sob pena de nulidade ou anulabilidade do ato praticado com sua infringência” (CARMONA, 2023, p. 41), sendo disponíveis “aqueles bens que podem ser livremente alienados ou negociados, por encontrarem-se desembaraçados, tendo o alienante plena capacidade jurídica para tanto” (CARMONA, 2023, p. 41).

Gustavo Schiefler (2016, p. 990) leciona que disponível é o direito patrimonial passível de transferência, alienação, cessão, renúncia, transação ou negociação.

Patrimonial é aquilo que possui expressão econômica, valoração pecuniária (NERY, 2021). Nas palavras de Gustavo Schiefler (2016, p. 990), direitos patrimoniais “podem ser convertidos ou verificados em valores financeiros”.

Quanto aos conceitos de disponibilidade e patrimonialidade sob a perspectiva da Administração Pública, ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1997, p. 85):

São disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados que tenham expressão patrimonial, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente, e estejam no comércio, e que são, por esse motivo e normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou seus delegados, dos meios instrumentais de modo a que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado.

De modo que conflitos surgidos de relações concernentes a direitos patrimoniais disponíveis da Administração Pública podem ser submetidos à arbitragem, o que, como já referenciado, está previsto no art. 1º da Lei de Arbitragem e no art. 151 da Lei de Licitações, ora comentado.

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É relevante destacar que a (in)disponibilidade do interesse público não se confunde com a disponibilidade de direitos patrimoniais da Administração Pública (GRAU, 2002), conforme destacado pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho no caso Petrobras versus ANP (Brasil, 2017):

No que tange à disponibilidade ou indisponibilidade do direito patrimonial objeto do contrato de concessão (fls. 44/95e), impende analisar-se o tema da convivência de direito patrimonial disponível da Administração Pública com o princípio da indisponibilidade do interesse público. O interesse público é sempre indisponível porque é de titularidade da coletividade, e não do Poder Público, consoante a sempre lembrada doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello [...] Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, apresenta lapidar lição acerca da indisponibilidade do interesse público e da existência de direito disponível da Administração [...] Acresça-se a clássica doutrina de Eros Roberto Grau, que distingue duas formas de atividade econômica do Estado - atividade econômica em sentido estrito e serviço público [...] Em consequência, sempre que a Administração contrata há disponibilidade do direito patrimonial, podendo, desse modo, ser objeto de cláusula arbitral, sem que isso importe em disponibilidade do interesse público.

De fato, “a indisponibilidade do interesse público não prejudica a arbitrabilidade de direitos patrimoniais disponíveis da Administração Pública (LEITÃO, 2023), além de não afetar “a capacidade de a administração contratar, tampouco a patrimonialidade dos objetos de seus contratos”.7

7 O Professor Rafael Munhoz de Mello (2015, p. 56-58) leciona de forma completa sobre a questão: “Bem compreendido o conteúdo do princípio da indisponibilidade do interesse público, é fácil concluir que não há qualquer incompatibilidade entre ele e a ideia de direitos disponíveis de titularidade da Administração Pública. Há, isso sim, uma confusão causada pela proximidade terminológica dos conceitos – indisponibilidade do interesse público, disponibilidade de direitos –, que, contudo, não torna um o oposto do outro. Entendida a indisponibilidade como vinculação da Administração Pública ao interesse público, a confusão resta evidente. O princípio da indisponibilidade do interesse público rege todo e qualquer comportamento da Administração Pública, que jamais pode deixar de observá-lo, furtando-se à satisfação do interesse maior da coletividade. Dito de outro modo: todo e qualquer ato praticado pela Administração deve estar voltado ao atendimento do interesse público, não sendo lícito aos agentes administrativos atuarem para atingir qualquer outra finalidade. É assim tanto no exercício de direitos indisponíveis de titularidade da Administração Pública como também no exercício de seus direitos disponíveis. Ou é disponível o interesse público nos casos em que a Administração Pública é titular de direitos patrimoniais disponíveis? Vale dizer, pouco importa se o direito de titularidade do Estado é disponível ou indisponível: seu exercício sempre deverá estar voltado à satisfação do interesse público. E não há dúvida que a Administração Pública é titular de direitos patrimoniais disponíveis, entendidos como como direitos passíveis de negociação, na expressão de Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara. Não fosse assim, a Administração sequer poderia celebrar contratos, como bem percebeu Marçal Justen Filho. [...] Ao contratar, celebrar acordos ou pactuar transações a Administração Pública está dispondo de direitos de sua titularidade, o

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No mesmo sentido é o Enunciado nº 60 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal:

As vias adequadas de solução de conflitos previstas em lei, como a conciliação, a arbitragem e a mediação, são plenamente aplicáveis à Administração Pública e não se incompatibilizam com a indisponibilidade do interesse público, diante do Novo Código de Processo Civil e das autorizações legislativas pertinentes aos entes públicos. (CJF, 2016).

O Professor Carlos Alberto Carmona (2023, p. 52) corrobora a posição ao asseverar que a arbitragem é uma “opção válida para a solução de litígios, não se podendo confundir disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais com disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público”.

Lembre-se que tudo o que pode ser contratado é passível de arbitragem (LEITÃO, 2023). Daí se conclui que, se a Administração Pública pode contratar, também está autorizada a optar pelo método arbitral para resolução do conflito decorrente do contrato.

Portanto, em sendo patrimonial e disponível, contratos administrativos regidos pela Lei de Licitações poderão ter seus litígios submetidos à arbitragem.

4. ART. 152: ARBITRAGEM DE DIREITO E PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

O artigo 152 da Lei de Licitações determina que a arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade. Tais disposições já estão previstas na Lei de Arbitragem (art. 2º, § 3º) e são pertinentes para as hipóteses em que a Administração Pública é parte no processo arbitral.8

A disposição é adequada quanto à obrigatoriedade de a arbitragem ser de direito, a fim de se evitar insegurança quanto aos fundamentos da sentença arbitral nos casos em que a Administração Pública é parte.

A arbitragem de direito, lembre-se, é aquela na qual o árbitro deve proferir a sentença arbitral com base no ordenamento jurídico, de acordo com a escolha das partes (Lei de Arbitragem, art. 2º, § 1º).

A arbitragem de equidade, por sua vez, não é baseada no ordenamento jurídico, mas no senso de justiça do próprio árbitro, que está autorizado até mesmo a proferir sentença arbitral contrária à lei (TONIN, 2019, p. 287).

que não lhe autoriza, por óbvio, a dispor do interesse público em qualquer desses casos. Bem ao contrário, ela só pode dispor de seus direitos para melhor atender ao interesse público”.

8 Inclusive, há outros instrumentos normativos que estabelecem que a arbitragem envolvendo o Poder Público deve ser de direito: Decreto Federal nº 10.025/2019, art. 2º, § 3º; Decreto nº 55.996/2021 - RS, art. 2º, II; Decreto Municipal nº 59.963/2020 - São Paulo, art. 8º, II; Decreto Estadual nº 64.356/2019 - São Paulo, art. 4º, § 1º; Decreto Estadual nº 46.245/2018, art. 4º.

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O julgamento por equidade envolve uma abordagem mais flexível e adaptativa. Aqui, o árbitro não está apenas vinculado às regras estritas da lei, mas também considera os princípios éticos e de justiça que podem não ser abrangidos pela legislação existente (David, 2021). Ao adotar uma perspectiva mais ampla, o julgamento por equidade permite ao árbitro explorar soluções que transcendem as limitações legais, visando alcançar resultados mais justos e equitativos, especialmente em situações em que a lei não é completamente abrangente ou aplicável. Nesse sentido, o julgamento por equidade oferece espaço para considerar os contextos individuais das partes e suas necessidades, buscando uma resolução que reflita valores fundamentais de justiça.

Relativamente ao princípio da publicidade, não se pode afastar seu status constitucional. O artigo 37 da Constituição Federal estabelece que a Administração Pública direta e indireta dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá, dentre outros, ao princípio da publicidade.

Conforme apontado por Schmidt (2021), a justificativa por trás da vinculação da instauração de procedimento arbitral às relações com a Administração Pública na reforma da Lei de Arbitragem é clara: sempre que uma potencial controvérsia envolvendo a Fazenda Pública emerge, há um interesse intrínseco da coletividade na forma como essa disputa é resolvida. Essa premissa sustenta a importância de se aderir estritamente ao princípio da publicidade quando o Poder Público está envolvido em um caso de arbitragem. A consequência lógica desse enfoque é que, ao contrário das arbitragens privadas, a cláusula de confidencialidade rotineiramente aplicada não pode ser empregada em arbitragens que abrangem a Administração Pública.

No seu artigo 727, VI, o Decreto Estadual nº 10.086 (PARANÁ, 2022) determinou que a arbitragem deverá observar “o princípio da publicidade, cabendo à instituição arbitral disponibilizar as peças e decisões proferidas nos processos arbitrais mediante a adequada solicitação e prévia ciência das partes, ressalvados os limites legais de compartilhamento de dados”.

Neste sentido, o regulamento paranaense já delimitou a quem cabe dar cumprimento ao princípio da publicidade: as câmaras arbitrais. Com efeito, as arbitragens com o Poder Público devem ser institucionais e as câmaras serão previamente cadastradas (artigo 727, III), “cabendo ao contratado, no momento da contratação, escolher, dentre as câmaras cadastradas pelo Procurador-Geral do Estado, a instituição responsável pela arbitragem” (artigo 727, IV).

Há, porém, alguns instrumentos normativos com previsão diversa, atribuindo ao Poder Público dar atendimento ao princípio da publicidade do procedimento arbitral, como é o caso do Decreto Estadual nº 64.356/2019

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(SÃO PAULO, 2019), o qual determina que cabe à PGE disponibilizar os atos do procedimento arbitral na internet.9

5. ART. 153: POSSIBILIDADE DE ADITAMENTO DOS CONTRATOS PARA PERMITIR A ADOÇÃO DOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

No art. 153, caput da Lei de Licitações, o legislador expressamente contemplou que “os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias”. De modo que contratos anteriores à Lei de Licitações poderão ser objeto de aditamentos para incluir a arbitragem como forma de resolução de disputas.

De forma semelhante, no primeiro encontro da Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, convergiu-se pela edição de dois enunciados para permitir à Administração Pública a propositura de aditivo contratual para incluir a possibilidade de arbitragem (Enunciado Enunciado 10), mesmo que ausente de previsão editalícia nestes contratos (Enunciado 18):

Enunciado 10 . Em contratos administrativos decorrentes de licitações regidas pela Lei n. 8.666/1993, é facultado à Administração Pública propor aditivo para alterar a cláusula de resolução de conflitos entre as partes, incluindo métodos alternativos ao Poder Judiciário como Mediação, Arbitragem e Dispute Board.

Enunciado 18 . A ausência de previsão editalícia não afasta a possibilidade de celebração de compromisso arbitral em conflitos oriundos de contratos administrativos.

Quanto à desnecessidade de previsão no respectivo edital, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, em caso sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no sentido de que “o fato de não haver previsão da arbitragem no edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente” (BRASIL, STJ, 2012).

Não é demais lembrar que, nos casos de contratos já pactuados previamente à Lei de Licitações de 2021, é também possível que, surgido o litígio, as partes convencionam compromisso arbitral, o que tem previsão no Decreto Federal nº 10.025/2019, art. 6º: “Na hipótese de ausência de cláusula compromissória, a Administração Pública federal, para decidir sobre a celebração do

9 Consta do sítio eletrônico da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo o Portal da Arbitragem, disponível em: https://www.pge.sp.gov.br/Portal_PGE/Portal_Arbitragens/paginas/#team. Acesso em 19 set. 2023.

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compromisso arbitral, avaliará previamente as vantagens e as desvantagens da arbitragem no caso concreto”.

6. ART. 154: ESCOLHA DOS ÁRBITROS E TRIBUNAIS ARBITRAIS

No artigo 154, a Lei de Licitações estabelece que a seleção de árbitros, bem como a formação dos colegiados arbitrais e comitês de resolução de disputas, deve aderir a diretrizes que assegurem critérios isonômicos, técnicos e transparentes.

Ao determinar a observância de ‘critérios isonômicos’, o legislador assegura que o procedimento arbitral observará a igualdade de condições entre as partes no processo de nomeação dos árbitros, sem qualquer privilégio a qualquer dos pólos processuais. Isso significa que, no caso de nomeação de árbitro único, tal indicação deverá ser feita conjuntamente pelas partes. Caso as partes não cheguem a um consenso, a nomeação deverá ser feita pela câmara eleita, em se tratando de arbitragem institucional (SCHMIDT, 2021).

Da mesma forma, a escolha dos árbitros será pautada em critérios técnicos, isto é, o árbitro a ser nomeado pelas partes deverá dotar de conhecimentos e especialização técnica da matéria a ser litigada.

Quanto à transparência, Gustavo da Rocha Schmidt esclarece que a Administração Pública deve adotar um procedimento transparente de nomeação dos árbitros, de modo a viabilizar a fiscalização das escolhas feitas. Com esse propósito, é recomendada a regulamentação do procedimento da nomeação pelo Poder Executivo, com a finalidade de “estabelecer a autoridade competente para escolha do coárbitro, a qualificação técnica a ser preenchida e o procedimento aplicável à indicação (2021, p. 87).

Além de atender aos mencionados critérios, a escolha do árbitro observará também a disposição do art. 13, caput, da Lei de Arbitragem, ao estabelecer que qualquer pessoa capaz e que tenha confiança das partes poderá ser árbitro.

Quanto à escolha dos árbitros (e das câmaras), já se teve a oportunidade de ressaltar (LEITÃO, 2023, p. 122-123):

É importante ressaltarmos que a relação entre a câmara, árbitros, o Poder Público e a outra parte não tem natureza contratual. Por isso não é o caso de licitação, tampouco dispensa ou inexigibilidade de licitação. De fato, as atividades exercidas pelos árbitros e câmaras não se incluem naquelas reguladas pela LL (Brasil, 1993). A lei regula licitações e contratos relativos a obras, serviços, compras, alienações e locações da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Como obras, compras, alienações e locações são prontamente desconectadas da atividade dos árbitros e câmaras, resta analisar se integram o conceito de serviço referido na lei. A resposta é negativa.

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O art. 6º, II da LL define que serviço é a atividade pela qual a administração obtém determinada utilidade, como “demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (Brasil, 1993).

Como o árbitro tem a função de julgar o conflito, sua atividade não se enquadra na definição legal de serviço.

(...)

A arbitragem é jurisdição exercida pelos árbitros. Portanto, a relação é peculiar e não se caracteriza como contrato. Não há qualquer proibição na LA quanto à possibilidade de a Administração Pública realizar a escolha dos árbitros e câmaras nos termos da própria lei (Tonin, 2019, p. 381).

Recomenda-se que o procedimento arbitral seja realizado em língua portuguesa. Isso, porque, em que pese a Lei de Arbitragem e a Lei de Licitações restarem silentes em relação ao idioma a ser utilizado, deve-se dar interpretação extensiva e integração analógica para aplicar os dispostos nos artigos 11 da Lei nº 11.079/2004 (Lei das Parcerias Público-Privadas) e 23-A da Lei nº 8.987/95 (Lei de Concessões), que preveem a obrigatoriedade da arbitragem ser realizada no Brasil e em língua portuguesa.

É também o que determina o Decreto Estadual nº 10.086, no artigo 727, VII.

Em última análise, o dispositivo examinado sublinha a importância de um procedimento robusto e equitativo na seleção dos árbitros, alicerçado em critérios bem definidos e alinhado aos princípios fundamentais da justiça arbitral.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A previsão expressa da arbitragem, da conciliação, da mediação e do comitê de resolução de disputas na Lei de Licitações de 2021 constituiu mais um avanço para o fortalecimento dos meios adequados de resolução de disputas em causas nas quais o Poder Público é parte.

Quanto à arbitragem, além de reforçar algumas normas já previstas na Lei de Arbitragem, estabelece parâmetros a serem observados quanto à forma privada de resolução de disputas no âmbito dos contratos administrativos regidos pela Lei de Licitações.

É fundamental que se perceba que a opção do gestor público pela arbitragem não implica de forma alguma em contrariedade ao interesse público. Pelo contrário, cada caso, contrato e conflito deve ser minuciosamente analisado a fim de que se verifique o método mais adequado.

O próprio Decreto Estadual nº 10.086 (PARANÁ, 2022) dispõe que cláusulas compromissórias podem ser incluídas nos contratos de concessão de serviços públicos, nas concessões patrocinadas e administrativas e que qualquer

100 outro tipo de contrato administrativo pode conter cláusula compromissória desde que o seu valor seja superior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais). Daí se verifica que a arbitragem não é compatível com causas de menor complexidade e valor, dados os seus custos superiores aos do processo judicial.

Mas por que optar pela arbitragem? Porque o método é muito eficiente para causas complexas da Administração Pública, que envolvem elevados custos e precisam de uma dinâmica célere que não impeça o fluir da execução dos contratos.

É crucial que os órgãos de advocacia pública estejam preparados para orientar o gestor na escolha, elaborar cláusulas compromissórias e compromissos arbitrais que atendam ao interesse da Administração Pública e sejam factíveis para, se necessário, ser realizada uma fase preparatória da arbitragem profícua e um procedimento arbitral isonômico, ético, justo, eficiente e célere.

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caPítulo 5

a Delimitação institucional Da DisPensa De licitação em razão Do valor: o conceito De uniDaDe

gestora

Diogo Luiz Cordeiro Rodrigues

INTRODUÇÃO

A despesa pública, conceito polissêmico, refere-se tanto ao conjunto de dispêndios do Poder Público quanto à aplicação específica de recursos públicos por parte da autoridade ou agente público competente, tendo em vista o atendimento de necessidades públicas.

Como se pode imaginar, a despesa pública não pode ser validamente constituída sem o respeito à Lei e ao Direito, que compreende as normas constitucionais, legais e regulamentares pertinentes (princípio da juridicidade)1 .

Como o fenômeno da despesa não se esgota no Direito em si, o dever de regularidade da despesa também abrange as boas práticas de gestão pública e as normas técnicas de contabilidade pública2, na medida em que reforcem a juridicidade propriamente dita.

1 A ideia de vinculação da Administração Pública ao Direito é ressaltada por Patrícia Baptista: “O direito administrativo brasileiro caminhou, portanto, majoritariamente para a construção de um princípio da legalidade não no sentido da vinculação positiva à lei, mas de vinculação da Administração ao Direito. A legalidade ganha, assim, a conotação de um princípio da juridicidade. Não sendo possível a inteira programação legal da Administração Pública contemporânea, é forçoso, contudo, mantê-la totalmente subordinada aos princípios e regras do ordenamento jurídico, especialmente do ordenamento constitucional”. Como propositores de um princípio da juridicidade ou da vinculação da Administração ao Direito, a jurista cita, ainda, os publicistas Augustín Gordillo, Eduardo García de Enterría, Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Odete Medauar. Cf. BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. 2º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 82-83.

2 Em igual sentido, Catarino salienta que “o conceito de legalidade financeira se estende para além do seu âmbito tradicional e deve ser visto agora não apenas na perspectiva da estrita conformidade com a lei, mas também ampliado às questões do respeito pelas normas de con -

Quando encarada em sua dimensão específica e contratual, a despesa pública encontra a sua disciplina básica na Lei de Licitações e Contratos Administrativos, cuja aplicação deve ser conjugada com as disposições normativas que dão concretude ao princípio da juridicidade em sua dimensão orçamentária, notadamente as vedações contidas no art. 167 da Lei Maior, as normas gerais constantes da LRF e da Lei nº 4.320/1964, as disposições constantes das leis de natureza orçamentária (lei orçamentária anual, lei de diretrizes orçamentárias e plano plurianual) e de créditos adicionais, bem como as disposições de caráter regulamentar que digam respeito ao orçamento público.

Recentemente, a Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133, de 2021), ao estipular os critérios normativos para a dispensa de licitação em razão do valor da contratação, estabeleceu que os tetos previtos nos incisos I e II do art. 75 (e atualizados por regulamento federal) deve ser calculados para cada unidade gestora responsável pelo gasto.

Nesse contexto, a finalidade do presente artigo é esclarecer o critério institucional da dispensa em razão do valor, hoje norteado pelo conceito de “unidade gestora”, que é dado pelo Direito Financeiro e revela a necessária adequação orçamentária da despesa específica ou concreta à luz dos créditos orçamentários aprovados na LOA ou a ela posteriormente adicionados (créditos suplementares, especiais e extraordinários).

O itinerário do presente texto é o seguinte: o item 1 discorre sobre a despesa pública orçamentária e sua relação com a nova Nova Lei de Licitações e Contratos. O item 2 apresenta o critério institucional da dispensa de licitação em razão do valor, tal como previsto no art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021. O item 3 esclarece o papel das classificações da despesa na delimitação dos créditos orçamentários, que correspondem a autorizações legislativas para a realização de gastos públicos. O item 4 descreve a estrutura atual da programação orçamentária da despesa na União. O item 5 discorre sobre a classificação institucional da despesa orçamentária, com ênfase nos conceitos de órgão orçamentário, unidade orçamentária e unidade gestora (este acolhido expressamente pela Lei nº 14.133, de 2021 no tocante às dispensas em razão do valor. O item 6 apresenta critérios para que a Administração Pública se previna contra a burla ao princípio licitatório, que poderia ocorrer mediante descentralizações orçamentárias e financeiras abusivas a partir da banalização do conceito de unidade gestora. O artigo é encerrado com breves considerações conclusivas.

tabilidade pública e de adequação aos critérios de boa gestão, correção e eficiência financeira”. Cf. CATARINO, João Ricardo. Finanças públicas e direito financeiro . 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 403.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 104

1. A DESPESA PÚBLICA ORÇAMENTÁRIA E SUA RELAÇÃO COM A NOVA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS

A despesa pública corresponde a um dos aspectos da Atividade Financeira do Estado (AFE)3 e, quando mediada por normas jurídicas, integra o Direito Financeiro, aqui entendido como regime jurídico da AFE4

Segundo clássica lição de Aliomar Baleeiro, a despesa pública pode ser conceituada de duas maneiras. Primeiramente, é possível compreendê-la como “o conjunto de dispêndios do Estado ou de outra pessoa jurídica de direito público para o funcionamento dos serviços públicos”. Ademais, a despesa pública também pode ser vista como “a aplicação de certa quantia em dinheiro por parte da autoridade ou agente público competente, dentro de uma autorização legislativa, para a execução de fim a cargo do governo”5

À luz da distinção traçada por Baleeiro, a despesa pública possui tanto um aspecto global ou agregado quanto um aspecto individual ou concreto. Essas duas perspectivas foram notadas e aperfeiçoadas por Emerson Cesar Silva Gomes, para quem

Esta distinção merece destaque uma vez que há normas que disciplinam o gasto público no seu aspecto agregado, tais como as que limitam as despesas

3 Em linhas gerais, a AFE compreende a obtenção, a gestão e a aplicação de recursos com vistas ao atendimento das necessidades públicas. Desse modo, além da despesa pública, a AFE inclui a receita pública, o orçamento público e o crédito público, segundo a orientação doutrinária tradicional. A depender do autor, incluem-se ainda a fiscalização contábil, financeira e orçamentária, o federalismo fiscal e a responsabilidade fiscal. Em minha opinião, deve-se agregar também a contabilidade pública ao conteúdo da AFE, por se tratar de ferramenta essencial de gestão e controle dos ativos e passivos públicos, bem como das receitas e despesas públicas, especialmente nos chamados “pontos cegos” do orçamento público (caso da gestão do patrimônio imobiliário, por exemplo). Quando mediados por normas jurídicas, todos esses aspectos integram o regime jurídico próprio do Direito Financeiro. Em relação aos conceitos e aos aspectos da AFE e do Direito Financeiro, cf. CATARINO, João Ricardo. Finanças públicas e direito financeiro. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 17-27. Sobre a importância da contabilidade pública na AFE e no Direito Financeiro, cf. RODRIGUES, Diogo Luiz Cordeiro. Direito e contabilidade pública no Brasil: o advento dos Padrões Internacionais de Contabilidade do Setor Público (IPSAS). 2022, 248 f. Tese (Doutorado em Direito) – Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.

4 O Direito Financeiro também pode ser encarado como Ciência do Direito Financeiro, ou seja, como instrumento de descrição, análise, valoração e reforma do Direito Financeiro positivo. A distinção também é empregada, ainda que a partir de perspectivas diversas, por TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional financeiro: teoria da constituição financeira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 49-54 e ABRAHAM, Marcos. Curso de direito financeiro brasileiro. 7º ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2023, p. 28-30.

5 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 6.

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de pessoal na LRF, e normas que disciplinam o gasto de forma individual como aquelas contantes da Lei nº 4.320/1964 relativas às etapas de realização da despesa orçamentária.6

Curiosamente, Baleeiro parecia enxergar relevância orçamentária apenas na despesa pública agregada ou global, que corresponderia àquela fixada no orçamento anual. A despesa pública concreta ou individual, por seu turno, seria regida pelas normas de Direito Administrativo7.

Quanto a isso, a lição do Mestre baiano merece reparo. É bem verdade que compete à lei orçamentária anual prever as receitas e fixar as despesas para o exercício financeiro, como hoje proclama o art. 165, § 8º, da Constituição de 1988, ressaltando o aspecto agregado ou global dos dispêndios públicos8 .

De toda sorte, como bem ressaltado por Gomes, as etapas de realização da despesa orçamentária concreta ou individual também são norteadas pelas normas gerais de finanças públicas, notadamente a Lei nº 4.320/1964, mas também a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101/2000), em especial para o fim de assegurar que a aplicação concreta de recursos públicos respeite os limites dos créditos orçamentários disponíveis e observe ainda o disposto na lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e no plano plurianual (PPA), conforme o incontornável art. 16 da LRF9:

Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:

I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;

II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 1º Para os fins desta Lei Complementar, considera-se:

6 GOMES, Emerson Cesar da Silva. O direito dos gastos públicos no Brasil. São Paulo: Almedina, 2015, p. 79.

7 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 6.

8 De acordo com o § 8º do art. 165 da Constituição, que consagra o dito princípio da exclusividade, “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei.”. Cf. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 02 ago. 2023.

9 Cf. BRASIL. Lei Complementar nº 100, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm. Acesso em: 02 ago. 2023.

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I - adequada com a lei orçamentária anual, a despesa objeto de dotação específica e suficiente, ou que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício;

II - compatível com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, a despesa que se conforme com as diretrizes, objetivos, prioridades e metas previstos nesses instrumentos e não infrinja qualquer de suas disposições.

§ 2º A estimativa de que trata o inciso I do caput será acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.

§ 3º Ressalva-se do disposto neste artigo a despesa considerada irrelevante, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 4º As normas do caput constituem condição prévia para:

I - empenho e licitação de serviços, fornecimento de bens ou execução de obras;

II - desapropriação de imóveis urbanos a que se refere o § 3o do art. 182 da Constituição.

Desse modo, ainda que o Direito Administrativo possua relevância ímpar no tocante aos requisitos necessários à constituição das despesas públicas individualmente consideradas (exigindo, por exemplo, a realização de procedimento licitatório para contratações como regra geral e procedimentos simplicados de dispensa e inexigibilidade como exceções), fato é que o ciclo da despesa in concreto também sofre a incidência das normas financeiras e orçamentárias. Na verdade, a própria Lei de Licitações e Contratos condiciona a abertura de certames licitatórios à comprovação de que a futura despesa possui respaldo nas leis orçamentárias 10. Tal obrigatoriedade estende-se às contratações diretas, conforme o art. 72, IV, da Nova Lei de Licitações e Contratos (grifei):

Art. 72. O processo de contratação direta, que compreende os casos de inexigibilidade e de dispensa de licitação, deverá ser instruído com os seguintes documentos:

I - documento de formalização de demanda e, se for o caso, estudo técnico preliminar, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo;

II - estimativa de despesa, que deverá ser calculada na forma estabelecida no art. 23 desta Lei;

10 Segundo o art. 18 da Lei nº 14.133/2021, “a fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias” (grifei). Cf. BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 02 ago. 2023.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 107

III - parecer jurídico e pareceres técnicos, se for o caso, que demonstrem o atendimento dos requisitos exigidos;

IV - demonstração da compatibilidade da previsão de recursos orçamentários com o compromisso a ser assumido;

V - comprovação de que o contratado preenche os requisitos de habilitação e qualificação mínima necessária;

VI - razão da escolha do contratado;

VII - justificativa de preço;

VIII - autorização da autoridade competente. Parágrafo único. O ato que autoriza a contratação direta ou o extrato decorrente do contrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial.

O art. 150 da Nova Lei de Licitações e Contratos também é claro ao dispor que

nenhuma contratação será feita sem a caracterização adequada de seu objeto e sem a indicação dos créditos orçamentários para pagamento das parcelas contratuais vincendas no exercício em que for realizada a contratação, sob pena de nulidade do ato e de responsabilização de quem lhe tiver dado causa.

Verifica-se, assim, que a conexão entre orçamento e despesa desenvolve-se igualmente em dois níveis, macro e micro. Em nível macro, o orçamento fixa a despesa para fins de planejamento, de controle político-parlamentar, de equilíbrio ou política fiscal e de alocação programática dos recursos públicos, conforme as necessidades reputadas relevantes no curso do processo legislativo orçamentário (despesas discricionárias) ou de acordo com normas legais ou constitucionais preexistentes que exijam o atendimento de certas obrigações (despesas obrigatórias). Em nível micro, o sistema orçamentário cumpre basicamente o papel de parâmetro de controle da execução das despesas concretas ou individuais, juntamente com normas provenientes de outros ramos do Direito Público, como o Direito Administrativo e o Direito Eleitoral11 . Excepcionalmente, é bom frisar, haverá gastos12 materialmente públicos (porque destinados ao atendimento de necessidades coletivas ou socialmente

11 Relevante, neste último caso, é Lei nº 9.504/1997, que veda diversas condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais, inclusive no que diz respeito à realização de despesas públicas, a exemplo de gastos com publicidade e reajustes a servidores públicos (cf. art. 73, VII e VIII). Cf. BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm

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Acesso em: 02 ago. 2023.

Este texto trata “gasto” e “despesa” como vocábulos equivalentes do ponto de vista jurídico, postura que conta com o respaldo da Constituição, a qual alude indistintamente a uma e outra palavra, por vezes no mesmo contexto. O caput do art. 29-A da Constituição, por exemplo, refere-se ao “total

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 109 relevantes) que escaparão ao domínio do sistema orçamentário, porque realizados, e.g, por entidades de natureza pública que não integram o orçamento, como os conselhos de fiscalização profissional, tratados pelo Supremo Tribunal Federal como pessoas jurídicas de direito público não estatal13. Em regra, no entanto, é necessário que as despesas públicas contratuais regidas pela Lei nº 14.133/2021 sejam integralmente norteadas pelas leis orçamentárias em vigor (PPA, LDO e LOA).

2. O CRITÉRIO INSTITUCIONAL DA DISPENSA DE LICITAÇÃO EM RAZÃO DO VALOR

A Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133, de 2021) enuncia as hipóteses de contratação direta mediante dispensa de licitação, incluindo a possibilidade de afastamento do certame licitatório para contratações cujos valores sejam inferiores a certos limites, nos termos do art. 75, caput, incisos I e II e §§ 1º e 2º, adiante transcritos (grifos nossos):

Art. 75. É dispensável a licitação:

I - para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores14;

II - para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras15;

(…)

da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e excluídos os gastos com inativos” (grifei). Sobre os mais diversos sentidos da noção de despesa, inclusive sob o prisma contábil, v. GOMES, Emerson Cesar da Silva. O direito dos gastos públicos no Brasil. São Paulo: Almedina, 2015, p. 42-43.

13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5367. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Relator p/ Acórdão: Ministro Alexandre de Moraes. Tribunal Pleno, Brasília, 08 de setembro de 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 16 de novembro de 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754375070 Acesso em: 02 ago. 2023.

14 Valor atualizado para R$ 114.416,65 (cento e quatorze mil quatrocentos e dezesseis reais e sessenta e cinco centavos), conforme o Decreto Federal nº 11.317, de 29 de dezembro de 2022. Cf. BRASIL. Decreto Federal nº 11.317, de 29 de dezembro de 2022. Atualiza os valores estabelecidos na Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20192022/2022/decreto/D11317.htm. Acesso em 17 set. 2023.

15 Valor atualizado para R$ 57.208,33 (cinquenta e sete mil duzentos e oito reais e trinta e três centavos), no caso de outros serviços e compras, conforme o já citado Decreto Federal nº 11.317, de 29 de dezembro de 2022.

§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:

I - o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;

II - o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.

As hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021, traduzem basicamente uma análise legislativa de custo-benefício, considerando tanto o baixo impacto dessas contratações de pequeno valor quanto o custo relativamente elevado de (bem como a morosidade inerente a) um certame licitatório tradicional.

O risco principal associado à dispensa de baixo valor corresponde a eventual fracionamento do gasto como burla à realização do certame licitatório (que é a regra, nos termos do art. 37, XXI, da Constituição).

A fim de minimizar esse risco, o § 1º do art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021, estipula critérios para que a Administração Pública aplique adequadamente as hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 75 da Nova Lei de Licitações e Contratos. Esses critérios são os seguintes:

1) Critério financeiro: traduz-se no confronto do somatório de dispêndios com os limites pecuniários previstos nos incisos I e II do art. 75 da Nova Lei de Licitações e Contratos;

2) Critério cronológico: o somatório das despesas deve estar adstrito ao exercício financeiro, que coincide com o ano civil (art. 34 da Lei nº 4.320, de 1964);

3) Critério institucional: corresponde à unidade gestora responsável pela despesa;

4) Critério objetivo: a apuração do respeito aos tetos previstos nos incisos I e II do art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021, deve considerar as despesas que tenham objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade, tendo em vista a participação econômica do mercado, identificada pelo nível de subclasse da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE 16 .

16 Essa foi a opção adotada pelo Estado do Paraná, nos termos do art. 159, § 2º, do Decreto nº 10.086, de 2022. Cf. ESTADO DO PARANÁ. Decreto nº 10.086, de 17 de janeiro de 2022. Regulamenta, no âmbito da Administração Pública estadual, direta, autárquica e fundacional do Estado do Paraná, a Lei nº 14.133, de 01 de abril de 2021. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.

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Embora seja um diploma de Direito Administrativo, a Lei nº 14.133, de 2021, empregou um conceito de Direito Financeiro para estabelecer o critério institucional da dispensa em razão do valor, passando ao largo de conceitos mais usuais naquele ramo do Direito Público, como órgão e entidade. Em vez disso, como visto, preferiu a Lei aludir à figura da unidade gestora como lócus de realização da despesa. É fundamental que se entenda, portanto, como essa expressão é empregada no contexto da despesa pública orçamentária e suas diversas classificações.

3. DESPESA PÚBLICA, CRÉDITOS ORÇAMENTÁRIOS E CLASSIFICAÇÕES DA DESPESA

Segundo o art. 167, II, da Constituição, é vedada “a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais”. Trata-se de corolário do princípio da legalidade orçamentária, segundo o qual toda despesa deverá ser previamente autorizada pelo Poder Legislativo por meio dos créditos inscritos no orçamento anual ou a ele posteriormente adicionados (os chamados créditos suplementares, especiais e extraordinários). Crédito orçamentário, portanto, é a autorização legislativa para a realização de certa despesa. Dotação é o valor atribuído a cada crédito (isto é, sua dimensão quantitativa)17 .

Em virtude do princípio da discriminação ou especificação, os créditos orçamentários não podem ser globais ou genéricos, salvo exceções previstas explicitamente em lei18, caso dos programas especiais de trabalho mencionados no art. 20, parágrafo único, da Lei nº 4.320/196419 e da reserva de contingência

br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=259084&indice=1&totalRegistros=3&dt=17.8.2023.19.32.22.205. Acesso em 02 ago. 2023.

17 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 105.

18 No plano legal, o princípio da especificação inspira a regra constante do art. 5º da Lei nº 4.320/1964, segundo o qual “a Lei de Orçamento não consignará dotações globais destinadas a atender indiferentemente a despesas de pessoal, material, serviços de terceiros, transferências ou quaisquer outras, ressalvado o disposto no artigo 20 e seu parágrafo único”. Informa igualmente o art. 15 da Lei nº 4.320/1964, a estabelecer que “na Lei de Orçamento a discriminação da despesa far-se-á no mínimo por elementos”. Cf. BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e contrôle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm. Acesso em: 02 ago. 2023.

19 Lei nº 4.320/1964. Art. 20. Os investimentos serão discriminados na Lei de Orçamento segundo os projetos de obras e de outras aplicações. Parágrafo único. Os programas especiais de trabalho que, por sua natureza, não possam cumprir-se subordinadamente às normas gerais de execução da despesa poderão ser custeadas por dotações globais, classificadas entre as Despesas de Capital.

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para atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos, nos termos do art. 5º, III, “b”, da LRF20.

A relevância do princípio da discriminação ou especificação é clara, na medida em que dá concretude ao planejamento orçamentário e ao controle legislativo implementado pela via do orçamento21 .

Por força do princípio da discriminação ou especificação, as despesas autorizadas pelos créditos orçamentários são individualizadas mediante classificações diversas, que detalham os gastos na lei orçamentária anual a partir de diferentes perspectivas.

O caráter estruturante das classificações orçamentárias – que também devem ser orientadas pelos demais princípios orçamentários (como unidade e universalidade) – é assim ressaltado em manual técnico do Fundo Monetário Internacional22:

A classificação orçamentária é um dos pilares fundamentais de um sistema de gestão orçamentária sólido, uma vez que determina a forma como o orçamento é registrado, apresentado e reportado e, como tal, tem um impacto direto na transparência e na coerência do orçamento.

(…)

Um sistema de classificação orçamentária fornece uma estrutura normativa tanto para a tomada de decisões quanto para a prestação de contas. A classifi-

20 LRF. Art. 5º O projeto de lei orçamentária anual, elaborado de forma compatível com o plano plurianual, com a lei de diretrizes orçamentárias e com as normas desta Lei Complementar: (…) III - conterá reserva de contingência, cuja forma de utilização e montante, definido com base na receita corrente líquida, serão estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, destinada ao: (…) b) atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos.

21 Em linha semelhante, Lochagin afirma, com base em obra de James Giacomoni, que “o objetivo [do princípio] é inequívoco: que haja condições ideais de fiscalização pelo parlamento, além do fato de que essa especificação inibe que as atividades governamentais se expandam muito além dos créditos detalhadamente aprovados”. Cf. LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo São Paulo: Editora Blucher, 2012, p. 81.

22 Confira-se o texto original: “Budget classification is one of the fundamental building blocks of a sound budget management system, as it determines the manner in which the budget is recorded, presented and reported, and as such has a direct impact on the transparency and coherence of the budget. (…) A budget classification system provides a normative framework for both policy decision making and accountability. Classifying expenditures and revenues correctly is important for (1) policy formulation and performance analysis; (2) allocating resources efficiently among sectors; (3) ensuring compliance with the budgetary resources approved by the legislature; and (4) day-today administration of the budget. Once established on a sound basis, a classification scheme should not be substantially changed unless there are strong reasons; a stable classification facilitates both the analysis of trends in fiscal policy over time and intercountry comparisons.” Cf. INTERNATIONAL MONETARY FUND. Fiscal Affairs Department. Budget classification. Washington: International Monetary Fund, 2009, 21 p. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/ TNM/Issues/2016/12/31/Budget-Classification-23470. Acesso em: 02 ago. 2023.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 113 cação correta das despesas e receitas é importante para (1) formulação de políticas e análise de desempenho; (2) alocação eficiente de recursos entre os setores; (3) garantir o cumprimento dos recursos orçamentários aprovados pelo Legislativo; e (4) administração diária do orçamento. Uma vez estabelecido em uma base sólida, um esquema de classificação não deve ser substancialmente alterado, a menos que haja fortes razões; uma classificação estável facilita tanto a análise das tendências da política fiscal ao longo do tempo quanto as comparações entre países.

No Brasil, as classificações encontram na Lei nº 4.320/1964 os seus contornos gerais e seu fundamento de validade formal, mas as suas especificidades e seus códigos alfanuméricos são estabelecidos em regulamentos administrativos e manuais editados pelos órgãos competentes do Poder Executivo federal, notadamente a Secretaria do Orçamento Federal (SOF) e a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que integram o Ministério do Planejamento e Orçamento e o Ministério da Fazenda, respectivamente. Vale ressaltar que, desde a sua edição, a Lei nº 4.320/1964 já previa em seu art. 113 a possibilidade de alteração dos anexos da Lei por meio de atos administrativos do extinto Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda23 .

Por óbvio, considerada a forma federativa de Estado adotada no Brasil e o disposto no art. 24, I e II, da Constituição de 1988, os entes subnacionais poderão fazer uso de sua competência suplementar em matéria de orçamento e direito financeiro para o fim de adotar suas próprias classificações orçamentárias, respeitadas aquelas impostas por normas gerais24 .

Vale ressaltar que, atualmente, o conceito de normas gerais de direito financeiro ganha expansão significativa a partir do art. 163-A da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 108, de 2002, complementado em sede infraconstitucional pelos artigos 48-A e art. 50, § 2º, da LRF:

Constituição. Art. 163-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais, conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União, de forma a garantir a rastreabilidade, a

23 Confira-se o teor do dispositivo legal: “Art. 113. Para fiel e uniforme aplicação das presentes normas, o Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda atenderá a consultas, coligirá elementos, promoverá o intercâmbio de dados informativos, expedirá recomendações técnicas, quando solicitadas, e atualizará sempre que julgar conveniente, os anexos que integram a presente lei.” Cf. BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e contrôle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320. htm. Acesso em: 02 ago. 2023.

24 No mesmo sentido: GIACOMONI, James. Orçamento governamental: teoria, sistema, processo. São Paulo: Atlas, 2019, p. 257.

comparabilidade e a publicidade dos dados coletados, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de amplo acesso público. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 108, de 2020)

LRF. Art. 48, § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de amplo acesso público (Incluído pela Lei Complementar nº 156, de 2016)

LRF. Art. 50. § 2º A edição de normas gerais para consolidação das contas públicas caberá ao órgão central de contabilidade da União, enquanto não implantado o conselho de que trata o art. 67.

Nesse contexto, os regulamentos administrativos editados pela STN (isoladamente ou em conjunto com a SOF) passam a ser de observância obrigatória por parte dos entes subnacionais, inclusive em matéria de classificação orçamentária. O Supremo Tribunal Federal conferiu respaldo a essa leitura em julgado recente, proferido na ADPF 763, no qual afirmou que o “Poder Legislativo da União exerceu legítima atuação legiferante no sentido da deslegalização da matéria atinente às normas gerais de contabilidade pública”25, o que inclui a padronização das informações orçamentárias26 .

Ainda assim há espaço para inovações em âmbito subnacional. Por exemplo, embora um Estado da Federação não possa suprimir a classificação funcional-programática da despesa, poderá adotar, em ato próprio, sua estrutura de programas, códigos e identificação, respeitados os conceitos e determinações previstos no regulamento federal (art. 3º da Portaria SOF/SETO/ME nº 42/199927 e Manual da Contabilidade Aplicada ao Setor Público – MCASP28). Poderá, inclusive, não adotar a classificação por subtítulo, que identifica a localização física da ação orçamentária na União29

25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 763. Relator Min. André Mendonça, Plenário. Brasília, 03 de novembro de 2022. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 18 nov. 2022.

26 Em sentido crítico, cf. RODRIGUES, Diogo Luiz Cordeiro. Direito e contabilidade pública no Brasil: o advento dos Padrões Internacionais de Contabilidade do Setor Público (IPSAS). 2022, 248 f. Tese (Doutorado em Direito) – Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.

27 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Orçamento Federal. Portaria nº 42, de 14 de abril de 1999. Disponível em: https://in.gov.br/web/dou/-/portaria-sof/me-n-2.520-de-21-de-marcode-2022-387374808. Acesso em 02 ago. 2023.

28 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 79/80.

29 Na União, o subtítulo representa o menor nível de categoria de programação e é previsto na LDO federal, não nas normas gerais de contabilidade pública. Cf. BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 81.

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4. ESTRUTURA ATUAL DA PROGRAMAÇÃO ORÇAMENTÁRIA DA DESPESA NA UNIÃO

Atualmente, o orçamento público no âmbito da União organiza-se em programas de trabalho, que incluem informações qualitativas e quantitativas.

As informações qualitativas abrangem as seguintes classificações: por esfera (identifica o suborçamento em que se dá a despesa), institucional (indica a quem compete realizar o gasto), funcional (revela a área de despesa da ação governamental), estrutura programática (revela o que se quer alcançar com a implementação da Política Pública), além das informações principais da ação orçamentária (identificando a finalidade do gasto)30 .

As informações quantitativas incluem uma dimensão física (quantidade de bens e serviços a serem entregues) e uma dimensão financeira (montante necessário para o desenvolvimento da ação orçamentária). Esta última compreende as classificações quanto à natureza da despesa, o Identificador de uso (IDUSO, que informa se os recursos são destinados para contrapartida), a fonte de recursos (estabelece a vinculação entre a origem e o destino dos recursos), o Identificador de doação e de operação de crédito (IDOC, informa a que operação de crédito ou doação os recursos se relacionam), o Identificador de resultado primário (revela qual o efeito da despesa sobre o resultado primário da União), além da dotação propriamente (indica o montante alocado) 31 .

O Quadro 1, extraído do Manual Técnico do Orçamento para 2024, ilustra a classificação de uma despesa específica à luz da codificação hoje adotada na esfera federal32:

30 BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Secretaria do Orçamento Federal. Manual técnico do orçamento. Brasília: 2023 Disponível em: https://www1.siop.planejamento.gov.br/ mto/doku.php/mto2024. Acesso em 2 ago. 2023. p. 38-39.

31 BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Secretaria do Orçamento Federal. Manual técnico do orçamento (MTO). Brasília: 2023. Disponível em: https://www1.siop.planejamento. gov.br/mto/doku.php/mto2024. Acesso em 2 ago. 2023. p. 39-40.

32 BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Secretaria do Orçamento Federal. Manual técnico do orçamento. Brasília: 2023, p. 37. Disponível em: https://www1.siop.planejamento.gov. br/mto/doku.php/mto2024. Acesso em 02 ago. 2023.

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Quadro 1

Exemplo de classificação de despesa pública

Fonte: BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Secretaria do Orçamento Federal. Manual técnico do orçamento (MTO). Brasília: 2023. Disponível em: https://www1.siop.planejamento.gov.br/mto/doku.php/mto2024. Acesso em 2 ago. 2023. P. 37.

A seguir, o texto passa a tratar da classificação institucional, que é a mais importante para que se compreenda o alcance do art. 75 da Lei nª 14.133/2021.

5. A CLASSIFICAÇÃO INSTITUCIONAL DA DESPESA ORÇAMENTÁRIA

A classificação institucional (ou administrativa) reflete a estrutura de alocação das dotações orçamentárias, ou seja, busca esclarecer a quem foi atribuído certo montante para realização de determinada despesa. A classificação institucional está estruturada em dois níveis hierárquicos: os órgãos orçamentários e as unidades orçamentárias. Segundo o MCASP33

os órgãos orçamentários ... correspondem a agrupamentos de unidades orçamentárias. As dotações são consignadas às unidades orçamentárias, responsáveis pela realização das ações.

A orientação do MCASP adere ao disposto na Lei nº 4.320, de 1964, segundo a qual as dotações são atribuídas às unidades orçamentárias. Vejamos:

33 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 77.

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Art. 14. Constitui unidade orçamentária o agrupamento de serviços subordinados ao mesmo órgão ou repartição a que serão consignadas dotações próprias. Parágrafo único. Em casos excepcionais, serão consignadas dotações a unidades administrativas subordinadas ao mesmo órgão.

Art. 47. Imediatamente após a promulgação da Lei de Orçamento e com base nos limites nela fixados, o Poder Executivo aprovará um quadro de cotas trimestrais da despesa que cada unidade orçamentária fica autorizada a utilizar.

Art. 80. Compete aos serviços de contabilidade ou órgãos equivalentes verificar a exata observância dos limites das cotas trimestrais atribuídas a cada unidade orçamentária, dentro do sistema que fôr instituído para êsse fim.

Cumpre frisar que os órgãos e unidades orçamentárias não correspondem necessariamente a órgãos da Administração Pública, como esclarece o MCASP34:

Cabe ressaltar que um órgão orçamentário ou uma unidade orçamentária não correspondem necessariamente a uma estrutura administrativa, como ocorre, por exemplo, com alguns fundos especiais e com as unidades orçamentárias “Transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios”, “Encargos Financeiros da União”, “Operações Oficiais de Crédito”, “Refinanciamento da Dívida Pública Mobiliária Federal” e “Reserva de Contingência”.

A título meramente exemplificativo, destaco abaixo dois órgãos orçamentários e algumas de suas respectivas unidades orçamentárias, incluindo a estrutura de código em 5 dígitos, dos quais os 2 primeiros correspondem ao órgão orçamentário e os 3 últimos, à unidade orçamentária35:

• Órgão orçamentário: 26000 Ministério da Educação – MEC

• Exemplos de unidades orçamentárias:

26101 Ministério da Educação - Administração Direta – MEC/AdmD;

26201 Colégio Pedro II – CPII

26246 Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

• Órgão orçamentário: 71000 Encargos Financeiros da União EFU

• Exemplos de unidades orçamentárias:

71101 Recursos sob Supervisão do Ministério da Fazenda – EFU-MF

34 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 78.

35 BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Secretaria do Orçamento Federal. Manual técnico do orçamento. Brasília: 2023, p. 218-233. Disponível em: https://www1.siop.planejamento. gov.br/mto/doku.php/mto2024. Acesso em 02 ago. 2023.

71906 Fundo Especial de Financiamento de Campanhas – FEFC

71103 Encargos Financeiros da União - Pagamento de Sentenças Judiciais – EFU-PSJ

O art. 14 da Lei nº 4.320/1964, também faz uso da expressão “unidade administrativa”, que poderá, em caráter excepcional, executar despesas autorizadas em créditos e dotações alocadas em unidades orçamentárias que lhes são hierarquicamente superiores. As unidades administrativas podem receber essa incumbência em caráter excepcional por meio das chamadas descentralizações orçamentárias e financeiras. Confira-se a lição do MCASP a esse respeito (grifei)36:

As descentralizações de créditos orçamentários ocorrem quando for efetuada movimentação de parte do orçamento, mantidas as classificações institucional, funcional, programática e econômica, para que outras unidades administrativas possam executar a despesa orçamentária.

As descentralizações de créditos orçamentários não se confundem com transferências e transposição, pois:

a. Não modificam a programação ou o valor de suas dotações orçamentárias (créditos adicionais); e

b. Não alteram a unidade orçamentária (classificação institucional) detentora do crédito orçamentário aprovado na lei orçamentária ou em créditos adicionais.

Quando envolver unidades gestoras de um mesmo órgão tem-se a descentralização interna, também chamada de provisão. Se, porventura, ocorrer entre unidades gestoras de órgãos ou entidades de estrutura diferente, ter-se-á uma descentralização externa, também denominada de destaque.

Na descentralização, as dotações serão empregadas obrigatória e integralmente na consecução do objetivo previsto pelo programa de trabalho pertinente, respeitadas fielmente a classificação funcional e a estrutura programática. Portanto, a única diferença é que a execução da despesa orçamentária será realizada por outro órgão ou entidade.

Na esferera federal, as descentralizações externas são efetuadas mediante Termos de Execução Descentralizada, nos termos do Decreto Federal nº 10.426/202037. No Estado do Paraná, o Decreto Estadual nº 11.180/2022 dis-

36 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 108.

37 BRASIL. Decreto nº 10.426, de 16 de julho de 2020. Dispõe sobre a descentralização de créditos entre órgãos e entidades da administração pública federal integrantes dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, por meio da celebração de termo de execução descentralizada. Dis-

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põe sobre o Regime de Execução Orçamentária Descentralizada (REOD) no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social do Estado do Paraná, com vista à execução de ações de interesse recíproco de órgãos, fundos e entidades da Administração Pública estadual38 .

Nada impede, contudo, que outros instrumentos de descentralização legalmente previstos alimentem as unidades gestoras, caso dos fundos rotativos39 . É importante salientar que apenas os órgãos orçamentários e as unidades orçamentárias são refletidas na classificação institucional explicitada na lei orçamentária anual. As unidades administrativas sequer aparecem na lei orçamentária anual, mas podem se tornar unidades gestoras na fase de execução do orçamento por meio das descentralizações orçamentárias, conforme destacado acima. Sobre o tema, confira-se ainda a lição de James Giacomoni40:

Se o ministério é de grande porte, com vasta departamentalização, é desejável que o orçamento da UO sofra detalhamento, não na LOA, mas, pelo menos, na etapa de execução orçamentária. O desdobramento da UO em unidades gestoras (UG) atende a essa finalidade. Fica claro que repartir o orçamento da UO entre UGs não modifica a programação e os valores consignados na LOA. A soma das despesas programadas e realizadas pelas Ugs não poderá ultrapassar o montante autorizado para a UO.

Percebe-se, portanto, que o conceito de UG é relevante para fins de execução orçamentária. Nesse contexto, a expressão unidade gestora (UG) engloba tanto as unidades orçamentárias (UOs, titulares das dotações) quanto as administrativas (UAs) que venham a executar dotações com base em descentralizações orçamentárias operadas pelas unidades orçamentárias titulares.

ponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10426.htm Acesso em 02 ago. 2023.

38 ESTADO DO PARANÁ. Decreto nº 11.180, de 23 de maio 2022. Dispõe sobre o novo Regime de Execução Orçamentária Descentralizada (REOD) no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social do Estado do Paraná. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/ legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=265292&indice=1&totalRegistros=3&dt=17.8.2023.19.42.35.536. Acesso em 02 ago. 2023.

39 Trata-se de instrumento peculiar de execução financeira, que possibilita a descentralização de recursos financeiros do orçamento fiscal do Estado e de outras eventuais fontes, por meio da liberação de cotas, em proveito de unidades administrativas previamente determinadas em lei, a fim de que possam aplicar os recursos a elas repassados de maneira mais ágil. Em âmbito estadual, confirase, e.g., ESTADO DO PARANÁ. Lei nº 20.826, de 30 de novembro de 2021. Autoriza o Poder Executivo a criar Fundos Rotativos para os Órgãos que especifica. Disponível em: https://www. legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=256215&indice=1&totalRegistros=1&dt=17.8.2023.19.48.16.665. Acesso em 02 ago. 2023.

40 No mesmo sentido: GIACOMONI, James. Orçamento governamental: teoria, sistema, processo. São Paulo: Atlas, 2019, p. 258.

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Desse modo, nem toda unidade administrativa corresponde a uma unidade gestora. Apenas a unidade administrativa que receba a incumbência de executar dotações orçamentárias mediante descentralização será considerada unidade gestora.

Historicamente, a expressão unidade gestora parece ter surgido no contexto de criação e regulamentação do SIAFI, o pioneiro sistema informatizado de execução orçamentária e financeira da esfera federal, desenvolvido nos anos 80 do Século XX na esteira da reorganização financeira do Estado. Tanto é assim que o Decreto Federal nº 93.872, de 198641, que dispõe sobre a administração financeira e orçamentária da União até os dias de hoje, contém uma série de disposições relativas às unidades gestoras, a exemplo das seguintes:

Art. 10. Os Ministérios, Órgãos da Presidência da República e dos Poderes Legislativo e Judiciário, dentro do limite global de saques fixado e de acordo com o fluxo dos recursos do Tesouro Nacional, aprovarão o limite de saques de cada unidade orçamentária, tendo em vista o cronograma de execução dos projetos e atividades a seu cargo, dando ciência ao Tribunal de Contas da União (Decreto-lei nº 200/67, art. 72, § 1º).

Parágrafo único. A unidade orçamentária poderá partilhar seu limite financeiro entre unidades administrativas gestoras, quando conveniente e necessário, observadas as normas legais pertinentes.

Art. 20. As dotações atribuídas às unidades orçamentárias, diretamente ou por meio de destaque, poderão ser descentralizadas para unidades administrativas, quando capacitadas a desempenhar os atos de gestão, e regularmente cadastradas como unidades gestoras.

Art . 26. O empenho não poderá exceder o saldo disponível de dotação orçamentária, nem o cronograma de pagamento o limite de saques fixado, evidenciados pela contabilidade, cujos registros serão acessíveis às respectivas unidades gestoras em tempo oportuno.

Parágrafo único. Exclusivamente para efeito de controle da programação financeira, a unidade gestora deverá estimar o prazo do vencimento da obrigação de pagamento objeto do empenho, tendo em vista o prazo fixado para o fornecimento de bens, execução da obra ou prestação do serviço, e o normalmente utilizado para liquidação da despesa.

Art . 43. A ordem de pagamento será dada em documento próprio, assinado pelo ordenador da despesa e pelo agente responsável pelo setor financeiro.

41 BRASIL. Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986. Dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, atualiza e consolida a legislação pertinente e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d93872.htm. Acesso em 02 ago. 2023.

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§ 1º A competência para autorizar pagamento decorre da lei ou de atos regimentais, podendo ser delegada.

§ 2º A descentralização de crédito e a fixação de limite de saques a unidade gestora importa mandato para a ordenação do pagamento, observadas as normas legais pertinentes.

Embora tenha sua origem ligada à regulamentação do SIAFI federal e não esteja prevista na Lei nº 4.320/1964 para fins de classificação institucional, a expressão unidade gestora está prevista em norma geral da LRF para fins de transparência na gestão fiscal, ainda que não seja definida por tal diploma, consoante o art. 48-A, inciso I:

LRF. Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a: (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).

I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado;(Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).

Às UGs são atribuídos códigos próprios no âmbito do SIAFI, não se confundindo com aqueles dos órgãos dos órgãos orçamentários e das unidades orçamentárias.

Atualmente, os termos unidade orçamentária, unidade administrativa e unidade gestora são definidos no Glossário da STN42:

Unidade orçamentária. Constitui Unidade Orçamentária (UO) o agrupamento de serviços subordinados ao mesmo órgão ou repartição a que serão consignadas dotações próprias (art. 14 da Lei nº 4.320/1964). As dotações são consignadas às unidades orçamentárias, responsáveis pela realização das ações.

Unidade Administrativa. Segmento da administração direta ao qual a lei orçamentária anual não consigna recursos e que depende de destaques ou provisões para executar seus programas de trabalho.

Unidade Gestora é a nomenclatura usada para definir as unidades cadastradas no SIAFI investidas do poder de gerir recursos orçamentários e financeiros,

42 BRASIL. Secretaria do Tesouro Nacional. Glossário de termos. Disponível em: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=GLOSSARIOPUBLIC:3:::::P3_ID_ASSUNTO:1 Acesso em 02 ago. 2023.

próprios ou sob descentralização e cujo titular, em consequência, está sujeito à tomada de contas anual em conformidade com o disposto nos artigos 81 e 82 do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967.

Em âmbito estadual, o conceito de unidade gestora consta expressamente do Decreto nº 10.086, de 2022, e não destoa daquele empregado pela STN, como revela o art. 2º, inciso CVI, do referido Regulamento43:

Art. 2º Além do previsto no art. 6º da Lei Federal n.º 14.133, de 2021, para os fins deste Regulamento, consideram-se:

(…)

CVI - Unidade gestora - Unidade orçamentária ou administrativa investida do poder de gerir recursos orçamentários e financeiros, próprios ou sob descentralização.

Em âmbito estadual, a locução unidade gestora também é referenciada no já Decreto Estadual nº 11.180/2022, segundo o qual o plano de trabalho referente ao Termo de Execução Descentralizada (TED) conterá “a identificação das unidades descentralizadora e descentralizada, com discriminação das unidades gestoras” (art. 9º, inciso VI)44 .

Verifica-se, em síntese, que a expressão unidade gestora consiste em conceito juridicamente orientado por normas gerais de Direito Financeiro e normas estaduais aplicáveis ao caso, abrangendo inclusive unidades administrativas beneficiadas por descentralizações implementadas por unidades orçamentárias.

6. DISPENSA EM RAZÃO DO VALOR E DESCENTRALIZAÇÕES ABUSIVAS: PARÂMETROS DE CONTROLE

É de se notar que o recurso exagerado às descentralizações orçamentárias pode produzir distorções abusivas. Elucidativo, em nossa opinião, é o exemplo do Colégio Pedro II, na esfera federal.

43 ESTADO DO PARANÁ. Decreto nº 10.086, de 17 de janeiro de 2022. Regulamenta, no âmbito da Administração Pública estadual, direta, autárquica e fundacional do Estado do Paraná, a Lei nº 14.133, de 01 de abril de 2021. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/ legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=259084&indice=1&totalRegistros=3&dt=17.8.2023.19.32.22.205. Acesso em 02 ago. 2023.

44 ESTADO DO PARANÁ. Decreto nº 11.180, de 23 de maio de 2022. Dispõe sobre o novo Regime de Execução Orçamentária Descentralizada (REOD) no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social do Estado do Paraná. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/ legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=265292&indice=1&totalRegistros=3&dt=17.8.2023.19.42.35.536. Acesso em 02 ago. 2023.

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Segundo o Manual Técnico do Orçamento (MTO) federal, o Ministério da Educação (MEC) consiste em órgão orçamentário (código 26), no qual estão incluídas diversas unidades orçamentárias, como todas as Universidades Federais (a UFPR é a unidade orçamentária nº 26241), além de institutos federais de educação, incluindo o Colégio Pedro II (código 26201)45 .

Quando se consulta a lista de unidades gestoras no Portal SIAFI, percebe-se que todos os campi do Colégio Pedro II são unidades gestoras com função executora:

Quadro 2

Unidades gestoras do Colégio Pedro II

Fonte: BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Informações do SIAFI. Brasília: 2023. Disponível em: http://consulta.tesouro.fazenda.gov.br/ug_novosite/consulta_ug.asp. Acesso em 2 ago. 2023.

Assim, muito embora apenas a unidade orçamentária Colégio Pedro II (código 262010) esteja autorizada pela lei orçamentária da União a realizar despesas a título próprio, todos as unidades administrativas do Colégio Pedro II, representadas por seus 13 campi e por sua administração central, são incluídas no SIAFI como unidades gestoras, que executam recursos orçamentários e financeiros. À luz do art. 75, § 1º, I, da Lei 14.113, de 2021, portanto, cada campus do Colégio Pedro II está autorizado a efetuar despesas mediante contratações diretas em razão do valor, respeitados os tetos indicados nos incisos

45 Ministério do Planejamento e Orçamento. Secretaria do Orçamento Federal. Manual Técnico do Orçamento. Brasília: 2023, p. 271.

I e II do art. 75 e atualizados pelo Decreto Federal nº 11.317, de 2022 (R$ 114.416,65 e R$ 57.208,33 respectivamente).

No limite, se considerarmos todas as 14 unidades gestoras vinculadas ao Colégio Pedro II, seria possível a essa instituição adquirir anualmente objetos de mesma natureza no valor total de R$ 800.916,62 (oitocentos mil, novecentos e dezesseis reais e sessenta e dois centavos), sem licitação, somente com base na hipótese de contratação direta prevista no art. 75, inc. II, da Lei nº 14.133, de 2021 (desde que cada unidade gestora gaste o máximo a ela permitido).

Como se pode imaginar, não há limites claros à descentralização orçamentária, que, no caso do Colégio Pedro II, poderia atingir ainda mais unidades administrativas. Essa ausência de limites claros pode representar um incentivo para que o gestor público venha a abusar do instituto da descentralização, de modo a não promover certames licitatórios sem maiores justificativas.

Não por outro motivo, considero pertinente o julgado no qual o Tribunal de Contas do Estado do Pernambuco ressaltou que a descentralização orçamentária deve observar os princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade, eficiência e economicidade, sob pena de ofender o princípio licitatório. Confira-se o entendimento da Corte de Contas pernambucana46:

CONSULTA. LICITAÇÕES. DISPENSA. LIMITES. POR UNIDADE GESTORA. PREFEITURA.

1. Os tetos prescritos da Lei 8.666/93, art. 24, I e II, caso a execução orçamentária seja centralizada, aplicam-se à Prefeitura como um todo, incluindo órgãos e secretarias. Caso os créditos orçamentários sejam descentralizados, os tetos se aplicam para cada uma das unidades gestoras do Município.

2. A implantação de descentralização administrativa, orçamentária e financeira deve ser objeto de ato normativo específico, que indique a motivação de sua necessidade, sendo certo que tal sistemática deve observar os princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade, eficiência e economicidade.

3. A adoção da referida descentralização, sem a observância desses preceitos, pode configurar, entre outras irregularidades, afronta à lei de licitações, levando à responsabilização de agentes públicos.

Em relação ao Estado do Paraná, pode-se dizer que os tetos correspondentes às hipóteses legais de dispensa em razão do valor deverão ser aplicados a cada unidade gestora, considerando as unidades orçamentárias e administrativas investidas do poder de gerir recursos orçamentários e financeiros, próprios ou sob descentralização, desde que devidamente identificadas no sistema

46 ESTADO DE PERNAMBUCO. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO. Acórdão TC nº 997/2020. Tribunal Pleno. Proc. TC nº 1951758-0. Rel. Cons. Valdecir Pascoal. Diário Oficial do TCEO/PE de 09 nov. 2020.

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PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 125 único de execução orçamentária e financeira, em respeito ao princípio da transparência na gestão fiscal e ao disposto no art. 48-A da LRF. Nessa linha, a execução das despesas realizadas pelas unidades gestoras deve ser plenamente controlável por meio do Portal da Transparência, de acesso público e em tempo real.

Não é suficiente, contudo, que seja tecnicamente possível a criação de uma unidade gestora nova no sistema de execução orçamentária e financeira. É necessário também que haja, de fato, gestão administrativa e de recursos orçamentários e/ou financeiros por parte da unidade administrativa beneficiária da descentralização, em consonância com suas competências legais, e seu titular deve ocupar cargo compatível com a importante função de ordenar despesas, nos termos da lei de regência.

Quanto a eventuais exageros relacionados a descentralizações orçamentárias e financeiras, é certo que o Estado do Paraná encontra-se hoje em situação privilegiada, na medida em que o Decreto nº 11.180, de 2022, que dispõe sobre o Regime de Execução Orçamentária Descentralizada (REOD), é rigoroso o bastante para prevenir descentralizações injustificadas e desmedidas, contribuindo para a preservação do princípio licitatório. O regulamento em questão encontra suporte normativo no art. 87, VI, da Constituição paranaense 47 e no art. 30 da lei de diretrizes orçamentárias do Estado do Paraná (Lei nº 21.587, de 2023 48).

São inválidas, por outro lado, todas as descentralizações que não se sujeitem ao disposto no Decreto nº 11.180, de 2022 ou a regime legal típico diverso, como o dos fundos rotativos regularmente instituídos. Delegações casuísticas

47 Constituição do Estado do Paraná. Art. 87. Compete privativamente ao Governador: (…) VI - dispor, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Redação dada pela Emenda Constitucional 39 de 12/12/2017). Cf. ESTADO DO PARANÁ. Constituição do Estado do Paraná. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=iniciarProcesso&tipoAto=10&orgaoUnidade=1100&retiraLista=true&site=1. Acesso em 02. ago. 2023.

48 Lei nº 21.587, de 2023. Art. 30. A execução orçamentária e financeira da despesa poderá se dar de forma descentralizada, por meio de movimentação de crédito, observadas as disposições contidas na Portaria STN nº 339, de 29 de agosto de 2001, na Portaria Interministerial STN/SOF nº 163, de 4 de maio de 2001, atualizada pela Portaria Conjunta STN/SOF/ME nº 103, de 5 de outubro de 2021, no Decreto nº 11.180, de 23 de maio de 2022, e demais normativas vigentes. § 1º A descentralização de crédito prevista no caput deste artigo poderá ser interna, quando ocorrer entre Unidades de um mesmo Órgão, ou externa, quando ocorrer entre Unidades de Órgãos diferentes. Cf. ESTADO DO PARANÁ. Lei nº 21.587, de 14 de julho de 2023. Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária do exercício financeiro de 2024. Disponível em: https://www. legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=300643&indice=1&totalRegistros=1&dt=17.8.2023.20.6.32.85. Acesso em 02. ago. 2023.

direito

devem ser evitadas e se sujeitam, em qualquer, ao princípio da legalidade e aos demais princípios da Administração Pública, como ressaltado acima.

Vale ressaltar que as descentralizações orçamentárias e financeiras são acompanhadas de atos de delegação de competência para a ordenação de despesas. Nesse contexto, na ausência de normas especiais, sujeitam-se às disposições gerais da Lei de Processo Administrativo que norteiam os atos delegatórios de competências administrativas (Lei nº 20.656, de 2021, no caso do Estado do Paraná49).

É fundamental que o ato de delegação seja praticado pela autoridade legalmente competente , que não poderá delegar a totalidade da competência do órgão (arts. 16 e 17, inciso V), mas poderá fazê-lo em proveito de autoridade que não lhe seja hierarquicamente subordinada, se conveniente (art. 16).

O ato de delegação de competência não pode ser genérico: deve especificar as matérias e poderes transferidos, os limites da atuação do delegado, a duração e os objetivos da delegação e o recurso cabível, podendo conter ressalva de exercício da atribuição delegada (art. 18, § 1º).

Não se delega (e nem se pode delegar) a titularidade da competência em si, mas o seu exercício, razão pela qual é o ato de delegação é revogável a qualquer tempo pela autoridade delegante (art. 18, § 2ª).

O ato deve ser publicado no Diário Oficial e expressamente motivado com base em circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial (arts. 16 e 18). A Lei admite que a delegação se faça por por meio de convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres (art. 18, § 3º).

É vedada a delegação de matéria de competência exclusiva do órgão ou autoridade (art. 17, III). Também haverá óbice à delegação da ordenação de despesas quando diploma normativo superior estabelecer vedação pontual expressa (como a realização de despesas com pessoal por meio de fundos rotativos 50)

Veda-se também a delegação das atribuições recebidas por delegação (subdelegação), salvo autorização expressa e na forma por ela determinada (art. 17, IV). Haverá casos, no entanto, em que diploma normativo superior limitará a

49 ESTADO DO PARANÁ. Lei nº 20.656, de 03 de agosto de 2021. Estabelece normas gerais e procedimentos especiais sobre atos e processos administrativos que não tenham disciplina legal específica, no âmbito do Estado do Paraná. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov. br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=251680&indice=1&totalRegistros=1&dt=17.8.2023.20.15.57.774. Acesso em 02 ago. 2023.

50 ESTADO DO PARANÁ. Lei nº 20.826, de 30 de novembro de 2021. Autoriza o Poder Executivo a criar Fundos Rotativos para os Órgãos que especifica. Disponível em: https://www.legislacao. pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=256215&indice=1&totalRegistros=1&dt=17.8.2023.19.48.16.665. Acesso em 02 ago. 2023.

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delegação somente a uma autoridade específica (caso das despesas com deslocamento de servidores no Estado do Paraná51).

Vale notar, por fim, que o titular de unidade administrativa responsável por executar recursos orçamentários e financeiros por descentralização orçamentária (ou seja, titular de UA tornada UG) passa a atuar como ordenador de despesas por delegação, sujeitando-se ao dever geral de prestação de contas, embora nos limites dos atos praticados e das responsabilidades legalmente assumidas, sem prejuízo de eventual culpa in vigilando ou in eligendo por parte do ordenador de despesas titular52 .

CONCLUSÃO

O presente artigo teve por finalidade esclarecer o critério institucional da dispensa em razão do valor, hoje norteado pelo conceito de “unidade gestora”, que engloba as unidades orçamentárias ou administrativas investidas do poder de gerir recursos orçamentários e financeiros, próprios ou sob descentralização.

Nesse contexto, para efeito de cálculo dos tetos legalmente previstos para as dispensas de licitação em virtude dos valores contratuais, serão consideradas não apenas as unidades orçamentárias titulares de créditos orçamentários, mas também as unidades administrativas que venham a se tornar unidades gestoras mediante descentralizações orçamentárias e financeiras.

Destacou-se, em especial, o risco de banalização do conceito de unidade gestora por meio de descentralizações abusivas, que promovam excessiva fragmentação institucional com a finalidade de burlar o princípio licitatório.

51 No caso das despesas com deslocamento de servidores, o art. 2º do Decreto nº 2.428, de 2019 estabelece competir “aos Secretários de Estado, aos titulares dos órgãos essenciais a que se refere o art. 8º da Lei nº 19.848, de 3 de maio de 2019, bem como aos Titulares das Entidades da Administração Indireta, autorizar o deslocamento de seus respectivos servidores e a consequente liberação de recursos financeiros para dar aporte às despesas com viagens no âmbito do Território Nacional.” Cf. ESTADO DO PARANÁ. Decreto nº 2.428, de 14 de agosto de 2019. Regulamenta a Lei Complementar nº 104, de 7 de julho de 2004 que dispõe sobre as diárias de servidores e estabelece normas para o deslocamento dos servidores civis e militares da Administração Direta e Autárquica do Poder Executivo e aqueles contratados em caráter temporário. Disponível em: https://www. legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=223970&indice=1&totalRegistros=10&dt=17.8.2023.20.18.20.505. Acesso em 02 ago. 2023.

52 Segundo o TCU, “a autoridade delegante pode ser responsabilizada sempre que verificada: a) a fiscalização deficiente dos atos delegados, pela lesividade, materialidade, abrangência e caráter reiterado das falhas e pelo conhecimento efetivo ou potencial dos atos irregulares praticados (culpa in vigilando); ou b) a má escolha do agente delegado, comprovada circunstancialmente em cada situação analisada (culpa in eligendo)”. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 8799/2019-TCU-1ª Câmara. Recurso de Reconsideração em Tomada de Contas Especial. Ministro-Relator Benjamin Zymler. Brasília: TCU, 2019.

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Diante desse perigo, o presente artigo apresentou as seguintes cautelas:

(i) São unidades gestoras apenas aquelas devidamente identificadas no sistema único de execução orçamentária e financeira, em respeito ao princípio da transparência na gestão fiscal e ao disposto no art. 48-A da LRF.

Nessa linha, a execução das despesas realizadas pelas unidades gestoras deve ser plenamente controlável por meio do Portal da Transparência, de acesso público e em tempo real;

(ii) Não é suficiente que seja tecnicamente possível a criação de uma unidade gestora nova no sistema de execução orçamentária e financeira. É necessário também que haja, de fato, gestão administrativa e de recursos orçamentários e/ou financeiros por parte da unidade administrativa beneficiária da descentralização, em consonância com suas competências legais, e seu titular deve ocupar cargo compatível com a importante função de ordenar despesas, nos termos da lei de regência;

(iii) As descentralizações que confiram status de unidades gestoras a unidades administrativas devem observar os princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade, eficiência e economicidade;

(iv) São inválidas todas as descentralizações que não se sujeitem ao disposto no Decreto nº 10.426, de 2020 (no caso da União) ou no Decreto nº 11.180, de 2022 (no caso do Estado do Paraná) ou a regime legal típico diverso, como o dos fundos rotativos regularmente instituídos. Delegações casuísticas devem ser evitadas e se sujeitam, em qualquer, ao princípio da legalidade e aos demais princípios da Administração Pública, como ressaltado acima;

(v) Vale ressaltar que as descentralizações orçamentárias e financeiras são acompanhadas de atos de delegação de competência para a ordenação de despesas. Desse modo, na ausência de normas especiais, sujeitam-se às disposições gerais da Lei de Processo Administrativo que norteiam os atos delegatórios de competências administrativas (Lei nº 20.656, de 2021, no caso do Estado do Paraná53);

(vi) Cumpre notar, por fim, que o titular de unidade administrativa responsável por executar recursos orçamentários e financeiros por descentralização orçamentária (ou seja, titular de UA tornada UG) passa a atuar como ordenador de despesas por delegação, sujeitando-se ao dever geral

53 ESTADO DO PARANÁ. Lei nº 20.656, de 03 de agosto de 2021. Estabelece normas gerais e procedimentos especiais sobre atos e processos administrativos que não tenham disciplina legal específica, no âmbito do Estado do Paraná. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov. br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=251680&indice=1&totalRegistros=1&dt=17.8.2023.20.15.57.774. Acesso em 02 ago. 2023.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 129 de prestação de contas, embora nos limites dos atos praticados e das responsabilidades legalmente assumidas, sem prejuízo de eventual culpa in vigilando ou in eligendo por parte do ordenador de despesas titular54 .

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54 Segundo o TCU, “a autoridade delegante pode ser responsabilizada sempre que verificada: a) a fiscalização deficiente dos atos delegados, pela lesividade, materialidade, abrangência e caráter reiterado das falhas e pelo conhecimento efetivo ou potencial dos atos irregulares praticados (culpa in vigilando); ou b) a má escolha do agente delegado, comprovada circunstancialmente em cada situação analisada (culpa in eligendo)”. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 8799/2019-TCU-1ª Câmara. Recurso de Reconsideração em Tomada de Contas Especial. Ministro-Relator Benjamin Zymler. Brasília: TCU, 2019.

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caPítulo 6

FeminicíDio: a violência nossa De caDa Dia

Eduardo de Oliveira Leite

Beatriz Spindler de Oliveira Leite

“A pesquisa dos chamados ´temas malditos` na área do comportamento humano contribui para refutar mitos, preencher lacunas teóricas, trazer à luz novos fatos. Entretanto, ela coloca ao pesquisador certos desafios que devem ser enfrentados. Um deles reside no fato de que há necessidade de se penetrar na área da família para observação de certos fenômenos. No entanto, como diz Gelles, ´as relações familiares mais relevantes ocorrem a portas fechadas, longe dos olhos dos vizinhos, dos amigos, e até mesmo dos cientistas sociais.` Caso um pesquisador consiga penetrar no seio da família para efeitos de observação, há determinados tipos de comportamento que não lhe é dado constatar. Isso é válido para a violência contra a mulher, contra a criança ou mesmo para a prática de alguns tipos de comportamento sexual (...) E o mais triste é que não raramente as próprias vítimas contribuem para isso, mascarando ou ocultando a violência que as atinge, seja por meio de represália, seja por vergonha, filha de um espúrio sentimento de culpa que as converte de vítima em rés.”

(Maria Amélia Azevedo. Mulheres espancadas, p. 77-78)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO.

Conforme ensina a doutrina clássica do direito romano, de atualidade ainda presente no atual estágio de evolução do Direito, a unidade conceitual do direito admite a divisão das normas em direito público e direito privado. Segundo esta proposição clássica, o direito público é aquele que tem por escopo regular as relações do Estado com seus súditos quando procede em razão do poder soberano, enquanto o direito privado disciplina as relações entre as pessoas singulares, nas quais predomina o interesse de ordem particular.

Em outras palavras, o direito público é destinado a disciplinar os interesses gerais da coletividade, estruturando-lhe a organização, serviços, tutela dos direitos individuais e repressão dos delitos, enquanto o direito privado regula as relações dos indivíduos entre si, tutelando interesses particulares. O argumento sempre invocado pelos privatistas se direcionava no sentido de não admitir a interferência do poder público vez que a família sendo instrumento para a realização humana, a autonomia do indivíduo deveria ser respeitada e preservada.

Os conceitos, na sua simplicidade, podem, entretanto, gerar confusão entre as referidas normas, tornando quase impossível a distinção entre os dois direitos, notadamente no Direito de Família. A clareza teórica nem sempre encontra correspondência no plano existencial.

Para contornar esta possibilidade concreta, ditada pelo mundo fático, existem critérios – critério subjetivo, critério da extensão dos interesses e critério do valor fundamental – que procuram estabelecer a distinção entre o direito público e o direito privado, o que, nem sempre, é verificável, especialmente na matéria pertinente ao Direito de Família.

Com efeito, ao tratar da vida íntima das pessoas nas relações familiares, o Direito de Família manifesta a sua mais intensa privacidade. Assim as pessoas são protegidas mesmo antes do nascimento (alimentos gravídicos, direitos do nascituro), durante a vida (relações de parentesco, relações matrimoniais, relações patrimoniais, alteração do regime de bens, interdição, curatela, tutela, etc.) e mesmo após a morte (investigação de paternidade, indenização por abandono afetivo, testamentos públicos ou particulares, herança jacente, etc) para citar exemplificativamente os campos mais variados de proteção.

A proteção da intimidade familiar é garantida quer pelo texto constitucional (art. 226, § 7º da CF)1, quer pela legislação infra-constitucional, conforme art. 1.513 do Código Civil.2

Os ditames legais se apresentam como premissas fundamentais a garantir a privacidade familiar, mas não significam que o Estado está desobrigado de proteger a família. Sob esta ótica, o próprio texto constitucional é claríssimo ao impor ao Estado a obrigatoriedade de fomentar políticas públicas capazes

1 “Art. 226, § 7º: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,...”

2 “Art. 1.513 do CC. É defeso a qualquer pessoa de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.” Conforme doutrina procedente de Tartuce, “é importante frisar que se deve ter muito cuidado na sua leitura. Isso porque, o real sentido do texto legal é que o Estado ou mesmo um entre privado não pode intervir coativamente nas relações de família. Entretanto, o Estado poderá incentivar o controle da natalidade e o planejamento familiar por meio de políticas públicas”, assim como pode coibir a violência no ambiente familiar. (Grifamos). Flávio Tartuce. Novos princípios do Direito de Família brasileiro, p. 9/18.

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135 de não só proteger a família estruturada como, igualmente, criar mecanismos favoráveis à sua digna existência.

Como podemos já perceber, o Direito de Família, o mais privado de todos os direitos civis, nasce no ambiente privado, porém pode extrapolar seus limites naturais, adentrando no direito público, sempre que as situações fáticas apontarem para a legítima intervenção estatal, quando a proteção da família está em risco.

O que o Direito está a indicar é que a organização e estrutura das relações familiares é de total competência dos membros familiares, porém, quando esta estrutura se revela fragilizada, comprometendo a segurança e a dignidade do grupo familiar, o Estado pode e deve intervir na proteção da família e de seus membros. Exemplo do aqui afirmado é perfeitamente visível na proteção integral e prioritária de crianças e adolescentes, na proteção de idosos ou de pessoas com deficiência, na proteção de gestantes, na proteção de pessoas fragilizadas, entre outras situações criadas pelas circunstâncias existenciais.

Quando a violência se instaura, comprometendo o verdadeiro destino do grupo familiar, impõe-se, com maior razão, a atuação estatal para coibir a violência. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7/08/2006) cujo objetivo principal foi o de estipular punição adequada e coibir atos de violência doméstica contra a mulher.

A intervenção do Estado teve caráter protetivo evitando abusos cometidos no ambiente familiar sem eventual ingerência na sua constituição e manutenção. O que a lei visou foi a proteção da mulher (em situação fragilizada) face à prepotência do homem que, extrapolando sua função marital, deixa de cumprir as obrigações que lhe são impostas pela ordem civil.3

Feitas estas considerações, podemos afirmar com Dimas Messias de Carvalho, que “apesar de ser ramo do Direito Civil, portanto privado, a maioria das normas de Direito de Família são cogentes ou de ordem pública, não se submetendo ao arbítrio individual, por manifestar um interesse público4 de solidificar a organização da família, alicerce de toda a estrutura da sociedade e da preservação e fortalecimento do Estado.”5 Isto é, o Direito de Família é ramo do direito privado, regulado por normas cogentes ou de ordem pública, com forte intervenção do Estado.

3 Ver, neste sentido, o disposto no art. 1.566 do Código Civil, especialmente o disposto no inciso V do referido artigo (“respeito e consideração mútuos”).

4 O interesse público aqui mencionado é o interesse primário ou da pólis, que nesse ponto corresponde ao interesse do grupo social, da coletividade. “O que determina a intimação do Ministério Público em todas as hipóteses do artigo em comento (art. 178 do CPC) é o interesse público primário (o bem comum).” MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHARDT, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Código de Processo Civil Comentado, p. 328.

5 CARVALHO, Dimas Messias de. Direito de Família, p. 15.

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A intervenção estatal na matéria familiar é feita pelo Ministério Público que, desde 2010, prioriza a função de órgão agente, em detrimento da função de órgão interveniente. Esta mudança de paradigma foi determinada pelo Conselho Nacional do Ministério Público que recomendou6 aos Ministérios Públicos estaduais a readequação de sua intervenção no direito privado.

A mudança de postura atendeu a diversos fundamentos apontados pelo CNMP, mas poder-se-ia indicar como fundamento prioritário o interesse da instituição em racionalizar e otimizar sua atuação atendendo à vontade e real anseio da sociedade, especialmente na tutela dos direitos coletivos e promoção da justiça social.

Constata-se, a partir de então, um processo de “publicização” do Direito de Família, que cede espaço à intervenção estatal, sempre que a família corre o risco de se fragilizar comprometendo o regime democrático e todos interesses dele decorrentes.

Assim, quando a sociedade é comprometida, pelo desrespeito ao idoso, à criança e ao adolescente, à mulher, às pessoas com deficiência, a ação do poder público não se revela apenas legítima, mas, sobretudo, imprescindível como instrumento de transformação social. E na família, enquanto elemento fundamental à sobrevivência do Estado, tal intervenção não é apenas necessária, mas decisiva na manutenção dos interesses sociais e individuais indisponíveis.7

2. O FUNDAMENTO LEGAL DA INTERVENÇÃO DO MP EM MATÉRIA FAMILIAR.

A intervenção do poder público não encontra base legal apenas no texto constitucional como igualmente no Código de Processo Civil que, no parágrafo único do art. 698, determina a intervenção do Ministério Público nas ações de família, na tutela dos interesses da mulher vítima de violência doméstica ou familiar. E é neste contexto, na defesa da ordem jurídica e dos interesses individuais indisponíveis que se legitima a intervenção ministerial na tutela da mulher em situação de vulnerabilidade, vítima de violência.

Por isso, vale frisar, que o rol de funções institucionais do MP, previsto no art. 129 da CF não é exaustivo, admitindo ampliação, sempre que compatível com sua finalidade levando Mazzilli a afirm ar que “havendo violação da ordem jurídica que envolve um interesse social, ou individual

6 CNMP. Processo nº 0.00.000.000935/2007-41 – Apenso nº 0.00.000.00818/2009-79. Conselheiro Cláudio Barros Silva. j. 27.04.2010.

7 Conforme, neste sentido, o disposto no art. 127 da CF que assim assevera: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 137 indisponível, não pode haver prestação jurisdicional sem a presença do Minist ério Público.” 8

A atuação ministerial está em perfeita consonância com o dispositivo constitucional que, em seu art. 226, § 8º prevê mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações de família.9

A intervenção ocorre em razão da qualidade da parte, a mulher vítima de violência doméstica ou familiar, face ao seu estado de vulnerabilidade. A destinatária da tutela jurídica é a mulher maior e capaz vítima da violência doméstica.

A situação de vulnerabilidade feminina fica evidenciada nas situações de violência doméstica a que é submetida, descritas nos diversos incisos do art. 7º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Como se pode depreender, o dispositivo em questão encontra-se em perfeita harmonia com o contido no parágrafo único do art. 698 do CPC10 ampliando a rede de proteção jurídica destinada à mulher em situação de violência doméstica ou familiar.

De acordo com o recente dispositivo legal, a intimação do MP para atuar no feito é obrigatória sob pena de nulidade processual, devendo o juiz determinar a abertura de vista ao órgão do MP com atribuição para oficiar nos autos. Como fiscal da ordem jurídica e materializada a vista dos autos, será intimado de todos os atos processuais, podendo produzir provas, requerer medidas processuais e recorrer.

A dimensão dada pela inserção do parágrafo único do art. 698 do CPC revela o inquestionável cuidado do legislador em face da hipossuficiência feminina que, até então, permanecia carente de uma maior proteção processual e que ganha, a partir de agora, espaço de integral proteção diante do quadro de violência doméstica decorrente da ação não mais impune do agressor.

A guinada do legislador nacional é digna de consideração vez que, sem comprometer a autonomia familiar (art. 1.513 do CC) atende a previsão constitucional coibindo a violência no ambiente familiar.

Conforme dicção claríssima de Mario Moraes Marques Jr., “De fato, reconhecido o seu estado de vulnerabilidade, corolário lógico é a necessidade de

8 MAZZILLI, Hugo Nigri. A atuação do Ministério Público no Processo Civil, p. 2.

9 “Art. 226 da Constituição Federal (...)

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

10 “Art. 698 do CPC: (...)

Parágrafo único. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas ações de família em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei 11.340, de 7/08/2006 (Lei Maria da Penha). (Cf. Lei 13.894, de 29/10/2019).

ser resguardada a igualdade jurídico-processual em relação à parte contrária, seu suposto agressor11 no âmbito das relações familiares, evitando-se que ela sofra qualquer tipo de constrangimento ou coação que lhe cause prejuízo ao longo do processo.”12

Enquanto a Lei Maria da Penha se restringia a elencar as formas de violência doméstica (art. 7º da Lei)13 o novo dispositivo processual (§ único do art. 698 do CPC) materializou a atuação do MP tornando perfeitamente factível a tutela dos interesses da parte hipossuficiente.

A leitura dos dispositivos legais revela a ampliação da efetiva proteção da mulher fragilizada em decorrência da violência doméstica, tendência inaugurada pela Lei Maria da Penha e que foi ganhando maior visibilidade com a promulgação de novos dispositivos legais, tais como a Lei 13.104/2015, que alterou o art. 121 do Código Penal, prevendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art. 1º da Lei 8.072, que incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

Sobre o tema, bem leciona Mário Marques Jr., “A intervenção do Ministério Público nas ações de família em que for parte mulher vítima de violência doméstica é mais uma forma de tutela estatal, com o escopo bem definido de salvaguardar os interesses jurídicos das vítimas, também no campo dos processos de família, devendo tal atribuição ser exercida pelos Promotores de Família com absoluta independência funcional, inclusive no que tange à necessidade, duração, limites e extensão da intervenção.”14

11 A culpabilização da vítima e heroificação do agressor, nas palavras de Maria Amélia Azevedo, ocorria “nos chamados crimes da paixão, em que o famoso argumento da defesa da honra do lar é sempre invocado como forma de culpar a vítima por ter conspurcado a honra e os bons costumes do lar, ao mesmo tempo em que legitima a agressão como meio de ‘lavar com sangue’ a dignidade perdida.” (Mulheres espancadas, p. 34).

12 MARQUES JR., Mário Moraes. O Ministério Público nas ações de família, p. 1/5 (ou 3/3).

13 Desde 2005, o DataSenado aplica, de dois em dois anos, pesquisa telefônica sobre a violência doméstica contra a mulher. Em 2017 o Instituto realizou a sétima edição da pesquisa em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência. Nela, foram ouvidas 1.116 brasileiras, no período de 29 de março a 11 de abril. (Apud: Senado Federal. Violência doméstica contra a mulher. Pesquisa DataSenado). A pesquisa avaliou também a percepção das entrevistadas sobre o quanto a Lei Maria da Penha protege as mulheres contra violência doméstica e familiar. Para 26% a lei protege as mulheres, 53% disseram que ela protege apenas em parte, enquanto 20% responderam que não protege. Entre as mulheres que disseram não ter sofrido violência, 17% avaliaram que a lei não protege as mulheres. Já entre aquelas que afirmaram terem sido vítimas de algum tipo de violência doméstica ou familiar, esse porcentual sobe para 29%. (Apud Pesquisa DataSenado). (In: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/aumenta-numero-de-mulheres-que-declaram-ter-sofrido-violencia (Acesso em 04/09/2023).

14 MARQUES JR., Mário Moraes. Obra citada, p. 3/5.

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3. A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA AUTONOMIA FAMILIAR.

Conforme reiteradamente afirmado pela doutrina atual, o Direito de Família passou a ser analisado pelo prisma da Constituição Federal, gerando um processo de “constitucionalização” deste ramo do Direito Civil. Tal evolução era inevitável bastando considerar que a Constituição acabou dispondo sobre temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade.

A nova tendência resgata no ambiente familiar o princípio da função social da família que passa a ser encarada dentro do contexto social (macro) e não mais na visão reducionista (micro) dos interesses individuais que compõem a célula familiar.

A assunção do Estado Social conferiu maior importância aos interesses sociais com a consequente intervenção do Estado não só na economia como também na limitação dos interesses privados. A Constituição deixou de ser uma mera carta política, para colocar-se no ápice do ordenamento jurídico pátrio, conferindo-se maior importância ao ser humano e não ao seu patrimônio.15

A democratização das famílias, o reconhecimento de famílias plurais (as entidades familiares previstas no art. 226 da CF), a igualdade entre os filhos de qualquer origem (art. 227,§ 6º da CF), a igualdade de direitos e obrigações entre o homem e a mulher (art. 226, § 5º da CF) assim como a substituição do pátrio poder pela noção mais abrangente de autoridade familiar são alguns dos aspectos que revelam o novo perfil da família contemporânea.

De igual modo, a situação de vulnerabilidade de crianças e adolescentes e a consequente determinação de que estes são prioridades absolutas (art. 227 da CF c/c o ECA), bem como a especial proteção das mulheres vítimas de violência (igualmente vulneráveis) passam a ser o núcleo principal de proteção especial do Estado, exigindo do ente público uma intervenção mais efetiva e objetiva do Estado.

Nesse sentido, doutrina Thamis de Castro, “como a busca e a garantia do melhor interesse do menor constitui dever de todos (...) é preciso reafirmar a possibilidade de intervenção estatal na família sempre que esta proteção especial de que gozam os vulneráveis se tornar enfraquecida ou ameaçada.”16

Da mesma forma, sempre que a mulher é dominada pela violência, o processo não atinge apenas a vítima como poder-se-ia imaginar, porém o

15 Ver, neste sentido, Francisco Luciano Lima Rodrigues. O fenômeno da constitucionalização do direito: seus efeitos sobre o direito civil. In: Carlos Eduardo Pianowski Ruzyk; Eduardo Nunes de Souza; Joyceane Bezerra de Menezes e Marcos Ehrhardt Junior (Coord.) Direito Civil Constitucional: a ressignificação da função dos institutos fundamentais do direito civil contemporâneo e suas consequências, p. 571.

16 CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Bons costumes no direito civil brasileiro, p. 259.

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resultado danoso atinge toda a sociedade vez que a conduta dolosa compromete princípio basilar da família contemporânea, que é o da dignidade da pessoa humana. E quando tal hipótese ocorre, o Estado deve intervir para resgatar a segurança e a dignidade não só do grupo familiar (atuação direta), como também de toda a família brasileira (atuação indireta).

Neste sentido, poderíamos afirmar que a conduta intervencionista do Estado tem caráter punitivo (num primeiro momento) e educativo (em momento posterior), manifestando total repúdio a condutas que desestabilizam a sociedade como um todo.

Quando a violência domina a família, comprometendo e nulificando os direitos e obrigações que devem pautar a convivência familiar, o Estado intervêm, não como agente cerceador das liberdades individuais, porém como agente mediador capaz de garantir a estabilidade empenhada pela violência. Esta intervenção pode ocorrer em maior ou menor incidência, na proporção do ilícito praticado e dos sujeitos envolvidos.

Assim, doutrina Renata Multedo, “...enquanto as relações conjugais têm fundamentos na liberdade e na igualdade, as parentais se baseiam justamente na responsabilidade (...) não se (podendo deixar de atentar) na relação parental para a vulnerabilidade de uma das partes, já que o foco dessa relação são os filhos menores a quem o ordenamento deve a máxima proteção por serem pessoas humanas em desenvolvimento.”17

O mesmo raciocínio aplicável às crianças e adolescentes vulneráveis é cabível às mulheres vítimas de violência familiar, na medida em que ambas situações comprometem o escopo maior da família.

Quando o Estado assim age, atenuando os efeitos desastrosos da violência contra os vulneráveis, ele, por certo, não está extrapolando suas prerrogativas, mas passa a exercer seu poder/direito de Estado-Interventor e Estado-Protetor.

Por isso, mais do que nunca, a intervenção estatal se manifestou com tamanha veemência na atualidade, exatamente porque as dificuldades de todas as ordens fragilizam o andamento normal das famílias exigindo que o Estado atue como o fiel da balança da Justiça.

4. O FEMINICÍDIO.

4.1. Caracterização do fenômeno. Causas.

A palavra feminicídeo foi empregada pela primeira vez pelo Tribunal Internacional de Crimes Contra Mulheres, em Bruxelas, no ano de 1976, por

17 MULTEDO, Renata Vilela. Liberdade e Família: Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais, p. 43.

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141 Russel, para caracterizar o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. O termo foi usado de forma ampla, tendo sido definido em 1990 como “o assassinato de mulheres realizado por homens motivado por ódio, desprezo, prazer ou um sentido de propriedade sobre as mulheres.”18

O feminicídeo decorre de condições socioculturais históricas e ideológicas que que alimentam um tratamento discriminatório permitindo práticas atentatórias contra a vida, saúde, dignidade e liberdade da mulher, “para as quais contribuem não somente os autores da sociedade (família, matrimônio, comunidade), mas também o Estado, por meio de sua omissão, ineficácia, negligência na prevenção, deficiência na investigação, ausência de repressão e de um quadro legal e político de governo que favoreça a visibilidade da violência contra as mulheres e o fim da impunidade, do silêncio e da indiferença social.”19

De acordo com a postura dos pesquisadores citados é possível indicar a ocorrência de dois agentes causadores do feminicídio; um agente ativo, que pratica o ato ilícito (e que pode agir isoladamente ou conjuntamente) e um agente passivo (o Estado) por meio da omissão na prevenção do ato criminoso.

Com relação ao primeiro agente, as condições socioculturais históricas e ideológicas, merece atenção especial se considerarmos a realidade social brasileira. Sem aprofundarmos a questão – que mereceria um estudo a parte – a forma como evoluiu a família brasileira revela total tratamento discriminatório em relação à mulher, desde a colonização portuguesa (superioridade do homem e subordinação da mulher), com os aportes trazidos pela cultura indígena (centrada no homem) e as tradições africanas (o homem como centro inquestionável da família e da comunidade).

Prova do aqui afirmado é verificável no tratamento dispensado às mulheres adúlteras, em Portugal, condenadas à morte, sem possibilidade de perdão. Esta condição sociocultural histórica migrou para o Brasil por meio das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas que serviram como parâmetro para a legislação nacional até o advento do Código Civil de 1916.

A situação da mulher (em Portugal) e no Brasil é a da mais absoluta subordinação. Assim, segundo estudo impecável de Gilissen, sobre o direito português, “o adultério é reprimido severamente (...) o marido que surpreendesse a mulher em flagrante delito de adultério podia matá-la, mesmo que estivesse grávida (...) a recíproca não era verdadeira (...) A forma mais tangível

18 CAPUTTI, Jane e RUSSEL, Diana E.H. Femicide: sexist terrorismo against women. In Femicidio: la politica de matar mujeres, p. 34. Apud: Luciana Maibashi Gebrim e Paulo César Corrêa Borges. Violência de gênero: Tipificar ou não o femicídio/feminicídio?

19 GEBRIM, Luciana Maibashi e BORGES, Paulo César Corrêa. Violência de gênero. Tipificar ou não o femicídio/feminicídeo? In: Revista de Informação Legislativa, número 202, p. 64.

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do poder marital é o direito de correção do marido, corolário da obrigação de obediência imposta à mulher.”20

As palavras empregadas na legislação falam por si só e desmerecem maiores comentários: “castigo severo”, “poder de morte”, “poder de correção”.

Segue o autor, “A mulher casada era uma incapaz; todos os costumes admitem que a mulher não pode nem obrigar-se, nem contratar, nem dar, nem estar em juízo sem a autorização do seu marido.”21 Em outras palavras, a mulher era incapaz e dependia integralmente do poder marital, noções resgatada no Código Civil brasileiro de 1916.

Com efeito, naquele sistema codificado (que vigeu no Brasil durante 500 anos) o marido era o chefe da sociedade conjugal (o que nos remete à cultura indígena) e a mulher considerada incapaz para todos os atos da vida civil, situação que começou a se modificar com o advento do Estatuto Jurídico da Mulher Casada, de 27 de agosto de 1962.22

Em termos de legislação nacional, a igualdade entre marido e mulher só foi consagrada no texto constitucional de 1988, no seu art. 226, § 5º que assim dispõe: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e a mulher.”

Ou seja, o Brasil levou 488 anos (isto é, quase 500 anos) para reconhecer a igualdade legal entre marido e mulher o que denota, sem qualquer possibilidade de contestação, o tratamento discriminatório de gênero, que “alimentou” todo tipo de abusos com relação à mulher. Claro está, e nem se precisaria ressaltar que, apesar da disposição constitucional, o acesso à plena igualdade de gêneros ainda é uma utopia de difícil aceitação por todos os segmentos sociais brasileiros. A nova conduta apresentada pela CF vai demandar tempo para ser internalizada pela sociedade brasileira.

Como Verucci sempre gizou, “existe sempre um estreitamento entre a elaboração de leis bem intencionadas e sua eficácia, que torna o direito inútil, embora na letra indique o caminho desejado pela sociedade.”23

Cinco séculos de discriminação não se apagam com a elaboração de dispositivos legais, por mais bem intencionado que esteja o legislador.

20 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito, p. 604.

21 GILISSEN, John. Idem, ibidem.

22 Ver, neste sentido, os estudos pontuais (entre outros) de Vicente Ráo. Da capacidade civil da mulher casada; De Pontes de Miranda. Fontes e evolução do Direito Civil brasileiro; de Florisa Verucci. O direito da mulher em mutação; A mulher e o Direito; de Florisa Verucci e Fanny Tabak. A difícil igualdade; e de Marilena Chauí. Repressão sexual: Essa nossa (des)conhecida; Heleieth Saffiotti. Violência contra a mulher: dimensão necessária da dominação; R. Langley e R.C. Levy. Mulheres espancadas – fenômeno invisível. A indicação bibliográfica sobre o tema é, aqui, meramente exemplificativa, vez que a literatura sobre o tema é vasta.

23 VERUCCI, Florisa. O direito da mulher em mutação. Introdução.

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A par disso, a educação transmitida pelos pais, nos lares brasileiros, ainda é discriminatória (mesmo que de forma involuntária) reproduzindo um esquema que nos foi legado desde a colonização portuguesa. Azevedo cognominou este fenômeno de “efeito perverso da educação diferenciada.”24

Assim, o menino manda, a menina obedece; existem profissões “masculinas” e “femininas”; existem brinquedos para meninos e brinquedos para meninas; o serviço doméstico é atribuição feminina e excepcionalmente cabe aos homens; o cuidado dos filhos é apanágio feminino; quem cuida é a mãe e quem educa é o pai; o menino não pode chorar; o homem é competitivo, a mulher se realiza na profissão do marido; o fim último do homem é o sucesso profissional, o da mulher é casar, ser boa mãe e boa esposa, e assim por diante.

Diante desta situação congênita, os atos praticados pelos homens têm sempre legitimidade (funcional e formal) enquanto da mulher se espera subordinação aos ditames impostos pela sociedade e tradição sociocultural.

Neste quadro assimétrico a democracia familiar se apresenta como utópica, sob qualquer ângulo que a examinemos, quando é sabido que a construção da democracia do poder passa primeiramente pela implantação da democracia na esfera das relações familiares. Além disso, a manutenção desta ideologia fomenta o machismo25 típico do homem latino.

Nunca é demais repetirmos que, “cabe à família o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.”26

Quanto ao segundo agente, da postura omissa do Estado27, não é preciso dispender muito esforço para se concluir que a situação nacional, até recentemente, não só se manifestou omissa, mas o que é mais grave, ineficaz, negligente na prevenção, deficiente na investigação e ausente na repressão da

24 AZEVEDO, Maria Amélia. Obra citada, p. 60.

25 “O machismo enquanto ideologia constitui um sistema de crenças e valores elaborado pelo homem com a finalidade de garantir sua própria supremacia através de dois artifícios básicos: afirmar a superioridade masculina e reforçar a inferioridade correlata da mulher. Os estudos histórico-antropológicos parecem indicar que a dominação da mulher pelo homem é universal e resultou de uma apropriação, por este, de poderes femininos originários, com a finalidade de controlar a reprodução da própria sociedade.” (Maria Amélia Azevedo. Idem, p. 47-48).

26 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina, p. 103.

27 O papel do Estado, segundo Bourdieu, “veio ratificar e reforçar as proscrições do patriarcado privado com as de um patriarcado público, inscrito em todas as instituições encarregadas de gerir e regulamentar a existência quotidiana da unidade doméstica (...) Os Estados modernos inscreveram no direito de família, especialmente nas regras que definem o estado civil dos cidadãos, todos os princípios fundamentais da visão androcêntrica.” (Pierre Bourdieu. Idem, p. 105).

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violência doméstica, como apontaram objetivamente Luciana Gebrim e Paulo César Borges.28

Foi a perseverança e a coragem de uma mulher brutalmente espancada, Maria da Penha29, que tornou a problemática visível, dando a devida transparência a um problema que acompanha a trajetória da mulher brasileira, desde o Brasil colônia até à atualidade. A promulgação da Lei Maria da Penha colocou a nu uma realidade que se procurava esconder de todas as formas: a violência familiar.

A partir de então, novas legislações e a ação corajosa dos movimentos feministas brasileiros, foi criando um ambiente favorável ao reconhecimento da necessidade de dar um tratamento diferenciado à problemática do gênero.

Apesar dos esforços envidados, o índice de violência praticado nos lares brasileiros não para de crescer revelando o lado cruel de uma endemia de dificílima erradicação, revelando a força gigantesca da tradição no tratamento de um problema que cresce em progressão geométrica.

A par dos agentes invocados, são merecedores de consideração o medo e a possessividade masculina, gerados pelo machismo brasileiro que coloca sempre a mulher em condição subalterna e de subserviência.

O medo ainda é o principal motivo que impede as mulheres vitimizadas, de denunciarem seus agressores e a maior causa do feminicídio no Brasil. Ainda é elevado o índice de mulheres que, dominadas pelo medo (represália do marido ou do ex-companheiro) não denunciam, nem pedem ajuda. O agressor usa de todas suas armas para abalar psicologicamente a vítima, fazendo com que o medo de denunciar seja maior do que o de ser espancada novamente.

Segundo pesquisa realizada pelo Senado Federal30, “diante da agressão sofrida, 27% das respondentes declararam não ter feito nada. Apesar disso, a série histórica da sondagem mostra que, a cada edição, sobe o número de mulheres que buscaram o apoio da família após o ato de violência.”31

As mulheres vitimizadas que procuraram apoio denunciaram em delegacia comum, procuraram ajuda dos amigos, procuraram ajuda da família, denunciaram em Delegacia da Mulher ou procuraram ajuda na Igreja. A dificuldade de obter a prova da agressão dificulta a intervenção do Estado vez que, “frequentemente, a própria mulher, depois de registrar queixa, recusa-se a testemunhar contra seu marido, seja por ter se reconciliado com ele, seja

28 GEBRIM, Luciana Maibashi e BORGES, Paulo César Corrêa. Obra citada, p. 64.

29 Maria da Penha sobreviveu a duas tentativas de feminicídio, ficou paraplégica e lutou 19 anos por justiça sem que o agressor fosse punido.

30 Violência doméstica e familiar contra a mulher – Pesquisa DataSenado. (Junho/2017).

31 Pesquisa DataSenado, p. 13.

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145 por temer represálias ainda maiores, seja enfim por não querer arruinar definitivamente seu lar e encontrar-se junto com seus filhos, privada de teto e de recursos.”32

O medo de denunciar pode estar atrelado à ocorrência ou não de filhos. “A presente edição verificou que a mulher que tem filhos está mais propensa a sofrer violência. Enquanto o percentual de mulheres sem filhos que declararam ter sofrido violência provocada por um homem foi de 15% o percentual de mulheres com filhos que o declararam foi de 34%. As mulheres com filhos também estão mais sujeitas a sofrer violência física. Entre as mulheres que têm filhos e declararam ter sofrido violência, 70% foram vítimas de violência física,”33 o que nos leva a concluir que a prole é um fator de vulnerabilidade da mulher dependente economicamente do marido/companheiro. Como é sabido – e a experiência das Varas de Família comprova o aqui afirmado – a primeira medida tomada pelo homem, na ruptura da sociedade conjugal ou quando a mulher denuncia a violência , é não mais pagar os alimentos condenando a mulher e os filhos à insolvência.

O quadro se agrava se considerarmos que as pessoas (parentes, vizinhos, conhecidos) que sabem da violência cometida nem sempre são solidárias com o sofrimento alheio. “Quando questionadas se conheciam alguém que foi vítima de violência doméstica, a maioria (59%) afirmou que não e 41% que sim. A pesquisa quis saber também quem já presenciou algum tipo de violência doméstica, 68,1% disseram que não e 31,9% disseram que sim. Dos que presenciaram, 26,1% disse que pediu ajuda, 21% garantiu que socorreu a vítima e 16,4% preferiu não se envolver.”34

O não envolvimento das pessoas cientes da violência tem muito a ver com o temor de sofrerem retaliação do agressor, confirmando (ainda que indiretamente) a ausência de um efetivo poder punitivo que, se existisse, certamente provocaria outra ordem de reação da sociedade. Enquanto a impunidade se

32 MEULDERS KLEIN, Marie-Thérèse. La violence au sein du couple: ébauches de réponses juridiques em dorit continental. In: John Eekelaar e S. N. Katz. Family Violence, p. 72.

33 Pesquisa DataSenado, p. 10. A 9ª edição (12/2021) da pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher mostra que 27% das brasileiras já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar praticada por um homem. Além disso, 86% das brasileiras acreditam que houve aumento na violência cometida contra pessoas do sexo feminino no último ano. Portanto, ocorreu um aumento de 4 pontos porcentuais em relação ao apurado na edição anterior, em 2019. A violência física apresenta o maior índice de agressões – 68%, seguida pela violência psicológica – 61%, moral – 44%, sexual – 20% e patrimonial – 17%. (Apud: Pesquisa DataSenado 2021. Levantamento realizado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV).(In: https:// www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/violencia-domestica-e-familiar-contra-amulher-2021) Acesso em 04.09.2023.

34 Pesquisa realizada pela rede de escolas de informática Microcamp (Monitor Mercantil, 16/05/ 2019).

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sobrepor à sanção, o risco de omissão da sociedade é grande e a possibilidade de aumentar, indiscutível.35

Sempre de acordo com a pesquisa levada a efeito pelo Senado Federal (Pesquisa DataSenado) a violência física ainda revela o índice perverso da violência contra a mulher, dado que, infelizmente, continua crescendo de modo incontrolável bastando, para tal, acompanhar os noticiários nacionais. Os fatos narrados deixam o leitor (e o espectador) atônitos. A impressão que se tem é a de que retornamos à barbárie. E o fenômeno não se limita aos segmentos sociais menos favorecidos (argumento sempre veiculado pela mídia irresponsável) mas a todos segmentos sociais, mesmo os mais favorecidos.36

Assim, “a violência física foi a mais mencionada: 67% das respondentes disseram já ter sofrido esse tipo de agressão. A violência psicológica veio em seguida, com 47% das menções, enquanto as violências moral e sexual tiveram 36% e 15% das respostas respectivamente. Esse é um resultado que pouco se alterou desde a última edição da pesquisa em 2015.”37

Vale lembrar que o porcentual de agressões físicas (67%) corresponde apenas àquelas mulheres que foram questionadas, de modo que este índice certamente sofre alteração para mais se considerarmos todo o universo de mulheres no Brasil (e que não foram questionadas) que não participaram da pesquisa.

Entre as mulheres que declararam ter sofrido violência doméstica provocada por um homem “a maioria teve como agressor pessoas sem laços consanguíneos e escolhida por elas para conviver intimamente: o atual marido, companheiro ou namorado foram apontados com autores da agressão por 41%

35 “Para 97% das mulheres ouvidas pelo DataSenado, o agressor deve ser processado mesmo contra a vontade da vítima. O repúdio das brasileiras entrevistadas a esse tipo de violência se verifica também quando a pesquisa mostra que 90% desse universo declara estar disposto a denunciar, caso presencie ato de agressão contra a outra mulher.” (Pesquisa DataSenado, p. 14). O índice, como se depreende, demonstra o inconformismo generalizado das mulheres contra o grau de violência que tem grassado nos lares brasileiros.

36 Segundo pesquisa realizada por Langley e Levy, falando da realidade norte-americana, “As pesquisas mostram que que os espancadores de esposas são apresentados em todos os tamanhos, formas e cores e habitam os dois lados do muro (...) Após estudarmos nossas próprias informações empíricas e outras inúmeras investigações, ficamos convencidos de que as pessoas que tomam parte de tais conflitos são de todas as idades, comunidades, faixas de renda, raças, religiões, situações empregatícias e regimes maritais. Em outras palavras, não conseguimos encontrar características definitivas nos espancadores de esposas. O crime de agressão e espancamento do cônjuge não conhece nenhuma barreira social, geográfica, econômica, etária ou racial. As ocupações dos maridos que estudamos incluem altos funcionários do governo, membros das forças armadas, homens de negócio, mecânicos, policiais, motoristas de caminhão, trabalhadores de paletó e gravata, desempregados, médicos e advogados.” (Apud Maria Amélia Azevedo. Idem, p. 120).

37 Pesquisa DataSenado, p. 3.

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147 das respondentes. Outras 33% mencionaram o ex-marido, ex-companheiro ou ex-namorado como responsáveis pela violência.”38

Os dados revelam, novamente, a noção de possessividade acima apontada; mesmo depois de rompidos os laços de intimidade, o homem se considera “dono” da mulher infligindo-lhe toda sorte de violências inimagináveis no atual estágio de evolução da humanidade. Ou a mulher é detentora de direitos e deveres iguais aos atribuídos aos homens (CF de 1988), e é pessoa digna de respeito tanto no ambiente privado do lar, quanto no ambiente externo de sua atuação enquanto Ser Humano, ou ela não é digna de respeito e, por isso mesmo, se torna “coisa” manipulável conforme os interesses machistas da sociedade brasileira (em manifesta contradição ao texto constitucional de 1988).

A violência praticada contra a mulher, nas diferentes formas como se apresenta hoje no Brasil, em especial aquela que ocorre no ambiente doméstico e familiar é, sobretudo, consequência da evolução histórica de hábitos culturais fundamentados em discursos patriarcais. Neste contexto, apesar das incontáveis mudanças de gerações, a condição social da mulher ainda é de submissão e subjugação familiar ao homem.

O atraso de uma efetiva ação do poder público e da negligência na prevenção da prática da violência começa a revelar o lado funesto de uma conduta comprometedora da dignidade pessoal, da dignidade familiar e da dignidade de toda a nação.

4.2. Os desoladores dados da realidade.

A Lei Maria da Penha, ainda que não corresponda às expectativas da sociedade brasileira quanto à violência, tem mudado progressivamente a conduta dos agressores que, a partir de então, são responsabilizados pelos seus atos melhorando a relação entre homens e mulheres. A divulgação da Lei procura atingir todos os segmentos sociais brasileiros fomentando uma ideia desconhecida: a prática de ato agressivo (físico ou psicológico) contra as mulheres é passível de punição.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2020 foram aplicadas cerca de 500.000 medidas protetivas. Ainda que reconhecendo a insuficiência das medidas protetivas para impedir o feminicídio, este é um mecanismo eficaz de proteção às mulheres. Ainda de acordo com o CNJ, correm na justiça brasileira mais de um milhão de processos relacionados à Lei Maria da Penha.

Ademais, os efeitos da lei, se considerarmos a grandeza do Brasil, são precários bastando atentar aos dados revelados pelas estatísticas nacionais: “a

38 Pesquisa DataSenado, p. 11.

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cada 7 horas, uma mulher é assassinada no Brasil, a cada 2 minutos, há um registro de lesão corporal. Ocorrem 180 estupros por dia no Brasil (ou seja, 5400 por mês e 64.800 por ano) mais da metade deles contra meninas menores de 13 anos.”39

De acordo com o Atlas da Violência, de 2019, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que, num intervalo de 10 anos, entre 2007 e 2017, o feminicídio praticado no Brasil aumentou 30,7%.40 Já a análise levada a efeito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta um aumento de 44,3% entre 2016 e 2021.41

Os índices variam de acordo com os Estados e as regiões consideradas, mas a elevação dos porcentuais só aumenta ano a ano, em prova irrefutável que a prática da brutalidade continua dominando o cenário nacional.

De acordo com o Mapa da Violência, “desde 1980, cerca de 91.000 mulheres foram assassinadas no Brasil. Somente na última década foram 43,5 mil feminicídios. Infelizmente os casos só aumentam, em 30 anos o número de mortes subiu de 1.353 para 4.297, representando um aumento de 217,6%. Tudo isso levando em consideração que apenas no ano de 2006 se passou a ter uma lei específica para o feminicídio.”42

5. ALGUMAS MUDANÇAS DE CONDUTA TENDENTES A REVERTER O ATUAL QUADRO DE VIOLÊNCIA

A constatação da violência contra a mulher no Brasil está a exigir a imediata tomada de medidas que procurem, num primeiro momento, previnir a ocorrência da violência, e, num segundo momento, reprender o ato, com vistas a erradicar por completo este lamentável fenômeno que nos coloca em posição subalterna face às nações que já conseguiram alterar o índice de violência nulificando o feminicídio em todas suas formas.

A par dos mecanismos de proteção já existentes, em vista do levantamento feito no presente estudo, analisando-se as condições históricas e ideológicas que alimentam um tratamento discriminatório em relação à figura feminina, permitindo práticas atentatórias contra a vida, saúde, dignidade e liberdade da mulher, parece claro que uma urgente alteração desse quadro cultural precise ser desenhada.

39 Apud: Brasil Escola. Violência contra a mulher, p. 8/22. Disponível em: https://brasilescola.uol. com.br/sociologia/violencia-contra-a-mulher.htm (Acesso em 16-08/2023).

40 Idem. Brasil Escola. Violência contra a mulher, p. 8/22.

41 Lucas Alecrim Alexandre. Desvendando as causas do feminicídio. In: Jusbrasil.com.br. (Acesso em 16/08/2023).

42 Débora Leandro Medeiros de Souza. Causas do feminicídio no Brasil, p. 8/14. In: Jus.com.br / Jus Navigandi. (Acesso em 20/08/2023).

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Nesse sentido, alguns caminhos, no viés preventivo, permitem a alteração dessa realidade:

- O papel da educação em direitos humanos:

A Lei Maria da Penha disciplinou em seu artigo 8º que “a política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia e o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.”

Nesse sentido, a Lei 14.164/2021, alterou o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para incluir nos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio, “conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher como temas transversais, observadas as diretrizes da legislação correspondente e a produção e distribuição de material didático adequado a cada nível de ensino.”

A novel legislação objetivou garantir a veiculação de conteúdos de direitos humanos e conteúdos afetos à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e contra a mulher em todos os níveis de ensino, visando formar, desde a tenra idade, crianças e adolescentes comprometidos com uma saudável convivência social, mais justa, mais igualitária, transformando-os nos atores principais do desenvolvimento pessoal e social, coibindo naturalmente a violência.

Medidas como a prevista na Lei 14.164/21 devem ser adotadas e colocadas em prática pelos sistemas de ensino, possibilitando uma educação voltada à promoção de direitos humanos e à cidadania, rompendo com padrões culturais que colocam a mulher em uma posição de submissão e, que acabam por embasar condutas que culminam com atos de violência física, psicológica, sexual, moral, patrimonial e moral contra a mulher.

- O papel dos órgãos de comunicação:

A Lei Maria da Penha também disciplina em seu artigo 8º a necessidade dos órgãos de comunicação social respeitarem os valores éticos e sociais, a pessoa e a família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar.

Assim, os meios de comunicação são elementos de forte importância para o combate à violência doméstica e familiar, tendo relevante papel na

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sensibilização e conscientização da sociedade perante esses crimes, principalmente por seu papel de não apenas informar sobre os incidentes ocorridos, mas possibilitando alterar crenças e valores sociais, sendo forte instrumento, a exemplo da escola, para romper padrões culturais.

Agrega-se ainda aos órgãos de comunicação, o grande papel de não apenas contribuírem para alteração de um padrão cultural, mas podem difundir, através de rádio, jornal, televisão, impressos, redes sociais, todos os serviços de apoio que se encontram disponíveis para atendimento das vítimas de violência doméstica, a exemplo dos canais de denúncia, bem como locais de atendimento para vítimas43

Conforme se pode depreender, a partir das causas enumeradas e das condutas de gênero encontráveis na sociedade brasileira a grave questão do feminicídio exige a atuação conjunta do Estado e, igualmente, da sociedade para a erradicação deste tipo de violência. A educação de crianças e adolescentes, com o fortalecimento pelos meios de comunicação sobre o papel igualitário de homens e mulheres, são elementos decisivos na luta contra este fenômeno que tem diminuído e deslustrado o perfil do Brasil no pavilhão das nações cultas.

O feminicídio não pode ser apreciado apenas do ponto de vista criminal, isto é, de forma reducionista, na medida em que subestima “suas causas e medidas para preveni-lo tanto no espaço público, quanto no privado. Impõe-se abordá-lo da forma mais ampla e global, dando-lhe a necessária visibilidade capaz de responsabilizar toda a sociedade, demonstrando que a violência contra as mulheres não é só intolerável”44, mas prova de ausência de civilidade e compromisso com o semelhante, calcada em conceitos culturais que perpetuam estereótipos de gênero.

No Brasil, o avanço legislativo ainda não foi hábil a assegurar a efetiva proteção à vida das mulheres, impondo-se a necessidade deste esforço comum – particular x público - tendente a erradicar este mal que compromete o principal bem jurídico protegido pelo direito: a vida humana.

A solução para o enfrentamento deste triste tema precisa passar pelo reconhecimento da desigualdade material que atinge homens e mulheres, fruto de nossa herança cultural e histórica, buscando-se reconhecer materialmente os direitos da mulher. Sem esta conscientização, a sociedade brasileira continuará persistindo nos erros do passado constatáveis na criticável situação presente.

BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE, Lucas Alecrim. Desvendando as causas do feminicídeo. In: Jusbrasil.com.br. (Acesso em 16/08/2023).

43 Tais como: Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.

44 GEBRIM, Luciana Maibashi e BORGES, Paulo César Corrêa. Idem, p. 72.

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LEI 13.104, de 09 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

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o FeDeralismo Fiscal brasileiro e as normas gerais De Direito Financeiro

Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro

INTRODUÇÃO

Um dos temas que suscitam maiores controvérsias em matéria de finanças públicas, seja em âmbito doutrinário, seja jurisprudencial, é o dos limites das competências dos entes da Federação para legislarem sobre Direito Financeiro e orçamento público. Embora a Constituição de 1988 tenha atribuído competência concorrente a União, estados e Distrito Federal para legislarem sobre a matéria, conferindo à União poderes para editar normas gerais e, aos estados e ao Distrito Federal, para editarem normas específicas, não há, no texto, maiores orientações sobre o que se entende por “normas gerais”.

O presente trabalho tem por objetivo identificar, a partir da análise das principais características do federalismo fiscal brasileiro, os limites de atuação de cada ente em matéria de Direito Financeiro. Em linhas gerais, tentar-se-á responder aos seguintes questionamentos: a) Quais as características do federalismo fiscal brasileiro? b) O que são normas gerais e o que são normas específicas sobre finanças públicas? c) Existem matérias de Direito Financeiro passíveis de regramento exclusivo pela União?

A hipótese testada é a de que o modelo de Federação estabelecido na Constituição de 1988 confere à União apenas o poder de estabelecer diretrizes gerais de atuação, reservando-se aos estados, Distrito Federal e municípios competências para regularem seus assuntos internos conforme suas peculiaridades regionais.

A pesquisa é realizada a partir da produção bibliográfica referente aos temas do federalismo e das competências dos entes para legislarem sobre Direito Financeiro e orçamento público, bem como das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. O método utilizado é o hipotético-dedutivo,

compreendido como aquele em que o estudo parte “do problema e da conjectura, que serão testados pela observação e experimentação”1.

O texto seguirá o seguinte trajeto, já iniciado por meio desta introdução: na primeira seção, discorrer-se-á sobre as características gerais do Estado Federal e as características específicas da autonomia dos entes subnacionais no Brasil; na segunda seção, serão objeto de análise as prescrições constitucionais que tratam da competência concorrente dos entes para legislarem sobre Direito Financeiro e orçamento público; na terceira seção, tratar-se-á da jurisprudência recente do STF sobre a matéria; na quarta seção, apresentar-se-á o entendimento do autor sobre os limites de atuação dos diversos entes em matéria de Direito Financeiro; por fim, serão apresentadas as conclusões.

1. O ESTADO FEDERAL E A AUTONOMIA DOS ENTES NO FEDERALISMO BRASILEIRO

Não existe um modelo único, universal e abstrato, de Estado Federal, mas arranjos estatais concretos formados a partir de peculiaridades históricas e culturais de cada localidade2. Apesar disso, há certo consenso quanto ao fato de que um Estado Federal existirá sempre que existir repartição do poder político em unidades regionais dotadas de determinado grau de autonomia. A Federação é a antítese do Estado Unitário, em que há unidade de poder político num dado território3.

O modelo federalista de Estado costuma se revelar mais útil nos Estados de maior extensão, uma vez que evita a concentração de poderes e aproxima o exercício do poder político dos seus destinatários, viabilizando maior participação dos cidadãos de localidades menores e distantes dos grandes centros. Conforme doutrina autorizada, “[a] federação favorece o pluralismo e a diversidade, ao preservar espaços para o poder local, que tende a ser mais receptivo às demandas e peculiaridades das respectivas populações”4.

A delimitação das características dos Estados Federais se dá por meio de disposições contidas nas constituições. Essas constituições, além de definirem as competências dos entes, devem contemplar ferramentas voltadas à indissolubilidade e manutenção da Federação5.

1 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 71.

2 BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do estado federal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2004, p. 9.

3 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 8. ed. atualizada até a Emenda Constitucional 70, de 22.12.2011. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 35.

4 SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. 1. Reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p 303.

5 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 34. ed. Revista e atualizada até a EC 99, de 14.12.2017. São Paulo: atlas, 2018, p. 301.

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O Brasil adota a forma federativa de Estado desde o Decreto n. 01, de 15 de novembro de 1889, o primeiro da República, tendo esse princípio sido ratificado em todas as Cartas Constitucionais que se seguiram.

Na Constituição de 1988, a Federação está expressa em diversas passagens.

O art. 1º estabelece que “[a] República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. O art. 18, por sua vez, dispõe que “[a] organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos”.

Dizer que os entes de uma Federação são autônomos significa, de maneira resumida, que a Constituição lhes confere diversas categorias de atribuições e poderes próprios.

Em primeiro lugar, os entes subnacionais possuem capacidade de auto-organização, isto é, autonomia para editarem suas próprias normas de organização, que devem observar peculiaridades culturais e históricas locais. No Brasil, essa capacidade está expressa no poder dos Estados e municípios de promulgarem suas constituições (CF/88, art. 25, caput) e leis orgânicas (CF/88, art. 29, caput).

Em segundo lugar, os membros da Federação são dotados de autonomia de governo (autogoverno), caraterística do federalismo que confere ao povo de cada localidade territorial o poder de eleger seus representantes para os Poderes Executivo e Legislativo, sem subordinação ao governo central.

Em terceiro lugar, gozam os entes de autonomia de administração (autoadministração), compreendida como o poder constitucionalmente delimitado para o exercício de atribuições administrativas e materiais próprias.

No que diz respeito à repartição dessas competências, o critério geral utilizado pelo Constituinte de 1988 foi o da predominância do interesse, de acordo com o qual competem à União as questões de predominante interesse geral ou nacional, enquanto aos estados cabem as matérias de interesse regional e aos municípios os assuntos de interesse local6

As competências materiais e administrativas dos entes estão espalhadas por todo o texto constitucional: no caso da União, merecem especial menção as competências previstas no art. 21; no caso dos estados, destaque-se o art. 25, § 1º, que estabelece serem reservadas aos Estados as competências que não tenham sido atribuídas pela Constituição a outros entes (competência residual); no caso dos municípios, por fim, cite-se o art. 30. Combinada a essa reserva de campos específicos de atuação, a Constituição estabelece também competências administrativas e materiais comuns.

6 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 8. ed. atualizada até a Emenda Constitucional 70, de 22.12.2011. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 248.

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Em quarto lugar, membros federais possuem autonomia financeira, o que significa poder para arrecadar, sem interferência ou dependência do governo central, os recursos necessários ao desempenho de suas funções precípuas7.

A repartição de parte do produto da arrecadação de um ente com os demais não desvirtua a autonomia financeira, contanto que todos tenham, por si, poderes para arrecadar o montante necessário ao desempenho de suas atribuições. A autonomia financeira decorre principalmente da fixação de um rol de competências (constitucionais) tributárias, que discriminam quais tributos cada pessoa política pode criar.

Por fim, as pessoas políticas, em uma Federação, detêm autonomia legislativa, compreendida como a aptidão para, por meio de seus órgãos legislativos, editarem leis sobre matérias delimitadas na Constituição. Assim como nas competências administrativas e materiais, há regras de competência legislativa por todo o texto. Também nesse caso vige o princípio da predominância do interesse.

As competências legislativas privativas da União, na Constituição de 1988, constam do art. 22; as competências legislativas dos estados decorrem principalmente do estabelecido no art. 25, § 1º; o poder de editar leis dos municípios concentram-se no art. 30. Nessa matéria, a Constituição estabelece ainda hipóteses de delegação de competências (art. 22, parágrafo único), e competências legislativas concorrentes entre União e Estados (art. 24).

É sobre a competência legislativa dos entes em matéria de Direito Financeiro que se vai discorrer na próxima seção.

2. COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO FINANCEIRO

A Constituição de 1988 contempla numerosas disposições sobre competências legislativas dos entes da Federação. No que diz respeito ao Direito Financeiro, as normas de maior relevância são as que estabelecem que compete à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre “direito financeiro” (art. 24, I) e “orçamento” (art. 24, II).

A Lei Suprema estabelece ainda que “[n]o âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais” (art. 24, § 1º), e que “[a] competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados” (art. 24, § 2º). Além disso, dispõe que, “[i]nexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiarida-

7 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 31. ed. ver., ampl. e atual. até Emenda Constitucional n. 95/2016. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 178.

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157 des” (art. 24, § 3º). Por fim, prescreve que “[a] superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário” (art. 24, § 4º).

A ideia subjacente à norma que confere à União poderes para editar normas gerais e, aos demais entes, normas específicas, é a de compatibilizar algum grau de harmonia federativa, proporcionado pelo trato uniforme de certos assuntos mais gerais, com o respeito à autonomia das pessoas subnacionais para disporem sobre determinados assuntos conforme suas peculiaridades culturais, religiosas, geográficas, históricas, políticas e econômicas. Trata-se de importante componente do federalismo cooperativo brasileiro.

Além disso, a repartição de responsabilidades em matéria legislativa permite que novas ideias sejam testadas em esferas de menor dimensão, reduzindo seus possíveis impactos negativos, funcionando os estados e municípios, muitas vezes, como verdadeiros “laboratórios legislativos”.

Em matéria de Direito Financeiro, portanto, União, estados e Distrito Federal podem legislar concorrentemente, inclusive no que diz respeito ao tema mais relevante em matéria de finanças públicas, qual seja, o do orçamento público.

No exercício dessa competência, cabe à União dispor sobre normas gerais, e aos estados e ao Distrito Federal, nas lacunas deixadas pela União, sobre assuntos específicos, compatíveis com suas realidades regionais (art. 24, §§ 1º e 2º). Fala-se em competência legislativa concorrente não cumulativa (ou suplementar). Parte da doutrina fala em “competência concorrente vertical”8

Exemplificativamente, no exercício de sua competência legislativa concorrente, a União estabelece normas gerais sobre instituição e funcionamento de fundos públicos (Lei n. 4.320/1964, arts. 71 a 74), enquanto os estados, também por meio de lei (específica), instituem os referidos fundos e regulamentam questões a eles peculiares, como fontes de receitas, destino da arrecadação e normas de gestão dos recursos.

Por óbvio, a União também pode fixar normas específicas em matéria de finanças públicas, caso em que não atuará na qualidade de legislador nacional, mas meramente federal (não vinculando as demais esferas federativas).

Enquanto não for editada norma geral da União, a competência legislativa dos estados e do Distrito Federal será plena (art. 24, § 3º), o que significa que esses entes poderão dispor não só sobre normas específicas, mas também normas gerais. Nesse caso, fala-se em competência concorrente cumulativa. Editada a norma geral pela União, eventual lei estadual de mesma natureza será suspensa (não revogada).

8 FURTADO, J. R. Caldas. Direito financeiro. 4. ed. Revista, ampliada e atualizada. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 51.

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Os estados que dispõem de normas gerais sobre Plano Plurianual (PPA), por exemplo, o fazem no exercício de sua competência legislativa suplementar. Isso porque, em âmbito federal, apenas a Constituição contempla regras sobre referida lei orçamentária. Nem a Lei n. 4.320, de 1964 (Lei Geral de Orçamentos), nem a Lei Complementar n. 101, de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) versam sobre o PPA9.

Nesse ponto, importante mencionar que os municípios também são dotados de competência para legislar sobre Direito Financeiro e orçamento público. Esse poder, no entanto, não decorre das normas contidas nos incisos I e II do art. 24 da Constituição de 1988, mas do estabelecido nos incisos I e II do art. 30. Esses dispositivos estabelecem competir aos municípios “legislar sobre assuntos de interesse local” (art. 30, I) e “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (art. 30, II).

Os municípios também poderão, portanto, nos espaços deixados pela União, editar normas específicas sobre finanças públicas. É no exercício desse poder-dever que eles editam suas leis orçamentárias anuais, leis de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais, bem como instituem e regulamentam seus fundos públicos.

Apesar de poderem editar normas específicas sobre Direito Financeiro, não é correto afirmar que os municípios possuem competência legislativa concorrente para a matéria, uma vez que foram excluídos do regramento do art. 24 da Constituição de 1988. Não possuindo competência legislativa concorrente, jamais poderão exercer competência legislativa plena sobre o assunto, isto é, não poderão editar normas gerais nem mesmo em caso de omissão da União10.

Além de estabelecer que compete à União dispor sobre normas gerais em Direito Financeiro, a Constituição reserva o trato das referidas normas gerais à lei complementar. Essa reserva “decorre de juízo de ponderação específico realizado pelo texto constitucional, fruto do sopesamento entre o princípio democrático, de um lado, e a previsibilidade e confiabilidade necessárias à adequada normatização de questões de especial relevância, de outro”11.

Dentre as disposições constitucionais que instituem reserva de lei complementar em matéria de Direito Financeiro, merecem menção as que estabelecem competir à referida espécie normativa dispor sobre “finanças públicas” (art. 163, I), “fiscalização financeira da administração pública

9 No caso da LRF, os artigos que tratavam do PPA foram vetados pelo Presidente da República.

10 LEITE, Harrison. Manual de direito financeiro. 10. Ed. revista, atualizada e ampliada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 88.

11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.003, rel. min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 19-12-2019.

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159 direta e indireta” (art. 163, V), “sustentabilidade da dívida” (art. 163, VII), “o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual” (art. 165, § 9º, I) e “normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos” (art. 165, § 9º, I).

A maior dificuldade, em termos de competência legislativa concorrente, é identificar o que são normas gerais e o que são normas específicas. O assunto vem suscitando controvérsias desde a promulgação da Constituição.

É sobre essas controvérsias, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que se discorrerá adiante.

3. “NORMAS GERAIS” NA JURISPRUDÊNCIA DO STF: A TEORIA DO CLEAR STATEMENT RULE E A VALIDADE DAS DISPOSIÇÕES DA LRF

No Direito Financeiro, o tema da competência legislativa concorrente também suscita controvérsias. Afinal, qual o limite da competência de cada ente em matéria de finanças públicas? Uma lei estadual pode exigir requisitos mais rígidos, não previstos na LRF, para realização de operações de crédito pelo referido ente? A União está autorizada a estabelecer, por lei complementar, limites individualizados de despesas de pessoal de estados e municípios?

Desde o advento da Constituição, o STF vem proferindo decisões sobre a matéria, ora privilegiando a autonomia dos entes, ora a harmonia federativa. Mais recentemente, a Corte parece finalmente ter estabelecido parâmetros para decidir sobre os limites da competência concorrente de cada ente. Alguns julgados podem ilustrar a evolução jurisprudencial da Corte.

Em 1993, ao julgar Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 927, a Corte deixou consignado que as alíneas “b” e “c” do inciso I, e a alínea “b” do inciso II, ambos do art. 17 da Lei n. 8.666, de 1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), em sua redação original, que tratavam de hipóteses de licitação dispensada para doação e permuta de bens móveis e imóveis da Administração, tinham aplicação restrita à União. O Tribunal entendeu que essas disposições não vinculavam estados, Distrito Federal e municípios, por se tratarem de normas específicas, privilegiando a autonomia dos entes para estabeleceram normas próprias, adequadas às suas condições regionais12.

O mesmo STF, em 2008, reconheceu a inconstitucionalidade formal dos artigos 45 e 46 da Lei n. 8.212, de 1991, que fixavam prazos de prescrição e

12 BRASIL. STF, ADI 927 MC, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/1993, acórdão publicado no Diário da Justiça de 11-11-1994.

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decadência tributária distintos dos fixados nos artigos 173 e 174 do Código Tributário Nacional, sob o fundamento de que a matéria era passível de regramento exclusivamente por lei complementar (CF/88, art. 146, III, “b”). Em seu voto, a Ministra Relatora, Carmen Lúcia, asseverou que, relativamente à matéria, “a Constituição de 1988 não dota de competência as ordens parciais da federação”, e que seria “claro o objetivo da norma constitucional de nacionalizar a disciplina, vale dizer, de a ela conferir tratamento uniforme em âmbito nacional, independentemente de ser ou não norma geral”13.

Em 2015, no julgamento da ADI 4060, a Corte decidiu que assiste aos estados competência para fixar número máximo de alunos em sala de aula. Estabeleceu que o federalismo brasileiro reclama “o abandono de qualquer leitura excessivamente inflacionada das competências normativas da União (sejam privativas, sejam concorrentes)”. Em seu voto, o Ministro Relator, Luiz Fux, concluiu que a Corte deveria “rever sua postura prima facie em casos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa” e passar a “prestigiar, como regra geral, as iniciativas regionais e locais, a menos que ofendam norma expressa e inequívoca da Constituição de 1988” 14 .

Em 2017, no julgamento do RE 194.704, o STF proferiu decisão paradigmática sobre a matéria, estabelecendo alguns parâmetros a serem observados pelo Poder Judiciário nos casos envolvendo competência concorrente. O objeto da ação era a validade de lei do Município de Belo Horizonte que estabelecia multa decorrente de emissão de fumaça acima dos padrões estabelecidos, questionada em razão da competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte.

Ao decidir pela constitucionalidade da lei municipal, a Corte estabeleceu que, “[n]os casos em que a dúvida sobre a competência legislativa recai sobre norma que abrange mais de um tema, deve o intérprete acolher interpretação que não tolha a competência que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria (presumption against preemption)”.

Estabeleceu ainda, adotando a teoria do “clear statement rule”, que o ente competente para editar norma geral pode limitar a competência legislativa dos entes subnacionais, desde que o faça de maneira adequada, necessária e razoável.

O Ministro Redator para o Acórdão, Edson Fachin, fundamentou a decisão nos princípios da subsidiariedade, segundo o qual, em regra, deve-se privilegiar a competência dos entes subnacionais em detrimento da competência da União para editar normas gerais, e da proporcionalidade, segundo o qual

13 BRASIL. STF, RE 559943, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 26-09-2008.

14 BRASIL. STF. ADI 4060, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 25/02/2015, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 04-05-2015

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161 o tratamento uniforme da matéria por lei nacional, para prevalecer, deve ser adequado, necessário e razoável.

Nas suas palavras, “essa procedimentalização [...] transmuda o enfoque a ser dado pelo Poder Judiciário: ao invés de se investigar qual competência o ente detém, perquire-se como deve exercê-la”, de maneira que, “a depender do bem protegido, é possível excluir a competência normativa dos demais entes”15.

A decisão mais relevante referente aos limites da competência concorrente em matéria de Direito Financeiro foi proferida pelo STF em 2020, quando a Corte analisou, conjuntamente, as ADI 2238, 2241, 2256, 2261, 2250, 2324, 2365 e a ADPF 24, propostas com o objetivo de invalidar artigos da Lei Complementar n. 101, de 2000 (LRF)16. Os proponentes argumentavam, dentre outras coisas, que os artigos 14 e 17, que estabelecem, respectivamente, condições para concessão de benefícios tributários que impliquem renúncia de receita e aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado, continham regras que desbordavam dos limites da União para editar normas gerais.

Na decisão, o Tribunal, embora reconhecendo a autonomia dos entes para editar normas específicas nos casos em que a Constituição não tenha reservado competência privativa à União, esclareceu que a lei complementar nacional pode tratar mais detalhadamente certas matérias, desde que existam fundamentos razoáveis para tanto.

O Ministro Relator, Alexandre de Moraes, aduziu que o regramento uniforme de certas matérias, voltado ao “imprescindível equilíbrio federativo”, “encontra explicação em razões econômicas”. Explicou que “[a]s decisões a respeito de gastos públicos, quando percebidas numa visão agregada, não são isentas de consequências para o conjunto do Estado”, podendo “produzir efeitos sistêmicos bastante prejudiciais ao equilíbrio federativo, exercendo pressões negativas sobre a condução de políticas intituladas por entes federativos distintos, além de potencializar assimetrias já existentes e prejudicar o sistema econômico nacional”. Em arremate, asseverou que a LRF foi elaborada, dentre outras coisas, para “incrementar a prudência na gestão fiscal e a sincronizar as decisões tomadas pelos Estados e pelos Municípios com os objetivos macroeconômicos estabelecidos nacionalmente”.

Como se percebe, mais uma vez, a Corte reconheceu à União, em nome da necessidade de uniformização da matéria, o poder de tratar com exclusividade de diversos temas de Direito Financeiro.

15 BRASIL, STF, RE 194704 , Relator(a): CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2017, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 17-11-2017.

16 BRASIL. STF, ADI 2238, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 24/06/2020, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 15-09-2020.

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4. A EDIÇÃO DE NORMAS ESPECÍFICAS SOBRE FINANÇAS PÚBLICAS PELA UNIÃO

A análise das decisões do STF sobre os limites da competência legislativa concorrente permite-nos concluir que, para a Corte, a União está autorizada a suprimir o poder de estados e municípios de editar normas específicas quando a uniformidade de tratamento da matéria se fizer indispensável e for adequadamente justificada.

A Ministra Carmen Lúcia chegou a deixar esse entendimento expresso, ao proferir seu voto no julgamento do citado RE 559943, em que o Plenário do Tribunal decidiu pela total impossibilidade de se tratar do tema da prescrição tributária por meio de lei ordinária. Nas suas palavras, em matéria de prescrição, seria “claro o objetivo da norma constitucional de nacionalizar a disciplina, vale dizer, de a ela conferir tratamento uniforme em âmbito nacional, independentemente de ser ou não norma geral”17.

Em nosso juízo, qualquer interpretação que exclua ou mitigue a autonomia dos entes da Federação deve ser desconsiderada. As normas gerais devem ser compreendidas como diretrizes gerais de atuação. Elastecer ainda mais os poderes da União, apenas contribuiria para uma assimetria ainda maior do pacto federativo, para além do estabelecido pelos Constituintes originário e reformador.

A Federação foi criada para aproximar o poder político de seus destinatários, de maneira que o enfraquecimento de estados e municípios, por meio da retirada de seu poder de editar normas que respeitem suas peculiaridades regionais, revelar-se-ia danoso para o projeto constitucional como um todo.

Nesse sentido, Raul Machado Horta ensina que “[a] repartição vertical de competências conduziu à técnica da legislação federal fundamental, de normas gerais e de diretrizes essenciais, que recai sobre determinada matéria legislativa de eleição do constituinte federal”. Para referido professor, “[a] legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais”18.

No mesmo sentido, José Afonso da Silva explica que normas gerais são normas que “estabelecem princípios e diretrizes da ação legislativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Segundo o professor, “[p] or regra, elas não regulam diretamente situações fáticas, porque se limitam a

17 BRASIL. RE 559943, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 26-09-2008.

18 MACHADO HORTA, Raul. Estudos de direito constitucional . Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 366.

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163 definir uma normatividade genérica a ser obedecida pela legislação específica federal, estadual e municipal”. Trata-se, em outras palavras, de “direito sobre direito, normas que traçam diretrizes, balizas, quadros, à atuação legislativa daquelas unidades da Federação”19.

Quando pretendeu conferir à União poderes legislativos gerais e específicos, a Constituição de 1988 foi expressa; para tanto, fixou hipóteses de competência legislativa privativa (art. 22). Quando quis que a União tivesse poderes legislativos apenas gerais, a Constituição também deixou isso claro (art. 24), resguardando aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios competência para legislar sobre aspectos específicos.

Não importa o quanto a uniformidade de tratamento de certa matéria seja importante, a União não pode estabelecer normas específicas vinculantes dos demais entes quando a Constituição não lhe conferir esse poder.

Em matéria de Direito Penal, a União só pode estabelecer normas gerais, como as que versam sobre definição e causas de suspensão da prescrição penal, e normas específicas, como as que fixam os prazos prescricionais aplicáveis a cada crime, porque a Constituição lhe atribuiu competência legislativa privativa.

Em matéria de Direito Tributário, sujeita à competência legislativa concorrente, por sua vez, a União só deveria poder estabelecer normas gerais, como as que versam sobre definição, causas de suspensão e interrupção e efeitos da prescrição, não fixar os prazos prescricionais aplicáveis aos tributos estaduais e municipais.

Pelas mesmas razões, discorda-se do entendimento segundo o qual, em matéria de renúncia de receitas, a União estaria autorizada não só a estabelecer, para todos os entes, a obrigatoriedade de apresentação de medidas de compensação, como também discriminar todas as medidas de compensação possíveis. Em nosso entendimento, o inciso II do art. 14 da LRF vincula apenas a União, configurando lei federal, não nacional.

Essa competência para definir a maneira como renúncias de receitas devem ser compensadas deveria ser atribuída aos estados e aos municípios, à luz de suas peculiaridades sociais e econômicas.

Quanto ao detalhamento dos limites de despesas de pessoal de União, estados e municípios, estabelecido no art. 19 da LRF, entendemos que a norma não viola a Constituição. Isso porque, nesse caso, existe autorização constitucional expressa e específica para que lei complementar fixe os limites de “despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas” de todos os entes (art. 169, caput, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 109, de 2021).

19 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 8. ed. atualizada até a Emenda Constitucional 70, de 22.12.2011. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 285-286.

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A violação constitucional, no caso, em nosso juízo, decorre do detalhamento dos limites percentuais de cada Poder dentro de cada ente federado. Essa matéria deveria ser tratada em âmbito local, por ocasião da elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias, instrumento adequado para fixar os limites orçamentários de cada Poder (CF/88, art. 99 § 1º).

Não discordamos, porém, de que apenas à luz do caso concreto será possível identificar se uma lei sobre finanças públicas (federal, estadual ou municipal) extrapola seus limites constitucionais20.

5. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, é possível concluir que a Constituição de 1988 não contempla autorização para que a União edite, de maneira vinculante para todos os entes, normas específicas sobre as matérias ali discriminadas, inclusive para legislar sobre Direito Financeiro e orçamento público.

Quando pretendeu conferir à União poderes legislativos gerais e específicos, a Constituição de 1988 foi expressa, como quando fixou hipóteses de competência legislativa privativa (art. 22) ou conferiu à lei complementar poderes para fixar limites de despesa com pessoal ativo e inativo de União, estados, Distrito Federal e municípios (art. 169, caput).

Por maior que seja a necessidade de uniformização legislativa de determinada matéria, caso a Constituição não tenha atribuído esse poder à União, esta não poderá ultrapassar seus limites e editar normas específicas com caráter vinculante para todos.

Não concordamos, assim, com a aplicação dada pela Suprema Corte à teoria da clear statement rule, já que, em nenhuma hipótese, o ente competente para editar norma geral poderá limitar a competência legislativa suplementar dos entes subnacionais, nem mesmo se demonstrar adequação, necessidade ou razoabilidade da medida.

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20 LEITE, Harrison. Manual de direito financeiro. 10. Ed. revista, atualizada e ampliada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 87.

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BRASIL. STF, ADI 2238, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 24/06/2020, Acórdão publicado no Diário da Justiça de 15-09-2020

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SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. 1. Reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2016

caPítulo 8

Processos estruturais e a eFetivação Do Direito à saúDe

Fernando Alcantara Castelo

André Vitor Quirino dos Santos

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 tratou com extremo cuidado das linhas fundamentais para atuação do Estado na garantia do direito à saúde, estabelecido como direito social fundamental. A saúde, assegurada pelo constituinte como direito de todos e dever do Estado, é uma das principais manifestações do direito à vida, fazendo com que seja uma das maiores pretensões dos cidadãos em face do Poder Público.

Por essa razão, perante a óbvia e amplamente divulgada dificuldade do Estado brasileiro em efetivar tal direito, surge o seguinte problema: de que forma a atuação jurisdicional pode contribuir para solucionar o problema enfrentado?

Frente a isso, a presente pesquisa tem como objetivo estabelecer de que forma os processos estruturais podem contribuir na efetivação do direito à saúde e qualificar a sua judicialização, apontando como o processo estrutural pode auxiliar na resolução de problemas nas políticas públicas e propondo possíveis abordagens para efetivação do direito à saúde através dos processos estruturais.

Portanto, o foco do estudo é firmar que os problemas relacionados ao direito à saúde devem ser abordados e solucionados como um problema estrutural, com características próprias que somente podem ser sanadas com a utilização de medidas estruturantes que buscam a reorganização e o aprimoramento das políticas públicas em saúde.

2. O DIREITO À SAÚDE E A SUA JUDICIALIZAÇÃO: UM OLHAR GERAL E ALGUMAS CRÍTICAS SOBRE O MODELO ADOTADO

A Constituição Federal de 1988, que rompeu com a ordem política e jurídica vigente até então, foi um importante instrumento de consolidação dos direitos fundamentais e sociais.

De fato, a Constituição Federal foi certeira ao disciplinar a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação1.

Assim, no tocante ao direito de todos, percebe-se que o direito à saúde constitui, ao mesmo tempo, um direito individual e coletivo, porquanto é um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional.2

Além disso, ao ser tratado como dever do Estado, fica claro que há uma obrigação do Estado em promover a prestação de saúde, desenvolvendo políticas que visem à redução de doenças, a promoção, à proteção e à recuperação da saúde, isto é, de forma universal, integral e igualitária.3

Percebe-se que a Carta Magna disciplina que o direito à saúde será garantido mediante políticas sociais e econômicas, o que evidencia a necessidade de criação de políticas públicas para concretizá-lo, por meio de escolhas alocativas.4

Neste ponto, deve haver uma aplicação conjunta do mínimo existencial, conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, e da teoria da reserva do possível, sendo imperioso esclarecer a diferença entre os conceitos de mínimo existencial e reserva do possível, uma vez que são primordiais para entender o alcance do direito à saúde.

De um lado, o mínimo existencial busca garantir o mínimo de condições para que o indivíduo tenha uma existência digna. Do outro, a reserva do possível significa aquilo que o cidadão pode razoavelmente exigir do Estado, estabelecendo que determinadas prestações públicas serão efetivadas pelo Poder Público na medida em que existam recursos para tal.

Portanto, na elaboração das políticas públicas, inclusive de saúde, é preciso levar em conta que os direitos sociais serão efetivados atendendo um mínimo existencial, porém, na medida da disponibilidade dos recursos que dispõe o ente estatal.

Neste passo, nasce importante um problema acerca do direito à saúde. Nas situações em que a política pública não é suficiente para suprir as necessidades de determinada pessoa, ela, se tiver condições, vai recorrer à judicialização para ver efetivado seu direito. Isso acaba por gerar uma desestruturação

1 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 730.

3 Ibid., p. 731.

4 MENDES, 2019, p. 731.

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do tratamento isonômico que deve nortear as políticas públicas, provocando iniquidades no sistema.5

Ora, em razão de sua natureza, o direito à saúde deve ser garantido mediante políticas públicas, formuladas, primordialmente, pelos Poderes Executivo e Legislativo, soando, em princípio, indevida a interferência por parte do Poder Judiciário.

Contudo, em razão da complexidade das políticas públicas de saúde e das dificuldades orçamentárias existentes, o que, em um primeiro momento, deveria ser enfrentado nas esferas Executiva e Legislativa, acaba chegando ao Judiciário, que passa a intervir para garantir o direito à saúde e acaba interferindo na formulação de políticas públicas.6

A rigor, o Judiciário pode se deparar com duas possibilidades de intervenção no campo da saúde: a parte pleitear uma prestação de saúde contida em uma política pública já existente ou a parte pleitear uma prestação de saúde que não está entre as políticas públicas do SUS.7

Ao apreciar um pedido de prestação de saúde incluída entre as políticas públicas, “o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública de saúde parece ser evidente.”.8

Por outro lado, quando não há política pública que inclua a prestação requerida, é necessária a adoção de um exame mais apurado pelo Poder Judiciário, haja vista que a não prestação do serviço pode ocorrer por diversos motivos.

Logo, fica claro que o direito à saúde é tido como um direito subjetivo fundamental, fazendo com que seja exigível em juízo, e não meramente como uma promessa constitucional inconsequente.9 Dessa forma, a fim de ver efetivado o seu direito, o jurisdicionado bate às portas do Judiciário, causando uma avalanche de ações judiciais.

5 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Direitos sociais, estado de direito e desigualdade: reflexões sobre as críticas à judicialização dos direitos prestacionais. Quaestio Iuris, v. 08, p. 2079-2114, 2015.

6 SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021. p. 266.

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175-CE. Agravante: União. Agravados: Ministério Público Federal, Clarice Abreu de Castro Neves, Município de Fortaleza e Estado do Ceará. Rel. Min. Gilmar Mendes, 17 de março de 2010. p. 23. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255. Acesso em 13 out. 2022.

8 Ibid.

9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286-8-RS. Agravante: Município de Porto Alegre. Agravada: Diná Rosa Vieira. Rel. Min. Celso de Mello, 12 de setembro de 2000. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538. Acesso em 13 out. 2022

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O fato é que a judicialização da saúde tem inundado os tribunais brasileiros e deixou de ser um tema irrelevante.

De fato, há uma grande demanda pelo fornecimento de medicamentos, o que pode resultar em duas possíveis hipóteses: os medicamentos são incluídos nas listas do Ministério da Saúde e não estão sendo fornecidos, o que revela um problema de gestão do ente público; ou o medicamento não consta nas listas públicas, o que implica uma análise mais apurada para entender o que impede a sua inclusão e qual a atitude deve ser tomada em relação ao jurisdicionado.10

Do mesmo modo, há uma busca considerável de tratamentos médico-hospitalares, o que mais uma vez reflete problemas administrativos do Poder Público, posto que as especialidades médicas e os tratamentos análogos são realizados em polos regionais e capitais, gerando dificuldades para municípios do interior promoverem o atendimento adequado.11

O fato é que há bastante tempo o Supremo Tribunal Federal entende possível a judicialização de políticas públicas de saúde, mormente no que toca ao fornecimento gratuito de medicamentos.12 A Suprema Corte tem entendido que os entes públicos não podem se valer de premissas financeiras com o objetivo de frustrar a distribuição gratuita de medicamentos em favor de pessoas carentes, posto que desse lado há o direito inviolável e inalienável à vida e à saúde.13

A realidade tem demonstrado que a jurisprudência dos Tribunais Superiores se volta, no mais das vezes, a dirimir casos isolados, o processo de cada paciente individualmente, estabelecendo precedentes vinculantes a fim de padronizar as decisões judiciais dos tribunais pelo país.

Entretanto, não há uma busca por resolver a judicialização em sua essência, abordando a formulação das políticas públicas de saúde ou a sua aplicação pelo Poder Executivo, sanando as dificuldades existentes através de meios eficazes e palpáveis para isso.

O atual controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil não vem atingindo resultado algum além da completa desestruturação dos serviços públicos. O grande número de ações individuais transforma a atuação jurisdicional em elaboração de política pública iníqua, desorganizada e não isonômica.14

10 MENDES, 2019, p. 737-738.

11 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização e saúde: ações para acesso à saúde pública de qualidade. Brasília: CNJ, 2021.

12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286-8-RS. Agravante: Município de Porto Alegre. Agravada: Diná Rosa Vieira. Rel. Min. Celso de Mello, 12 de setembro de 2000. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538. Acesso em 13 out. 2022

13 MENDES, 2019, p. 741.

14 VITORELLI, Edilson. Processo Civil Estrutural: Teoria e Prática. 3. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. p. 129.

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Isso acontece por um simples motivo. Ao proferir decisões agindo contingencialmente, levando em conta apenas o direito postulado por uma pessoa específica, o juiz ignora os efeitos que produz na política pública, com o acúmulo dessas decisões desvirtuando a prestação estatal, originando o chamado processo desestrutural.15

Nesse diapasão, Arenhart explica que:

na prática atual, o controle jurisdicional de políticas públicas é tratado com pueril irresponsabilidade. Irresponsabilidade não porque os juízes que atuam nesses processos ajam de modo incorreto, mas porque os instrumentos processuais empregados para esse controle são manifestamente inadequados. De fato, tanto demandas individuais, quanto o processo coletivo brasileiro atual, mostram-se flagrantemente insuficientes para dar vazão às necessidades de uma discussão jurisdicional minimamente satisfatória de políticas públicas. Os processos individuais, certamente, por sua própria finalidade, não se afeiçoam a esse debate. O recorte que promovem no conflito – que passa a ser traduzido apenas na pretensão deduzida pelo autor em face do réu – faz com que toda discussão de política pública se converta em simples debate entre um “direito subjetivo” de determinado indivíduo frente ao Estado.16

No âmbito do direito à saúde isso se demonstra de forma muito clara. Um primeiro exemplo que pode ser citado diz respeito às ações que buscam a realização de cirurgia e internações em leitos de UTI, no qual o eventual provimento do pedido acarreta “furos” na fila de espera pelo tratamento, privilegiando aqueles que tem acesso facilitado à justiça em detrimento daqueles que esperam administrativamente pela realização do tratamento ou disponibilização do leito.17

Percebe-se que além do prejuízo causado àqueles que corretamente esperam a disponibilização administrativamente do tratamento, causam uma verdadeira bagunça no sistema de regulação, posto que o gestor possui critérios técnicos para administrar suas filas de espera, e uma decisão judicial sem a mínima ponderação sobre isso em nada contribui com a diminuição do problema.

Também se observa isso nas demandas que pleiteiam o fornecimento de medicamentos. Sobre isso, vale trazer importantes considerações de Arenhart:

Tome-se o exemplo das ações de medicamentos – frequentes no âmbito jurisdicional atual – nas quais algum sujeito específico pretende, com base no direito fundamental

15 Ibid., p. 129.

16 ARENHART, Sérgio Cruz. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. In: ARENHART, Sergio Cruz; JOBIM, Marco Félix; OSNA, Gustavo (org.). Processos Estruturais.4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 1103-1122.

17 CASTELO, Fernando Alcântara. Direito à saúde e decisões estruturais: por uma judicialização mais racional e eficiente. Revista de Processo , v. 274, p. 317-342, 2017. p. 16.

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à saúde, a concessão de certo fármaco, normalmente de custo elevado ou de comercialização ainda não aprovada pelos órgãos públicos que regulam o setor. Demandas individuais como essas, como por um passe de mágica, convertem um problema que é extremamente grave em uma discussão singela: o direito fundamental à saúde pode ou não impor a prestação de determinado tratamento específico a indivíduo determinado? Ou, em outros termos, reduz o problema a um conflito entre o direito fundamental à vida e à saúde (daquele que busca o medicamento como forma para sobreviver) versus o interesse patrimonial do Estado (que se nega a custear o remédio para o autor). Sob esse ângulo, a discussão parece muito simples e sua solução, evidente. Porém, o que na realidade esse processo individual faz é ocultar o verdadeiro conflito: a política pública de saúde nacional. Realmente, esse tipo de demanda obscurece o fato de que, aquilo que está em jogo nessa causa, é a discussão sobre como devem ser distribuídos os recursos reservados à saúde no país. E, pior, ao condicionar a distribuição desses recursos a partir do ajuizamento das ações individuais, faz com que eles sejam alocados segundo: a) a maior compreensão do emprego do Judiciário na tutela dos próprios interesses; b) a anterioridade do exercício do direito de ação; c) o mais alto nível cultural, econômico e social do requerente (que, ultima ratio, é aquele que mais facilmente preenche os dois primeiros requisitos). Ou seja, ao fim e ao cabo, as ações individuais privilegiam aqueles que, normalmente, estão em condições “menos desfavoráveis” e, portanto, que não serão aqueles que mais necessitam da proteção da política pública.18

Mais uma vez, fica claro que a judicialização privilegia alguns grupos que possuem acesso facilitado ao Judiciário, bem como ignora a atuação do gestor público na elaboração de suas políticas, além do impacto orçamentário causado no sistema.19 20

Percebe-se que a atual condução da judicialização de políticas públicas tem causado inevitável desestruturação da atuação estatal. Por essa razão, faz-se necessário adotar um procedimento mais adequado para tratar da intervenção judicial em políticas públicas.

3. PROCESSOS ESTRUTURAIS E MEDIDAS ESTRUTURANTES

3.1. Litígios estruturais, suas características e as decisões estruturantes

Antes de tratar dos processos estruturais, é preciso conceituar e entender no que consistem os litígios estruturais.

18 ARENHART, 2022, p. 1104.

19 VITORELLI, 2022, p. 132.

20 FAGLIONI, Aline Fernanda; CASTELO, Fernando Alcântara. A Especialização das Procuradorias dos Estados nas Questões Relativas ao Direito à Saúde como Instrumento Eficaz na Defesa dos Entes Estaduais: a Experiência da PGE/PR. In: SANTOS, Alethele de Oliveira et al, (org.). Coletânea direito a saúde: boas práticas e diálogos institucionais. Brasília: CONASS, 2018. v. 3, p. 84-90. p. 87).

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Os litígios estruturais são conflitos de grande complexidade com algumas características que o definem. Em um primeiro momento, observa-se a existência de inúmeros polos envolvidos com diversos interesses comuns e opostos ao mesmo tempo, ao contrário de conflitos simples, onde há dois polos opostos com pretensões diametralmente opostas.21

Em segundo lugar, Vitorelli ensina que “o litígio estrutural implica a implementação, pela via jurisdicional, de valores públicos reputados juridicamente relevantes, mas que não foram bem-sucedidos espontaneamente, na sociedade” 22

Por fim, o litígio estrutural é marcado pela necessidade de reforma de uma instituição, público ou privada, a fim de que seja promovido ou cessada a violação do interesse público objetivado23.

Em resumo, o autor conceitua os litígios estruturais como

litígios coletivos decorrentes do modo como uma estrutura burocrática, pública ou privada, de significativa penetração social, opera. O funcionamento da estrutura é que causa, permite ou perpetua a violação que dá origem ao litígio coletivo.24

No mesmo sentido, vale mencionar a definição de Jordão Violin:

Litígios estruturais não são simplesmente aqueles em que há um interesse público subjacente. Todo litígio traz em si algo de interesse público, ainda que seja a potencial formação de um precedente ou a concretização de uma norma geral e abstrata. Não é a natureza do direito que define se um litígio é estrutural, mas o contexto em que a atividade jurisdicional é desenvolvida: na configuração organizacional de uma instituição. Litígios estruturais são aqueles em que se busca a reforma de uma instituição de grande porte para erradicar as causas do conflito.25

Portanto, os conflitos estruturais extrapolam interesses individuais, consistindo em uma reiterada violação de direitos causada por uma estrutura, afetando um grupo que a circunda.

21 ARENHART, Sergio Cruz; OSNA, Gustavo; JOBIM, Marco Félix. Curso de Processo Estrutural. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 78.

22 VITORELLI, Edilson. Litígios estruturais: decisão e implementação de mudanças socialmente relevantes pela via processual. In: ARENHART, Sergio Cruz; JOBIM, Marco Félix; OSNA, Gustavo (org.). Processos Estruturais.4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 352-398.

23 Ibid., p. 353.

24 VITORELLI, 2022b, p. 60.

25 VIOLIN, Jordão. Processos estruturais em perspectiva comparada: a experiência norte-americana na resolução de litígios policêntricos. Orientador: Sérgio Cruz Arenhart. 2019. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019. p. 59.

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Para resolver um litígio estrutural, não será uma simples decisão que colocará fim ao problema existente, e sim uma decisão mais abrangente e focada em resolver a controvérsia definitivamente.

Nesse sentido, Vitorelli afirma que há:

Necessidade de se romper com a estrutura tradicional direito-obrigação-violação-reparação. Indenizar aqueles que sofreram com o ilícito é ineficaz para se atingir o objetivo de realizar o interesse público, porque não se impede que as violações continuem ocorrendo. É preciso tomar a violação como ponto de partida para encontrar formas de cessar o comportamento que a origina ou o contexto estrutural que a favorece. 26

Tendo isso em vista, a Suprema Corte norte-americana, ao julgar o caso Brown v. Board of Education, que tratava das políticas de segregação racial nas escolas, momento considerado pela doutrina como nascedouro das reformas estruturais, declarou-as inconstitucionais, reconhecendo a dificuldade de eliminá-la, afinal, tratava-se de algo enraizado na sociedade norte-americana, o que demandaria tempo para se ver satisfeito o direito postulado.27 28

Por isso, a Suprema Corte, com o apoio dos tribunais locais, estabeleceu uma série de medidas continuadas e descentralizadas para dar efetividade à decisão, aplicando-as de forma escalonada de acordo com a realidade material de cada região.29 30

Percebe-se então, que as decisões estruturais se caracterizam pela sua perpetuação no tempo, com o objetivo de promover uma alteração contundente e efetiva na realidade posta em juízo. Nesse sentido, segundo Castelo, as decisões estruturais “são decisões que, ao adjudicar o direito, provocam certa alteração institucional, intervindo na estrutura do ente envolvido, razão pela qual sua implementação deve ocorrer de maneira programada, gradual e que se protrai no tempo”.31

Posto que a decisão estrutural resolve litígios complexos, é necessário que ela se construa em processo adequado para tal, o processo estrutural32, como se verá adiante.

26 VITORELLI, 2022b, p. 353.

27 ARENHART et al., 2021, p. 19-30.

28 GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Processos Estruturais. Objeto, normatividade e sua aptidão para o desenvolvimento. In: ARENHART, Sergio Cruz; JOBIM, Marco Félix; OSNA, Gustavo (org.). Processos Estruturais.4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 221-248.

29 ARENHART et al., 2021, p. 19-30.

30 GAIO JÚNIOR, 2022, p. 231.

31 CASTELO, 2017, p. 17.

32 DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes; DE OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Notas sobre as decisões estruturantes. Civil procedure review, v. 8, n. 1, p. 46-64, 2017.

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3.2. O processo estrutural

Compreendidas as noções de litígio estrutural e decisões estruturais, percebe-se que os problemas estruturais não são solucionados por simples decisões individuais que reparam um dano causado, e sim em decisões voltadas ao futuro, buscando evitar a reiteração das situações de conflito e resolver a controvérsia definitivamente.33

Nesse contexto, faz-se necessária a adoção de um processo estrutural. Segundo Arenhart, os processos estruturais são aqueles que compreendem litígios complexos, que, por sua vez, são policêntricos, multifacetados, que envolvem uma diversidade de interesses e vários grupos de uma comunidade.34

Por isso, em razão dessas peculiaridades, há a necessidade de compreender o processo de uma forma diferente, a fim de ser adaptado para enfrentar essa nova realidade.35

Assim, a primeira fase de um processo estrutural é a apreensão das características do litígio, buscando entender a sua complexidade e conflitualidade, abrindo espaço para que os interessados se manifestem sobre a situação.36

Nessa toada, inicia-se com a delimitação, de forma escalonada pelos mais interessados, do grupo e subgrupos relevantes afetados pelo litígio, ou seja, todos aqueles que podem ser substancialmente afetados pela reestruturação buscada no processo. Isso permitirá uma abertura de espaço plural a fim de identificar as ideias predominantes, sem ignorar as minorias envolvidas. Assim, serão identificados os motivos e vontades derivadas do ato ilícito causado, proporcionando uma representação adequada para cada esfera envolvida.37

No tocante a representação, Arenhart ensina que é preferível que os inúmeros integrantes do grupo afetado sejam representados em vez de exercer uma participação direta, posto que, tratando-se de uma pluralidade de indivíduos afetados, sua participação poderia ser um empecilho ao avanço do processo estrutural. Por essa razão,

em litígios cuja complexidade subjetiva impede a formação de litisconsórcio (como costuma ser o caso daqueles que compõem o pano de fundo das

33 GAIO JÚNIOR, 2022, p. 230.

34 ARENHART, Sérgio Cruz. Processo multipolar, participação e representação de interesses concorrentes. In: ARENHART, Sergio Cruz; JOBIM, Marco Félix; OSNA, Gustavo (org.). Processos Estruturais.4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 1121-1145.

35 NUNES, Leonardo Silva; COTA, Samuel Paiva; FARIA, Ana Maria Damasceno de Carvalho. Dos litígios aos processos estruturais: pressupostos e fundamentos. Novas tendências, diálogos entre direito material e processo. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, p. 365-383, 2018.

36 VITORELLI, 2022b, p. 69.

37 VITORELLI, 2022b, p. 332-333.

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disputas que reclamam condução estrutural), não há caminho que divirja da admissão de certo grau de representação. Em poucas palavras, não se trata de opção, mas de percurso inevitável para conferir o mínimo de factibilidade ao processo; de caminho imprescindível para que, verdadeiramente a máquina judiciária possa atuar.38

Dessarte, a legislação pátria tem atribuído a legitimidade processual para representação de grupos ou da coletividade a pessoas e órgãos públicos, bem como associações, desde que capazes de defender os interesses da sociedade afetada.39

Estabelecido um representante, levantados todos os problemas e os bens da vida visados, deve ser elaborado um pedido estrutural, que, segundo Vitorelli, consiste em:

1) elaboração de um plano de transformação estrutural [...]; 2) pedido para que o plano seja implementado; 3) pedido para que o plano implementado seja fiscalizado e reportado ao juiz; 4) pedido para que o acompanhamento seja mantido por determinado período de tempo ou até que determinados indicadores sejam atingidos; 5) pedido para que o plano seja revisto periodicamente, identificando-se as transformações já verificadas e, eventualmente, as necessidades de alteração do plano; e, 6) pedido para que as modificações, cuja necessidade tenha sido apontada pelas atividades de monitoramento, sejam implementadas.40

Com isso, tem início a segunda fase do processo estrutural, a elaboração de um plano de alteração do funcionamento da estrutura, cujo objetivo é traçar o que deve ser feito para se obter o resultado esperado.41

Esse plano, preferencialmente, deve ser construído de forma plural e com a participação de todos interessados, inclusive o próprio réu. Sua formulação pelo autor da ação pode trazer obstáculos ao debate e a sugestão de novas ideias ao longo do processo, criando um freio para cognição, posto que ficará restrito às providências inicialmente apresentadas.42

Por outro lado, a atuação de administrador judicial é extremamente drástica, posto que presume a não adesão do gestor da instituição que será reestruturada, o que também traria obstáculos ao debate e afastaria o réu da concepção da estratégia.

Assim, o desenvolvimento do programa de reestruturação pelo próprio réu ou terceiro imparcial é primordial, devido a autonomia e conhecimento

38 ARENHART et al., 2021, p. 104.

39 ARENHART et al., 2021, p. 107.

40 VITORELLI, 2022b, p. 333.

41 Ibid., p. 275.

42 Ibid., p. 279.

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177 do gestor institucional serem mantidas, bem como sua visão do problema pode ser de extrema valia na construção de soluções.43

Nesse sentido, torna-se evidente a importância da cooperação entre as partes para solução do problema, já que o diálogo torna o processo e suas decisões mais produtivas e exequíveis.44

Dessarte, Castelo aponta que

nem sempre as instituições têm condições de resolver isoladamente casos controvertidos, que demandam deliberações institucionais conjuntas, razão pela qual soluções dialógicas devem ser estimuladas e não rechaçadas. Nessa toada, a colaboração entre as partes e a sua participação na elaboração da decisão é fator essencial para se chegar a uma decisão factível, permitindo resultados mais racionais e efetivos para a garantia dos direitos envolvidos.45

A partir do plano de reestruturação, nasce a decisão estrutural, no qual, constatado um estado de irregularidades e violações, define-se o estado ideal de coisas a ser buscado, bem como os meios pelos quais se atingirão os objetivos.46

Com base nisso, inicia-se a terceira fase do processo estrutural, a implementação desse plano, que pode ocorrer de forma compulsória ou negociada.47

É de grande valia a implementação negociada das ideias, já que as partes envolvidas são as mais capacitadas para entender como as mudanças serão efetivadas. Caso os envolvidos não colaborem, resta a utilização pelo juiz do meios indutivos ou sub-rogatórios para atingir tal intento.48

Aqui, em primeiro lugar, será analisado o caso concreto a fim de se estabelecer o tempo adequado para implementar a reestruturação buscada. As decisões estruturais e o plano de reestruturação são institutos que não são executados rapidamente, exigindo uma aferição do tempo adequado para cumprimento das metas estabelecidas.49 Sobre isso, Arenhart, Jobim e Osna lecionam que

a efetivação se faça a partir de um plano de ação, onde se desenham os objetivos a serem alcançados ao longo do tempo, com metas a serem cumpridas em cada momento. Haverá, no fim das contas, a elaboração de um verdade calendário

43 Ibid., p. 279-286.

44 CASTELO, 2017.

45 Ibid.

46 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: Revista de Processo, São Paulo. 2020. p. 45-81

47 VITORELLI, 2022b, p. 69.

48 ARENHART et al., 2021, p. 257.

49 DIDIER JR., 2020.

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para a implementação da solução estrutural, para que todos os interessados possam acompanhar o desenvolvimento da complexa atuação no sentido da eliminação (ou da minoração) do problema alvo da atividade estrutural.50

Ademais, faz-se necessária a criação de um regime de transição, visto que haverá uma transição entre a situação existente e a situação que se pretende criar, conforme prevê a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro51.52

Por fim, a implementação das medidas deve ser fiscalizada, começando a quarta fase, consistente na “avaliação dos resultados da implementação, de forma a garantir o resultado social pretendido no início do processo, que é a correção da violação e a obtenção de condições que impeçam sua reiteração futura”.53

Nesse momento, há a possibilidade de nomeação de um administrador ou interventor judicial para fiscalizar a implementação e auxiliar o juízo. Da mesma forma, pode ser imposta a entrega de relatório periódicos, realização de audiência e inspeções judiciais para supervisionar a realização das medidas estruturantes.54

Isso dá ensejo a novas formas de abordar o problema, atentando-se às particularidades ignoradas anteriormente, o que começará a quinta fase do processo estrutural, a reelaboração do plano e sua implementação, produzindo ciclos de fases até solução do litígio e a obtenção do resultado pretendido.55

Nota-se, então, uma das características do processo estrutural, a prolação de “decisões em cascata”, em que “paulatinamente ajustarão as condições para a satisfação dos direitos declarados, ou para o atingimento da situação ideal”56. Assim, Silva Neto ministra que “enquanto se apreende o caso, já se interfere na realidade: há cognição e execução ao mesmo tempo e, possivelmente, em mais de uma instância.”57

50 ARENHART et al., 2021, p. 257.

51 Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

52 DIDIER JR., 2020.

53 VITORELLI, 2022b, p. 69.

54 DIDIER JR, 2020.

55 VITORELLI, 2022b, p. 69.

56 NUNES, Leonardo Silva. A configuração do procedimento adequado aos litígios estruturais. In: ARENHART, Sergio Cruz; JOBIM, Marco Félix; OSNA, Gustavo (org.). Processos Estruturais.4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 693-707.

57 SILVA NETO, Francisco de Barros e. Breves considerações sobre os processos estruturais. In: Civil Procedure Review, v. 10, n. 1, p. 75-88, 2019.

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A par disso, Castelo conclui que

Além disso, não é obrigatório que se tenha uma única e estática decisão. Também podem ser adotados provimentos em cascata, ou seja, é possível que haja uma cadeia de provimentos em série ao longo do processo, à medida que os problemas forem aparecendo. É justamente por essa razão que a efetivação das decisões estruturais se dá de maneira gradual e paulatina, podendo apontar, além dos resultados a serem obtidos, os meios para obtê-los, impondo verdadeiros planos de ação. Podem, ainda, delegar a outros entes a gestão e o controle da efetivação da decisão, com a fiscalização do Poder Judiciário.58

Diante do exposto, percebe-se que o processo estrutural tem grande aptidão para analisar a fundo os problemas de uma instituição, debater e idealizar uma solução factível e exequível para sua solução, capacidade para se readaptar durante o seu andamento e produzir uma mudança efetiva e duradoura na instituição afetada.

Resta, portanto, perquirir, a utilização e possíveis repercussões dos processos estruturais no âmbito do direito à saúde.

4. DIREITO À

SAÚDE

E SUA ABORDAGEM PELO PROCESSO ESTRUTURAL

4.1. Processo estrutural e as políticas públicas

Como visto acima, o processo estrutural possui aptidão para promover alterações contundentes em uma estrutura de interesse público. Por essa razão, revela-se como um importante meio para o controle e efetivação de políticas públicas.

Isso se deve às modificações realizadas no processo estrutural em relação ao processo civil tradicional, o que permite uma condução mais democrática e aberta na resolução do litígio. Em outras palavras, ocorre porque se estabelece “um processo civil democrático e coparticipativo, embasado no estabelecimento de uma relação dialógica e na revisitação de diversos institutos do processo civil tradicional, que não são ideais ou adequados, em sua forma atual, para o tratamento de litígios estruturais.”59

58 CASTELO, Fernando Alcântara. Direito à saúde e decisões estruturais: por uma judicialização mais racional e eficiente. Revista de Processo , v. 274, p. 317-342, 2017. apud ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. In: Revista de processo 2013. p. 389-410.

59 CASIMIRO, Matheus; DA CUNHA FRANÇA, Eduarda Peixoto; NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt. Processos estruturais e diálogo institucional: qual o papel do poder judiciário na transformação de realidades inconstitucionais?. In: REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 8, n. 1, p. 105-137, 2022

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Além disso, a participação ampla das partes e da sociedade permitem uma cognição judicial ampla acerca do ato ilícito, permitindo que o juiz veja o problema através de várias perspectivas.60

Isso ocorre por meio de instrumentos como as audiências públicas e o amicus curiae, permitindo a participação ampla da sociedade afetada no litígio e o auxílio de especialista na matéria objeto da demanda.61 Assim, Arenhart leciona que:

o direito de influir, aqui, deve poder ser exercido pelos vários núcleos de interesses que podem incidir sobre o objeto da controvérsia, seja diretamente pelos interessados (quando possível), seja por meio de “representantes adequados” de tais interesses, seja ainda pelos especialistas que possam contribuir com o aporte de uma visão mais adequada e correta do problema e de eventuais soluções possíveis.

Ademais, ao levar em conta os vários elementos envolvidos e a ampla oportunidade de diálogo e cooperação entre eles, são criadas decisões inovadoras e adequadas ao caso concreto, refletindo em uma maior harmonia entre os poderes envolvidos e as decisões mais producentes nos casos complexos.62

A partir disso, Castelo pontua que

não é difícil perceber que embora as decisões estruturais possam ter as mais diversas aplicações, o campo de maior utilidade delas se dá na seara da efetivação dos direitos fundamentais, na inevitável implementação e reestruturação das políticas públicas, razão pela qual não é exagero afirmar que as medidas estruturantes têm papel relevantíssimo na concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.63

Portanto, verifica-se que o processo estrutural se mostra muito útil para tratar da efetivação de políticas públicas, visto que afasta o caráter estanque e dicotômico do processo civil tradicional e permite uma visão ampla e plural da dificuldade objeto do litígio.64

4.2. Abordagens estruturais no direito à saúde

Vimos que os processos estruturais têm importante espaço na resolução de litígios de alta complexidade, sendo necessário se debruçar sobre a sua utilidade no campo do direito à saúde, demonstrando possíveis abordagens e experiências do processo estrutural em relação à judicialização do direito à saúde.

60 ARENHART, 2022ª, p. 1103-1122.

61 Ibid., p. 1108.

62 CASTELO, 2017, p. 9.

63 Ibid.

64 LUQUE, Fernando da Silva. O processo estrutural nas políticas públicas de saúde. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2020.

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Segundo Castelo, as ações judiciais que tratam do direito à saúde, como pedidos de medicamento e tratamentos médicos, vão além da mera contraposição do direito à saúde do autor e da proteção do patrimônio do Estado. Em verdade, versam sobre a intervenção em políticas públicas e a alocação orçamentária do ente estatal.65

Nesse sentido, Arenhart considera como um primeiro modelo de processo estrutural as decisões que, ao determinarem o fornecimento de um medicamento a um paciente, estabelecem condições e limites para a sua dispensação. Trata-se, nesse caso de uma decisão estrutural, por exercer a fiscalização do sistema, posto que o seu cumprimento será com base na comprovação periódica da necessidade do medicamento.66

Por mais que seja uma simples ação individual, é imperiosa a utilização de decisões estruturais, uma vez que garantem maior eficácia aos provimentos judiciais. No exemplo acima, isso se mostra muito pertinente, porquanto deve ser aferida “a necessidade de continuação ou não do tratamento, já que os medicamentos não podem ser fornecidos eternamente, mesmo que o autor não mais deles necessite”.67

Outrossim, nas ações que buscam internações em unidades de tratamento intensivo, é essencial a utilização de provimentos estruturais. Nesses casos,

é evidente a aplicação da reserva do possível fática, já que a questão envolve a efetiva disponibilidade de leitos, e, como não podem ser criados leitos de uma hora para a outra, nem desalojados os pacientes que neles estão, não é de bom alvitre que se tomem decisões que serão faticamente irrealizáveis.68

A esse respeito, a pandemia do COVID-19 foi muito didática. O presidente do Superior Tribunal de Justiça suspendeu aproximadamente 200 liminares da Justiça do Mato Grosso que obrigavam o Poder Público a internar, imediatamente, pacientes com covid-19 em leitos de UTI no estado. O Ministro pontuou que a falta de leitos de UTI não se justificava pela má-gestão do Estado, mas do colapso das UTIs em todo o país. Assim, a fim de não desestruturar o sistema de saúde estadual, determinou que devia ser mantida a discricionaridade da administração pública para definir os critérios de atendimento dos pacientes, criados com fundamento em recomendações técnicas e conforme orientações dos gestores do SUS.69

65 CASTELO, 2017, p. 14.

66 ARENHART, 2022, p. 1110.

67 CASTELO, 2017, p. 14.

68 CASTELO, 2017, p. 15.

69 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Suspensão de Liminar e de Sentença n. 2.922-MT. Requerente: Estado de Mato Grosso. Requerido: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Rel.

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Ainda, Castelo afirma que nessas situações é fundamental o respeito ao contraditório e o diálogo entre as partes, a fim que não aconteçam ofensas a fila de espera pelo tratamento. Isso acaba por privilegiar aqueles que tem acesso à justiça em detrimento de quem aguarda pacientemente pelo atendimento administrativo. A adoção de técnicas estruturais é primordial para avaliar a situação da política pública e a razoabilidade da interferência judicial.70

Apesar das ações individuais serem a grande maioria que ocupa o Judiciário, há sinais de atuação em caráter estrutural em várias ações coletivas em defesa do direito à saúde. A título de exemplo, pode ser citada uma ação coletiva ajuizada pela Defensoria Pública da União, com assistência litisconsorcial do Estado do Paraná, em face da União Federal, no qual objetiva compelir a parte ré a regularizar o fornecimento, o abastecimento e a dispensação de medicamentos cuja aquisição é de responsabilidade do ente federal (ação civil pública n. 5044857-82.2019.4.04.7000).71

Os aspectos estruturais nessa ação são inúmeros, a começar pelos pedidos elaborados pela DPU. Em breve síntese, a parte autora requereu a apresentação de cronogramas de regularização do fornecimento e abastecimento contínuo, ininterrupto e gratuito de medicamentos cuja aquisição é competência do Ministério da Saúde, a criação de um estoque de segurança para evitar futuros desabastecimentos. Além disso, pleiteou a criação de plano com metas, atribuições prazos para instituição de sistema único de informações sobre as medicações integrantes do SUS de aquisição da União Federal, com o objetivo de que as Secretarias Estaduais de Saúde possam acompanhar o processo de compra e distribuição pelo ente federal. Por fim, requereu a adoção de medidas coercitivas para o cumprimento das medidas fixadas.

A condução do processo, seguindo a mesma linha, prestigiou o contraditório e o diálogo entre as partes, permitindo ao réu a exposição das dificuldades enfrentadas na aquisição e distribuição de medicamentos, bem como possibilitou ao ente estatal o esclarecimento de como as falhas na atuação do ente federal impactam o fornecimento de medicamentos à população.

A partir disso, foi estabelecida uma série de prazos e providências a serem cumpridos pela União a fim de reestabelecer a correta realização da política pública, com posteriores adaptações baseadas nas novas informações trazidas aos autos.

Ministro Presidente do STJ, 19 de abril de 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/19042021%20SLS2922.pdf. Acesso em 11 nov 2022.

70 CASTELO, 2017, p. 16.

71 BRASIL. 3ª Vara Federal de Curitiba, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ação Civil Pública n. 5044857-82.2019.4.04.7000. Autores: Defensoria Pública da União e Estado do Paraná. Réu: União Federal. Acesso restrito via sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em 11 nov 2022.

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Apesar de que, no momento da conclusão deste trabalho, a ação mencionada ainda está pendente de julgamento, ela se revela um ótimo exemplo de como o processo estrutural pode ser aplicado para garantir o direito à saúde, bem como tem se mostrado eficiente na produção de mudanças concretas na realidade.

Percebe-se que, no processo estrutural em saúde, a atuação judicial é continuada e não fixa, possibilitando a realização de acordos e reuniões a fim de concretizar adequadamente o direito à saúde.72

É importante destacar que o Supremo Tribunal Federal, ultimamente, tem adotado diversas soluções estruturais em conflitos envolvendo o direito à saúde. Neste sentido, é possível citar pelo menos dois exemplos recentes da atuação estrutural do Supremo na judicialização da saúde pública.

Com efeito, no tema de repercussão geral n. 1234, em que será decidido a respeito da “Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS”73, em abril de 2023, o Ministro Gilmar Mendes, relator do recurso, reconhecendo o caráter estrutural da demanda, destacou a necessidade de uma construção dialógica da solução do problema, sob pena de incutir graves desprogramações orçamentárias e de desorganizar a complexa estrutura do SUS.

Neste sentido, buscando um compromisso autocompositivo, favorecendo os diálogos interinstitucionais, determinou-se a criação de comissão especial, com a participação de diversos entes e autoridades para ajudar na solução do conflito.

Por outro lado, no tema de repercussão geral n. 698, tratando dos “Limites do Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes na realização de concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o direito social da saúde, ao qual a Constituição da República garante especial proteção”, cuja tese foi fixada em 30 de junho de 2023, o Supremo estabeleceu que:

“1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes.

72 SCHULZE, Clenio Jair. Direito sanitário pós-pandemia. In Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 10, n. Suplemento, p. 134-143, 2021.

73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.366.243SC. Reclamante: Estado de Santa Catarina. Reclamado: Roger Henrique Testa. Rel. Min. Luiz Fux, 08 set. 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353401700&ext=.pdf. Acesso em 24 out. 2022.

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2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado.

3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)”

Nota-se, então, que o processo estrutural é capaz de trazer resultados mais eficientes para a sociedade. O diálogo das partes e a visão ampla que se obtêm do litígio permitem uma atuação jurisdicional concreta na proteção do direito à saúde, afastando a desestruturação das prestações públicas de saúde e a maximização na utilização dos recursos, o que reflete em benefícios para toda coletividade.

5. CONCLUSÃO

Como visto, é sedimentado o entendimento acerca da possibilidade de exigir judicialmente questões relativas ao direito à saúde. Todavia, a judicialização atingiu patamares insustentáveis, seja pelo excesso de demandas que abarrotam o sistema de justiça, seja pela desestruturação que provocam no sistema único de saúde.

Valendo-se de experiências estrangeiras, foram criados mecanismos processuais que permitem o enfrentamento de questões de elevada complexidade de forma mais producente e eficaz, produzindo mudanças que realmente contribuam na resolução desses problemas.

Esses mecanismos compõem os processos estruturais que, a partir de modificações no processo civil tradicional, resultam em grande ênfase à atuação da sociedade civil, consensualidade, contraditório, diálogo entre as partes, poder de convencimento do juiz, ampla cognição do litígio e a adoção de medidas exequíveis e efetivas.

A soma desses fatores faz com que o processo estrutural seja um importante meio para impactar no funcionamento de políticas públicas, haja vista sua atuação voltada a compreender a essência do problema, algo que não seria possível nas relações e procedimentos do processo tradicional.

A compreensão do porquê o litígio teve início e os motivos que deram cabo a isso é crucial para que o Poder Judiciário promova intervenções a fim de resolver definitivamente a causa, concretizando de maneira factível as políticas públicas de saúde. Isso faz com que a atuação jurisdicional seja coerente com a realidade e, ao proferir decisões razoáveis, produza a reestruturação de instituições de interesse público.

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Desse modo, a relevância dos processos estruturais na efetivação de direitos sociais é incontroversa. No Brasil, sobretudo, a sua utilização tem obtido grandes êxitos, por mais que ainda seja recente a sua utilização pelo Judiciário.

No direito à saúde o seu uso tem sido bastante comum nas ações individuais, afinal, o uso de medidas estruturantes é muito recomendável para garantir a isonomia dos usuários do sistema e a garantia da correta utilização dos recursos estatais ao longo do tempo.

Por outro lado, sua utilidade em ações coletivas vem sendo explorada, sobretudo, pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de assegurar o acesso à saúde da população, aprimorar o Sistema Único de Saúde e reduzir a judicialização, já tendo se demonstrado bastante útil para esse intento.

Portanto, é desejável a utilização de técnicas estruturais nas demandas que envolvem o direito à saúde, uma vez que é um importante instrumento na reorganização da atuação estatal e na efetivação das determinações constitucionais.

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caPítulo 9
a execução Fiscal De emPresas em recuPeração JuDicial com a reForma Da lei nº 11.101/2005

1. INTRODUÇÃO

Sabe-se que a Fazenda Pública possui como prerrogativa a execução de seus créditos inscritos em dívida ativa através do procedimento especial da Execução Fiscal1. Tal prerrogativa garante a autonomia do crédito fazendário e da execução fiscal, que não se sujeitam ao juízo universal da recuperação judicial. Tanto é assim que a redação original do §7º, art. 6º, da Lei nº 11.101/2005 já excepcionava a execução fiscal da suspensão de processos efetivada pelo deferimento do processamento da recuperação judicial:

§ 7º As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica. (Revogado pela Lei nº 14.112, de 2020)

Tendo em vista que a Fazenda Pública não participa do plano de recuperação e as execuções fiscais não são suspensas pelo seu deferimento, como os demais processos, entram aqui em conflito então interesses de grande relevância: de um

1 Observe-se as lições de Leonardo Carneiro da Cunha: “A execução fiscal é um procedimento especial de execução fundada em título extrajudicial para a satisfação de quantia certa. Ela caracterizase pela presença de 2 (dois) elementos: o sujeito ativo e o objeto. Somente se considera execução fiscal se o exequente for a Fazenda Pública e o valor cobrado compuser sua dívida ativa. Em outras palavras, a execução fiscal serve para cobrança de valor integrante da dívida ativa de uma pessoa jurídica de direito público. Não importa quem seja o sujeito passivo; a execução fiscal identificase pela conjunção daqueles já referidos elementos: sujeito ativo (Fazenda Pública) e objeto (valor integrante de sua dívida ativa)”. CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 425.

lado, o princípio da supremacia do interesse público, associado ao princípio da efetividade (da execução fiscal) e instrumentalizado pelas garantias e privilégios do crédito tributário e, do outro, o princípio da preservação da empresa, que protege o importante papel social e econômico que a atividade empresarial exerce na sociedade.

O art. 57 da Lei nº 11.101/2005 e o art. 191-A do CTN determinam que a apresentação das certidões de regularidade fiscal é requisito necessário para a aprovação do plano e, consequentemente, condição de procedibilidade para a concessão da recuperação judicial.

Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.

Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)

Tanto a Lei 11.101/2005 (art. 57), quanto a Lei Complementar nº 118/05 (art. 191-A), que alterou o Código Tributário Nacional na esteira da edição da Lei de Falências e Recuperação Judicial, contêm a mesma regra: para a concessão da recuperação judicial, é necessária a apresentação das certidões de regularidade fiscal.

Todavia, é necessário reconhecer que as empresas em recuperação, via de regra, possuem um grande passivo tributário, haja vista que as obrigações tributárias são as primeiras que as sociedades em crise param de cumprir e, em grande parte das vezes, o montante do valor devido à Fazenda Pública é superior às dívidas particulares. Dessa forma, se fosse condição para a aprovação do plano de recuperação o pagamento integral dos créditos inscritos em dívida ativa ou sua inclusão no plano de pagamento, grande parte das empresas devedoras não conseguiria se reerguer, não restando alternativa senão a decretação da falência.

Por essa razão, exigir a quitação de todo o passivo fiscal ou a adesão a parcelamentos tributários ordinários inviabilizaria o instituto da recuperação judicial, que, sempre que viável, deve preferir à falência e foi criado justamente para substituir a obsoleta figura da concordata como mecanismo para recuperação de sociedades empresárias em crise econômico-financeira2

2 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2 ed. São Paulo: Método, 2012. P. 726-727

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Para conciliar os interesses em jogo, que têm de um lado, a necessidade de recuperação dos créditos públicos e preservação do erário para a prestação de políticas públicas e, de outro, a manutenção de empregos e da atividade econômica, foi incluído o art. 155-A, §3º, no CTN (com redação da LC 118/2005), prevendo a edição de lei específica pelos entes federados para disciplinar a concessão de parcelamento especial para devedores em recuperação judicial.

Art. 155-A. O parcelamento será concedido na forma e condição estabelecidas em lei específica. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)

(...)

§ 3º Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)

§ 4º A inexistência da lei específica a que se refere o § 3º deste artigo importa na aplicação das leis gerais de parcelamento do ente da Federação ao devedor em recuperação judicial, não podendo, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior ao concedido pela lei federal específica. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)

Disposição semelhante foi prevista no art. 68, da Lei 11.101/2005:

Art. 68. As Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.

A controvérsia, no entanto, ocorria quando o ente federativo credor da empresa não possuía lei especial de parcelamento destinada especificamente ao devedor em recuperação judicial. Em que pese a disposição expressa do §4º, do art. 155-A, da Lei 11.101/2005, prevendo aplicação subsidiária das leis ordinárias de parcelamento do ente federado, na ausência de legislação específica, a exigência de apresentação da Certidão Negativa de Débitos ou Certidão Positiva com Efeitos de Negativa passou a ser dispensada pelos magistrados para a concessão da recuperação judicial, com respaldo em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Vejamos:

DIREITO EMPRESARIAL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXIGÊNCIA DE QUE A EMPRESA RECUPERANDA COMPROVE SUA REGULARIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 57 DA LEI N. 11.101/2005 (LRF) E ART. 191-A DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL (CTN). INOPERÂNCIA DOS MENCIONADOS DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA A DISCIPLINAR O PARCELAMENTO DA DÍVIDA FISCAL E PREVIDENCIÁRIA DE EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

1. O art. 47 serve como um norte a guiar a operacionalidade da recuperação judicial, sempre com vistas ao desígnio do instituto, que é “viabilizar a supe-

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ração da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

2. O art. 57 da Lei n. 11.101/2005 e o art. 191-A do CTN devem ser interpretados à luz das novas diretrizes traçadas pelo legislador para as dívidas tributárias, com vistas, notadamente, à previsão legal de parcelamento do crédito tributário em benefício da empresa em recuperação, que é causa de suspensão da exigibilidade do tributo, nos termos do art. 151, inciso VI, do CTN.

3. O parcelamento tributário é direito da empresa em recuperação judicial que conduz a situação de regularidade fiscal, de modo que eventual descumprimento do que dispõe o art. 57 da LRF só pode ser atribuído, ao menos imediatamente e por ora, à ausência de legislação específica que discipline o parcelamento em sede de recuperação judicial, não constituindo ônus do contribuinte, enquanto se fizer inerte o legislador, a apresentação de certidões de regularidade fiscal para que lhe seja concedida a recuperação.

4. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.187.404/MT, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013.)

Assim, com fundamento na ausência de lei específica de parcelamento, na prática, a concessão da recuperação judicial passou a ser concedida aos devedores sem a apresentação de qualquer certidão de regularidade fiscal, tornando letra morta o art. 57, da Lei nº 11.101/2005 e art. 191-A, do CTN.

Com isso, tendo em vista que a Fazenda Pública não participa da recuperação judicial, o plano de pagamento apresentado pelo administrador judicial e aprovado pelo magistrado não necessitava contemplar o pagamento das dívidas tributárias, relegando, desta forma, os créditos fazendários a um patamar inferior aos créditos privados executados no plano.

Logo, a recuperação judicial passou a servir para pagamento dos créditos privados em detrimento do erário, pois os credores privados eram pagos conforme o plano era executado, enquanto os créditos fazendários sequer precisavam estar garantidos ou parcelados.

Frente a essa situação, restava às Fazendas Públicas darem prosseguimento às suas execuções fiscais para buscar a recuperação de seus créditos, já que, conforme a redação original da própria Lei de Falências e Recuperação, os executivos fiscais não seriam suspensos pelo deferimento da recuperação judicial.

Todavia, frente ao enorme passivo fiscal que as empresas em recuperação possuem, a penhora de ativos e de bens da recuperanda poderia afetar o seu patrimônio e dificultar a execução do plano. Defrontado com essa questão, o Superior Tribunal de Justiça edita outro entendimento extremamente desfavorável às Fazendas Públicas.

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A Corte Superior passou a entender que, quando o ente fazendário solicita o deferimento de algum ato de constrição no bojo da Execução Fiscal, tais atos não poderiam ser deferidos quando tivessem o potencial de prejudicar a manutenção e continuidade da empresa em recuperação judicial.

Entendeu-se que “o deferimento da recuperação judicial da empresa executada não tem o condão de acarretar a extinção do executivo fiscal, mas apenas a suspensão dos atos de constrição patrimonial que possam comprometer o soerguimento da pessoa jurídica” (STJ, 2a Seção, AgRg no AgRg no CC 120644/RS, Relator Ministro Massami Uyeda, DJe 27.06.2012).

Com base nesse entendimento, os atos executivos ordinários requeridos pela Fazenda Pública restavam sempre indeferidos, tais como a penhora online de ativos, bloqueio de veículos, penhora de imóveis, penhora sobre o faturamento da empresa, dentre outros.

A Execução Fiscal tornou-se então um procedimento inócuo, pois, em que pese não ser suspensa, não possuía qualquer efetividade já que os atos de constrição restavam todos indeferidos.

No final de 2016, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça passou a adotar tese jurídica distinta, mais coerente com a legislação e reverente ao crédito público. No Recurso Especial 1525114/PE (julgado primeiro em decisão monocrática em 01/09/2016 e posteriormente ratificado pela Segunda Turma mediante a interposição de agravo interno, com julgamento em 16/02/2017), enfrentaram-se duas hipóteses, chegando-se às seguintes teses3:

(a) Hipótese 1: O Plano de Recuperação Judicial foi deferido com observância do arts. 57 e 58 da Lei 11.101/2005 (ou seja, com prova de regularidade fiscal). Aqui, “a Execução Fiscal será suspensa em razão da presunção de que os créditos fiscais encontram-se suspensos nos termos do art. 151 do CTN”;

(b) Hipótese 2: O Plano de Recuperação Judicial foi deferido sem apresentação da CND ou CPEN. Logo, “incide a regra do art. 6º, § 7º, da Lei 11.101/2005, de modo que a Execução Fiscal terá regular prosseguimento, pois não é legítimo concluir que a regularização do estabelecimento empresarial possa ser feita exclusivamente em relação aos seus credores privados, e, ainda assim, às custas dos créditos de natureza fiscal”.

3 DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. In: DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. www.procuradoria.go.gov.br. Disponível em: https://www. procuradoria.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2017-07/20---recuperaCAojudicial-e-seus-impactos-na-execuCAo-fiscal---o-pensamento-renovado-do-stj-atravEs-dos-novos -precedentes.pdf. Acesso em: 1 fev. 2023.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 193

O caso em que as hipóteses foram analisadas é bem interessante, pois demonstra a releitura, ao menos pela Segunda Turma, da tese já fixada no âmbito do Tribunal Superior de maneira clara. No caso concreto, tratava-se de hipótese em que o Tribunal de origem havia entendido pela impossibilidade de decretação de indisponibilidade de bens da empresa em recuperação judicial, com base no princípio da preservação da empresa.

Ao analisar o caso, a Segunda Turma entendeu que o referido princípio seria aplicável somente ao microssistema de Recuperação Judicial (exclusivamente em relação a credores privados), ao qual a Fazenda Pública não estaria sujeita. Em outras palavras, o juízo universal da recuperação judicial não afetaria a Fazenda Pública e seus créditos, de maneira diversa do juízo universal da falência.

Nesse sentido, não poderia o princípio da preservação da empresa e o juízo universal da recuperação serem impostos como impeditivos ao deferimento dos atos pleiteados pelas Fazendas em sede de Execução Fiscal. Afirmou-se expressamente que “as sociedades empresárias não podem pagar seus credores privados em detrimento das Fazendas Públicas”. Em arremate, a Segunda Turma da Corte Especial deu provimento ao recurso da Fazenda Nacional, permitindo a adoção do ato constritivo requerido.

No entanto, o mesmo acórdão deixou consignado, ao fim, que seria possível ao magistrado condutor do feito afastar o ato constritivo requerido pela Fazenda Pública no caso em que se tenha demonstrado, mediante prova nos autos, que a constrição resultará na quebra da empresa ou impedirá a sua efetiva continuidade4.

Conforme bem destacado por Marcílio da Silva Ferreira Filho:

Pelo que se observa da ratio decidendi, houve o estabelecimento de um ônus probatório destinado ao devedor. Nesse sentido, segundo a nova tese, o magistrado não deve mais indeferir os pedidos de constrição sob o argumento genérico de preservação da empresa. Pelo contrário, deverá o julgador deferir os atos de constrição, incumbindo ao devedor em recuperação judicial (ônus da prova) demonstrar que, no caso concreto, o ato constritivo resultará em quebra ou impedimento de continuidade da empresa. Essa tese, sem dúvidas, mostra-se mais adequada ao sistema jurídico e à necessidade de garantir o cumprimento dos créditos tributários.5

4 DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. In: DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. www.procuradoria.go.gov.br. Disponível em: https://www. procuradoria.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2017-07/20---recuperaCAojudicial-e-seus-impactos-na-execuCAo-fiscal---o-pensamento-renovado-do-stj-atravEs-dos-novos -precedentes.pdf. Acesso em: 1 fev. 2023.

5 DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS

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Em outro julgado, já aplicando o entendimento revisitado, a própria Segunda Turma estabeleceu que deve “haver há (sic) prova concreta de que a penhora determinada pelo juízo de primeiro grau acarretará o fracasso do plano de Recuperação Judicial” para impedir o deferimento do pleito fazendário (AgInt no AgInt no AREsp 925026/PA, DJe 18/04/2017).

Todavia, essa questão tormentosa envolvendo os processos de execução fiscal e de recuperação judicial estava longe de ser pacificada. Muitos juízes, quando recebiam processos de execução fiscal, já determinavam a sua suspensão ou denegavam de plano qualquer medida constritiva requerida, sob o fundamento de que poderiam prejudicar o funcionamento da empresa e o andamento do plano, bem como que os atos executórios seriam de competência do juízo recuperacional.

Em 2018, os REsps n. 1.694.261/SP e 1.694.316/SP foram afetados ao Tema nº 987 integrando a Controvérsia nº 31/STJ. A questão submetida a julgamento era a análise quanto à “possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária.”6

Nos acórdãos representativos de controvérsia, com base no art. 1.037, II, CPC, houve a determinação de suspensão nacional de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos.

“A PRIMEIRA SEÇÃO, por unanimidade, afetou o processo ao rito dos recursos repetitivos (RISTJ, art. 257-C) e suspendeu o processamento de todos os feitos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional, conforme proposta do Sr. Ministro Relator.”7

Na prática, com a suspensão de todas as execuções fiscais e a impossibilidade da prática de atos constritivos, o STJ avalizou o prosseguimento dos processos de recuperação judicial com o pagamento dos credores privados da empresa recuperanda, em detrimento dos créditos públicos.

A situação se tornou tão vergonhosa que as empresas em recuperação continuavam suas atividades, realizando fatos geradores e, consequentemente,

PRECEDENTES. In: DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. www.procuradoria.go.gov.br. Disponível em: https://www. procuradoria.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2017-07/20---recuperaCAojudicial-e-seus-impactos-na-execuCAo-fiscal---o-pensamento-renovado-do-stj-atravEs-dos-novos -precedentes.pdf. Acesso em: 1 fev. 2023.

6 Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&num_processo_classe=1694261

7 Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&num_processo_classe=1694261

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aumentando seus passivos tributários sem que as Fazendas Públicas pudessem adotar qualquer medida executiva para recuperação de seus créditos.

2. DA EDIÇÃO DA LEI Nº 14.112/2020 E CANCELAMENTO DO

TEMA Nº 987

Em 24 de dezembro de 2020 foi publicada a Lei nº 14.112/2020, que, dentre inúmeras alterações na Lei nº 11.101/2005, modificou o art. 6º e revogou o texto original do seu §7º, inserindo os §7º-A e §7º-B ao referido artigo. Vejamos a redação alterada:

“Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

(...)

§ 7º (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

§ 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência) § 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência).

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Segundo o próprio Superior Tribunal de Justiça e parte da doutrina, a nova lei teria apenas positivado a jurisprudência consolidada da Corte Superior quanto à competência do juízo recuperacional para tratar de demandas que afetem interesses e bens de empresas em recuperação judicial, notadamente no que se refere à constrição de bens. Trata-se, assim, de uma reafirmação da universalidade do juízo recuperacional8.

Contudo, as alterações promovidas pela Lei nº 14.112/2020, em especial nos §7º-A e §7º-B, do art. 6º, vieram para garantir real efetividade ao art. 57, da Lei de Falências e Recuperação Judicial e restaurar as garantias do crédito público, que havia sido relegado, na prática, a crédito de categoria inferior aos créditos privados quirografários.

Se por um lado, o novel §7º-B, do art. 6º reafirma o que já era previsto na redação original do §7º, ou seja, que a execução fiscal não é suspensa pela recuperação judicial, por outro, inova ao afirmar expressamente a possibilidade da prática de atos constritivos na execução fiscal.

Tanto é assim que, após a edição deste dispositivo, o Tema 987/STJ foi cancelado pelo Superior Tribunal de Justiça. Na sessão de julgamento do dia 23 de junho de 2021, a Primeira Seção desafetou o último recurso especial representativo da controvérsia que tratava sobre a possibilidade da prática de atos constritivos nas execuções fiscais em face de empresas em recuperação judicial.

Vejamos a notícia publicada no sítio eletrônico do STJ9:

Primeira Seção cancela repetitivo sobre constrição de empresa em recuperação judicial no âmbito de execução fiscal

Em razão das alterações promovidas pela Lei 14.112/2020 – que alterou a Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005) –, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o cancelamento do Tema Repetitivo 987, cuja questão submetida a julgamento discutia a possibilidade de atos constritivos contra empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal, por dívida tributária ou não tributária.

Com o cancelamento do tema repetitivo, o colegiado determinou o levantamento da suspensão nacional de processos relacionados ao repetitivo anteriormente afetado.

O relator dos recursos especiais, ministro Mauro Campbell Marques, apontou que a Fazenda Nacional, com base nas novas disposições da Lei 11.101/2005,

8 https://www.migalhas.com.br/depeso/349824/execucao-fiscal-recuperacao-judicial-e-o-tema987-do-stj

9 Disponível em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/30062021-Primeira-Secao-cancela-repetitivo-sobre-constricao-de-empresa-em-recuperacao-judicial-no-ambitode-execucao-fiscal.aspx

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argumentou que as execuções fiscais não são suspensas pelo simples fato do deferimento da recuperação judicial.

Além disso, segundo a Fazenda, é possível a adoção de atos de constrição contra a empresa em recuperação quando não houver hipótese de suspensão da execução ou da própria exigibilidade do crédito tributário, sendo do juízo universal a competência para, em cooperação com o juízo da execução fiscal, substituir a constrição relativa aos bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial – e, por consequência, ao cumprimento do plano de recuperação.

Cooperação entre os juízos tributário e da recuperação De acordo com o ministro Campbell, a atribuição da competência ao juízo da recuperação judicial para controlar os atos constritivos determinados em sede de execução fiscal representa a positivação legal do entendimento consolidado pela Segunda Seção no CC 120.642.

“Em suma, a novel legislação concilia o entendimento sufragado pela Segunda Turma/STJ – ao permitir a prática de atos constritivos em face de empresa em recuperação judicial – com o entendimento consolidado no âmbito da Segunda Seção/STJ: cabe ao juízo da recuperação judicial analisar e deliberar sobre tais atos constritivos, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial’, complementou o relator.

Por outro lado, Mauro Campbell Marques destacou que não seria adequado o pronunciamento do STJ, em sede de recurso especial interposto nos autos de execução fiscal, sem que houvesse prévia manifestação do juízo da recuperação judicial.

Nesse sentido, o ministro considerou caber ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição realizada na execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (artigo 69 do CPC/2015), podendo determinar eventual substituição para que o plano de recuperação não seja prejudicado.

“Constatado que não há tal pronunciamento, impõe-se a devolução dos autos ao juízo da execução fiscal, para que adote as providências cabíveis. Isso deve ocorrer inclusive em relação aos feitos que hoje se encontram sobrestados em razão da afetação do Tema 987”, concluiu o magistrado ao determinar o cancelamento do tema repetitivo..

Interessante observar que, nas razões de cancelamento do Tema 987, prevaleceu a visão do Ministro Mauro Campbell Marques e da Segunda Turma, que, conforme visto acima, já possuíam uma posição mais ponderada no conflito de interesses presente na questão e reverente ao crédito público, reconhecendo a possibilidade de atos constritivos nas execuções fiscais de empresas em recuperação judicial.

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3. EFEITOS PRÁTICOS DA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA NAS EXECUÇÕES FISCAIS E CONTROVÉRSIAS RELATIVAS À COMPETÊNCIA DO JUÍZO RECUPERACIONAL

Diante das alterações promovidas na legislação e do cancelamento do Tema 987, ficou clara a ausência de fundamento legal para que o juízo da execução fiscal determine a suspensão do feito executivo de empresas em recuperação judicial. Na mesma linha, tendo em vista agora a existência de previsão expressa, não há mais embasamento para impedir a constrição de bens sob a alegação de que os atos executórios seriam de competência do juízo recuperacional e que tal medida poderia prejudicar o funcionamento da empresa e o andamento do plano.

Nos termos da lei, a competência do juízo da execução fiscal permanece plena para a constrição de bens, devendo somente consultar o juízo recuperacional, após a penhora do bem, acerca da sua qualidade como bem de capital essencial à manutenção das atividades, para que, em caso positivo, seja procedida a sua substituição, através de cooperação jurisdicional (art. 69, CPC).

Assim, não cabe ao juízo da execução fiscal exercer juízo de valor quanto à essencialidade do bem, tampouco negar atos de constrição sob o fundamento de preservação da empresa ou de que não teria competência para tanto. A nova redação do §7º-B esclareceu que a competência do juízo da execução fiscal permanece plena para a condução do processo executivo com vistas à satisfação do crédito fazendário.

Esse tem sido o entendimento reiterado do Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. EMPRESA DEVEDORA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO RECORRIDA QUE indefere o PLEITO PARA prosseguimento dos atos executórios, ANTE A IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DE CONSTRIÇões PATRIMONIAIS, SENÃO PELO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. ART. 6º DA LEI Nº 11.101/2005, COM A REDAÇÃO QUE LHE FOI DADA PELA LEI Nº 14.112/2020. POSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO FISCAL, INCLUSIVE COM A REALIZAÇÃO DE ATOS CONSTRITIVOS. RECURSO PROVIDO. A regra do art. 6º, da Lei nº 11.101/2005, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 14.112/2020, não só exclui as execuções fiscais da regra geral de que as execuções propostas em face de empresa em recuperação judicial são suspensas, como também permite a constrição de bens, ressalvada, por outro lado, a possibilidade de o juízo da recuperação judicial substituir, mediante cooperação entre os juízos, os atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial.

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(TJPR - 3ª C.Cível - 0046004-45.2021.8.16.0000 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR EDUARDO CASAGRANDE SARRAO - J. 03.11.2021)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE REJEITOU O PEDIDO DE BLOQUEIO DE DINHEIRO, ATÉ O FIM DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INSURGÊNCIA RECURSAL DO ENTE FAZENDÁRIO. PERTINÊNCIA. IMPOSITIVA OBSERVÂNCIA À NOVA REDAÇÃO DO ART. 6.º, § 7.º-B, DA LEI FEDERAL N.º 11.101/2005. DISPOSITIVO LEGAL QUE ESTABELECE A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA DEMANDA EXECUTIVA PARA AUTORIZAR A PENHORA DE BENS E ATIVOS, AD REFERENDUM DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL, COM A PRÁTICA DE ATOS CONSTRITIVOS E EXPROPRIATÓRIOS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJPR - 3ª C.Cível - 0055714-89.2021.8.16.0000 - Reserva - Rel.: DESEMBARGADORA LIDIA MATIKO MAEJIMA - J. 15.03.2022)

Por seu turno, tendo em vista que a Lei expressamente não só determina o prosseguimento da execução fiscal, como autoriza a adoção de atos constritivos em face de empresas recuperandas, ao juízo recuperacional não compete determinar a suspensão da execução fiscal ou limitar, parcial ou integralmente, a adoção de atos constritivos nas execuções fiscais, tendo em vista que os créditos fazendários não estão sujeitos ao juízo universal da recuperação.

A competência do juízo da recuperação judicial sobre os créditos cobrados na execução fiscal é delimitada e expressa pela Lei: avaliar se o bem constrito na execução fiscal é bem de capital essencial à manutenção do plano e, somente neste caso, determinar sua substituição (art. 6º, §7º-B, in fine).

Dessa forma, a legislação, ponderando o princípio da preservação da empresa com o princípio da efetividade da execução e as garantias do crédito público, permitiu que o juízo universal da recuperação determine a substituição da penhora sobre bens de capital que sejam essenciais à manutenção da atividade empresarial.

Desde a alteração legislativa aqui tratada, esse tem sido o entendimento adotado pelo STJ:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA. SUBMISSÃO DO ATO AO JUÍZO UNIVERSAL. ART. 6º, § 7º-B, da LEI N. 11.101/05. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONFLITO. DECISÃO MANTIDA.

1. O art. 6º, § 7º-B, da Lei n. 11.101/05 não alterou o entendimento desta Corte Superior, fundado no princípio da preservação da empresa, de competir ao Juízo da recuperação a análise dos atos constritivos e expropriatórios contra o patrimônio da sociedade. Entretanto, permitiu que o Juízo da execução fiscal ordenasse o ato, deixando a análise final a cargo do Juízo da recuperação.

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3. Além de detalhar, minuciosamente, a dinâmica dos atos processuais constritivos entre os dois Juízos, a Segunda Seção afirmou ser indispensável “à caracterização de conflito de competência perante esta Corte de Justiça, que o Juízo da execução fiscal, por meio de decisão judicial, se oponha concretamente à deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito da constrição judicial, determinando a substituição do bem constrito ou tornando-a sem efeito, ou acerca da essencialidade do bem de capital constrito” (CC n. 181.190/AC, Rel. Min. MARCO AURELIO BELLIZZE, julgado em 30/11/2021, DJe 07/12/2021).

4. No caso, concomitantemente à ordem de penhora, o Juízo da Execução fiscal determinou a análise pelo Juízo da recuperação, inexistindo conflito.

5. Agravo interno a que se nega provimento.

(AgInt no CC 182.741/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 15/02/2022, DJe 18/02/2022) (grifamos)

PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL. AUSÊNCIA DE DELIBERAÇÃO POR PARTE DO JUÍZO UNIVERSAL ACERCA DA ESSENCIALIDADE DOS BENS QUE SE PRETENDEM VER CONSTRITOS. AUSÊNCIA DE DECISÕES CONFLITANTES ENTRE JUÍZOS DISTINTOS. CONFLITO NÃO CONHECIDO.

1. A teor das alterações introduzidas na Lei de Falências, para que haja a indevida usurpação de competência pelo Juízo da execução fiscal em detrimento do Juízo da recuperação judicial/falência da empresa devedora é necessária a coexistência de dois pressupostos:

(i) existência de efetiva constrição de algum bem ou valor da recuperanda/ falida pelo juízo da execução; e (ii) inobservância ou desrespeito, pelo juízo da execução, de decisão do juízo da recuperação judicial/falência que tenha reconhecido a essencialidade de bem ou valor constrito para a manutenção da atividade empresarial e determinado a sua substituição. Pressupostos não preenchidos.

2. Agravo interno não provido.

(AgInt no CC 182.505/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 15/03/2022, DJe 17/03/2022)

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. DECISÃO EM CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA. BENS MÓVEIS NÃO INCLUÍDOS NO PLANO DE RECUPERAÇÃO. INFORMAÇÕES PRESTADAS PELO JUÍZO QUE PRESIDE O ESFORÇO DE SOERGUIMENTO. NÃO SUBMISSÃO AO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SÚMULA 480/STJ.

1. Informações prestadas pelo Juízo que conduz a recuperação judicial, no sentido de que os bens objeto de penhora na execução fiscal não estão incluídos no plano de superação da crise econômico-financeira.

2. Trata-se, por conseguinte, de bens da empresa recuperanda, ré na execução fiscal, que não se submetem ao regime previsto na Lei 11.101/2005. Incidência do enunciado 480 da Súmula do STJ.

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3. Agravo interno a que se nega provimento.

(AgInt no CC 178.960/PE, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 15/03/2022, DJe 23/03/2022)

Considerando que não há fundamento legal para que o juízo da execução fiscal ou da recuperação judicial suspendam o processo ou sustem a prática de atos constritivos na execução fiscal, na hipótese de constrição de bens na execução fiscal, deve o magistrado condutor do feito executivo submeter os bens constritos à análise do juízo recuperacional para avaliar a sua qualidade de bem de capital e essencialidade para o cumprimento do plano.

Estabelecidas tais premissas, é necessário então definir o que se entende como bem de capital. Para tanto, podemos recorrer à definição estabelecida pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Segunda a Corte Superior, bem de capital, para os fins da própria Lei nº 11.101/2005, deve ser “compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível”10.

Vejamos a íntegra da decisão que estabelece esse conceito:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO DE CRÉDITO/RECEBÍVEIS EM GARANTIA FIDUCIÁRIA A EMPRÉSTIMO TOMADO PELA EMPRESA DEVEDORA. RETENÇÃO DO CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE PELO JUÍZO RECUPERACIONAL, POR REPUTAR QUE O ALUDIDO BEM É ESSENCIAL AO FUNCIONAMENTO DA EMPRESA, COMPREENDENDO-SE, REFLEXAMENTE, QUE SE TRATARIA DE BEM DE CAPITAL, NA DICÇÃO DO § 3º, IN FINE, DO ART. 49 DA LEI N. 11.101/2005. IMPOSSIBILIDADE. DEFINIÇÃO, PELO STJ, DA ABRANGÊNCIA DO TERMO “BEM DE CAPITAL”. NECESSIDADE. TRAVA BANCÁRIA RESTABELECIDA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A Lei n. 11.101/2005, embora tenha excluído expressamente dos efeitos da recuperação judicial o crédito de titular da posição de proprietário fiduciário de bens imóveis ou móveis, acentuou que os “bens de capital”, objeto de garantia fiduciária, essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, permaneceriam na posse da recuperanda durante o stay period. 1.1 A conceituação de “bem de capital”, referido na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, inclusive como pressuposto lógico ao subsequente juízo de essencialidade, há de ser objetiva. Para esse propósito, deve-se inferir, de modo objetivo, a abrangência do termo “bem de capital”, conferindo-se-lhe interpretação sistemática que, a um só tempo, atenda aos ditames da lei de regência e não descaracterize ou esvazie a garantia fiduciária que recai sobre o “bem de capital”, que se encontra provisoriamente na posse da recuperanda.

10 REsp 1758746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018

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2. De seu teor infere-se que o bem, para se caracterizar como bem de capital, deve utilizado no processo produtivo da empresa, já que necessário ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário. Constata-se, ainda, que o bem, para tal categorização, há de se encontrar na posse da recuperanda, porquanto, como visto, utilizado em seu processo produtivo. Do contrário, aliás, afigurar-se-ia de todo impróprio # e na lei não há dizeres inúteis # falar em “retenção” ou “proibição de retirada”. Por fim, ainda para efeito de identificação do “bem de capital” referido no preceito legal, não se pode atribuir tal qualidade a um bem, cuja utilização signifique o próprio esvaziamento da garantia fiduciária. Isso porque, ao final do stay period, o bem deverá ser restituído ao proprietário, o credor fiduciário.

3. A partir da própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária - bem incorpóreo e fungível, por excelência -, não há como compreendê-lo como bem de capital, utilizado materialmente no processo produtivo da empresa.

(...)

6. Para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, “bem de capital”, ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period.

6.1 A partir de tal conceituação, pode-se concluir, in casu, não se estar diante de bem de capital, circunstância que, por expressa disposição legal, não autoriza o Juízo da recuperação judicial obstar que o credor fiduciário satisfaça seu crédito diretamente com os devedores da recuperanda, no caso, por meio da denominada trava bancária.

7. Recurso especial provido.

(REsp 1758746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018) (grifamos)

Nota-se, portanto, que, no conceito de bem de capital estabelecido pela Corte Superior não está incluído dinheiro, primeiro bem na ordem de preferência para penhora, conforme estabelecido pelo art. 835, I, do CPC. Em que pese o conceito estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça, na prática, muitos juízes têm determinado a sustação ou limitado a prática de atos de penhora de dinheiro ou ativos financeiros nos processos de execução fiscal.

Cabe aqui citar escorreita decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, reformando decisão de primeiro grau, autorizou o bloqueio de ativos financeiros de empresa em recuperação:

“RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Penhora - Decisão que deferiu o levantamento de quantia penhorada em execução fiscal – Impossibilidade no caso concreto - Decurso do ‘stay period’ - Não há óbice legal para que o juízo da execução fiscal determine a constrição de bens das recuperandas - Dinheiro que não pode

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ser considerado bem de capital essencial – Precedentes - Ausência da hipótese do art. 6º, §7ºb, da lei nº 11.101/05 - Recuperandas que sequer indicaram outros bens para substituição da penhora – Decisão reformada para determinar a manutenção do bloqueio - Recurso provido.”

(TJSP; Agravo de Instrumento 2072168-97.2022.8.26.0000; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Ribeirão Preto - 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/08/2022; Data de Registro: 29/08/2022)11(grifamos)

Vale também transcrever o preciso e judicioso trecho do voto condutor do relator Desembargador J. B. Franco de Godoi:

O motivo da não submissão do crédito tributário ao regime de recuperação decorre do caráter público da dívida, em que as transações devem obedecer a um regramento próprio.

Neste sentido, esclarece MARLON TOMAZETTE:

“Os créditos de natureza tributária não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, não havendo nem suspensão das execuções fiscais em curso (Lei no 11.101/2005 art. 6º, §7º), ressalvada a hipótese de parcelamento especial. A exclusão aqui decorre do artigo 187 do Código Tribunal Nacional, que afirma que o crédito fiscal não é sujeito a concurso de credores ou à recuperação judicial. Pelo princípio da legalidade e pela indisponibilidade do interesse público, não se admite negociação sobre os créditos fiscais e, por isso, não há como inclui-los no processo de recuperação.” (CURSO DE DIREITO EMPRESARIAL VOL. 03 RECUPERAÇÃO E FALÊNCIA - P. 118 ED. GEN ATLAS SÃO PAULO)

Com o advento da Lei 14.112/2020, ficou positivado especificamente que as medidas de suspensão não se aplicarão às execuções fiscais, contudo, caberá ao juízo recuperacional, mediante cooperação jurisdicional, controlar os atos de expropriação da sociedade empresarial em crise.

(...)

Logo, ao juízo da recuperação cabe a verificação da onerosidade da medida constritiva fiscal, podendo substituir o bem penhorado caso este seja imprescindível para o desenvolvimento das atividades da sociedade em crise.

No caso concreto, como bem ressaltado pelo i. Procurador de Justiça, o levantamento da quantia não podia ser autorizado.

Primeiro porque dinheiro não é classificado como “bem de capital”.

11 Disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=15991321&cdForo=0

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Depois porque o impacto econômico da retirada da quantia do caixa das recuperandas não foi seguramente demonstrado.

Por fim e mais grave, a recuperanda não ofertou bens em substituição à penhora realizada na execução fiscal e, nem mesmo, está interessada em aderir ao parcelamento fiscal12

Portanto, podemos concluir que não há óbice ao bloqueio de ativos financeiros na execução fiscal de empresas em recuperação judicial, tendo em vista que dinheiro não se caracteriza como bem de capital, conforme disposto no novel §7º-B da Lei de Recuperações e Falências.

Tal dispositivo é expresso ao estabelecer os dois requisitos cumulativos para que o bem constrito na execução fiscal seja substituído pelo juízo recuperacional: 1) bem de capital; 2) essencialidade.

Vale ainda destacar que a análise por parte do juiz da recuperação quanto à natureza do bem e sua essencialidade é posterior ao ato constritivo e não apriorística.

Em suma, somente após a constrição do bem, o juiz da recuperação deve submetê-lo ao crivo do juízo recuperacional e este, verificando tratar-se de um bem de capital essencial à manutenção das atividades, poderá determinar a sua substituição, oferecendo outro bem de igual ou superior valor em seu lugar.

Eventual decisão prolatada na recuperação judicial determinando a limitação de atos de constrição, como a suspensão ou imposição de um teto para o bloqueio de ativos financeiros, aplica-se somente a créditos que poderiam participar do plano de recuperação, não tendo o condão de afetar os créditos fazendários.

Valioso destacar a decisão proferida pela 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no julgamento do agravo de instrumento nº 027429-52.2022.8.16.0000, por meio do qual foi reformada a decisão do juiz da recuperação judicial que havia delimitado o bloqueio de valores na execução fiscal a R$ 1.000,00 (mil reais) por mês. Vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL – INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE AUTORIZOU A REALIZAÇÃO DE BLOQUEIOS DE ATIVOS FINANCEIROS VIA SISBAJUD EM TODAS AS EXECUÇÕES FISCAIS EM TRÂMITE CONTRA A RECUPERANDA, ATÉ O LIMITE MENSAL DE R$ 1.000,00 (MIL REAIS) – ACOLHIMENTO – NOVA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 14.112/2020 QUE ENSEJOU O CANCELAMENTO DO TEMA REPETITIVO 987 – COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL APENAS PARA AVERIGUAR A VIABILIDADE DO CUMPRIMENTO DO PLANO DE RE-

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12 Idem

CUPERAÇÃO JUDICIAL EM FACE DA CONSTRIÇÃO EFETUADA EM SEDE DE EXECUÇÃO FISCAL PELA COOPERAÇÃO JURISDICIONAL, PODENDO DETERMINAR EVENTUAL SUBSTITUIÇÃO QUANDO RECAIR SOBRE BEM CONSIDERADO ESSENCIAL À MANUTENÇÃO DA EMPRESA – INTELIGÊNCIA DO §7°-B DO ARTIGO 6° DA LEI 11.101/05 – PRECEDENTES DESTA C. CÂMARA CÍVEL E DO C. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – DECISÃO REFORMADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJPR - 17ª Câmara Cível - 0027429-52.2022.8.16.0000 - Reserva - Rel.: DESEMBARGADOR RUY ALVES HENRIQUES FILHO - J. 16.11.2022)13

Em resumo, no que diz respeito às execuções fiscais de empresas em recuperação judicial, com base nas alterações promovidas pela Lei nº 14.112/2020, em especial com a inclusão do §7º-B, ao art. 6º à Lei nº 11.101/2005 e na mais recente jurisprudência do STJ e dos Tribunais de 2º Grau, pode-se estabelecer o seguinte:

a) O juízo da execução fiscal possui competência para dar andamento à execução fiscal e determinar a constrição de bens de empresas em recuperação judicial.

b) Após a constrição, deve o juízo da execução fiscal apresentar o bem ao juiz da recuperação para que este avalie a sua condição de bem de capital e essencialidade à continuidade das atividades.

c) Em caso positivo, deve o juízo da recuperação oferecer outro em substituição. Em caso negativo, deve a execução fiscal ter normal prosseguimento até com a possível expropriação do bem.

d) O juízo recuperacional não possui competência para sustar, impedir ou limitar previamente atos executivos nas execuções fiscais.

4. CONCLUSÃO

O princípio da preservação da empresa não pode ser interpretado de forma absoluta, devendo ser ponderado com outras normas de igual importância, tais como o princípio da efetividade do processo (de execução fiscal), o princípio da supremacia do interesse público e as garantias e privilégios do crédito tributário.

Vale destacar que a ponderação entre tais interesses já foi feita pelo legislador nos arts. 57 e 68 da Lei nº 11.101/2005, ao prever o parcelamento especial e a necessidade de apresentação de certidões negativas para aprovação

13 Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/4100000021176601/Ac%C3%B3rd%C3% A3o-0027429-52.2022.8.16.0000

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do plano, conciliando, assim, as garantias e privilégios do crédito público com o interesse social de preservação da empresa.

Limitar ou impedir a constrição de bens na execução fiscal, tal como a busca de ativos financeiros, acaba por privilegiar os credores privados em detrimento do erário e da coletividade. Por essa razão, a Lei nº 11.101/2005 excepciona expressamente as execuções fiscais dos efeitos da decisão de processamento da recuperação.

A referida Lei foi editada para modernizar a legislação, criando o instituto da recuperação judicial para conciliar a necessidade de manutenção de empregos e da atividade econômica, com os direitos subjetivos dos credores de receberem seus créditos, incluídas as Fazendas Públicas.

Não atende à função social da empresa uma interpretação que considere apenas o interesse da empresa e de seus credores privados, descurando os interesses da coletividade e da justiça fiscal.

Como bem explanado por Raquel de Naday Di Creddo14:

“O Estado passa a ter como uma de suas fontes de renda para efetivação das políticas públicas, e consequentemente garantia dos direitos fundamentais, a tributação.

A Justiça Fiscal se insere nesse contexto em razão da realização pela Administração Pública da distribuição de renda e mais, da promoção de políticas públicas que realizem os interesses sociais.

Sua participação está presente tanto nas despesas – atendimento das necessidades básicas dos cidadãos – quanto na receita – realização de uma tributação justa.”

Uma tributação justa também inclui empresas que estão em recuperação judicial, pois o estado recuperacional, não é carta branca para não pagar os tributos devidos, o que gera prejuízos ao erário e à concorrência.

Por essa razão, como dito, foram editados os arts. 57 e 68 da Lei nº 11.101/2005, prevendo o regime especial de parcelamento e a necessidade de apresentação de certidões negativas para aprovação do plano.

Qualquer entendimento que privilegie sobremaneira os credores privados em detrimento das Fazendas Públicas prejudica a justiça fiscal e coloca em ameaça e descrédito o instituto da Recuperação Judicial, que estará fadado a sofrer o mesmo destino da concordata, que se tornou um instrumento de conluio fraudulento e evasão fiscal.

A reforma promovida na Lei de Falências e Recuperação veio em boa hora, superando uma jurisprudência detrimental ao crédito público e ao erário.

14 DI CREDDO, Raquel de Naday;. O pagamento de tributos e a justiça fiscal. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.pge.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2019-10/ 2012-08Artigo_7_O_pagamento_de_tributos.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2023.

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A inclusão do §7º-B ao art. 6º resolveu um impasse que se arrastava há anos no judiciário e prejudicava excessivamente a Fazenda Pública e a recuperação de créditos de empresas em recuperação judicial.

Agora não restam dúvidas de que a execução fiscal não é suspensa com o deferimento da recuperação judicial (embora a redação antiga do §7º já fosse expressa nesse sentido), e, o mais importante, tornou clara a possibilidade de constrição e expropriação de bens da empresa em recuperação judicial.

Não se pode subverter a lógica da norma legal. Prejudicar o andamento e adoção de medidas constritivas na execução fiscal em razão da existência de processo de recuperação é atentar contra o texto expresso da Lei. O art. 6º da Lei 11.101/2005 é claro ao dispor que a proibição de constrição judicial de bens em razão do processamento da recuperação judicial não se aplica aos processos de execução fiscal.

Com efeito, no plano de recuperação há expressa previsão de como e quando serão pagos os credores privados, todavia, tendo em vista que os créditos fazendários não participam do processo de recuperação judicial, resta às Fazendas Públicas somente a execução fiscal dos créditos inscritos em dívida ativa para sua satisfação.

Não obstante, para não prejudicar o cumprimento do plano e o soerguimento da empresa, cabe ao juízo da execução fiscal, através de cooperação jurisdicional, submeter os bens constritos ao juízo recuperacional. Caso este verifique que se tratam de bens de capital e essenciais à manutenção da atividade empresarial, deverá oferecer outro bem em substituição. Atende-se, assim, aos interesses da Fazenda Pública, sem comprometer a consecução do plano e a manutenção das atividades empresariais da recuperanda.

Vale destacar que tal alteração, ao restaurar a efetividade da execução fiscal, restabeleceu a eficácia social do art. 57, da Lei nº 11.101/2005 e art. 191-A, do Código Tributário Nacional, uma que vez que enfraquece os argumentos antes existentes que dispensavam a empresa devedora da apresentação das certidões negativas de débitos tributários para aprovação do plano e permitiam que esta ignorasse completamente a sua situação fiscal.

Agora, tendo em vista a ameaça concreta de constrição de bens na execução fiscal, inclusive de dinheiro, e com a edição das leis de parcelamento especial para empresas em recuperação, possibilitando a suspensão dos créditos tributários e a obtenção das certidões exigidas pelos art. 57, da Lei nº 11.101/2005 e art. 191-A, do Código Tributário Nacional, a tendência é que as empresas postulantes busquem regularizar sua situação fiscal antes do início da execução do plano, atendendo-se, finalmente, ao que determinava a legislação desde a sua edição em 2005.

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REFERÊNCIAS

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

COIMBRA, Alberto; LEAL, Adisson. Execução fiscal, recuperação judicial e o tema 987 do STJ: temos mais dúvidas agora do que antes?: A falta de uniformidade quanto à competência nessa matéria é o primeiro elemento que nos traz um maior número de dúvidas e, por conseguinte, um maior nível de insegurança jurídica do que tínhamos antes do julgamento do Tema 987 pela Primeira Seção do STJ. Migalhas, [S. l.], 10 ago. 2021. De Peso, p. 1-1. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/349824/execucao-fiscal-recuperacao-judicial-e-o-tema-987-do-stj. Acesso em: 1 fev. 2023.

COIMBRA, Alberto; LEAL, Adisson. Execução fiscal, recuperação judicial e o tema 987 do STJ: temos mais dúvidas agora do que antes?: Temos hoje bem mais dúvidas sobre o embate entre execução fiscal e recuperação judicial do que tínhamos antes do julgamento do Tema 987 pela Primeira Seção, trazendo-nos um cenário de insegurança jurídica que compromete o regular andamento dos milhares de feitos sobrestados em razão da sistemática de julgamento do recursos repetitivos.. Migalhas, [S. l.], 18 out. 2021. De Peso, p. 1-1. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/353219/execucao-fiscal-recuperacao-judicial-e-o-tema-987-do-stj. Acesso em: 1 fev. 2023.

DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. In: DA SILVA FERREIRA FILHO, Marcílio. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E SEUS IMPACTOS NA EXECUÇÃO FISCAL: O PENSAMENTO RENOVADO DO STJ ATRAVÉS DOS NOVOS PRECEDENTES. www.procuradoria.go.gov.br. Disponível em: https://www.procuradoria.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/ arquivos/2017-07/20---recuperaCAo-judicial-e-seus-impactos-na-execuCAo-fiscal---o-pensamento-renovado-do-stj-atravEs-dos-novos-precedentes.pdf. Acesso em: 1 fev. 2023

DI CREDDO, Raquel de Naday;. O pagamento de tributos e a justiça fiscal. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https:// www.pge.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2019-10/2012-08Artigo_7_O_pagamento_de_tributos.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2023

DO VAL, Isabela. Parcelamento Do Crédito Tributário Na Recuperação Judicial. Jusbrasil, [S. l.], p. 1-1, 2 fev. 2018. Disponível em: https://belinhadoval.jusbrasil.com.br/artigos/487021170/parcelamento-do-credito-tributario-na-recuperacao-judicial. Acesso em: 1 fev. 2023.

FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/222/edicao-1/funcao-social-da-empresa

SANDRI, Marcos Paulo. Penhora de bens no processo de execução fiscal. In Execução Fiscal Aplicada: Análise pragmática do processo de execução fiscal. Coordenador João Aurino de Melo Filho. Salvador: Jus Podivm, 2015.

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caPítulo 10

o Preço Das obras Públicas nas contratações FinanciaDas com recursos internacionais

1. INTRODUÇÃO

A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, Lei Geral de Licitações e Contratos, tratou de forma específica as licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, de tal forma que admite, o que consta no § 3º do art. 1º do referido Diploma Legal condições diferentes daquelas previstas quando a licitação e contratação é realizada com recursos oriundos de fontes nacionais.

A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, também dava um tratamento diferenciado quando se trata de recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, porém não da mesma forma. Veja-se o conteúdo da Lei nº 8.666/1993 para esta situação:

Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes.

(...)

§ 5o Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do

financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior.

Para que haja uma comparação, veja-se o que prevê a Lei nº14.133/2021:

§ 3º Nas licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, podem ser admitidas:

I - condições decorrentes de acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República;

II - condições peculiares à seleção e à contratação constantes de normas e procedimentos das agências ou dos organismos, desde que:

a) sejam exigidas para a obtenção do empréstimo ou doação;

b) não conflitem com os princípios constitucionais em vigor;

c) sejam indicadas no respectivo contrato de empréstimo ou doação e tenham sido objeto de parecer favorável do órgão jurídico do contratante do financiamento previamente à celebração do referido contrato;

A questão que surge como de extrema importância é a relativa ao preço das contratações de obras e serviços de engenharia.

A Lei nº 14.133/2021 trata de maneira muito própria e interessante os preços a serem efetivados pela Administração Pública, de modo que estabelece que “valor previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto”.

Quando se trata de obras e serviços de engenharia, é nítida a preocupação com o preço, exigindo inclusive que os parâmetros tenham uma determinada ordem. É o que se verifica no §2º do art. 23:

§ 2º No processo licitatório para contratação de obras e serviços de engenharia, conforme regulamento, o valor estimado, acrescido do percentual de Benefícios e Despesas Indiretas (BDI) de referência e dos Encargos Sociais (ES) cabíveis, será definido por meio da utilização de parâmetros na seguinte ordem:

I - composição de custos unitários menores ou iguais à mediana do item correspondente do Sistema de Custos Referenciais de Obras (Sicro), para serviços e obras de infraestrutura de transportes, ou do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices de Construção Civil (Sinapi), para as demais obras e serviços de engenharia;

II - utilização de dados de pesquisa publicada em mídia especializada, de tabela de referência formalmente aprovada pelo Poder Executivo federal e de sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo, desde que contenham a data e a hora de acesso;

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 212

III - contratações similares feitas pela Administração Pública, em execução ou concluídas no período de 1 (um) ano anterior à data da pesquisa de preços, observado o índice de atualização de preços correspondente;

IV - pesquisa na base nacional de notas fiscais eletrônicas, na forma de regulamento.

Há uma grande alteração em relação à Lei nº 8.666/1993, a qual permitia a fixação de preços máximos, porém não exigia, enquanto na Lei nº 14.133/2021, como se se denota no inciso III, do art. 59, o preço estimado é o preço máximo aceitável para a contratação, tendo em vista que serão desclassificadas as propostas que permaneçam acima do orçamento estimado para a contratação. Portanto, com base na nova Lei de Licitações e Contratos, deferente do aceito durante a vigência da Lei nº 8.666/1993, toda proposta que estiver acima do preço estimado deverá levar à desclassificação do proponente.

A partir daí surge a importante questão: a Lei nº14.133/2021 ao tratar de forma específica as licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, autoriza a contratação com preços acima do estimado?

É o que se discutirá a seguir.

2. DA INAFASTABILIDADE DOS PRINCÍPIOS

Como já colacionado anteriormente, podem ser admitidas condições peculiares à seleção e à contratação constantes de normas e procedimentos das agências ou dos organismos, desde que não conflitem com os princípios constitucionais em vigor (alínea “b”, do inciso II, do § 3º, do art.1º, da Lei nº14.133/2021).

Não poderia se imaginar que a Lei trilhasse outro caminho, pois princípio, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, “é mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhes a tônica que lhe dá sentido harmônico”.

Sem sombra de dúvidas as licitações e contratações que envolvam os recursos internacionais aqui delineados admitem condições peculiares, porém, sem com isso sejam desconsiderados os princípios constitucionais e aqueles insculpidos no art. 5º da Lei nº 14.133/2021:

Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação

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ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Ronny Charles Lopes Torres é enfático ao defender que

... a origem externa dos recursos não serve como pálio, desculpa ou justificativa para contratações desastrosas ou desnecessárias, sobretudo nas hipótese de financiamento, em que há sim uma oneração dos cofres públicos, embora o pagamento seja postergado ao momento da quitação do empréstimo ... O TCU já advertiu que a aplicação dos normativos estrangeiros não pode conspurcar os princípios fundamentais da Constituição.1

Marçal Justen Filho, em sentido semelhante assim se pronunciou sobre o tema:

Tenha-se em vista que a obtenção dos recursos de origem estrangeira não autoriza ignorar a ordem jurídica interna, especialmente no tocante a princípios fundamentais consagrados na Constituição. Nem se pode suprimir a independência nacional, a pretexto de captar recursos no estrangeiro, nem cabe imaginar que a origem dos recursos afastaria o princípio do Estado de Direito. Ou seja, a atividade administrativa do Estado continua a submeter-se a princípios fundamentais, mesmo quando envolver a aplicação de recursos provenientes do estrangeiro.2

O Tribunal de Contas da União estabelece de forma bastante interessante alguns requisitos mínimos à realização de licitações para execução de obras custeadas com recursos de agência oficial de cooperação estrangeira, ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, especialmente em relação à formação de preço:

... ao realizar obras financiadas ou garantidas com recursos públicos federais, na condição de mutuário de empréstimo obtido junto a organismo financeiro multilateral de que o Brasil faça parte, insira nos editais de licitação cláusulas que prevejam”: divulgação prévia dos orçamentos-base para os licitantes, expressos por meio de planilhas com a estimativa das quantidades e dos preços unitários; critérios de reajuste contratual; vedação ao adiantamento de pagamentos; critérios de aceitabilidade dos preços unitários e global; interposição

1 TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. 12 ed. Ver., ampl. E atual. – São Paulo: Ed. Juspodium, 2021. pag. 68.

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Editora Dialética, 2010, p. 675.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 215 de recursos, pelos licitantes, contra os atos da Administração; vedação do estabelecimento de preços acima dos praticados pela mediana do Sistema Sinapi.3 (sem grifo no original)

Em Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade, de relatoria do Ministro Celso de Melo, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou no seguinte sentido:

SUBORDINAÇÃO NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em consequência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política.4

Há um equívoco em se interpretar que quando se licita e se contrata com recursos oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte não há limitação para os valores a serem pagos pela Administração Pública brasileira. Nessas licitações e contratações podem ser admitidas a aplicação de normas daquelas entidades, porém essas licitações e contratos devem se subordinar à autoridade normativa da Constituição da República brasileira.

3. DO CONCEITO DE PREÇO DE MERCADO

Conforme BONATTO (2018), preço de mercado para o nicho específico da construção civil é um conceito econômico que se refere ao preço a que determinado bem ou serviços é oferecido ou comprado, isto é, o preço que o mercado atribui a um determinado bem, obra ou serviço.

Quando se trata de obra ou serviço de engenharia o preço é dado pela somatória dos custos diretos com o BDI – Bônus e Despesas Indiretas5. Neste

3 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1347/2010-Plenário, TC-010.801/2009-9, rel. Ministro Substituto Marcos Bemquerer Costa.

4 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1480 MC / DF - Distrito Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator(a): Min. Celso de Mello. Julgamento: 04/09/1997 Publicação: 18/05/2001. Órgão julgador: Tribunal Pleno

5 BDI – Bonificações e Despesas Indiretas, que foi definido pelo TCU, na Decisão 255/1999-Primeira Câmara, como “um percentual aplicado sobre o custo para chegar ao preço de venda a ser apresentado ao cliente”. Com base nesse conceito, a equação abaixo é utilizada para calcular o preço de venda: PV = CD x (1 + BDI)

Em que PV é o preço de venda e CD representa o custo direto da obra.

216

caso, geralmente é estabelecido, por intermédio de pesquisa de mercado, um preço global de referência, o qual é o valor do custo global de referência acrescido do Valor de BDI.

O Custo global de referência é o valor resultante do somatório dos custos totais de referência de todos os serviços necessários à plena execução da obra ou serviço de engenharia, sendo estes resultados de pesquisa no mercado próprio, no caso, da construção civil.

Os preços de mercado são verificados, sempre, através de pesquisa com a metodologia eleita pela instituição pesquisadora. Lembrando que as tabelas de referência que contém os custos para os serviços de engenharia são fruto de pesquisa de mercado, portanto, refletem os preços de mercado se somados com o BDI relativo ao empreendimento que está sendo orçado.

A União utiliza como referência o Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (SINAPI), produzida a partir de pesquisas feitas pelo IBGE e compartilhado com a Caixa Econômica Federal6 ou o Sistema de Custos Rodoviários (Sicro), do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Essas tabelas são de utilização obrigatória para as obras realizadas com recursos da União, conforme o já citado § 2º do art. 23 da Lei nº 14.133/2021.

A gestão do SINAPI é compartilhada entre Caixa e IBGE. A Caixa é responsável pela base técnica de engenharia (especificação de insumos, composições de serviços e orçamentos de referência) e pelo processamento de dados, e o IBGE, pela pesquisa mensal de preço, tratamento dos dados e formação dos índices. A manutenção das referências do SINAPI pela Caixa é realizada conforme Metodologias e Conceitos.

Os custos são coletados mensalmente, através de pesquisa no mercado, pelo IBGE e os valores (medianos) fornecidos à Caixa. Os insumos estão em permanente manutenção pela Caixa e IBGE, visando manter as descrições atualizadas e adequadas, além da criação de novos insumos e a desativação de insumos obsoletos determinadas pela evolução dos processos construtivos, conforme atualização das composições de serviços do Banco Referencial.

O Decreto 7.983/2013 dispõe que o preço global de referência será o resultante do custo global de referência acrescido do valor correspondente ao BDI, que deverá evidenciar em sua composição, no mínimo: (i) a taxa de rateio da administração central; (ii) percentuais de tributos incidentes sobre o preço do serviço, excluídos aqueles de natureza direta e personalística que oneram o contratado; (iii) taxa de risco, seguro e garantia do empreendimento; e (iv) taxa de remuneração do construtor. In. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Orientações Para Elaboração de Planilhas Orçamentárias de Obras Públicas. Brasília, 2014.

6 A Caixa é responsável pela base técnica de engenharia (especificação de insumos, composições de serviços e orçamentos de referência) e pelo processamento de dados, e o IBGE, pela pesquisa mensal de preço, tratamento dos dados e formação dos índices.

(orgS.)
Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo

Em que pese a possibilidade de se obter o preço de mercado por meios diversos dos apresentados pelo IBGE e pela Caixa Econômica Federal, a Tabela SINAPI está entre os meios possíveis e aceitáveis de obtê-lo. Evidentemente, qualquer outra metodologia dependerá de pesquisa de mercado. Porém, destacamos, para o julgamento da melhor proposta cabe ao pregoeiro ou o agente de contratação ou, ainda, a comissão de contratação, conforme o caso, definir se os preços unitários e global são de mercado, a partir do referencial eleito pelos mesmos.

Para isso poderão se valer do apoio técnico dos setores competentes da entidade ou órgão licitante.

O preço de mercado para as licitações de obras públicas deve ser dado, de acordo com o que exige o art. 23 da Lei Geral de Licitações e Contratos, isto é, como regra, com base na tabela referencial adotada pelo órgão ou entidade contratante que, no caso da União e nas obras financiadas pela União, é a Tabela SINAPI, ou Sicro para obras rodoviárias. Se a obra é realizada com recursos federais.

Assim, os custos referenciais representados na Tabela SINAPI, acrescidos do BDI, exprimem, como regra, a estimativa dos preços medianos vigentes no mercado para as obras e serviços de engenharia e, portanto, servem de parâmetro para análise das planilhas orçamentárias trazidas pelas licitantes após a fase de lances das licitações realizadas pela Administração Pública, independentemente se a obra é executada com recursos próprios ou de outro ente por meio de convênio ou, ainda, com recursos oriundos de empréstimos de organismos internacionais.

Não será a origem dos recursos financeiros que irá determinar o valor a ser pago pela execução de uma obra pública. A origem dos recursos financeiros, no caso provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, em nada interfere para que se aceite preços superiores àqueles que o órgão/entidade paga por obra de mesma tipologia e complexidade quando financiada som recurso de outra origem, do próprio tesouro ou de outro ente, por convênio.

Admitir preços superiores ao estimado em obras com recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, caracteriza sobrepreço e, como consequência, uma vez liquidado e pago, configura o superfaturamento.

3.1. PREÇO DE MERCADO UNITÁRIO E GLOBAL

Após a compreensão do que seja preço de mercado, ainda resta analisar a respeitos preço de mercado unitário e global, tendo em vista a possibilidade

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 217

de repercussão no valor global das obras públicas e, especialmente, quando se trata de prelo unitário, nos malfadados jogos de planilha.

O custo total de referência do serviço é o valor resultante da multiplicação do quantitativo do serviço previsto no orçamento de referência por seu custo unitário de referência; e o custo unitário de referência é o valor unitário para execução de uma unidade de medida do serviço previsto no orçamento de referência e obtido com base nos sistemas de referência de custos ou pesquisa de mercado. Assim, a planilha orçamentária reflete a somatória dos custos unitários de todos os serviços que nela constam, acrescida do BDI para a formação do preço global.

O tema Jogo de Planilhas, ou Jogo de Preços, é um artifício em que os proponentes manipulam os preços unitários da planilha orçamentária com o intuito de maximizar os ganhos. É importante a existência, no sentido de evitar essa distorção, prever-se no instrumento convocatório da licitação critério de aceitabilidade de preços unitários, evitando propostas com sobrepreços unitários, o que nem sempre acontece, além, evidentemente, de projetos bem elaborados, com todos os detalhes necessários para a execução do objeto.

O jogo de planilha, também conhecido por jogo de preços, é um artifício utilizado por licitantes que a partir de projetos básicos deficitários e/ou por informações privilegiadas, conseguem saber antecipadamente quais os serviços que terão o quantitativo aumentado, diminuído ou suprimido ao longo da execução da obra a ser licitada e manipulam os custos unitários de suas propostas, atribuindo custos unitários elevados para os itens que terão o seu quantitativo aumentado e custos unitários diminutos nos serviços cujo quantitativo será diminuído ou suprimido. Com isso, vencem a licitação por conseguirem um valor global abaixo dos concorrentes, graças aos custos unitários diminutos que não serão executados. Assim, após as alterações contratuais já previstas pelo vencedor do certame no momento da elaboração da proposta, o valor global do objeto contratual passa a encarecer em relação ao seu valor de mercado, podendo tornar-se a proposta mais desvantajosa para a Administração entre as demais da licitação. Em outras palavras, o jogo de planilha ocorre quando uma proposta orçamentária contém itens com valores acima e abaixo do preço de mercado simultaneamente, que no somatório da planilha se compensam, totalizando um valor global abaixo do valor de mercado, atendendo momentaneamente ao interesse público. Porém, essa proposta pode se tornar onerosa para o contratante caso ocorram modificações contratuais de quantitativo que aumentem os itens supervalorizados e diminuam os itens subvalorizados, fazendo com que os itens com sobrepreço prevaleçam em relação à totalidade da proposta, desequilibrando as suas condições originais, fazendo com que o valor global da obra contratada passe a ficar com valor global acima do de mercado concorrencial, perdendo-se a vantagem ofertada originalmente.7

7 CAMPITELI, Marcus Vinicius. Medidas para Evitar o Superfaturamento Decorrente dos “Jogos de Planilha” Em Obras Públicas. Universidade de Brasília. 2006.

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Portanto, o jogo de planilha acarreta, quando diante de aditivo contratual com acréscimo e/ou supressão de serviços, no superfaturamento dos contratos de obras e serviços de engenharia, de forma que lesa os cofres públicos, além de prejudicar as empresas não vencedoras do pleito licitatório, em especial aquelas que não ofertaram preços utilizando deste vil artifício.

A ausência de critério e aceitabilidade dos preços possibilita o jogo de planilhas nas propostas orçamentárias dos licitantes. Os preços unitários utilizados como parâmetro para os critérios de seleção devem ter como limite máximo os preços médios do mercado, haja vista, que em tese, os preços buscados pela Administração são os de mercado concorrencial resultantes de cotação e, portanto, tendem a ser abaixo da média, do contrário não há porque se realizar licitação. 8

Uma vez discorrido a respeito dos conceitos de preço de mercado, planilha orçamentária, custo unitário e jogo de planilhas, passamos, com base nesses conceitos a discutir se é necessário respeitar o preço de mercado unitário, além do global.

Lembremos antes que nos editais para a contratação de obras ou serviços de engenharia financiados por organismos internacionais, a exemplo do BIRD, após o(a) pregoeiro(a) ou o(a) agente de contratação, verificar qual empresa ofertou o menor preço, esta deverá apresentar a planilha orçamentária com o preço global proposto.

Acontece que ao receber a planilha orçamentária é possível que o preço global esteja dentro do aceitável pelo mercado, porém alguns preços unitários podem ser superiores. Parece-nos indiscutível que exigir que a empresa adeque seus preços unitários aos de mercado, sem alterar o preço global, o quer nem sequer se caracteriza como uma negociação.

Se a Administração não exigir a readequação após receber a apresentação da planilha com a composição dos preços, tal qual exigido no Edital Padrão do organismo internacional, BIRD, por exemplo,9 estará aceitando qualquer valor para os preços unitários dos serviços constantes na planilha orçamentária encaminhada pelo ofertante do menor preço global. Seria concluir que a aceitação deve haver mesmo que alguns itens tenham valores superiores aos de mercado. O procedimento explanado implicaria a aceitação de manipulação dos preços unitários por parte dos proponentes no sentido de buscar auferir lucros incompatíveis com o mercado, uma vez que estaríamos diante da total inexistência de critérios de aceitabilidade de preços unitários. Trata-se de escancarar

8 Idem

9 21.2. (c) No caso de aquisição de Bens ou contratação de Serviços Correlatos em que se exija a apresentação de planilha de composição de preços, esta deverá ser encaminhada por meio eletrônico, ao endereço indicado na FDE, com os respectivos valores readequados ao lance vencedor, no mesmo prazo das IAL 21.2.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 219

220 a porta para a efetivação de jogo de planilha. É fácil de deduzir, quase que automaticamente, que haveria a caracterização, a princípio do sobrepreço e, em seguida, após a liquidação referente àqueles serviços, do superfaturamento. Nenhum sobrepreço unitário é aceitável nos serviços constantes do orçamento da licitação, ainda que a planilha orçamentária apresente preço global inferior aos referenciais adotados pelo TCU.10

Deve ser levado em conta a possibilidade de os proponentes saberem antecipadamente, ou negociar a posteriori, os serviços que terão o quantitativo aumentado, diminuído ou suprimido durante execução da obra e/ou serviços de engenharia.

Não há coerência imaginar que a Administração, mesmo diante dos óbices legais, da vasta jurisprudência das cortes de contas, onde é terminantemente proibido o jogo de planilhas permitisse, quando se tratasse de recursos provindo de empréstimos oriundos de organismos internacionais, institutos espúrios que facilitam a corrupção nos contratos de obras públicas.

Da mesma forma, não se coaduna com as diretrizes do Banco Mundial, por exemplo, que exige que tanto os contratantes como os contratados, a observância dos mais elevados padrões de ética durante a licitação e execução desses contratos.

Essas obras e/ou serviços de engenharia, com preços unitários acima dos preços de mercado, e quando houvesse aditamento do contrato em relação a esses mesmos serviços, estariam, definitivamente, superfaturadas. Aliás, da mesma forma que entende o Tribunal de Contas da União.11 Tal proposta poderia dar causa, havendo aditivo12 em relação àqueles serviços, primeiro ao sobrepreço e depois ao superfaturamento. O resultado seria o de um valor global da obra contratada acima do de mercado concorrencial, perdendo-se a vantagem ofertada originalmente.

Deve ser observado que o BIRD, por exemplo, e isto consta nas “Diretrizes para Aquisições e Bens, Obras e Serviços Técnicos Financiados por Empréstimos do BIRD e Créditos & Doações da AID, pelos Mutuários do Banco Mundial”, homenageia os preços de mercado e, inclusive, “mesmo quando for enviada somente uma proposta, o processo licitatório poderá ser considerado válido se a concorrência tiver sido satisfatoriamente divulgada, os critérios

10 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 3473/2014-Plenário, TC 017.130/2014-0, rel. Ministro Bruno Dantas, 3.12.2014.

11 “Por outro lado, podem existir superestimativas de custos, seja nos quantitativos de serviços ou nos respectivos valores unitários, originando o surgimento de sobrepreço ou de superfaturamento no contrato, em suas mais variadas formas”. In. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Orientações Para Elaboração de Planilhas Orçamentárias de Obras Públicas . Brasília, 2014.

12 É possível a alteração unilateral do contrato quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição de seu objeto.

Luiz Henrique
/
aLcantara
(orgS.)
Sormani BarBugiani
Fernando
caSteLo

de qualificação não tiverem sido indevidamente restritivos e os preços forem razoáveis em comparação aos valores de mercado. (Item 2.61).

Não se discute o preço global e nem se defende que ele seja menor que o valor proposto durante a fase de lances. O que se sustenta é a necessidade da readequação da planilha orçamentária que, entenda-se, em caso de possuir preços unitários diversos dos aceitáveis como preço de mercado, estará cometendo evidente erro, pois é exigência que seus preços sejam de mercado.

Não se cogita em alterar a proposta. A proposta é realizada em preço global, e este é que não deve ser alterado se retratar o mercado.

Repise-se que a proposta não é feita por meio dos preços unitários, mas em preço global. Ao se readequar preços unitários ao mercado não se está alterando o lance final, pois neste momento sequer havia preços unitários ainda. Quando a planilha orçamentária é apresentada não é mais possível efetuar qualquer lance. Esta fase de lance está encerrada. Os preços unitários são apresentados somente na fase de habilitação. Quando necessária sua readequação não se cogita que seja alterado o preço global, aquele ofertado no lance final pelo vencedor. O preço global permanece o mesmo, não se negocia nada.

Assim, no caso em que a empresa oferta o menor preço global, inferior ao estimado pela Administração, porém os valores unitários dos serviços variam para mais ou para menos dos preços referenciais adotados pela Administração Pública do Estado, abre-se um poder-dever da Administração verificar se os preços ofertados pela licitante na Planilha Orçamentária são preços de mercado, o que pode ser feito com base na Tabela Referencial oficial do órgão ou entidade licitante, ou por outro meio idôneo eleito pelos julgadores do pleito licitatório.

Se, em outra situação, a empresa oferta o menor preço global, sendo este superior ao estimado pela Administração, e os valores unitários dos serviços variam para mais ou para menos dos preços referenciais adotados pela Administração Pública do Estado. A própria discussão anterior nos leva a concluir que em caso de preço global que extrapole os preços de mercado também se estará diante de preço excessivo, o que pode, e deve, ser aferido. Tal aferição é possível que seja realizada por meio de valores referenciados em tabelas públicas, a exemplo da Tabela SINAPI.

REFERÊNCIAS

BONATTO, Hamilton. Governança e Gestão de Obras Públicas: do planejamento à pós-ocupação. Belo Horizonte: Fórum, 2018. pag.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1480 MC / DF - Distrito Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator(a): Min. Celso de Mello. Julgamento: 04/09/1997 Publicação: 18/05/2001. Órgão julgador: Tribunal Pleno

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1347/2010-Plenário, TC-010.801/2009-9, rel. Ministro Substituto Marcos Bemquerer Costa.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 221

222

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 3473/2014-Plenário, TC 017.130/2014-0, rel. Ministro Bruno Dantas, 3.12.2014.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Orientações Para Elaboração de Planilhas Orçamentárias de Obras Públicas. Brasília, 2014.

CAMPITELI, Marcus Vinicius. Medidas para Evitar o Superfaturamento Decorrente dos “Jogos de Planilha” Em Obras Públicas. Universidade de Brasília. 2006.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Editora Dialética, 2010, p. 675.

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. 12 ed. Ver., ampl. E atual. – São Paulo: Ed. Juspodium, 2021. pag. 68.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.)

caPítulo 11

tema 1157/STF – vínculos Precários anteriores à Posse no cargo Público eFetivo –(im)PossibiliDaDe De eFeitos Funcionais

Isabela Cristine Martins Ramos Karina Locks Passos

1. INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar Agravo no Recurso Extraordinário 1.306.505 com repercussão geral - TEMA 1157 - fixou a tese seguinte:

É vedado o reenquadramento, em novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração, de servidor admitido sem concurso público antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, mesmo que beneficiado pela estabilidade excepcional do artigo 19 do ADCT, haja vista que esta regra transitória não prevê o direito à efetividade, nos termos do artigo 37, II, da Constituição Federal e decisão proferida na ADI 3609.1

O escopo deste artigo é, partindo da tese fixada no TEMA 1157/STF, demonstrar a indelével ligação entre os direitos estatutários e o cargo público de provimento efetivo, e se seria possível conferir efeitos funcionais a período anterior ao ingresso no cargo público de provimento efetivo, em que o atual servidor efetivo tenha prestado serviços através de empresa terceirizada ou na forma de contratação temporária após aprovação em teste seletivo simplificado.

1 ARE 1306505, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 28/03/2022, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-065 DIVULG 01-04-2022 PUBLIC 04-04-2022.

2. DO PROVIMENTO EM CARGO PÚBLICO

MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO leciona que provimento “é o ato do poder público que designa para ocupar cargo, emprego ou função a pessoa física que preencha os requisitos legais.”2

O provimento pode ser originário ou derivado, sendo que o provimento originário “é o que vincula inicialmente o servidor no cargo, emprego ou função; pode ser tanto a nomeação como a contratação, dependendo do regime jurídico de que se trate. “3

A propósito, convém lembrar que o artigo 37, II da CF dispõe que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos”.

Já o provimento derivado é o preenchimento de cargo decorrente de vínculo anterior entre o servidor e a administração. Conforme apontam os professores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, citando a lição do eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, o provimento derivado pode ser classificado em vertical, horizontal ou por reingresso:

Provimento derivado vertical é aquele em que o servidor é guindado para o cargo mais elevado. Efetua-se através de promoção. (...)

Provimento derivado horizontal é aquele em que o servidor não ascende, nem é rebaixado em sua posição funcional. Com a extinção legal da transferência, o único provimento derivado horizontal é a readaptação. (...)

O provimento derivado por reingresso é aquele em que o servidor retorna ao serviço ativo do qual estava desligado. Compreende as seguintes modalidades:

a) reversão; b) aproveitamento; c) reintegração; e d) recondução. 4

É importante asseverar que o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento na Súmula Vinculante nº 43 no sentido de que “é inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.”

Por meio deste entendimento sumular, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional o provimento derivado que implique investidura do servidor em cargo diverso daquele para o qual originariamente prestou concurso público, fixando a seguinte tese no TEMA 1128 em repercussão geral:

“EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMPREGADO DE

2 Direito administrativo – 34. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021, pg. 756.

3 Obra já citada Maria Sylvia Zanella di Pietro.

4 Direito administrativo descomplicado – 31. Ed. – Rio de Janeiro: Método, 2022, pág. 377.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 224

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 225 SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 55/2017 DO ESTADO DO AMAPÁ. TRANSPOSIÇÃO OU APROVEITAMENTO NO QUADRO DE PESSOAL DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA ESTADUAL MEDIANTE TERMO DE OPÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE . AUSÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO . ENUNCIADO VINCULANTE N. 43 DA SÚMULA.

1. Reconhecida a repercussão geral de questão constitucional, não há falar em desistência de recurso ou de ação (RE 693.456 RG).

2. Nos termos da Constituição (art. 37, II), “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

3. Está em desacordo com o princípio do concurso público norma que autoriza transposição, absorção ou aproveitamento de servidor em outro órgão ou entidade da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, sem a prévia aprovação em concurso público.

4. Sendo a declaração de inconstitucionalidade causa de pedir em vez de pedido formulado em mandado de segurança, inexiste obstáculo à declaração incidental da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 55/2017, que acrescentou o art. 65-A à Constituição do Estado do Amapá.

5. Recurso extraordinário interposto pelo Estado do Amapá a que se dá provimento para declarar, incidentalmente, inconstitucionais o art. 65-A da Constituição do Amapá e, por arrastamento, a Lei n. 2.281/2017 e o Decreto n. 286/2018 do mesmo Estado, reformando, em consequência, o acórdão recorrido, para denegar a ordem mandamental.

6. O Plenário adotou a seguinte tese: “É inconstitucional dispositivo de Constituição estadual que permite transposição, absorção ou aproveitamento de empregado público no quadro estatutário da Administração Pública estadual sem prévia aprovação em concurso público, nos termos do art. 37, II, da Constituição Federal.”

Tese

É inconstitucional dispositivo de Constituição estadual que permite transposição, absorção ou aproveitamento de empregado público no quadro estatutário da Administração Pública estadual sem prévia aprovação em concurso público, nos termos do art. 37, II, da Constituição Federal. g.n.5

Desta forma, em prestígio ao art. 37, II, da Constituição Federal e à Súmula Vinculante nº 43 do STF, o provimento originário em cargo público efetivo somente é legítimo se resultar de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos.

5 RE 1232885, RELATOR MINISTRO NUNES MARQUES, TRIBUNAL PLENO, julgamento 13.04.2023, publicado 02.05.2023.

3. DOS REFLEXOS FUNCIONAIS DE VÍNCULOS CELETISTAS E/OU TEMPORÁRIOS NO HISTÓRICO DO SERVIDOR

Como dito, a obrigatoriedade do concurso público abrange a nomeação para cargos ou empregos públicos de provimento efetivo, excluindo-se, portanto, os cargos de provimento em comissão que são de livre nomeação e exoneração, e as contratações por prazo determinado para atender necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, da Constituição Federal).

Não há efetividade no cargo sem a anterior aprovação em concurso público.

A efetividade no cargo público encontra-se ligada às vantagens funcionais próprias da carreira estatutária como, por exemplo, as progressões, promoções, reenquadramentos e abono permanência. Essa plêiade de direitos funcionais surge quando da posse do servidor no cargo público de provimento efetivo.

Aliás, a pretensão de atribuir ao vínculo celetista os mesmos direitos inerentes ao cargo efetivo foi totalmente rechaçada pelo STF no julgamento da ADI 1.695/PR, cuja ementa segue abaixo transcrita:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS. TEMPO DE SERVIÇO. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA RESERVA DE INICIATIVA. LEI 10219/92. REGIME CELETISTA. EQUIPARAÇÃO AOS EFETIVOS.

1. Regime Jurídico. Servidor Público Estadual. Competência Privativa do Chefe do Poder Executivo. Ofende o princípio da reserva de iniciativa a eventual ampliação de incidência de vantagens funcionais sem a participação ativa do Poder competente.

2. Regime celetista. Equiparação. Os servidores oriundos do regime celetista, mesmo considerados estáveis no serviço público, enquanto nesta situação, não se equiparam aos efetivos, no que concerne aos efeitos legais que dependam da efetividade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente em parte.6 Grifos nossos.

Decorrência lógica do princípio da obrigatoriedade da aprovação em concurso público para provimento de cargo efetivo, é que período em que –eventualmente – o servidor tenha prestado serviços por meio de contratação temporária ou por empresa terceirizada não podem ter o status de serviço público ou, em outras palavras, não se pode atribuir a esses períodos qualquer qualificação própria do período laborado no cargo efetivo.

6 ADI 1695, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2004, DJ 28-05-2004 PP-00004 EMENT VOL-02153-02 PP-00225.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 226

Não é possível visualizar uma linha de continuidade, para fins de atribuição de vantagens funcionais, entre o período como terceirizado ou contratado temporário e o período do cargo efetivo. O único efeito que se pode conferir a estes períodos anteriores ao do cargo público efetivo é o previsto no art. 201, § 9º, da Constituição Federal que assegura a contagem recíproca de tempo de contribuição para fins de aposentadoria.

Quanto à mão de obra terceirizada, é importante registrar que o Tribunal Superior do Trabalho tem entendimento fixado no sentido de que as contratações por empresas terceirizadas ou interpostas não geram vínculo de emprego para a Administração Pública, nos termos da Súmula 313 do TST:

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011

I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).

II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

V – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

Trabalhadores terceirizados têm vínculo contratual celetista com empresas privadas, cabendo à pessoa jurídica de direito público tomadora de serviços apenas a responsabilidade subsidiária pelo adimplemento de verbas trabalhistas. Assim - repise-se - o tempo de serviço prestado em empresas terceirizadas só pode ser averbado para fins de aposentadoria, diante do direito à contagem recíproca

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do tempo de contribuição, mas jamais poderá gerar efeitos funcionais prospectivos no histórico funcional do servidor, hoje, detentor de cargo efetivo.

Os agentes públicos contratados de forma temporária (art. 37, IX, da Constituição Federal) estão submetidos a contratação em regime especial, não são regidos pelas regras da CLT e tampouco pelos estatutos próprios dos titulares de cargos públicos efetivos. Acerca dessa modalidade de contratação, vale transcrever novamente a doutrina de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo. op. cit. :

O pessoal contratado com base no inciso IX do art. 37 do Texto Magno não ocupa cargo público. Eles não estão sujeitos ao regime estatutário a que se submetem os servidores públicos titulares de cargos efetivos e os servidores públicos ocupantes de cargos em comissão.

Embora os agentes públicos temporários vinculem-se à administração pública por contrato, não é este o contrato de trabalho propriamente dito, de que trata a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Vale frisar: o regime jurídico dos agentes públicos contratados por tempo determinado não é trabalhista, isto é, eles não são empregados celetistas, não têm emprego público. Todavia, não podem tais agentes, tampouco, ser enquadrados como servidores públicos estatutários típicos, pois não têm cargo público, embora estejam vinculados à administração pública por um regime funcional de direito público, de natureza jurídico-administrativa.7

Nesta linha de raciocínio o STF já assentou que servidores temporários não possuem direito a 13º salário e férias, salvo se previsto em lei ou houver desvirtuamento da contratação:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. DIREITO A DÉCIMO TERCEIRO SALÁRIO E FÉRIAS REMUNERADAS, ACRESCIDAS DO TERÇO CONSTITUCIONAL. 1. A contratação de servidores públicos por tempo determinado, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, prevista no art. 37, IX, da Constituição, submete-se ao regime jurídico-administrativo, e não à Consolidação das Leis do Trabalho. 2. O direito a décimo terceiro salário e a férias remuneradas, acrescidas do terço constitucional, não decorre automaticamente da contratação temporária, demandando previsão legal ou contratual expressa a respeito. 3. No caso concreto, o vínculo do servidor temporário perdurou de 10 de dezembro de 2003 a 23 de março de 2009. 4. Trata-se de notório desvirtuamento da finalidade da contratação temporária, que tem por consequência o reconhecimento do direito ao 13º salário e às férias remuneradas, acrescidas do terço. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento.

7 op. cit. pág. 313.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.)

Tese de repercussão geral: Servidores temporários não fazem jus a décimo terceiro salário e férias remuneradas acrescidas do terço constitucional, salvo (I) expressa previsão legal e/ou contratual em sentido contrário, ou (II) comprovado desvirtuamento da contratação temporária pela Administração Pública, em razão de sucessivas e reiteradas renovações e/ou prorrogações.8

O art. 349 da Lei/PR nº 6.174/1970 (Estatuto dos Servidores Públicos do Estado do Paraná) apenas prevê a possibilidade de contratação de serviço temporário, no entanto, tal situação não implica em vínculo, que é, inclusive, vedado pelo art. 350, na sequência:

Art. 350. A situação de pessoal contratado não confere direito, nem expectativa de direito de efetivação no serviço público estadual.

Por outro lado, a Lei/PR nº 7.634/82 veda expressamente a contagem do tempo de serviço referente à atividade prestada sob o regime geral de Previdência Social (que é o caso do serviço prestado em regime especial) para a concessão de outras vantagens que não a aposentadoria:

Art. 1º. O tempo de serviço prestado em atividade regida pela Lei Federal nº 3.807, de 26 de agosto de 1960 - Lei Orgânica da Previdência Social será computado, para efeito de aposentadoria por invalidez, por tempo de serviço e compulsória, em favor do funcionário público estadual, inclusive do magistrado, após completar 5 (cinco) anos de efetivo serviço prestado ao Estado do Paraná.

(...)

Art. 3º. O tempo de serviço computado na forma desta lei, não será levado em conta para concessão de vantagens.

Destarte, para aqueles servidores que, anteriormente ao ingresso no cargo efetivo, foram contratados temporariamente por processo seletivo simplificado, não é possível conferir ao tempo da contratação temporária status próprio ao tempo como titular de cargo efetivo, para efeito de obtenção de qualquer tipo de vantagem funcional.

Como se vê, não há qualquer previsão de direito à contagem de tempo de serviço prestado mediante regime especial para fins de concessão de direitos estatutários. Ao contrário, há expressa vedação nesse sentido.

Isso porque, seria incompatível com a natureza temporária da referida função, que objetiva, tão somente, o atendimento excepcional e temporário da

8 RE 1066677, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-165 DIVULG 30-06-2020 PUBLIC 01-07-2020.

direito PúBLico em PerSPectiva
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Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná

Administração Pública, a contagem desse tempo de serviço para todos os fins previstos no Estatuto do Servidor Público do Estado do Paraná.

Por oportuno, citam-se os seguintes precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATAÇÃO PRECÁRIA (TEMPORÁRIA), SEM PRÉVIO CONCURSO PÚBLICO, APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO À EFETIVAÇÃO NO CARGO, A DESPEITO DA PRORROGAÇÃO DOS CONTRATOS. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

I. A Constituição Federal de 1988 prevê as formas de ingresso definitivo no serviço público, dispondo, em seu art. 37, II, que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

II. Como exceção a essa regra, prevê, no inciso IX do mesmo art. 37, que “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. Na hipótese, os impetrantes tinham pleno conhecimento da situação na qual estavam inseridos, durante todo o período em que permaneceram no serviço público, ou seja, de que seus vínculos com a Administração tinham caráter meramente temporário.

III. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que as contratações por tempo determinado, celebradas pela Administração, quando já vigente a CF/88, têm caráter precário e submetem-se à regra do art. 37, IX, da Carta Política. Assim, a existência de prorrogações, ainda que por longo período, não tem o condão de transmudar o vínculo administrativo originário - contrato temporário e por período determinado - em cargo efetivo. Nesse sentido: STJ, AgRg no RMS 42.801/PB, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 18/02/2014; MS 14.849/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, DJe de 05/06/2013; MS 16.753/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 17/08/2012; AgRg no RMS 33.227/PA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 06/12/2011; RMS 30.651/PA, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe de 30/08/2010. IV. Agravo Regimental improvido.9

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO

DE

SEGURANÇA. FUNÇÃO PRECÁRIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. CONTRATO POR TEM-

9 AgRg no RMS n. 45.918/PA, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 27/10/2015, DJe de 10/11/2015.

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Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo

PO DETERMINADO CELEBRADO SOB A ÉGIDE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. ART. 37, IX, DA CF/88. ESTABILIDADE EXCEPCIONAL. ART. 19, ADCT. NÃO APLICAÇÃO. INCIDÊNCIA DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. ART. 40, § 13, CF/88. RECURSO DESPROVIDO.

I - As contratações por tempo determinado celebradas pela Administração quando já vigente a Constituição da República de 1988 têm caráter precário e submetem-se à regra do art. 37, IX, da Carta Política.

II - In casu, a recorrente celebrou contrato administrativo para a função de professora, por tempo determinado, em 02/06/93, solicitando, por outro lado, a dispensa expressa na função de agente administrativo, antes exercida.

III - Não é possível, diante da atual sistemática constitucional, estender a novos contratos temporários celebrados pelos administrados, a estabilização excepcional prevista no art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que se restringe a situações especiais, ocorridas antes da entrada em vigor da CF/88.

IV - O regime próprio de previdência é aplicável apenas aos servidores ocupantes de cargos efetivos. Ao servidor contratado por prazo determinado aplica-se o regime geral da previdência social, nos termos do art. 40, § 13, da Constituição .Recurso ordinário desprovido.10

4. CONCLUSÃO

Sintetizando, pelos fundamentos declinados acima, não é juridicamente possível reconhecer aos servidores públicos hoje titulares de cargo efetivo, que anteriormente ao ingresso em cargo efetivo tenham prestado serviço à empresa terceirizada ou mediante processo seletivo simplificado, a contagem desse tempo para efeitos funcionais; admitindo-se, apenas e tão somente, a contagem recíproca do tempo de contribuição para fins de aposentadoria.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado – 31 ed.– Rio de Janeiro: Método, 2022.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo – 34 ed. – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2021.

10 RMS n. 29.462/PA, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 20/8/2009, DJe de 14/9/2009.

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caPítulo 12

imProbiDaDe aDministrativa, matéria Penal e os tribunais suPeriores

1. INTRODUÇÃO

Em outubro de 2021, com a entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021, as regras aplicáveis aos casos e processos decorrentes da (suposta) prática de atos de improbidade (originalmente definidas pela Lei nº 8.429/1992) foram alteradas, substancialmente. Desde estão, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, predisposta a orientar a intepretação do novo texto legal, vem sendo adaptada. Porém, de forma ainda oscilante.

Até agora, há decisões que terminam por conferir larga operatividade às mudanças implementadas, enquanto outras, restringiram-na. O cenário de instabilidade que a variabilidade jurisprudencial, sozinha, costuma criar, aqui, agrava-se pelo fato de algumas dessas decisões serem conflitantes.

Do que se tem podido observar, a despeito de o ordenamento jurídico brasileiro se encontrar (todo ele) submetido, há mais de trinta anos, aos postulados de uma Constituição de matriz garantista – que tem na pessoa o seu princípio reitor –, muitos operadores do direito continuam se debatendo com reminiscências de um pensamento oitocentista-estatalista. Advertida ou inadvertidamente, muitos ainda seguem manejando com inversão da ordem dos fatores e tratando cidadãos como se súditos fossem do soberano “Estado”; e, além disso, agindo como se divisões organizacionais (artificiais) de esferas de competência processantes e de responsabilização por atos ilícitos pudessem (legitimamente) encobrir a realidade material e autorizar fragmentações (inconcebíveis) de um mesmo poder. Tudo, em última análise, com sacrifício a direitos individuais e à unidade interna do sistema.

De alguma maneira, essas coisas parecem estar na raiz de muitos dos impasses dogmáticos que envolvem matéria de intervenção punitivo-estatal,

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Alice Silveira de Medeiros

bem como de muitos dos dissensos interpretativos – prejudiciais à segurança jurídica – que têm, reiteradamente, culminado na adoção de posições desencontradas e na consolidação de julgados, entre si, desconexos. E isso vêm se fazendo sentir, ultimamente, com as decisões mais atuais do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), atinentes à tutela da probidade, que remetem, em paralelo, a regras do direito penal e às alterações implementadas na LIA pela Lei nº 14.230/2021.

2. ANÁLISE CONCRETA

A (controversa) posição, recentemente firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AREsp nº 18779171, serve de exemplo. O Informativo de Jurisprudência nº 776, divulgado no site oficial do órgão, no último dia 30 de maio2, deu notícia do julgado, sugerindo aderência à linha de entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando da fixação do Tema nº 1.199, no âmbito do ARE 843989, conforme a tese que ficou assentada (“[e]m atenção ao Tema 1199/STF, deve-se conferir interpretação restritiva às hipóteses de aplicação retroativa da Lei n. 14.230/2021, adstringindo-se aos atos ímprobos culposos não transitados em julgado”). Mas não é isso o que o inteiro teor do acórdão – nem mesmo o que essa tese, em si – revela.

A análise, pelo STF, do leading case (ARE 8439893) que resultou na consolidação do Tema de Repercussão Geral nº 1.199, não foi longe ao ponto de abarcar todas as novas disposições, mais benéficas ao acusado, incorporadas pela Lei nº 14.230/2021 à LIA, tampouco encerrou a discussão acerca da (in)viabilidade de retroação de todas elas. As próprias teses, ao final fixadas, assim sinalizam:

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA,

1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 1.877.917/RS. Agravante: Wagner Cecilio da Silva e Movi Med Clínica Especializada EIRELI. Agravado: Ministério Público Federal. Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, Julgamento em 23 mai.2023. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=202101137277>. Acesso em: 21/08/2023.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência nº 776, 30 mai.2023. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/>. Acesso em: 21/08/2023.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo nº 843989. Recorrente: Rosmery Terezinha Cordova. Recorrido: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, Julgamento em 24 fev.2022. Disponível em: <https:// jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/repercussao-geral12362/false>. Acesso em: 21/08/2023.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 234

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 235 em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”.

Não há dúvida de que o STF, com isso, limitou bastante os efeitos que a plena incidência do art. 5º, XL, da CR (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”), poderia alcançar dentro dos processos decorrentes de ações de improbidade, o que já deu margem a críticas. Sobretudo, porque o regime jurídico a que esses casos se submetem é conformado pelos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador – os quais, basicamente, correspondem àqueles em face dos quais a Constituição assegura direitos específicos aos acusados em geral –, restando esse pressuposto, aliás, pacificado após a reforma da LIA, com a inclusão, no art. 1º, do § 4º (“[a]plicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”).

Sem falar que o sentido de “lei penal”, para uma ordem jurídica fundada em valores axiológicos-normativos iguais àqueles consagrados no texto constitucional de 1988, não pode se fechar na literalidade de um termo. Ao contrário, ele (o sentido do texto legal) precisa assumir densidade material4. Especialmente quando se trata da imposição de sanções pessoais – o que pode resultar tanto de condenação em ação penal quanto de improbidade – e de adstringir o exercício da potestade punitiva pelo ente estatal.

O STJ, nada obstante, foi além do que o STF já havia ido. Ao fim e ao cabo, ao resolver o AREsp nº 1877917 (supracitado), o STJ reduziu o espaço de aplicação da regra constitucional em questão a uma única hipótese de incidência, em casos de improbidade. É bem provável, de consequência, que essa discussão ainda ganhe novos desdobramentos. Mesmo porque, num outro julgamento recente de caso análogo – mesmo não envolvendo atos de improbidade –, o próprio STJ entendeu cabível a retroação de lei mais benéfica, na esfera administrativo-sancionatória. Nessa ocasião, defendeu-se, dentre outras coisas, “ser possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio

4 Sobre o mesmo tema: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; SILVEIRA DE MEDEIROS, Alice. O Regime Administrativo-Sancionador e a Retroatividade da Nova Lei de Improbidade. In: ALVES, Adamo Dias; BAHIA, Alexandre; GOMES, David F. L.; PEDRON, Flávio Quinaud; CORBY, Isabela (Coord.). Teoria Crítica da Constituição: constitucionalismo por vir e democracia sem espera (Em homenagem a Marcelo Cattoni). Belo Horizonte: Conhecimento, 2022, p. 29-60.

implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa”. Trata-se do AgInst em REsp nº 20241335, decidido em março de 2023.

Por outro lado, em que pese o STF ter suspendido, no bojo da ADI nº 72366, a eficácia do § 4º, do art. 21, da LIA (com redação dada pela Lei nº 14.230/20217), um dos dispositivos que mais inovou (positivamente) no ordenamento, ampliando a margem de comunicabilidade/repercussão de decisões criminais sobre ações de improbidade referidas aos mesmos fatos, o STJ, na oportunidade em que teve chance de falar sobre o assunto, entendeu, reportando-se à Constituição, que esse ato (de suspensão) não atinge – isto é, não anula – o ne bis in idem.

Tal decisão, também de março de 2023, foi firmada no âmbito de um recurso em Habeas Corpus – o RHC nº 1734488, que versava sobre crimes contra a Administração Pública, logo, matéria penal –; e é emblemática em várias passagens, começando pela afirmação de que “a independência das esferas tem por objetivo o exame particularizado do fato narrado, com base em cada ramo do direito, devendo as consequências cíveis e administrativas ser aferidas pelo juízo cível e as repercussões penais pelo Juízo criminal, dada a especialização de cada esfera”, sob a advertência de que, “[n]o entanto, as consequências jurídicas recaem sobre o mesmo fato”. Na sequência, conclusões de extrema relevância são deduzidas. Dentre elas as seguintes: (i) “[n]essa linha de intelecção, não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento no Recurso Especial nº 2024133/ ES. Agravante: Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT. Agravado: Transportadora Jolivan Ltda. Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, Julgamento em 13 mar.2023. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202200171707&dt_publicacao=16/03/2023>. Acesso em: 21/08/2023.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal . Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7236. Requerente: Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP. Relator Ministro Alexandre de Moraes, Decisão Monocrática, Divulgação em 09 jan.2023. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15355453796&ext=.pdf>. Acesso em: 21/08/2023.

7 “§ 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 173448/DF. Recorrente: Maria Cristina Boner Léo. Recorrido: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, Julgamento em 07 mar.2023. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202203607311&dt_publicacao=13/03/202 >. Acesso em: 21/08/2023.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 237 trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma em atipicidade, ensejadora do trancamento ora visado”; (ii) “[t]rata-se de crime contra a Administração Pública, cuja especificidade recomenda atentar para o que decidido, sobre os fatos, na esfera cível. Ademais, deve se levar em consideração que o art. 21, § 4º, da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei n. 14.230/2021, disciplina que ‘a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)’”; (iii) “[a] suspensão do art. 21, § 4º, da Lei 8.429/1992, na redação dada pela Lei n. 14.230/2021 (ADI 7.236/DF) não atinge a vedação constitucional do ne bis in idem (...) e sem justa causa não há persecução penal”; (iv) “[a]pesar de, pela letra da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa, na hipótese dos autos, em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a justa causa para manutenção da ação penal”.

Esse entendimento do STJ, mais do que alargar a operatividade da Lei nº 14.230/2023, prestigia à racionalidade subjacente a ela – refletida, senão em todos, em boa parte dos seus dispositivos –, empurrando na direção do desenvolvimento de uma dinâmica de atuação das instâncias persecutórias competentes mais integrada e menos propensa a incorrer em bis in idem. Isso significa um grande avanço, muito embora a posição manifestada, em sede liminar, pelo Ministro designado para a relatoria da ADI nº 7236 (recém mencionada), no STF, cause receio. Sim, porque se for avalizada pela maioria dos seus pares, em Plenário, implicará retrocesso9.

9 Nada obstante, a julgar pelo entendimento manifestado pela Segunda Turma do STF (antes até da entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021), na Rcl nº 41.557, decidida sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes – tendo sido apresentado voto dissidente apenas pelo Ministro Edson Fachin –, verifica-se que há boas chances de que isso não aconteça. Sim, porque, discutia-se acerca da relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, em face da vedação ao bis in idem, retirando-se do acórdão que ficou assentado (com base no voto do Ministro Relator), por ex., as seguintes afirmações: “[a] relação entre direito penal e direito administrativo sancionador revela um nódulo problemático do sistema penal com o qual a doutrina especializada vem se ocupando desde o início do século XX, (...). O ponto central de tensão que aqui nos interessa nessa relação, para além de traçar uma diferenciação formal e material entre o ilícito penal e o ilícito administrativo –algo que foi objeto de preocupação da doutrina desde a publicação de Das Verwaltungsstrafrecht, por Goldschmidt, em 1902 – é a limitação do jus puniendi estatal por meio do reconhecimento (1) da proximidade entre as diferentes esferas normativas e (2) da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do direito administrativo sancionador. Nessa linha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, a partir do paradigmático caso Oztürk,

3. ANÁLISE TEÓRICA

Na prática, a nova disposição trazida no § 4º, do art. 21, da LIA, veio a permitir um início de ressignificação para a chamada independência entre as instâncias, não raro, empregada para justificar intoleráveis burlas à vedação ao bis in idem, num flagrante contrassenso. Claro, porque, enquanto ela, a independência entre as instâncias, não passa de uma elaboração teórica de baixa densidade conceitual – por alguns, associada, sem grandes explicações, à doutrina da separação de poderes10 –, a reserva que se lhe opõe (exatamente, a vedação ao bis in idem), com a cobrança da assunção de um sentido adequado à racionalidade da Constituição, não é nada menos do que um direito fundamental constitucionalmente assegurado11.

Por outro lado, não parece que o § 4º, do art. 37, da CR (“os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”), ao discriminar as sanções aplicáveis aos atos de improbidade, tenha, indiretamente, imposto a necessidade de instauração paralela de múltiplos processos12. A concepção de um rito procedimental que canalizasse numa

em 1984, um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. (...). A Constituição Federal anuncia, no art. 37, § 4º, uma noção de independência entre as diferentes esferas sancionadoras: (...). Tal independência, contudo, é complexa e deve ser interpretada como uma independência mitigada, sem ignorar a máxima do ne bis in idem”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 41557/ SP. Reclamante: Fernando Capez. Reclamado: Juiz Federal da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo. Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, Julgamento em 15 dez.2020. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur441745/false>. Acesso em: 21/08/2023).

10 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 781; e OSÓRIO, Fábio Medina. A inter-relação das decisões proferidas nas esferas administrativas, penal e civil no âmbito da improbidade. In: MARQUES, Mauro Campbell (Coord.). Improbidade Administrativa: temas atuais e controvertidos. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 93-112, p. 96.

11 No ano de 1992, o Brasil aderiu ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (conforme Decreto nº 592/1992) e à Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto nº 678/1922), sendo que ambos os diplomas consagram a vedação ao bis in idem. Além disto, o art. 5º, § 2º, da Constituição, preceitua que: “[o]s direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

12 Aliás, é interessante lembrar que até a Emenda nº 00559, discutida em Plenário pela Comissão de Sistematização, em 1º Turno, a redação dessa parte final do dispositivo – nessa altura constante do art. 44, § 3º, – era “sem prejuízo da ação penal correspondente”. Percebeu-se que isso levava a pensar que a todo ato de improbidade corresponderia um tipo penal, o que não era o objetivo. O parecer da Emenda nº 00559, que antecedeu a Emenda nº 02039, por meio da qual a mudança se deu, diz o seguinte, textualmente: “Na verdade, nem todo ato de improbidade é considerado crime, razão pela qual as questões específicas devam ser disciplinadas pela legislação ordinária. O elenco de punições

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 239 única via a persecução de atos de ilicitude compartida – mas em substância identificados –, conduzindo a condenações que englobassem a aplicação de todas as sanções cabíveis, por exemplo, seria, plenamente factível, constitucionalmente falando. Da mesma forma, uma técnica processualística que extraísse proveito de alguma espécie de coordenação entre as instâncias competentes para ingerir sobre os mesmos fatos, sem prejuízo da aplicação das sanções pré-estabelecidas na Constituição, mas sem sobreposição13. Com isso, o ne bis in idem poderia, quiçá, obter até maior concretude, ao passo que a ideia de uma independência entre as instâncias, ocupando um outro espaço de significação, não precisaria, obrigatoriamente, ser descartada.

Basta recordar14 – se for para lhe atrelar à teoria da separação de poderes – que Henry St. John, o Visconde de Bolingbroke, a quem se atribui o pioneirismo na discussão sobre freios e contrapesos (check and balances)15, entendia que interdependência era o pré-requisito da independência16.

Enquanto chefe do partido tory, à época, Bolingbroke liderou um movimento de oposição ao regime de gabinete (ministerial system ou cabinet government) instituído na Inglaterra entre os anos de 1721 e 1745, no governo do

previstas no texto são (sic) suficientemente rigorosas, sua forma e gradação basicamente, foram remetidos à lei” (BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação, 2018. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/35539>. Acesso 21 ago.2023).

13 No mesmo sentido, porém, dentro de uma análise mais voltada à questão da interpretação: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; SILVEIRA DE MEDEIROS, Alice. Interpretação, absolvição criminal e improbidade administrativa. Cadernos de Dereito Actual nº 19. Núm. Ordinario (2022), p. 261-274. Disponível em: <https://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/887>. Acesso em: 21/08/2023.

14 No mesmo sentido: MEDEIROS, Alice Danielle Silveira de. Interdependência das instâncias sancionadoras: a vedação ao bis in idem na tutela da probidade administrativa. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. Curitiba, 2021. 295p.

15 E há razões para crer que Montesquieu também foi influenciado por ele. Segundo Carl Schmitt, “[t] he actual progenitor of the constitutional-theoretical teaching of the balance of powers is Bolingbroke, who propagated the idea of a reciprocal control and balancing, however, only in politically engaged writings and essays, not in a systematic exposition” (SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. Trad. Jeffrey Seitzer. Durham e Londres: Duke University Press, 2008, p. 221). E, como conta M. J. Vile, “Bolingbroke was well acquainted with Montesquieu, and the latter undoubtedly gained much of his knowledge of the separation of powers doctrine from Bolingbroke and his writings” (VILE, M. J. C. Constitutionalism and the separation of powers 2. ed. Indianaplois: Liberty Fund, 1998, p. 79-80).

16 Na década de 1730, ele, o Visconde de Bolinbroke, escreveu três textos, de cuja leitura se retiram as suas teses: A Dissertation upon Parties (1733-34), “On the Spirit of Patriotism” (1736) e The Idea of a Patriot King (1738). (BOLINGBROKE. Political Writings. In: GEUSS, Raymond; SKINNER, Quentin (Ed.). Cambridge Texts in the History of Political Thought. Disponível em: BOLINGBROKE-Political-Writings-by-Henry-Bolingbroke-z-lib.org.pdf. Acesso em: 21/08/2023).

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primeiro-ministro Robert Walpole. Com efeito, apoiado em um discurso que fazia acirrar a rivalidade entre os partidos parlamentares em evidência naquela altura (whigs e tories) – e se beneficiando disso –, Walpole implementou um modelo de governabilidade clientelista e afeito à corrupção, que lhe garantiu por um longo período maioria parlamentar17.

O parcial compartilhamento e a parcial separação das funções do governo entre os seus diferentes órgãos eram uma característica do sistema inglês; e Bolingbroke entendia que a independência que se lhes era atribuída – a qual acabou transvertida em corrupção –, era perfeitamente compatível com a ideia de mútua dependência. Cada um dos órgãos teria o poder de exercer controle sobre os outros, estabelecendo-se, de consequência, uma mútua dependência18.

Na Inglaterra, as disputas políticas da primeira metade do século XVIII giraram muito ao redor de diferentes perspectivas sobre a separação de poderes, sendo que a aplicação das ideias da doutrina da separação dos poderes à teoria do governo misto, resultou na teoria dos pesos e contrapesos. Diversamente do que se tinha, antes, no âmbito da teoria do governo misto, a ideia, agora, era a de que os órgãos do governo deveriam se relacionar entre si, sem prejuízo de sua independência19.

O dilema – marcado por interesses políticos – era a dose e o formato da independência que se deveria atribuir a cada órgão. Ao que parece – justo –, por conta daquele que era, à época, o problema político central: “o uso de ‘influência’ na política, o suborno de eleitores e a corrupção de membros da Câmara dos Comuns, a fim obter maioria favorável ao Ministério. Esse sistema de influência pode ser visto com a primeira das conexões entre os

17 LYNCH, Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique. As Metamorfoses Ideológicas do Pensamento Britânico Setecentista do Republicanismo: de Bolingbroke ao Liberalismo de Burke (17201770). Revista Brasileira de Ciências Sociais, [S.l.], v. 35, n. 102, p. 1-19, 2020).

18 Nas palavras de M. J. C. Vile: “[t]hus a partial sharing and a partial separation of the functions of government among distinct bodies of persons was the fundamental characteristic of the English system of government. Bolingbroke then presented a defence of his view that the independence of the parts of the government, which is subverted by the system of corruption, was perfectly compatible with their ‘mutual dependency.’ The parts of the government have each the power to exercise some control over the others, and they are therefore mutually dependent. This does not mean that they cannot and should not be independent of each other also. Indeed the independence of the branches is a necessary prerequisite to their being interdependent, for if it were not so then ‘mutual dependency is that moment changed into a particular, constant dependency of one part’ on the others. Thus there would be no balance at all” (VILE, M. J. C. Constitutionalism and the separation of powers 2. ed. Indianaplois: Liberty Fund, 1998, p. 81).

19 É o que elucida M. J. C. Vile, dizendo, na sequência, que: “[i]n the new doctrine each branch, it is true, was to share in the supreme legislative power, but each was also to have a basis of its own distinctive functions that would give it independence, and at the same time would give it the power to modify positively the atitudes of the other branches of government” (VILE, M. J. C. Constitutionalism and the separation of powers. 2. ed. Indianaplois: Liberty Fund, 1998, p. 79).

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 241 poderes legislativo e executivo que formaram a base para o desenvolvimento do novo padrão de governo de gabinete”20. Como a lealdade partidária, naquele período, não era capaz, sozinha, de garantir o apoio parlamentar necessário às políticas governamentais que se pretendia implementar, o sistema de influência era uma saída21.

No plano teórico, a divergência estava em determinar o que se queria dizer quando se falava em independência. Neste específico aspecto, o ponto de partida de Bolingbroke era a ideia de que “se os poderes legislativo e executivo estivessem totalmente concentrados no rei, como em alguns países, ele seria absoluto; se estivessem nos lordes, nosso governo seria aristocrata; se no bem comum, uma democracia”. E, na visão dele, “é essa divisão de poderes, esses distintos privilégios atribuídos ao rei, aos lordes e aos comuns, o que constitui uma monarquia limitada”22. Daí parte a sua articulação a respeito da independência.

Na sequência disto, ele, então, argumenta que, se em algum momento, qualquer das três partes que compõem o governo tentar incorporar mais poder do que a lei lhe concede, ou fizer mau uso daquele que tem, as outras podem unir forças para readequá-lo ou corrigir os abusos que tiverem sido praticados; e, ainda, se duas partes se unirem para usurpar ou abusar do poder, pelo peso da terceira haverá, ao menos, chance de evitar o dano ou retardar a sua ocorrência23.

20 Tradução livre. Do original: “[t]he great political issue of this period was, of course, the use of ‘influence’ in politics, the bribery of electors and the corruptIOn of members of the House of Commons in order to gain a majority favourable to the Ministry. This system of influence can be seen as the first of the links between the executive and legislative branches that formed the basis of the newly developing pattern of cabinet government” (VILE, M. J. C. Constitutionalism and the separation of powers 2. ed. Indianaplois: Liberty Fund, 1998, p. 79).

21 Nas palavras de Vile: “[i]n an age when party allegiance alone was not a reliable means of ensunng the support of members of parliament for government policies, the system of influence provided a useful alternative”. Ainda, segundo ele: “[a]t the same time corruption can be seen as a means of subverting the balance of the constitution, of uniting powers that should be divided, and reducing to subordination in practice a branch of the government which in theory was co-ordinate in power. The eighteenth century was, therefore, both the age of the emergence of cabinet government, and the age of place-bills, proposed in an attempt to maintain the division between parliament and the executive. The success of the British Constitution can perhaps be attributed to the fact that in the end those who wanted to control the Commons and those who wished the Commons to be free of office-holders were both partially successful” (VILE, M. J. C. Constitutionalism and the separation of powers 2. ed. Indianaplois: Liberty Fund, 1998, p. 79).

22 Tradução livre. Do original: “[i]f the legislative as well as the executive power, was wholly in the king, as in some countries, he would be absolute; if in the lords, our government would be an aristocracy; if in the ommons, a democracy. It is this division of power, these distinct privileges attributed to the king, to the lords, and to the commons, which constitute a limited monarchy” (BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 332).

23 Nas palavras do próprio Bolingbroke: “[i]f any one part of the three which compose our government, should at any time usurp more power than the law gives, or make an ill use of a legal power, the other two parts may, by uniting their strength, reduce this power into its proper bounds, or

Para além disto, tendo em vista que essa divisão de poderes e esses distintos privilégios constituem o governo inglês, diz ele que a sua confusão tende a destruí-la; e que é verdadeira a afirmação de que a segurança do todo depende do equilíbrio das partes. Ressalva, porém, que a questão é saber se esse equilíbrio decorre de sua mútua independência24.

Antes de apresentar a sua resposta, ele rechaça, veementemente – dizendo se tratar de uma falácia grosseira –, a tese de que o recíproco controle que cada uma das partes do governo exerceria sobre as outras, faria delas, em verdade, dependentes entre si. Afirma, então, que esse poder de controle, o qual resulta da divisão do poder do governo entre as partes que o compõem, é necessário para sua própria preservação; e que, portanto, se for para falar nestes termos, trata-se de uma espécie de dependência constitucional, que se não opõe, nada obstante, àquela independência que cada uma tem. Ao contrário, trata-se de uma mútua dependência que não só não subsiste sem aquela independência, como, no exato momento em que a perde, transforma-se em algo como uma dependência particular e permanente de uma parte com relação à outra ou às outras; ou – o que seria ainda mais irracional – uma dependência de duas partes com relação à outra25.

E essa dependência constitucional, tal como denominada por Bolingbroke, importa em que “os procedimentos de cada parte do governo, quando entram em ação e afetam o todo, estão sujeitos a serem examinados e controlados pelas outras partes”26, ao passo que a independência reclamada, para

correct the abuse of it; nay, if at any time two of these parts should concur in usurping, or abusing power, the weight of the third may, at least, retard the mischief, and give time and chance for preventing it” (BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 332).

24 “Since this division of power, and these distinct privileges con¬ stitute and maintain our government, it follows that the confusion of them tends to destroy it. This proposition is therefore true; that, in a constitution like ours, the safety of the whole depends on the balance of the parts. Let us see whether it be true, that the balance of the parts consists in their mutual independency” (BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 333).

25 “To speak again without any metaphor, the power, which the several parts of our government have of controlling and check¬ ing one another, may be called a dependency on one another, and may be argued for by those who want to throw darkness round them, as the dependency opposed to the independency, mentioned in the proposition. But the fallacy is gross. We have shown that this power of control in each, which results from the division of power amongst all the parts of our govern¬ ment, is necessary to the preservation of it: and thus a sort of constitutional dependency, if I may have leave to express myself in that manner, is created among them; but this mutual dependency cannot be opposed to the independency pleaded for (BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 333).

26 BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 333.

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243 tanto, consiste em que “as deliberações de cada uma das partes, que orientam esses procedimentos, sejam tomadas de forma independente e sem qualquer influência, direta ou indireta, das demais”27. Na prática, “sem a primeira, cada parte teria a liberdade de tentar destruir o equilíbrio, usurpando ou abusando do poder; mas sem a última, não pode haver equilíbrio algum”28.

Ao fim e ao cabo, enquanto para Bolingbroke o controle recíproco entre os órgãos era a própria condição de possibilidade da independência, os correligionários de Walpole defendiam um tipo de independência menos sujeita a amarras. A questão, em termos políticos, é que, assim, ficava mais fácil manejar a Câmara dos Comuns. Daí se percebe que o próprio sentido de “independência” pode variar, a depender do contexto e da qual seja a pretensão do intérprete.

Neste ponto, não é descabido lembrar, ainda, que o processo de introdução de instituições representativas e constitucionais acompanhou, no Brasil, o movimento havido em Portugal – dando-se, verdadeiramente, em paralelo –, além de ter imitado fontes comuns. No aspecto doutrinário, a base veio do constitucionalismo francês, com as garantias fundamentais previstas no art. 16, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789; e, no aspecto positivo, a inspiração foi a Constituição espanhola de Cadiz29. Tal como conta Luis Sanchez Agesta, com a Constituição de Cadiz, a Espanha tentou reproduzir o modelo inglês, já com as modulações feitas pela França e, ainda, com outras adaptações próprias, de modo que ela incorporou a divisão de poderes inglesa com o filtro dos textos escritos na época da Revolução Francesa e das reinterpretações que lhes deram a Constituição francesa de 1791 e a própria Carta espanhola de 181230.

E foi sob o influxo dessa miscelânia de influências, à qual, depois, foram agregados, também, elementos de inspiração norte-americana, que todas as

27 BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 333.

28 Tradução livre. Do original: “[t]he constitutional dependency, as I have called it for distinction’s sake, consists in this; that the proceedings of each part of the government, when they come forth into action and affect the whole, are liable to be examined and controlled by the other parts. The independency pleaded for consists in this; that the resolutions of each part, which direct these proceedings, be taken independently and without any influence, direct or indirect, on the others. Without the first, each part would be at liberty to attempt destroying the balance, by usurping or abusing power; but without the last, there can be no balance at all” (BOLINGBROKE. The Works of Lord Bolingbroke in Four Volumes. New York: Augustus M. Kelley, Bookseller, 1967, v. 1, p. 333).

29 Neste sentido: BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. In: PEDROSO, Fernando Gentil Gizzi de Almeida; HERNANDES, Luiz Fernando Camargo Outeiro; RIBEIRO, Roberto Victor Pereira (Org.). Direito Constitucional Contemporâneo. Salvador: JusPodvm, 2021, p. 31-52.

30 SANCHEZ AGESTA, Luis. Poder Ejecutivo y Division de Poderes. Revista Española de Derecho Constitucional, [S.l.], v. l., n. 3, p. 9-42, Set./dic. 1981, p. 9-42.

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Constituições brasileiras31, desde a primeira – que data de 1824 e foi produto da mesma outorga imperial que erigiu a Carta constitucional portuguesa de 1826 – sempre contiveram disposições relativas à divisão dos poderes. Porém, sem grandes variações de conteúdo, a despeito das diversas mudanças de conjuntura. Nesse ambiente é que a tese de que as instâncias repressivas são independentes foi se estabelecendo, gradativamente, até se firmar como verdadeiro axioma, a despeito da inexistência de uma construção dogmática específica para lhe explicar, tampouco justificar a sua permanência no ordenamento, com todas as mudanças conjunturais que lhe acompanharam.

Da história espanhola, neste aspecto, colhem-se outros elementos que interessam à análise. A aparição da potestade sancionadora administrativa na Espanha e a subsequente afirmação de sua independência, frente à já em voga ideia da separação de poderes e, também, ao ne bis idem, ajudam a perceber como, há muito, estes temas se imbricam – ainda que de maneiras particulares e contingenciais –; e como o sistema jurídico brasileiro, nesta matéria, parece ter aderido, também, a soluções encontradas pelos espanhóis.

Retomando eventos passados, em um detido estudo acerca da relação entre os ilícitos penal e administrativo e do contexto das teorias que os distinguem, Ramón García Albero conta que, no constitucionalismo espanhol, o duplo encargo dado às autoridades incumbidas de administrar as províncias (chamadas de Alcaldes ) – um governativo e o outro de julgar –, está na origem da aparição da potestade sancionadora administrativa. Esse duplo papel, ambíguo do ponto de vista da Constituição de Cádiz, a qual reconhecia o princípio da separação de poderes, com atribuição monopolística da função contenciosa e repressiva à esfera judicial – baseada nos princípios da exclusividade e da unidade –, teria ensejado a sua primeira fissura. Diz o autor que se tratava, no entanto, de uma reminiscência do Antigo Regime que, supreendentemente, teria conseguido transgredir o princípio da separação de poderes 32 .

31 Com exceção da Constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937.

32 Nas palavras do autor, “[b]ien pronto tal atribución monopolística va a sufrir su primera fisura, y ello debido fundamentalmente al ambiguo papel del Alcalde que es simultánemamente autoridad administrativa (tanto propia de la entidad municipal autónoma, como delegado del gobierno, y por ello sometido a dependencia jerárquica del Gobernador Civil) y el último escalón del orden judicial (art. 275 de la Constitución), a los que se encomenda el juicio de conciliación, la decisión de juicios civiles de ínfima cuantía, y, en lo penal, el conocimento de los negocios criminales sobre injurias y faltas levianas y la instrucción de sumarios em el de la demarcación municipal, así como la deternción de delicuentes con inmediata remisión al juez de partido. (...). Todo ello sucederá en virtude del Decreto Constitucional de 23 de junio de 1813, aprobatorio de la Instrucción para el Gobierno Económico-Político de las províncias, en cuyo artículo 1, Capítulo 3 se les outorga facultad de sancionar a los que ‘les desobedezcan o falten al respecto y a los que turben el orden o el sosiego público’” (GARCÍA ALBERO, Ramón. La relación entre ilícito penal e ilícito administrativo: texto

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Segundo J. Ramón Parada Vázquez, um certo autoritarismo (que ele chama por “autoritarismo administrativo”) sempre marcou o exercício da potestade sancionadora entregue à Administração em todos os sistemas políticos espanhóis, desde o início do constitucionalismo, dentre outras coisas, porque “esta potestad sancionadora es independiente de la jurisdicción penal común, en el sentido de que una y otra pueden actuar sobre los mismos hechos sin coordinación ni vinculación de los pronunciamientos de una sobre la outra”33.

Na visão desse autor, em poucas matérias – dada a contradição percebida entre a norma constitucional34 e a lei ordinária, incluídos os simples regulamentos – se tem prova tão clara do nominalismo das constituições espanholas e de sua inoperância como guia e critério balizador da redação dos dispositivos que, concretamente, devem conformar o comportamento político e social, como nesta. Para ele, haveria um “signo diferencial más grave del Derecho español en relación con el Derecho europeo”35, estando o desenvolvimento histórico da legislação administrativa espanhola, com a assunção de poder penal pela Administração Pública e o crescimento do poder sancionatório em matéria de ordem pública, identificado, em boa medida, com “reacciones defensivas de los grupos políticos dominantes frente a sus antagonistas, sin que en este punto ninguno de los sistemas políticos que han precedido al actual

y contexto de las teorias sobre la distrinción de ilícitos. In: MORALES PRATS, Fermín; QUINTERO OLIVARES, Gonzalo (Coord.). El nuevo derecho penal spañol: estudios penales in memoria del profesor José Manuel Valle Muñiz. Navarra: Aranzandi, 2001, p. 295-400, p. 306-307).

33 PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. El Poder Sancionador de la Administración y la Crisis del Sistema Judicial Penal. Revista de Administracion Publica. Insituto de Estudios Politicos, Madri, n. 67, p. 41-94, ene./abr.1972, p. 67.

34 Neste sentido, o autor explica que “[l]a La Constitución de 1812 fue categórica en el punto de separación de las funciones judiciales, entre las que incluye todas las represivas, y las funciones administrativas. Por de pronto, el articule 172 impide al mismísimo rey privar a ‘ningún individuo de su libertad, ni imponerle por sí pena alguna’. Este precepto, dirigido a la cabeza del Estado y del poder ejecutivo, desautorizaba toda posibilidad sancionatoria de las autoridades inferiores, y es que la Constitución de Cádiz, en la protección de las libertades personales, huyendo de las declaraciones dogmáticas de les derechos, usó de una técnica mucho más eficaz y práctica de declarar la incompetencia del ejecutivo, dando al poder judicial toda la función contenciosa y toda la función represiva a través de una minuciosa reglameutación, cuyos preceptos, fundamentalmente relativos a la atribución monepolística de juzgar y ejecutar lo juzgado en les juicios civiles y criminales (arts. 242 a 248), siguen vigentes” (PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. El Poder Sancionador de la Administración y la Crisis del Sistema Judicial Penal. Revista de Administracion Publica. Insituto de Estudios Politicos , Madri, n. 67, p. 41-94, ene./abr.1972, p. 68-69).

35 PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. El Poder Sancionador de la Administración y la Crisis del Sistema Judicial Penal. Revista de Administracion Publica. Insituto de Estudios Politicos, Madri, n. 67, p. 41-94, ene./abr.1972, p. 83.

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pueda considerarse inocente en el arte de la creación y empleo de potestades administrativas para descalificar al adversário político”36

Ramón García Albero, por outro lado, partindo de apontamentos do próprio Parada Vázquez, mas mais especificamente interessado em entender quando e sob quais condições essa capacidade sancionadora administrativa adquiriu um tal sentido de independência, em face da jurisdição penal comum – ao ponto de poderem ingerir sobre os mesmos fatos sem se coordenarem ou se vincularem aos pronunciamentos uma da outra – volta a sua atenção para as reações doutrinárias de distintas épocas, frente às incertezas geradas em matéria de competência e sobre o campo de aplicação do bis in idem. A resposta que ele encontra – e afirma – é a de que o processo de consolidação da potestade punitiva administrativa contou com decisões lastreadas em interpretações predispostas mais a preservá-la, do que a promover a satisfação dos ditames constitucionais e legais37.

Quando se avalia a dinâmica de coibição e repressão aos atos de improbidade (instituída depois da CR/88), com atenção a esses eventos e apontamentos críticos – notadamente, levando em conta o fato de que o processamento se dá na esfera judicial e que todo ato de improbidade previsto na LIA se enquadra num tipo penal –, é quase impossível não cogitar da hipótese de que a insistência na afirmação (retórica) de que “as instâncias são independentes” pode não ser assim algo tão gratuito.

O ponto, entretanto, é que o ne bis in idem e uma determinada noção de independência entre instâncias podem coexistir dentro do ordenamento, desde que em condições de convívio harmônico. O que não dá é para seguir ignorando o potencial que essa “máxima” tem – em sendo mal trabalhada – de dar passagem a abusividades e de lesar direitos.

A solução de equilíbrio encontrada e positivada pelo legislador, com essa última reforma da LIA, foi aquela que se vê refletida na disposição do § 4º, do art. 2138. A atenuação para o bis in idem, na vertente processual, foi mais tímida

36 PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. El Poder Sancionador de la Administración y la Crisis del Sistema Judicial Penal. Revista de Administracion Publica. Insituto de Estudios Politicos, Madri, n. 67, p. 41-94, ene./abr.1972, p. 83.

37 GARCÍA ALBERO, Ramón. La relación entre ilícito penal e ilícito administrativo: texto y contexto de las teorias sobre la distrinción de ilícitos. In: MORALES PRATS, Fermín; QUINTERO OLIVARES, Gonzalo (Coord.). El nuevo derecho penal spañol: estúdios penales in memoria del profesor José Manuel Valle Muñiz. Navarra: Aranzandi, 2001, p. 295-400.

38 Por sinal, se, apenas por curiosidade, busca-se alguma explicação nos registros de tramitação do Projeto de Lei (PL nº 2505, anterior PL nº 10887/2018), verifica-se que o § 4º, do art. 21, não fazia parte do texto original proposto no âmbito da Câmara dos Deputados, mas já integrava o projeto, com a redação que acabou aprovada, desde a Subemenda Substitutiva Global de Plenário enviada ao Senado. Durante a tramitação nessa segunda Casa Legislativa, chegaram a ser apresentadas duas propostas de emenda (nº 14 e nº 38) visando a supressão desse dispositivo.

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do que aquela referida ao seu aspecto material; e se poderia ter ido mais longe. Mas o impulso que essa nova formulação das regras de comunicabilidade deu para uma mudança de perspectiva – e, de mais a mais, para uma mudança de mentalidade –, já é, em si, representativo. A partir dela, novas alternativas de concertação persecutórias e de divisão de competências podem começar a ser pensadas, com um incremento (qualitativo) da ingerência estatal voltada para a tutela da probidade.

Sem embargo disso, tal como consigna a decisão (monocrática) liminar proferida pelo STF na ADI nº 7236, a entidade proponente afirmou que “a nova lei de improbidade administrativa criou irrestrita incidência dos casos de absolvição na seara criminal a ensejar a extinção da ação de improbidade”, com afronta ao “princípio da independência entre as instâncias”; e, em sede de cognição sumária, o Ministro Relator designado entendeu “plausível a alegação da requerente”. Segundo ele, “[c]onsagrada no § 4º do art. 37 da Constituição Federal, (...) a independência de instâncias exige tratamentos sancionatórios diferenciados entre os atos ilícitos em geral (civis, penais e político-administrativos) e os atos de improbidade administrativa”. Para conceder a tutela cautelar almejada, suspendendo a eficácia do § 4º, do art. 21, da LIA, nada de mais substancial (do que isso) foi acrescentado.

Lamentavelmente, vê-se que empenhar esforços para que a técnica legislativa seja o mais acurada possível e para que o legislador ordinário atenda aos postulados da Constituição – sem extrapolar os limites de sentido intrínsecos à matriz de racionalidade que preside o sistema –, não é o suficiente. A operatividade das leis sempre dependeu – segue dependendo – da disposição (em boa medida, política) dos intérpretes e aplicadores; e, aqui, talvez dependa um tanto mais. É preciso que toda uma cultura de apresentação de “respostas prontas” (quando não de autoridade) seja desconstruída para que a Constituição – e os direitos das pessoas – possa ganhar real eficácia. E o movimento

A justificativa declinada pelo Presidente Relator para a rejeição de ambas é de notável acerto, verbis : “observo que o princípio da independência das instâncias, salvo o disposto no § 4º do artigo 37 da Constituição, é construção doutrinária e jurisprudencial com base na legislação em vigor, de modo que seus contornos estão plenamente à disposição da opção política própria da liberdade de conformação do legislador ordinário. Noutras palavras, desde que a lei não prejudique a ação penal cabível por causa de ação de improbidade administrativa – como é defeso por força do § 4º do artigo 37 da Constituição – pode o legislador, como no caso, estabelecer hipóteses de interdependência entre as instâncias cível, criminal e administrativa. Cumpre ressaltar, porém, que, na situação específica dos efeitos das sentenças civis e penais produzirem efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa de autoria, o próprio Supremo Tribunal Federal já o vem reconhecendo ( vide RCL nº 41.577, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/03/2021)”. (BRASIL. Senado Federal . PL 2505 de 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9022430&disposition=inline#Emenda55. Acesso em: 20 ago.2023).

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nessa direção parece ter de começar, não tanto na esfera legislativa, mas dentro dos Tribunais.

4. CONCLUSÃO

A real e profícua defesa da probidade, coisa da mais alta importância, passa muito mais pela racionalização das técnicas de intervenção punitivo-estatais e pelo respeito às regras (constitucionais) do jogo, do que pela insistência em manter aceso um discurso (retórico) de combate à impunidade e à corrupção. Isso, no fundo, promove a continuidade do emprego de métodos anacrônicos e de baixa sincronicidade com a lógica do sistema constitucional, com prejuízo a interesses e direitos individuais e coletivos. Por este motivo, almeja-se que a jurisprudência comece a andar, daqui para diante, mais em compasso com aqueles dois últimos julgados do STJ referidos antes, no corpo do texto (quais sejam, aqueles firmados no AgInst em REsp nº 2024133 e no RHC nº 173448), bem como com aquele assentado pelo STF, no julgamento da Rcl nº 41.557 (ainda antes da mudança da LIA), do que com todos os outros (do STJ e do STF) que foram mencionados.

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comentários sobre Why They do iT, inside The Mind of The WhiTe Collar CriMinal, De eugene soltes

1. INTRODUÇÃO

Existem fenômenos que são sincrônicos, acontecem segundo coincidência de significados. Nestes casos, é difícil, talvez impossível explicar a causa que relaciona os eventos em paralelo. O máximo que se pode afirmar é que, de fato, há uma causa agindo, porém desconhecida, extremamente complexa, por isto somente é possível apontar para a coincidência enquanto significância. E o raciocínio será analógico, ou seja, se a e b acontecem é como se fosse porque está acontecendo c. Afim de se atender às necessidades sociológicas para a compreensão do que se passa no Brasil, tal procedimento seria sugestivo para iniciar uma discussão. E a especulação, então, também se mostra oportuna para o estudo da criminalidade que envolve o patrimônio público enquanto problema sociológico. Para pontuar um fragmento do respectivo cenário, atenta-se para a copertinência significativa entre os seguintes crimes: por um lado, há principalmente ilícitos praticados no âmbito do sistema penitenciário, tanto por presos (homicídios, principalmente), quanto por autoridades públicas (abuso de poder), que resultam na quase total disfuncionalidade do sistema prisional e mesmo da segurança pública, infelizmente ainda presente em vários lugares do Brasil. Por outro lado, há os crimes de corrupção, de “colarinho branco”, que conhecidas operações, principalmente da Polícia Federal, há anos têm descrito e que colocam em xeque parte do sistema político nacional, com ameaça, não diretamente à segurança pública, mas à democracia e à econômica brasileira. Assim, os chamados crimes of streets e os denominados crimes of suits , segundo o jargão criminológico, com certa frequência têm protagonizado discussões na imprensa e no âmbito da Administração Pública. Eles trazem à baila, de modo

252 inusitado, a condição vulnerável da eficiência das autoridades dos três Poderes, daí a necessidade de pensar a respeito.

Onde estaria a sincronia entre tais fatos, o ponto que dá o toque coincidente ao fenômeno sociológico? A associação criminosa é um deles, talvez o mais visível. Curioso o fato de presos comprometidos com organizações como o PCC, FDN, CV e outras congêneres, empresários e políticos, estes organizados por meio de Partidos, sejam foco da nação em momento histórico recente. Não seria exagero vê-los como facções, cada qual tentando sobreviver a seu modo, a fim de manter o poder sobre um território. Mas isto diz respeito ao meio empregado. Outra coincidência, mais significativa e importante, aponta para o fim desses arranjos: o caráter econômico de ambas as criminalidades. As facções dos presídios brigam por dinheiro, alguns políticos e seus partidos idem. À margem, ficam a luta por melhores condições de sobrevivência nas prisões e o interesse da população, respectivamente. Eis a “ideologia”, simples assim, dos envolvidos: progredir financeiramente às custas do trabalho ou da vida alheia. Para tanto, aquelas organizações, a dos presídios, usam fações e armas de fogo, cortam cabeças, ameaçam, enquanto a dos políticos, de modo mais dissimulado, valem-se de doações, achaques e outras combinações corruptas, portanto burocráticas e fraudulentas. A significância está na insensatez de ambos os lados, no compromisso com a cultura do alcance monetário direto, rápido, globalizado, que, por estes trópicos, aguça, sobremaneira, o apetite materialista, jamais ausente na alma de qualquer um. Infelizmente, esta sincronicidade é síntese da história, portanto decorrente de movimento dialético demasiado brasileiro, consistente no perecimento da moral pública.

Mas, algo inescapável, estruturante, que justifica a reflexão, é o desempenho maléfico de algumas autoridades e de suas políticas econômicas. A criminalidade que hoje assusta a população brasileira tem relação direta e significativa com a falta de escrúpulos de dirigentes oficiais, notadamente dos que exigiram e aceitaram dinheiro para, às expensas do bem-estar do povo, garantirem satisfação pessoal e de suas famílias. Isto induz a população, precipitadamente ou não, a imputar ao Poder Público a causa dos problemas penitenciários e da crise política.

Diante deste cenário, a democracia é princípio fundamental, pois permite mudar os agentes causadores de problemas. Saber eleger os governantes é requisito para que nova ética se estabeleça. Embora não seja crível que isto apresente efeitos imediatos, pois a história é sempre teimosa, resistente a mudanças, e subculturas não evoluam do dia para a noite, a boa escolha sempre renova expectativas e abre caminho para futuro melhor. Somente a razão humana é capaz de quebrar sincronias como esta, presente no cotidiano.

Principalmente quando sob a luz estão os crimes of suits, faz oportuna a leitura da pesquisa conduzida por Eugene Soltes, professor da Escola de

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Administração e Negócios da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos ( Why they do it , inside the mine of the white collar criminal, Philadelphia: PublicAffair, 2016). Os pontos fundamentais do livro são a seguir analisados.

2. A OBRA DE EUGENE SOLTES

O propósito, pretensioso a contar pelo título, tem perfil etiológico. Não obstante, mesmo tendo explorado os crimes corporativos, não é correto dizer que sua pesquisa trafega por um campo em que as aventuras do discurso da criminologia crítica parecem perder força. Ao longo de 336 páginas, Soltes esteve ocupado com as possíveis circunstâncias mais influentes na decisão de um empresário ou agente político optar por meios ilícitos e danosos ao interesse público para adquirir cada vez mais dinheiro, como se houvesse uma regra implícita do jogo econômico propriamente dito que não proibisse o emprego de qualquer procedimento para atrair o capital. Para tanto, esmiuçou os caminhos, objetivos e subjetivos, trilhados por alguns dos mais famosos white collars da história do capitalismo americano contemporâneo, entre eles, Dennis Kozlowski, Bernie Ebbers, Bernie Madoff, Scott London, Scott Harkonen, Tomo Razmilovic, Michel Lucarelli, Sam Waksal, Steven Hoffenberg. Reviu noticiários, autos processuais, depoimentos, cotações, estatísticas, conduziu entrevistas, experimentou relações, trocou ideias, enfim, tentou atingir a realidade sensível dos protagonistas dos crimes. Soltes procurou revisitar o ambiente político e econômico vigente por ocasião de crimes econômicos famosos a fim de compreender as idiossincrasias dos personagens, os vórtices de suas decisões, bem como algumas irracionalidades típicas do sistema capitalista americano.

Naturalmente, sua versão começa por 1939, com o 52º Encontro Anual da Sociedade Americana de Sociologia, quando Edwin Sutherland (1883-1950) proferiu a provocativa palestra de crítica às então quase sólidas bases do argumento criminológico pós-positivismo, em que a miséria, a desigualdade social, a baixa educação e os déficits intelectuais eram concebidos como os principais ingredientes da criminalidade. Cabe recordar: Sutherland questionou o ponto de vista de que o objeto da criminologia haveria de ser apenas as condutas danosas de pessoas que compunham a chamada classe social baixa. Com olhar sociológico, Sutherland percebeu que muitos ilícitos, tanto ou mais danosos do que os tradicionais, amiúde não focados pelos criminólogos, eram capitaneados por pessoas de “boa índole”, prestigiadas socialmente, até respeitadas ou admiradas no mundo dos negócios. Tais figuras, considerou Sutherland, eram subvalorizadas em pesquisas porque raramente condenadas ou mesmo acusadas. Como sabido, sem muita originalidade, Sutherland chamou-as de criminosos de colarinho branco. Estava lançada a concepção para uma nova política criminal, voltada aos crimes que anos depois seriam denominados econômicos.

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Nos Estados Unidos o assunto começou a ter interesse já na década de 50 do século passado, depois que o The New York Times, logo após a palestra de Sutherland, opinou que o evento havia atirado no lixo muitas obras de criminologia e que o pronunciamento de Sutherland teria esclarecido algo já suspeitado: para o sistema capitalista, o custo financeiro dos crimes de colarinho branco seria, provavelmente, na maioria das vezes, muito maior do que o custo dos crimes de rua.

Com efeito, Sutherland foi um acadêmico diferente no ambiente dos pesquisadores do famoso departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. Chamou-lhe atenção o fato de, em 1932, Samuel Insull, conhecido executivo envolvido em fraudes e apropriação indébita, haver declarado que faria tudo novamente. A pista psicológica intrigou Sutherland: o fato de pessoas bem situadas social e financeiramente terem dificuldade para compreender os danos que provocam a terceiros. Foi-lhe notável a carência límbica, simbolizada como falta de sentimento de alteridade ou de solidariedade social, exatamente em pessoas que, em tese, tiveram melhores condições para supri-la. Para completar o quadro, Sutherland percebeu que, por vezes, a própria sociedade tinha dificuldades para conceber comportamentos desses sujeitos como criminosos. Ora bem, como já previsto por E. A. Ross (1966-1951) (Sin and society, 1907), citado por Soltes em seu livro, se o executivo tinha dificuldades para ver-se como criminoso e a sociedade de vê-lo como tal, era esperado que os pesquisadores negligenciassem o caráter criminalizável do fato praticado. Foi constatado que as irregularidades feitas pelos executivos, via de regra, eram sancionadas civil ou administrativamente, mas lhe escapava o caráter criminoso do episódio. Portanto, segundo Soltes, a importância de Sutherland foi semear mudança de concepção na criminologia, algo semelhante, guardadas as proporções, à virada de Copérnico. O caminho aberto possibilitou, inclusive, que a Criminologia Crítica dos anos 60, em sua versão radical, relacionasse cultura capitalista e criminalização.

Esse estado da alma do homem de negócios já teria sido muito antes descrito por um famoso analista radicado em Chicago, Thorstein Veblen (18571929), um “homem muito estranho”, como o descreveu Robert Heilbroner, na clássica obra The wordly philosofers, de 19531. No livro Leissure class, de 1899, Veblen considera capitalistas seres extremamente predadores, tomadores de bens sem trabalho e pouco preocupados com o interesse público, no entanto, admirados pela sociedade, inclusive por trabalhadores que, ao invés de investir na luta contra a classe superior, procuram ascender até ela. Como ninguém, Veblen narrou o ambiente do capitalismo selvagem e de seu conceito perante a opinião pública, que se apresentava logo naqueles tempos.

1 HEILBRONER, Robert. A história do pensamento econômico , São Paulo: Nova Fronteira, 1996, p. 204.

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Com seu livro, não muito diferente de Veblen e de Sutherland, Soltes procura resgatar as raízes psíquicas desta cultura secular, portanto, trabalha com a premissa de que o espírito humano, além de artífice, reorganiza valores e os estabiliza na história movido por necessidades e circunstâncias por vezes inconscientes, daí a necessidade de compreender o homem como subjetividade criadora e construída. Os problemas econômicos não são somente defeitos do respectivo sistema social, mas têm sede no espírito que o organiza, influenciado pela cultura a que ele mesmo contribuiu. Sendo assim, se evidencia porque o socialismo jamais seria remédio eficiente para conter a cobiça e o materialismo desenfreado, algo demasiadamente humano; aliás, a corrupção, outro exemplo, tem campo fértil mesmo nas economias predominantemente socialistas.

O trabalho de Soltes desenha certa compreensão de que o capitalismo neoliberal estabelece maior perda do senso comunitário, acentua a desigualdade sócio-econômica e a intolerância étnica, apesar do desenvolvimento tecnológico inusitado. Ambiência em que, como se costuma considerar, a noção de perigo é superada pela de risco (Beck) e seria a explicação para, finalmente, o poder punitivo interessar-se também pelos criminosos de colarinho branco, compreendendo empresários e governantes.

Neste ponto, cabe uma reflexão. A expansão do espectro da intervenção punitiva, que favorece a criminalização de comportamentos típicos do mundo capitalista (Silva Sánchez), pressupõe nova racionalidade penal, novas propostas de regramento dos campos de intercessão entre o Direito Penal e o Administrativo (no Brasil, cumpre lembrar, por exemplo, a Lei n. 8.429/92, de improbidade administrativa, Lei n. 12.529/11, infrações à livre concorrência, Lei n. 9.613/98, modificada pela Lei 12.683/12, de lavagem de dinheiro). Por conta disto, cultua-se um direito penal moderno, não tanto “filosófico”, como um dia defendeu Bettiol, mas predominantemente prevencionista da funcionalidade do sistema econômico capitalista, ou seja, um direito punitivo em que prevalecesse a lógica sociológica garantista da estabilidade, no caso, das expectativas econômicas e políticas. Com vistas a superar a crise da “administrativização” do direito penal, W. Hassemer (1940-2014) defendeu um direito penal de intervenção2. Pois bem, não sem fundamento, a principal crítica à proposta é o fato dela prever medidas punitivas diferenciadas para criminosos de colarinho branco e deixar o chamado “núcleo duro do direito penal”, para os criminosos de rua, aqueles que, de fato, precisariam ser presos. Como consolo, a eles seria mantido o sistema de garantias clássico.

O desafio enfrentado por Hassemer e de seus seguidores em Frankfurt foi como dosar corretamente a intolerância moderna para com os crimes

2 HASSEMER, Winfried. Direito Penal. Fundamentos, estrutura, política, Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 262.

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econômicos. Não há notícia de que Hassemer esteve ocupado com questões criminológicas, mas sim dogmáticas, todavia, é difícil separar totalmente as coisas. A prudência recomenda pensar a dogmática a partir da criminologia. Em seu livro, Soltes não trafega exatamente por tais problemáticas, contudo, ao lançar luz sobre possíveis psicologias dos agentes de colarinho branco, com a descrição da dimensão dos problemas que causam, sugere cautela com a opinião sobre a oportunidade de haver um direito penal de mera intervenção, como propôs Hassemer.

Com a elaboração visada por um, assim chamado, direito penal de intervenção e o atual estágio do capitalismo, a indignação de Sutherland poderia parecer ultrapassada. O problema hoje seria como pensar um novo direito penal, mais apropriado para criminosos ilustres. O livro de Soltes informa ser precipitado pensar assim. O mérito acadêmico de Sutherland não poderia ser esquecido porque retrato de uma época em que a opinião pública, deslumbrada com o avanço econômico do pós-guerra, ainda não estava preparada para entender o ilícito econômico como algo perfeitamente criminalizável, como ilícito que, por vezes, atinge bens jurídicos fundamentais, tendo sido justamente isto o que mais atormentou Sutherland. Apesar de sua obra fundamental (White collar crime, 1940)3 ser uma espécie de denúncia sobre o fato de que há criminosos também nos escritórios, nos gabinetes políticos e nas repartições públicas, a opinião popular somente parece haver mudado de modo significativo após os anos 2000, e sem ela não há criminalização possível (Garland).

Nos Estados Unidos sempre foi mais difícil defender a ideia, já combatida por Gabriel Tarde (1843-1904), de que algumas pessoas já nasceriam “criminosas”. A Differencial association, de Tarde, bem assimilada por Sutherland em trabalho de 1947, forçou o olhar criminológico para as relações, para os exemplos, para as influências, para a cultura situada, causas ambientais significativas que, somadas a experiências vividas, moldariam o caráter, não apenas de um white-collar criminal, mas de qualquer indivíduo. Assim, num primeiro momento, Soltes restabelece a importância da cultura, do pensamento criminológico a partir do olhar reflexivo sobre o homem como ser situado no mundo capitalista. Em algumas passagens do livro seu caminho é pretensiosamente científico. Como diz, “humans are complex creatures”4; os criminosos de colarinho branco, em sua essência, segundo interpretação suficientemente concreta, podem abrigar características bem definidas, que encontram na cultura terreno fértil para serem estimuladas. Sentencia Soltes que tais indivíduos,

3 SUTHERLAND, Edwin. White collar crime. Westport: Greenwood Press Publishers, 1983.

4 SOLTES, Eugene. Why they do it, inside the mind of the white collar criminal, inside the mind of the collar criminal, Philadelphia: PublicAffairs, 2016.p. 62.

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257 como qualquer pessoa, são vulneráveis a subjetividades por vezes irresistíveis, possivelmente explicadas pela neurocriminologia.

São citados os estudos de Adrian Raine e de William Laufer, ambos pesquisadores na Universidade da Pensilvânia, respectivamente, na área da criminologia e da ética comercial. Após breve incursão em hipóteses que, ao primeiro olhar, mais se aproximaram do positivismo criminológico do século XIX, os autores optaram pela análise do funcionamento cerebral dos criminosos de colarinho-branco.

Não é possível fundamentar qualquer pesquisa de maneira incontestável. Assim como, o que, em geral, significa causalidade, nem sempre basta para assegurar quaisquer conclusões, principalmente quando objeto de observação é o ser humano. Todavia, após dar atenção ao córtex pré-frontal de condenados por crimes econômicos, Reine e Laufer, segundo Soltes, teriam notado a predominância de conexões cerebrais indicativas de menor impulsividade e maior cálculo do que em criminosos, pode-se dizer, comuns. Tais características permitiriam que os criminosos de gabinete melhor processem informações, de consequência, por exemplo, projetem lucros, dimensionem riscos, organizem procedimentos e lidem com relações complexas e abstratas; enfim, seriam eles mais ambiciosos e melhor dotados de inteligência racional. Para Soltes, são aspectos que sugerem não propriamente causalidade, mas possível correlação entre potencial biológico e ilícitos econômicos. Portanto, não haveria natural determinação, mas predisposição a comportamentos que, em interação com certos ambientes e respectivos valores culturais, favoreceriam, em cerca de 40%, a opção por atitudes definidas como criminosas ao estilo econômico.

Portanto, presentes algumas circunstâncias, as disposições inatas podem ser acentuadas ou inibidas. Em casos extremos, há ausência de empatia, apresentada como condição clínica do sujeito com tendência psíquica capaz de desprovê-lo de melhor capacidade de compreender o impacto danoso de sua ação na vida alheia. Soltes cita o estudo do psicólogo Robert Hare, que atestou a presença de psicopatia em 3,5% dos executivos pesquisados e apenas 1% entre a população comum. Especulações desta ordem surgiram nos Estados Unidos a partir dos anos 90 e demonstram que a concepção do positivismo biológico, se não com a forma e substância do tempo de Lombroso, mas agora com o status de neurocriminologia, jamais foi completamente abandonada, ao contrário, sempre esteve enraizada no espírito da criminologia, refutando as vertentes críticas que, principalmente na América Latina, olham o fenômeno criminal como suprassensível, capaz, tão-somente, de ser interpretado.

O problema da liberdade transcendental, da espontaneidade absoluta, no senso kantiano, incomodará o leitor que pretender ver os questionamentos de Soltes segundo perspectiva filosófica. O autor prefere sublinhar os movimentos antropológicos do assunto. Por isto, seu ponto de partida

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também é Donald Cressey (1919-1987), aluno de Sutherland. Após pesquisar biografias de alguns fraudadores, todos com o colarinho engomado, Cressey concluiu que os mesmos, após haverem sido expostos a oportunidades de fraudar, imediatamente procuraram racionalizar seus comportamentos de um modo a vê-los como normais, como que se protegendo de alguma censura moral. Havia um compromisso explícito com a moral pública, de modo que, pensou Cressey, no que concerne a valores não haveria, propriamente, algo especial no caráter dos executivos ou dos políticos, como, aliás, em outros tipos de agentes, que tenha sido decisivo para assumirem ações danosas.

A pesquisa de Cressey foi inspiração para o famoso trabalho de Gresham Sykes (1922-2010) e David Matza (1930-2018) de 1957, Techniques of neutralization: a theory of delinquency. Eles descreveram o rol de argumentações, via de rega empregadas por criminosos, para justificar comportamentos perante a opinião pública e perante eles mesmos; seriam técnicas que, em síntese, transferem o mal aos outros e, para situações extremas, desapropriam a realidade do próprio mal causado (the denial of responsability and the denial of injury). Segundo Sykes e Matza, tais procedimentos, que não passam de racionalizações, possivelmente “precede deviant behavior and make deviant behavior possible”

5 . E não seria difícil encontrar o uso dessa tecnologia em políticos brasileiros, a partir de sentenças como “a lógica do sistema sempre foi assim”. Os estudos de Sutherland, Cressey e Sykes foram congruentes com a opinião de que a moral também pode estar situada e adaptada a certos interesses por conta de razões que o coração não quer ver. Segundo esta perspectiva, não haveria diferenças inatas entre as pessoas no sentido de que algumas seriam mais propensas à criminalidade do que outras. Sequer os valores morais seriam peculiares. A diferença estaria na habilidade do argumento justificador, ou seja, na qualidade das oportunidades e no conteúdo da racionalização, incluindo aí a avaliação dos riscos e das consequências. Mas o fato de haver progresso com estas reflexões (teoria das escolhas racionais) não cativou Soltes. Ele desdobrou a questão diretriz da causalidade na direção da questão fundamental do que é o homem, portador ou não de colarinho branco.

E o fez de modo singelo. Para dizer de maneira breve: os contextos dos executivos ou mesmo dos administradores públicos, por vezes abrem portas para a obtenção de vantagens econômicas bastante atraentes; eles conhecem os caminhos, e, como já demonstrara Benjamin Libet (1916-2007) (Unconscious cerebral tnitiative and the role of conscious will in voluntary action, 1985)6, eles agem

5 Techniques of neutralization: a theory of delinquency, American Sociological Review, vol. 22, 1957, n. 6, p. 206.

6 LIBET, Benjamin. Unconscious cerebral initiative and the role of conscious will in voluntary action, Published online by Cambridge University Press: 04 February 2010.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 259 antes por intuição, com dificuldade para que os respectivos possíveis danos lhes apareçam em tempo suficiente para inibi-los. Significa que os riscos de as operações darem imediatamente erradas são bem calculados, no entanto, com relação ao futuro, aos desdobramentos da conduta, não são bem valorizados. Vale dizer, há um córtex pré-frontal habilidoso para ações momentâneas, porém insuficiente, como, de resto, em qualquer ser humano, para projetar os efeitos de longo prazo. Eis porque, em muitos casos, as oportunidades fazem diferença, de modo que o clássico texto de Richard Cloward (1926-2001) e Lloyd Ohlin (1918-2008) (Delinquency and opportunity, 1960) necessariamente vem à lembrança.

A empatia, a solidariedade, a compaixão, o altruísmo são emoções humanas estratégicas para a vigência de uma moral de grupo e, de resto, fundamental para a sobrevivência da espécie, sublinha Soltes. Alguns personagens, como, por exemplo, executivos bem-educados e situados socialmente, encontrariam dificuldade para praticar um homicídio ou um furto, em que a vitimização é certa e os danos são evidentes e próximos. Como disseram muitos empresários entrevistos por Soltes, “I never felt that I was doing anything wrong”7. Pode-se imaginar que no capitalismo mais antigo, menos globalizado, em que os negócios tinham um tom mais pessoal, haveria pouca base de apoio para algumas formas de fraudes e insiders trading, mais comuns nos dias de hoje, dada a menor complexidade daquele ambiente. Pontua o autor que as coisas teriam começado a mudar por volta do século XVI, com a ampliação dos mercados e dos riscos para empreendimentos além fronteira. Por essa época, iniciaram os investimentos em possíveis sucessos mercantis, que exigiram contratos mais complexos e com envolvimento de capital alheio ou mesmo público. Houve aumento da dimensão de prejuízos que eventual transação de má-fé pudesse provocar, mas, também, pulverização do sentimento do dano causado devido à falta de intimidade ou contato com o prejudicado.

Para demonstrar a importância do divórcio entre o empreendedor e as pessoas impactadas por suas condutas fraudulentas, Soltes recupera exemplos de Adam Smith (The theory of moral sentiments, 1761) quando explica que a fundamental característica humana de fazer empatia está diretamente relacionada à proximidade entre as pessoas envolvidas. Isto permitiria constatar a maior probabilidade de o ser humano sacrificar cinco pessoas para salvar uma única, desde que a conheça melhor. Ou seja, se a vida em jogo for a de alguém próximo, não necessariamente familiar, mas conhecido, seu sacrifício não é praticado, ainda que, em termos numéricos, a opção seja desarrazoada. Por isto, crimes econômicos, muitos consumados com um simples “clik” no mou-

7 SOLTES, Eugene. Why they do it, inside the mind of the white collar criminal, inside the mind of the collar criminal, Philadelphia: Public Affairs, 2016.p. 115.

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se, ainda que profundamente danosos, nem sempre são inibidos em prestigiadas personalidades. Elas não são sensibilizadas pela vitimização que causam, simplesmente porque não conhecem as vítimas como indivíduos, pois grande a distância entre a ação e o mal causado. Com investidores, empregados, consumidores, contribuintes, compondo população anônima de prejudicados, criminosos de colarinho branco não receberiam em seus cérebros o sinal para parar, ao contrário, eles continuariam a agir sem pensar no mal que estão causando, porque a real dimensão do prejuízo não pode ser contabilizada de imediato. Por vezes, há mesmo dúvida quanto à lesividade da conduta, como ocorre, por exemplo, com o insider trading, em que é difícil identificar, precisamente, quais investidores são lesados. Até lá, os criminosos permanecem argumentando que não fizeram algo errado, encontram facilidade para empregar técnicas de neutralização do tipo “foi seguida a lógica do sistema”, “assim é a cultura do meio”, “nada que a moral coletiva pudesse reprovar”, “apenas defendi os interesses da empresa”.

3. A IMPORTÂNCIA DA COMPLIANCE.

Mas se as coisas tendem a funcionar assim, porque apenas alguns vão ao ato? O aprendizado, a oportunidade, o anonimato da vítima, ainda que realidade, não são determinantes, afinal, há os que, por algum motivo, resistem e continuam respeitando as normas.

Com atenção às pesquisas de Tom Tyler, professor de Direito em Yale, Soltes escreve que a compreensão do ser pressupõe análise de sua experiência normativa, vale dizer, suas opções e inibições são respostas a valores previamente acoplados na personalidade, havendo pouca influência a gravidade de sanções recentemente conhecidas. Tyler sugere que algumas pessoas não arriscam atos ilícitos porque inibidas por um código interno já significativo. Independentemente da formal ilicitude, alguns permanecem honestos porque atribuíram significado à honestidade, uma manufatura moldada pela cultura do lugar: “Culture is a set of shared assumptions that guides membres of a comunity toward a particular set of attitudes and beliefs” , argumenta Soltes8. Portanto, novas pesquisas reintroduzem a influência de subculturas na questão mais imediata da criminologia, aspecto que confere interessante prestígio às técnicas de compliance no âmbito corporativo ou da administração pública porque, por meio delas, são programados hábitos, procedimentos, fundamentos, a fim de induzir o respeito a certas normas, entre elas, as penais.

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8 SOLTES, Eugene. Why they do it, inside the mind of the white collar criminal, inside the mind of the collar criminal, Philadelphia: Public Affairs, 2016. p. 134.

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A compliance pode ser um guia configurador de subcultura porque busca estabelecer valores organizacionais; quando assimilados como rotina, tais valores funcionam intuitivamente, fazendo-se eficazes para evitar atitudes incongruentes. Evidentemente, as normas em si não garantem tais inibições, há exemplos claros disto, mas são importantes quando adquirem significado e contribuem para uma ética corporativa de senso pragmático.

Se o ser humano tende a decidir intuitivamente antes de racionalizar ou tomar consciência do que o cérebro já escolheu (Libet), a orientação cultural há de despertar a própria intuição, para que a escolha inicial seja induzida, perfazendo algo como que uma antecipação racional à intuição, verdadeiro jogo neuroquímico em que a liberdade de escolha acabaria ganhando.

Baseado nesta suposição, Soltes destaca a importância de criar espaço maior para a reflexão, para precipitar o senso crítico, a capacidade de avaliação, permitindo-se que técnica de racionalização não seja empregada apenas para neutralizar a discrepância entre a escolha feita e a norma e, deste modo, justificar a conduta sabidamente ilícita, mas para interceder em direção à licitude. Para tanto, o autor descreve o depoimento de Michel Lucarelli, envolvido com insider trading: “‘I never thought about the consequences honesty because I didn’t think I was doing anything blatantly wrong’. But in the early morning of August 2015, agents arrived at his home to arrest him”9.

Soltes explica que os empresários e políticos amiúde não sentem culpa, veem suas ações, mesmo quando ilícitas, como algo normal, por isto, muitas vezes, deixam rastros simples e evidentes, como mensagens, conversas telefônicas, compras extravagantes. Ou, contabiliza Soltes, white collors muitas vezes sabem estar agindo ilicitamente, porém, no início, preferem arriscar, imaginando serem poucas as consequências de suas ações. Tudo inicia de maneira breve e aparentemente insignificante, até que, com o tempo, há o descontrole e o que era para ser isolado, por força da ambição torna-se regra. Como lhe confessou Marc Dreier, executivo de sucesso que se fez fraudador dos mais espertos: “Even a good person can lose their way”10

4. A INFLUÊNCIA DO MEIO.

Ao aproximar-se do fim do livro, Soltes narra o que teriam sido as maiores fraudes do capitalismo americano e, novamente, ensaia conclusões elementares: os crimes de colarinho branco, assim como de quaisquer crimes, resultam

9 SOLTES, Eugene. Why they do it, inside the mind of the white collar criminal, inside the mind of the collar criminal, Philadelphia: Public Affairs, 2016. p. 156.

10 SOLTES, Eugene. Why they do it, inside the mind of the white collar criminal, inside the mind of the collar criminal, Philadelphia: Public Affairs, 2016. p. 259.

de um amálgama de circunstâncias pessoais e sociais. Cumpre lembrar que o propósito do autor foi especular sobre a etiologia dos crimes econômicos, com especial concentração sobre como as coisas se comportam diante do que os agentes têm como verdade, suas performances no emprego de técnicas de neutralização, daí a importância das várias entrevistas que o autor realizou e de sua possível utilidade para o entendimento da criminalidade de colarinho branco no Brasil.

O principal dos casos concerne ao prestigioso executivo Berneie Madoff, cujos investimentos fraudulentos, perpetrados em 2008, frustrou investidores na ordem de 20 bilhões de dólares. Segundo Soltes, o episódio Madoff, embora extremamente aberrante devido aos claros sinais de psicopatia em sua personalidade, permite entender que a cultura de Wall Street é o investimento arriscado, à margem da lei, se possível. Teria sido o exemplo derradeiro de como uma pessoa que, segundo psiquiatras, respondia de modo peculiar às suas emoções, pois, mesmo ciente, não era afetada pelo dano que diariamente causava a outros (investidores, amigos e, até, a família), foi de algum modo sensibilizada, mas pelo meio promíscuo em que operava seus negócios.

Infelizmente, arremata Soltes, muitos executivos (e administradores públicos) julgam-se autossuficientes, inteligentes e capazes de ir até aonde não serão prejudicados. Neste arriscar constante e presunçoso, as coisas podem terminar mal. O êxtase do jogar em busca de dinheiro seria, na maioria dos casos, mais estimulante do que o medo de prejudicar pessoas e a si próprio. A questão é, por maior que seja a cultura dominante, como atenuar seus efeitos? Como referido, alguns exemplos informam que aumentos de pena e fiscalizações são pouco eficientes. Na China, pelo pouco que se pode saber, um dos países com enorme índice de corrupção, há previsão de pena de morte para certas hipóteses de crimes corporativos ou administrativos. Por isto Soltes supõe que se houver tempo para maior reflexão, muitas precipitações podem ser melhor evitadas. É o motivo porque, insiste, a criação de éticas no âmbito de instituições, a proximidade de pessoas que possam dar conselhos coerentes, enfim, o acesso a referenciais inibidores das condutas ilícitas, haveriam de ser medidas mais empregadas.

À luz deste argumento, a cultura também pode vir a ser produto do indivíduo, desde quando este protagoniza, conscientemente, o cotidiano, algo que pode ser induzido por programas de compliance. Outro detalhe: não há grande diferença entre o criminoso comum, que rouba uma farmácia, e o operador de um sistema financeiro ou o guardião do dinheiro público, graduado em negócios, que angaria milhões em prejuízo alheio. As únicas diferenças condizem com o significado das ações e com o fundamento usado como técnica de neutralização.

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5. CONCLUSÃO

A exemplo da copertinência sociológica entre os crimes das facções instaladas nos presídios e os crimes protagonizados por empresários e políticos instalados em escritórios e repartições, comparados na introdução desta resenha, o livro de Soltes não afasta o entendimento de que as idiossincrasias narradas, sejam culturais, sejam antropológicas, supostas pelo Autor para a compreensão do crime de colarinho branco, são, em verdade, importantes para a compreensão de outros modelos de crimes patrimoniais, independentemente do status social do respectivo praticante.

E o mérito de Eugene Soltes consiste em transmitir a ideia de ser possível superar a subcultura e as tendências comportamentais programadas pelo cérebro. No contexto corporativo e político oportunidades para grandes ganhos financeiros são muito atraentes, mas haveria uma saída razoável: oferecer, no âmbito do próprio subsistema e de sua ética, condições para que empresários e representantes do Poder Público tenham momentos de maior reflexão sobre o mal que poderão causar, mesmo a pessoas distantes de suas emoções.

Portanto, nas entrelinhas do livro de Soltes encontra-se o problema da liberdade, mas tratado de modo otimista. Ele deixa uma esperança para a razão, considerada a principal condição de possibilidade do comportamento ético, do sujeito pensante, em relação aos desafios em geral. Sobretudo porque, como desafiou Heidegger11, afinal, é a liberdade, determinante da presença humana, o que necessita ser compreendido como conquista.

REFERÊNCIAS

GARLAND, David. The culture of control, crime and social order in contemporary society. Chicago: The University of Chicago Press, 2001.

HASSMER, Winfried. Direito penal. Fundamentos, estrutura, política. Tradutores: Adriana Beckman e outros. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008.

HEIDEGGER, Martin. A essência da liberdade humana: introdução à filosofia. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.

HEILBRONER, Robert. A história do pensamento econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

LIBET, Benjamin. Unconscious cerebral initiative and the role of conscious will in voluntary action. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/behavioral-and-brain sciences/article/abs/unconsciouscerebral-initiative-and-the-role-of-conscious-will-in-voluntary action/D215D2A77F1140CD0D8DA6AB93DA5499. Acesso em janeiro de 2019.

SOLTES, Eugene. Why they do it, inside the mind of the white collar criminal, inside the mind of the collar criminal. Philadelphia: PublicAffairs, 2016.

SUTHERLAND, Edwin. White collar crime. Westport: Greenwood Press Publishers, 1983.

SYKES, Gresham; MATZA, David., Techniques of neutralization: a theory of delinquency, “in” JACOBY, Joseph e outros, Classics of criminology. Long Grove: Waveland Press, 4ª ed., 2012.

11 HEIDEGGER, Martin, A essência da liberdade humana: introdução à filosofia, Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012, p. 163.

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caPítulo 14

o manDaDo De inJunção na ativiDaDe Pública

Luiz Eduardo Gunther

Marco Antônio César Villatore

1. O SURGIMENTO LEGISLATIVO DO INSTITUTO MANDADO DE INJUNÇÃO

O dispositivo é uma inovação da Carta Magna de 1988, tratando-se de um instrumento do processo constitucional, direcionado à defesa de direitos subjetivos, com fundamento em omissão do legislador ou de outro órgão incumbido de poder regulatório.

A gênese legislativa desse dispositivo constitucional inicia-se na Subcomissão Temática dos Direitos e Garantias Individuais, na Fase A, com o Anteprojeto do Relator: “art. 1º. São direitos e garantias individuais: (...) § 35º. Os direitos e garantias constantes desta Constituição têm aplicação imediata. Conceder-se-á mandado de injunção, para garantir direito nela assegurado, não aplicado em razão da ausência de norma regulamentadora, podendo ser requerido em qualquer juízo ou tribunal”. Na Fase C, do Anteprojeto da Subcomissão, houve modificação do texto: “art. 1º. São direitos e garantias individuais: (...) § 37º. Conceder-se-á mandado de injunção, observado o rito processual estabelecido para o mandado de segurança, a fim de garantir o direito assegurado nesta Constituição, não aplicado em razão da ausência de norma regulamentadora, podendo ser requerido em qualquer juízo ou tribunal, observadas as regras de competência da lei processual”.

Na Comissão Temática da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, na Fase F, apontou-se o Substitutivo do Relator, assim: “Art. 34. Conceder-se-á mandado de injunção, observado o rito processual do mandado de segurança, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à

nacionalidade, à soberania do povo e à cidadania”. Na Fase H, o Anteprojeto da Comissão constituía-se do mesmo teor.

Na Comissão de Sistematização, Fase I, mudou-se topicamente o dispositivo para o Art. 37, mas o texto permaneceu o mesmo. Na Fase L, como Projeto da Constituição, passou a ser o Art. 36, mas a redação se manteve a mesma. Na Fase N, o Primeiro Substitutivo do Relator, passou o dispositivo (com o mesmo texto) para o Art. 23. Na Fase P, o Segundo Substitutivo do Relator trouxe modificações quanto à localização e ao rito: “art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza: (...) § 47º. Conceder-se-á mandado de injunção, observando o tiro processual previsto em lei complementar, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício das liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania do povo e à cidadania”.

Em Plenário, na Fase Q, Projeto A (início do primeiro turno), ocorreram pequenas mudanças: “art. 6º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. (...) § 51º. Conceder-se-á mandado de injunção, na forma da lei, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício das liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania do povo e à cidadania”. Na Fase T, Projeto B (fim do primeiro e início do segundo turno), o inciso LXXII continua com a redação do § 51º. do art. 6º., mas agora no art. 5º., excluída apenas a expressão “na forma da lei”. Na Fase V, Projeto C, (fim do segundo turno), posicionado o caput no art. 4º., passa o inciso LXXI a regular o mandado de injunção da mesma forma que a redação anterior.

Na Comissão de Redação, Fase X, Projeto D, Redação Final, o texto que seria promulgado passa a ser o seguinte: “art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXI –conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.1

Até chegar ao texto final, e ser inserido na Constituição, o instituto do mandado de injunção teve algumas modificações na sua identidade. Inicialmente constava no art. 23 do Substitutivo 1 (26/8/1987) da Comissão de Sistematização e tinha o seguinte teor: “conceder-se-á mandado de injunção, observado o rito processual do mandado de segurança, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades

1 BRASIL. A construção do art. 5º. da Constituição de 1988 (recurso eletrônico). Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013. p. 330-333.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 267 constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania do povo e à cidadania”. No Substitutivo 2 (18/09/1987), da Comissão de Sistematização, houve apenas mudanças quanto rito processual, que passava a ser “previsto em lei complementar”. No Projeto A (24/11/1987), no início do primeiro turno, Plenário, não mais se falava em mandado de segurança, nem em lei complementar, mas apenas “na forma da lei”. Posteriormente, os Projetos B e C, com Plenários, a Comissão de Redação Final e o Texto Promulgado consagraram a redação que veio a prevalecer. Topicamente, o dispositivo estava inicialmente no art. 23, passou ao art. 5º. parágrafo 47º., art. 6º., parágrafo 51º., art. 5º., LXXII, art. 4º., LXXI, para finalmente consagrar-se no art. 5º., LXXI.2

2. O MANDADO DE INJUNÇÃO E A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO

Embora se pareçam à primeira vista, podem ser diferenciados os institutos do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A Constituição de 1988 inovou ao se preocupar com as omissões inconstitucionais do Estado. Este, pela falta de ações positivas na elaboração e implementação de políticas públicas, de berço constitucional, pode impedir a concretização de direitos fundamentais e a aplicação de muitos dos dispositivos da C.

Tanto o mandado de injunção quanto a ação direta de inconstitucionalidade por omissão direcionam-se a colmatar as omissões estatais, quando violadoras da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Pode-se iniciar as distinções no que diz respeito à natureza da ação. O mandado de injunção constitui-se em “ação de natureza subjetiva”, servindo como instrumento de controle concreto ou incidental de constitucionalidade da omissão, voltado à tutela de direitos subjetivos. Considera-se assim, uma ação constitucional de “garantia de Direitos”. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão é uma “demanda de natureza objetiva”, sendo instrumento de controle abstrato ou principal de constitucionalidade da omissão. Trata-se de uma ação constitucional, de garantia da Constituição (art. 103, § 2º.).3 Enquanto o mandado de injunção possibilita tornar imediatamente viável o exercício de direitos fundamentais, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão

2 LIMA, João Alberto de Oliveira et all A gênese do texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013. v. 1 - quadros. p. 84.

3 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Distinções entre a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção. Disponível em <https://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com. br/artigos/163748936/distincoes-entre-a-acao-direta-de-inconstitucionalidade-por-omissao-e-o -mandado-de-injuncao>. Acesso em 19.07.2023.

direciona-se a tornar efetiva uma norma constitucional, independentemente de o texto definir um direito ou não.

A atividade normativa do Poder Judiciário no mandado de injunção é subjetiva, um meio para a garantia de viabilidade e exercício do direito. Na ação direta de inconstitucionalidade representa o próprio fim para a concretização da norma constitucional.

A omissão constitucional, no que diz respeito ao mandado de injunção, cria obstáculos ao exercício de um direito fundamental. Relativamente à ação direta de inconstitucionalidade por omissão verifica-se um impedimento à efetividade de qualquer norma constitucional, consagradora ou não de um direito fundamental.

No mandado de injunção não há dependência que se expire qualquer prazo para caracterizar-se a omissão. Já para a ação direta de inconstitucionalidade por omissão há necessidade do decurso de um prazo razoável para caracterizar a omissão.

Representando o mandado de injunção uma ação de controle concreto, instaurador de uma relação jurídica entre pessoa definidas, os efeitos da decisão judicial restringem-se às partes dessa relação processual, vale dizer, são inter partes. Já na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, tendo em vista sua natureza abstrata e objetiva (não há partes, nem controvérsia), os efeitos da decisão judicial são erga omnes.

A legitimidade ativa no mandado de injunção abrange toda e qualquer pessoa que titulariza um direito que pretende exercer, enquanto na ação direta de inconstitucionalidade por omissão está reservada com exclusividade aos entes, autoridades e órgãos arrolados, de forma taxativa, no art. 103, incisos I a IX, da Constituição de 1988.

A competência para processar e julgar o mandado de injunção é partilhada entre vários órgãos: STF (CRFB/1988, art. 102, I, q e II, a); STJ (art. 105, I, h, da CRFB/1988); STM, TSE e TST (CRFB/1988, art. 102, II, a), Órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal (art. 105, I, h, CRFB/1988), TREs (art. 121, § 4º., V), e também os Órgãos das Justiças dos Estados, de acordo com suas Constituições e leis de organizações judiciárias. A competência para o exame da ação direta de inconstitucionalidade por omissão é restrita ao Supremo Tribunal Federal ou aos Tribunais da Justiça dos Estados. Nesse último caso nas hipóteses de omissões contestadas perante as Constituições estaduais.4

4 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Distinções dentre a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção. Disponível em https://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/ artigos/163748936/distincoes-entre-a-acao-direta-de-inconstitucionalidade-por-omissao-e-o-mandado-de-injuncao. Acesso em 19.07.2023.

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Relativamente às questões de natureza trabalhista, pode ser exemplificada uma situação específica quanto à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

O procurador-geral da República ingressou com ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO 73), perante o Supremo Tribunal Federal, apontando mora do Congresso Nacional em regulamentar dispositivo da Constituição de 1988 que confere aos trabalhadores urbanos e rurais o direito social à proteção em face da automação. Segundo a ação, o dispositivo constitucional não somente elevou a proteção em face da automação ao nível de direito fundamental dos trabalhadores, como também impôs ao legislador federal a obrigação específica de editar lei para regulamentar tal direito.

Conforme registrado na petição inicial, decorridos mais de 33 anos desde a promulgação da Carta Magna, ainda não foi editada lei federal que regulamente o artigo 7º., inciso XXVII, da Constituição apesar de diversas proposições legislativas terem sido apresentadas sobre o tema. Por isso, requer que o Supremo declare a omissão inconstitucional por parte do Legislativo e que fixe prazo para a edição de norma federal sobre a matéria.

Explica, ainda, o procurador-geral, que a automação citada no dispositivo pode ser conceitualmente entendida como “fenômeno ligado à tecnologia”, consubstanciado “pela mecanização do sistema produtivo através do uso de máquinas e robes para o desemprenho de certas atividades, notoriamente em substituição (parcial ou total) do trabalho humano”.

Também apresenta resultado de um estudo, realizado em 2017, pela Consultoria Mckinsey, que estimou a perda de até 50% dos postos de trabalho no Brasil, por causa da automação, e ainda em decorrência do uso da tecnologia da informação e da inteligência artificial. Explicita que a epidemia provocada pela covid-19 intensificou a automação dos postos de trabalho, e que o Fórum Econômico Mundial reportou, em 2020, que foi acelerada em 68% a automação de tarefas no Brasil, como resposta à pandemia. Desse modo, “a Constituição Federal exige a adoção de providências legislativas voltadas a proteger os trabalhadores diante desse inevitável fenômeno”.5

Quanto ao mandado de injunção, também é possível exemplificar com um caso concreto paradigmático julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Como se há de recordar, o artigo 37, inciso VII, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, reconheceu o direito de greve para os

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. PGR aponta omissão do Legislativo em regulamentar proteção de trabalhadores frente à automação. Disponível em <https://www.conjur.com. br/2022-jul-16/pgr-aponta-omissao-protecao-trabalhadores-frente-automacao#:~:text=O%20procurador%2Dgeral%20da%20Rep%C3%BAblica,%C3%A0%20prote%C3%A7%C3%A3o%20 em%20face%20da>. Acesso em 20.07.2023.

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servidores públicos. Entretanto, ao dizer que o direito seria exercido nos limites definidos por lei específica, o legislador acabou por tornar o referido direito norma programática, isto é, sem validade imediata enquanto não regulada.

Nessa circunstância, à mingua da existência de lei regulamentadora, o STF foi instado a se manifestar sobre a questão no momento dos julgamentos dos Mandados de Injunção números 670, 708 e 712. Nessas ações, sindicatos de servidores buscavam assegurar o direito de greve para seus filiados e reclamavam da omissão legislativa do Congresso Nacional em regulamentar a matéria.

O Plenário do STF declarou a omissão legislativa quanto ao dever constitucional em editar lei que regulamentasse o exercício do direito de greve no setor público e, por maioria, aplicar ao setor, no que coubesse, a lei de greve vigente no setor privado (Lei 7.783/89). A decisão destacou a ausência de atitude do Congresso Nacional que, desde a Constituição de 1988, não aprovou a lei específica para regulamentar a greve no serviço público. Ressalta-se, ainda, que, “de maneira inédita, o STF decidiu comunicar ao órgão – Congresso Nacional – sua mora legislativa e aplicar a norma ao caso concreto, ou seja, utilizar a Lei 7.783/90.”6

Deve-se observar que o Supremo Tribunal Federal modificou, de forma substancial, a técnica de decisão do mandado de injunção no julgamento mencionado. Afastou-se da posição inicialmente praticada, de mera declaração da existência da mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica “e aceitando a possibilidade de garantir, de alguma forma, o exercício dos direitos assegurados na Constituição Federal, sem que essa postura importe em violação ao princípio da separação dos Poderes, posto que não se trata de atividade legiferante do Poder Judiciário, mas apenas uma regulação provisória”.7

3. A REGULAMENTAÇÃO POR LEI DO MANDADO DE INJUNÇÃO

Inexiste qualquer dúvida sobre a importância dos remédios constitucionais, que são os instrumentos mais importantes para a efetivação dos direitos fundamentais. Consideram-se verdadeiras armas, dispostas ao povo, em prol da realização desses direitos.

Entretanto, apesar disso, e dentre todos os remédios, o mandado de injunção, inacreditavelmente, ainda sofre uma enorme resistência prática. Uma

6 FIGUEIREDO, Fernanda Mendonça dos Santos. Supremo deu efetividade ao Mandado de Injunção. Revista Consultor Jurídico – CONJUR, de 04.11.2008. Disponível em < https://www.conjur. com.br/2008-nov-04/supremo_deu_efetividade_mandado_injuncao >. Acesso em 22.07.2023.

7 GALLO, Luiz Carlos, FACHIN, Zulmar. O mandado de injunção na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Jurídica Cesumar – Mestrado, v.12, n.1, p.343-352, jan/jun. 2012. p. 350-351.

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das razões pode ser a demora na regulamentação do dispositivo constitucional. Era o único desses instrumentos que, até 2016, ainda não tinha recebido uma regulamentação infraconstitucional, o que ocorreu apenas pela Lei 13.300.8

Dentre as ações constitucionais, o mandado de injunção é o que mais possibilita a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente no tocante à nacionalidade, soberania e cidadania, que, se tão abrangentes, podem titular desde um direito de greve do funcionalismo público, como o direito a uma aposentadoria especial.

Um dos aspectos mais importantes relacionados ao mandado de injunção é o alcance (ou os efeitos) da decisão. Sobre esse tema é possível relacionar quatro posicionamentos jurídicos. O primeiro deles denomina-se posição concretista geral, cujo entendimento considera que, por meio de normatividade geral, o STF supre a omissão normativa, produzindo a decisão efeitos erga omnes até que sobrevenha norma integrativa do órgão omisso. O segundo deles chama-se posição concretista individual direta, pois, nesse caso, a decisão, implementando o direito, valerá somente para o autor do mandado de injunção, diretamente. Em terceiro lugar, pela posição concretista individual intermediária, julgando procedente o mandado de injunção, o Judiciário fixa ao órgão omisso prazo para elaborar a norma regulamentadora; findo o prazo, e permanecendo a inércia, o autor passa a ter assegurado o seu direito. Por fim, em quarto lugar, a posição não concretista pela qual “a decisão apenas decreta a mora do poder omisso, reconhecendo-se formalmente a sua inércia”.9

Em importante decisão, por unanimidade, o STF declarou a omissão legislativa e, por maioria, determinou a aplicação, no que couber, da lei de greve vigente no setor privados aos servidores públicos. Nesse caso específico, a aplicação da lei não se restringiu aos impetrantes, mas a todo o funcionalismo público. Pode-se afirmar, desse modo, que a Suprema Corte do Brasil, em referido julgamento, consagrou a teoria concretista geral.

4. MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO

Deve-se, também, apresentar alguns aspectos relacionados ao mandado de injunção coletivo.

8 Brasil. Lei 13.300, de 23.06.2016, que disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13300.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.300%2C%20 DE%2023,Art.>. Acesso em 22.07.2023.

9 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Você conhece o Mandado de Injunção? Veja 15 tópicos essenciais. Disponível em <https://www.trt4.jus.br/portais/escola/ modulos/noticias/415870>. Acesso em 22.07.2023.

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A Lei 13.300, de 23 de junho de 2016, nos seus arts. 12 e 13, trata de forma específica do mandado de injunção coletivo.

Considera legitimados para a demanda o Ministério Público, partido político com representação no Congresso Nacional, organização sindical e a Defensoria Pública (art. 12, incisos I e IV). No parágrafo único desse dispositivo apresenta um importante conceito: “Os direitos, as liberdades e as prerrogativas na lei protegidos por mandado de injunção coletivo são os pertencentes, indistintamente, a uma coletividade indeterminada de pessoas ou determinada por grupo, classe ou categoria”.10

Como se pode notar, verifica-se a salutar pluralidade de legitimados ativos para o manejo do mandado de injunção coletivo, com importante destaque para o Ministério Público, quando a tutela requerida for especialmente significativa para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático ou dos interesses sociais ou individuais indisponíveis e da Defensoria Pública, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º. da Constituição de 1988.

Também inova a Lei 13.300/2016 ao legitimar o partido político com representação no Congresso Nacional “para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas de seus integrantes ou relacionados com a finalidade partidária”.11

De forma diferente do parágrafo único do art. 21 da Lei 12.016/2009 (do Mandado de Segurança), ao estabelecer que os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser coletivos ou individuais homogêneos, não incluindo expressamente os direitos difusos, o parágrafo único do art. 12 da Lei 13.300/2016 (do Mandando de Injunção) instituiu que os direitos, liberdades e prerrogativas protegidos pelo mandado de injunção coletivo são os pertencentes, indistintamente, a uma coletividade indeterminada de pessoas ou determinada por grupo, classe ou categoria.

Transparece a certeza que o legislador não quis se utilizar da clássica divisão doutrinária de direitos coletivos lato sensu em direitos difusos, direitos

10 BRASIL, Lei n.13.300, de 23 de junho de 2016, que disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências. Disponível em <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13300.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%20 13.300%2C%20DE%2023,Art.> Acesso em 22.07.2023.

11 CABRAL, Francisco. Mandado de injunção como instrumento do controle difuso para coibir omissão legislativa na tutela de direitos subjetivos e sua disciplina estabelecida pela Lei n. 13.300, de 23 de junho de 2016. Disponível em < https://jus.com.br/artigos/77044/mandado-de -injuncao-como-instrumento-do-controle-difuso-para-coibir-omissao-legislativa-na-tutela-dedireitos-subjetivos-e-sua-disciplina-estabelecida-pela-lei-n-13-300-de-23-de-junho-de-2016 >. Acesso em 25.07.2023.

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coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos. Com certeza, “essa técnica evitará maiores discussões acerca de quais os direitos coletivos podem ser tutelados pelo mandado de injunção, já que a lei não faz qualquer restrição”.12

Muito antes da edição dessa lei, em 1989/1990, logo após a edição da Carta Magna, José Afonso da Silva já explicava que o mandado de injunção constituía-se em um “remédio coletivo”, já que pode ser impetrado por sindicato (art. 8º., III) “no interesse de Direitos Constitucionais de categorias de trabalhadores quando a falta de norma regulamentadora desses direitos inviabiliza seu exercício”.13

O mesmo doutrinador apresentava o exemplo da participação no lucro das empresas, afirmando ser direito reconhecido pela Constituição aos trabalhadores no art. 7º., XI, dependente de regulamentação legal. Explicava que se essa normatização não viesse aí o direito previsto ficaria inviabilizado, e isso seria pressuposto do mandado de injunção. Acrescentava que, conforme o art. 8º., III, da Constituição de 1988, os sindicatos são partes legítimas para defender direitos e interesses da categoria, “o mandado de injunção utilizado em tal situação, como o proposto por qualquer outra entidade associativa nos termos do art. 5º., XXI, assegura a natureza de coletivo”. 14

O vaticínio do Professor José Afonso da Silva não precisou de concretização. Em 19 de dezembro de 2020 foi promulgada a Lei 10.101, que dispôs sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa e dá outras providências, afirmando, já no art. 1º.: “esta Lei regula a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa como instrumento de integração entre o capital e o trabalho e como incentivo à produtividade, nos termos do art. 7º., inciso XI, da Constituição”.15

12 CAVALCANTI, Francisco Ivo Dantas; RIBEIRO, Ana Célia de Sousa. Comentários à Lei 13.300/2016: a deferência do Poder Legislativo ao entendimento jurisprudencial sobre o mandado de injunção. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, Brasília, DF, v. 31, n. 1, 2019 (p. 29-41), p. 34.

13 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2. tiragem, 1990. p. 397.

14 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2. tiragem, 1990. p.397

15 BRASIL. Lei 10101, de 19 de dezembro de 2000, que dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa e dá outras providências. Disponível emhttp://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l10101.htm#:~:text=L10101&text=LEI%20No%2010.101%2C%20DE%20 19%20DE%20DEZEMBRO%20DE%202000.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20participa%C3%A7%C3%A3o%20dos,empresa%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.. Acesso em 25.07.2023.

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5. O CASO DO AVISO PRÉVIO PROPORCIONAL AO TEMPO DE SERVIÇO E SUA LEI NORMATIZADORA

Há um exemplo muito interessante de aplicabilidade do mandado de injunção ao Direito do Trabalho buscando regular dispositivo constitucional.

A Constituição determina que o aviso prévio deve ser “proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei” (art. 7º., XXI).16 O Congresso Nacional, entretanto, permaneceu inerte, deixando de editar a lei, apesar de transcorridas mais de duas décadas da promulgação da Carta Magna de 1988.

Tendo em vista a inércia legislativa, foram ajuizados Mandados de Injunção perante o Egrégio Supremo Tribunal Federal, distribuídos sob os números 943/DF, 1010/DF, 1074/DF e 1090/DF. Em 22.06.2022, o STF iniciou a análise do caso, assentando a necessidade de corrigir a paralisia legislativa sobre o tema.

O Min. Gilmar Mendes, ao reconhecer a mora legislativa, julgou procedente o pedido, fazendo um retrospecto sobre a evolução do Supremo quanto às decisões proferidas em sede de mandado de injunção: da simples comunicação da mora à solução normativa e concretizadora. Destacou que, no tocante ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, o Min. Carlos Velloso, em voto vencido, construíra solução provisória, fixando-o em “10 dias por ano de serviço ou fração superior a 6 meses, observado o mínimo de 30 dias”. Aduziu, entretanto, que essa equação também poderia ser objeto de questionamento, porquanto careceria de amparo fático ou técnico, uma vez que a Constituição conferira ao Poder Legislativo a legitimidade para resolver a lacuna. O Min. Luiz Fux acrescentou que o art. 8º. da CLT admitiria como método de hétero-integração o direito comparado e citou como exemplos legislações da Alemanha, Dinamarca, Itália, Suíça, Bélgica, Argentina e outras. Apontou, ainda, uma Recomendação da Organização Internacional do Trabalho-OIT sobre a extinção da relação trabalhista. Por sua vez, o Min. Marco Aurélio enfatizou que o critério a ser adotado deveria observar a proporcionalidade exigida pelo texto constitucional e propôs que também se cogitasse de um aviso prévio de 10 dias – respeitado o piso de 30 dias – por ano de serviço transcorrido. O Min. Cezar Peluso sugeriu como regra para a situação em debate que o benefício fosse estipulado em um salário mínimo a cada 5 anos de serviço. O Min. Ricardo Lewandowski, por seu turno, mencionou alguns projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional. Diante desse panorama, o Relator Min. Gilmar Mendes acentuou a existência de consenso da Corte quanto ao provimento do Writ e à necessidade de uma decisão para o caso concreto, cujos efeitos inevitavelmente

16 brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Disponível emhttp://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 09.08.2023.

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se projetariam além da hipótese sob apreciação. Após salientar que a mudança jurisprudencial referente ao mandado de injunção não poderia retroceder, e tendo em conta a diversidade de parâmetros que poderiam ser adotados para o deslinde da controvérsia, indicou a suspensão do julgamento, o qual deverá prosseguir para explicitação do dispositivo final.17

Consta no site do STF que “o Tribunal julgou procedente quatro pedido formulados em mandado de injunção para declarar a mora legislativa do Congresso Nacional na regulamentação do direito ao aviso prévio proporcional previsto no art. 7º., XXI, da Constituição de 1988, e para determinar a comunicação da decisão a esse órgão”.18

Conforme noticiado pela imprensa, o Presidente da Câmara dos Deputados participou de uma reunião com integrantes do STF para debater o tema. Nessa oportunidade recebeu o alerta que uma decisão definitiva da Corte dificultaria a votação da questão na Câmara e que o Judiciário, ao apreciar o tema, auxiliou o Congresso a “desobstruir” as negociações outrora encetadas entre empregadores e empregados.19

Passadas duas semanas da aludida reunião, o Congresso Nacional aprovou lei para regulamentar o dispositivo constitucional, aumentando para até noventa dias o aviso prévio.20 Esse caso demonstra, de forma clara, que o STF deixou de ser um órgão que exerce atividade legislativa negativa, tornando-se um influenciador direto da atuação do Congresso Nacional, inclusive na pauta de votações dessa Casa Legislativa.

A lei promulgada, finalmente, 23 anos depois da Constituição de 1988, regulou o aviso proporcional ao tempo de serviço. Ao aviso prévio de 30 dias, concedido aos empregados que contem até um ano de serviço na mesma empresa, foram acrescidos três dias por ano de serviço prestado na mesma empresa, até o máximo de sessenta dias, perfazendo um total de noventa dias. Sobre a aplicabilidade da lei, considerando a existência de contratos de trabalho findos ou em andamento, significativa orientação nos é dada pelo seguinte texto:

17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 943/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, 22.06.2011. Boletim Informativo n.632 do Supremo Tribunal Federal de 20 a 24 de junho de 2011. Disponível em <https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/>. Acesso em 09.08.2023.

18 BRASIL. STF - Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência – Omissão inconstitucional. última atualização 22.03.2018. Disponível em <https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaPesquisaGeral&pagina=casos_notorios_2018>. Acesso em 09.08.2023.

19 CABRAL, Maria Clara; SELIGMAN, Felipe. Câmara e STF negociaram aviso prévio. Folha de São Paulo, 23.09.2011, Caderno Mercado, B3.

20 BRASIL. Lei 12.506, de 11 de outubro de 2011, que dispõe sobre o aviso prévio e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12506. htm>. Acesso em 09.08.2023.

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o aviso prévio proporcional refere-se a direito adquirido, por conta de sua previsão constitucional, mas não concedido. Deve-se, então, aplicar a regra da contagem do tempo de serviço vigente no momento da extinção do contrato de trabalho, que é quando o direito é materializado, não havendo que se falar em cômputo do tempo de serviço somente a partir da promulgação da nova lei.21

Para os demitidos antes de 13.10.2011, quando foi promulgada a Lei 12.506/2011, pode haver direito ao aviso prévio proporcional desde que tenham ajuizado ação no STF até aquela data, e antes da demissão ter completado dois anos. Essa decisão foi tomada pela Suprema Corte, cuja ementa é a seguinte:

O direito ao aviso prévio proporcional é assegurado a todos aqueles que impetraram um mandado de injunção em data anterior à entrada em vigor da Lei n.12.506/2011, em 13.10.2011, de acordo com os critérios legais. Jurisprudência do Plenário: Mandados de Injunção 943, 1010, 1074 e 1090.22

Por fim, discutiu-se, durante certo período, se a proporcionalidade do aviso prévio, tendo em vista o tempo de serviço, também se constituía em direito do empregador. A Subseção de Dissídios Individuais 1- SBDI1 do E. TST, no E –RR- 1964 – 73. 2013. 5.09.0009, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann concluiu que a proporcionalidade do aviso prévio apenas pode ser exigida da empresa; que entendimento contrário, isto é, exigir que também o trabalhador cumpra aviso prévio superior aos originários trinta dias, constituiria alteração legislativa prejudicial ao empregado, o que, pelos princípios que norteiam o ordenamento jurídico trabalhista, não se pode admitir. A conclusão foi que a norma jurídica relativa ao aviso prévio proporcional não guarda a mesma bilateralidade característica da exigência de trinta dias, essa sim obrigatória a qualquer das partes que intentarem rescindir o contrato de emprego.23

Pode-se, em síntese, concluir, portanto, que, nos termos do caput do art. 7º., da Constituição de 1988, todos os incisos, do I ao XXXIV, representam direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que visam à melhoria de sua condição social. Interpretar-se de forma diversa, parece-nos, será atentar contra o texto constitucional.

21 NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Aviso prévio proporcional não deve retroagir. Revista CONJUR – Consultor Jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2012-fev-22/aviso-previo-proporcional-nao-aplica-anteriores-vigencia>. Acesso em 09.08.2023.

22 BRASI. Supremo Tribunal Federal. Segundo Ag. Reg. no Mandado de Injunção 1.008 Distrito Federal, Rel. Min. Teori Zavascki, Decisão em 16.05.2013, Plenário, por unanimidade. Disponível em <https:// redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4395534>. Acesso em 09.08.2023.

23 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. TST decide que aviso prévio proporcional é obrigação limitada ao empregador. Disponível em <https://www.tst.jus.br/-/tst-decide-que-aviso-previo-proporcional-e-obrigacao-limitada-ao-empregador>. Acesso em 09.08.2023.

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caPítulo 15 a Questão constitucional enQuanto Questão PreJuDicial

1. O SIGNIFICADO DE QUESTÃO PREJUDICIAL NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Não obstante seja evidente que os conceitos e classificações jurídicas revelam entendimentos que têm a ver com as épocas, de modo que não podem ser pensados como equivocados, mas como adequados ou não aos contextos concretos em que formulados, há ainda quem imagine que pode elaborar construções dogmáticas ou interpretações jurídicas com base em conceitos herdados, apostando na autoridade de seus autores ou, pior ainda, na sua proveniência geográfica1.

Curiosamente, intérpretes menos conscientes ou avisados acerca das obviedades da teoria do direito têm interpretado o art. 503 do Código de Processo Civil, que expressamente se refere a “questão prejudicial”, com base no que diz a doutrina que formulou um dos possíveis conceitos de questão prejudicial, ainda que esse possa ter influenciado o Codice di Procedura Civile de 1942. Ora, é pouco mais do que absurdo imaginar que o Código brasileiro de poucos anos atrás tenha que ser interpretado com base num conceito

1 Como disse Genaro Carrió, como a teoria jurídica trabalha, em quase todos os setores, com classificações herdadas, a maioria contando com aval de grande prestígio e tradição, os juristas acabam acreditando que as classificações podem constituir formas verdadeiras ou falsas de agrupar as regras e os fenômenos, em lugar de nelas ver simples instrumentos para a sua melhor compreensão (Genaro R. Carrió, Notas sobre derecho y lenguaje, p. 98). Mais do que isso, alguns intérpretes imaginam que há conceitos jurídicos verdadeiros e eternos, especialmente quando delineados por juristas estrangeiros que, em determinado época, gozaram de grande reputação e, sem dúvida, muito contribuíram para o desenvolvimento do direito, como, por exemplo, Chiovenda, o responsável pelo conceito de “questão prejudicial” que até hoje persiste no Código italiano e, estranhamente, ainda seduz aqueles que hoje olham para o Código brasileiro de 2015.

jurídico formulado para outra época ou que possa ter marcado um código europeu de quase um século atrás.

O art. 503 do Código de Processo Civil, após afirmar que “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”, esclarece que o mesmo se dá no que diz respeito à decisão “de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo”, quando “dessa resolução depender o julgamento do mérito”. É evidente que não há qualquer motivo para atribuir à expressão “questão prejudicial”, inserida no art. 503, o significado que se conferiu à pregiudiziale do artigo 34 do Codice di Procedura Civile, ou o mesmo sentido que se deu à questão prejudicial apta a abrir ensejo à ação declaratória incidental na vigência do Código de Processo Civil de 1973, quando rigorosamente se seguiu a doutrina chiovendiana das primeiras décadas do século passado.

A ação declaratória incidental foi configurada a partir da premissa de que a coisa julgada depende de pedido2, tendo essa premissa se baseado, entre outros pontos, na ideia de que a coisa julgada requer manifestação da vontade e consequente delimitação do objeto litigioso3. De outro lado, a admissão de coisa julgada sobre questão prejudicial, nos termos do art. 503, objetiva garantir a segurança jurídica e a coerência do direito, evitando a rediscussão do que já se discutiu e decidiu, ainda que não em virtude de pedido. Como é óbvio, essa opção legislativa não apenas desvincula a coisa julgada do pedido ou da ação incidental, como torna sem razão de ser, por simples consequência lógica, a noção de questão prejudicial própria à ação declaratória incidental.

Chiovenda, cuja doutrina está à base tanto do art. 34 do Código italiano quanto do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, disse que as partes “podem achar conveniente que, por ocasião da ‘causa principal’, um ponto prejudicial possa ser declarado de uma vez para sempre, com efeitos transcendentes à lide em curso. Isso acontecerá naturalmente apenas quando o ponto prejudicial tiver natureza que possa constituir o objeto principal ou o antecedente lógico de outras lides futuras”. Assim, estabeleceu-se, como primeiro requisito da ação declaratória incidental, a necessidade de a prejudicial poder ser objeto de ação declaratória autônoma4 .

2 Essa parte do escrito de Chiovenda vale como confissão da lógica da doutrina que vincula questão prejudicial a ação declaratória incidental: “All’infuori dei casi in cui la stessa legge, con una norma espressa, richiede sopra una questione pregiudiziale un accertamento incidentale, questo risultato può ottenersi dalla volontà delle parti. Poichè se normalmente la cosa giudicata non si estende alle questione pregiudiziali, appunto per il riguardo dovuto alle volontà delle parti deve essere consentito alle parti di manifestare una diversa volontà” (Giuseppe Chiovenda, Principii di Diritto Processuale Civile, Napoli: Jovene, [1906] 1965, p. 1.172).

3 Sergio Menchini, I limiti oggettivi del giudicato civile, Milano: Giuffrè, 1987, p. 9-10.

4 “La libertà di proporre domande d’accertamento incidentale, eventualmente, turbando il corso della causa principale, non è assoluta, ma vincolata ad una serie di limiti. Sono condizioni dell’azione

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Quando a coisa julgada sobre questão prejudicial depende de pedido, a questão capaz de gerar coisa julgada é apenas a que pode ser veiculada mediante pedido ou pode ser objeto de ação declaratória autônoma. Dessa forma, a questão prejudicial não pode gerar coisa julgada quando não tem natureza idônea à declaratória incidental. A solução da questão prejudicial, à distância da ação incidental, teria natureza meramente lógica, nos termos da doutrina de Chiovenda5, para quem a solução de questões no curso do processo revelaria apenas o raciocínio lógico do juiz6.

Sublinhe-se que, não obstante alguém possa pensar que deve interpretar a “questão prejudicial” do atual Código como se estivesse diante da fracassada ação declaratória incidental do Código de 1973 – claramente baseado, também nesse aspecto, no Código italiano –, nunca houve unanimidade quanto ao conceito de questão prejudicial nem mesmo na Itália. A doutrina italiana atribuiu diversos significados ao termo “questão prejudicial” para demonstrar que, ao lado da questão prejudicial própria à declaratória incidental do art. 34 do Codice di Procedura Civile, existiria questão prejudicial capaz de dar origem à coisa julgada sem necessidade de declaratória incidental7.

Como é sabido, a questão prejudicial apta a gerar ação declaratória – ou seja, a questão típica da declaratória incidental – é a relação jurídica que condiciona a relação jurídica objeto da ação principal. Ou seja, a relação jurídica condicionante, ou de que depende a relação jurídica da causa principal, é uma relação jurídica autônoma, distinta da relação jurídica condicionada8. Assim, por d’accertamento incidentale: a) anzitutto che l’oggetto della domanda sia tale che avrebbe potuto formare oggetto d’una azione autonoma d’accertamento…” (Giuseppe Chiovenda, Principii di Diritto Processuale Civile, p. 1.176).

5 Giuseppe Chiovenda, Cosa giudicata e preclusione, Saggi di diritto processuale civile, Milano: Giuffrè, 1993, v. 2, p. 256. Lembre-se que Chiovenda não esclareceu, e parece não ter tido qualquer interesse de esclarecer, o significado de “trabalho lógico”, “material lógico” ou “raciocínio lógico”. Essas expressões foram utilizadas como mantras para, sem permitir qualquer forma de questionamento, eliminar a discussão sobre o significado das decisões incidentais sobre questões. Ver Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, 3a. ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2022, p. 163 e ss.

6 Nessa dimensão, como é óbvio, confina-se arbitrariamente e sem racionalidade as questões prejudiciais que não são objeto de ação declaratória num local em que haveria apenas “lavoro logico”, deixando de importar se a questão tem essa ou aquela natureza e se a sua resolução pode gerar coisa julgada. Não há motivo para perguntar se a questão é apta a gerar coisa julgada quando ela sequer é vista como elemento digno de decisão.

7 Vittorio Denti, Questioni pregiudiziali (diritto processuale civile), Novissimo digesto italiano, v. XIV, p. 675 e ss; Vittorio Denti, Questioni rilevabili d’ufficio e contraddittorio, Rivista di diritto processuale, 1968, p. 219 e ss; Vittorio Denti, Sentenze non definitive su questioni preliminari di merito e cosa giudicata, Rivista di diritto processuale, 1969, p. 213 e ss; Andrea Proto Pisani, Lezioni di Diritto Processuale Civile, Napoli: Jovene, 1994, p. 328-329.

8 Aldo Attardi, In tema di questioni pregiudiziali e giudicato, Studi in memoria di E. Guicciardi, Padova: Cedam, 1975, p. 185.

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280 exemplo, a qualidade de herdeiro e o direito ao crédito hereditário. A qualidade de herdeiro é uma relação jurídica condicionante ou prejudicial do direito de crédito. A primeira prejudica a segunda, mas uma não se confunde com a outra.

É nessa linha que se fala em prejudicialidade técnica, diferenciando-a da prejudicialidade lógica9. Porém, a doutrina que desenvolveu a ideia de prejudicialidade lógica não só demonstrou a existência de questões prejudiciais inidôneas à declaração incidental, mas também evidenciou que a resolução dessas questões pode produzir coisa julgada. Esclareceu-se, assim, que a coisa julgada sobre questão prejudicial não é um atributo exclusivo da ação declaratória incidental e, desse modo, que questão prejudicial não é sinônimo de relação jurídica que pode dar origem a ação declaratória na pendência da causa principal.

Na verdade, já antes da elaboração da distinção entre prejudicialidade técnica e prejudicialidade lógica, a doutrina italiana tinha apontado para a impropriedade de se pensar que questão prejudicial é um sinônimo daquela que pode ser objeto de ação declaratória autônoma. Vittorio Denti contestou a opinião, que era corrente entre os estudiosos, sobre a natureza das questões prejudiciais e sua distinção das questões preliminares de mérito. Advertiu que, apesar de a natureza da questão prejudicial sempre ter sido buscada i) na idoneidade da questão para constituir objeto de processo autônomo e ii) na natureza meramente lógica e instrumental da sua solução, as próprias normas do Código colocariam em evidência – de lado as questões prejudiciais próprias ao art. 34 (à declaratória incidental) e que seriam melhor denominadas de “causas prejudiciais” – uma outra espécie de questão prejudicial, caracterizada i) pela

9 Enquanto a prejudicialidade técnica envolve duas relações jurídicas, a prejudicialidade lógica é interna a uma única relação jurídica. Há, por exemplo, uma relação jurídica de locação de que depende o pedido de adimplemento dos aluguéis e não uma relação jurídica que condiciona a existência de outra relação jurídica ou de outro direito, como acontece nos casos em que o direito de propriedade é prejudicial ao direito ao ressarcimento dos danos provocados ao bem ou em que o direito aos alimentos depende da relação de filiação. Na prejudicialidade lógica, o nexo de dependência diz respeito a um efeito jurídico e uma relação jurídica complexa. Nesse caso, o efeito jurídico está integrado na relação jurídica, de modo que o efeito jurídico deduzido mediante o pedido depende da existência da relação jurídica que o constitui ou que o fundamenta (Andrea Proto Pisani, Lezioni di Diritto Processuale Civile, p. 328). A diferença entre prejudicialidade técnica e lógica evidencia que a questão prejudicial objeto da ação declaratória incidental nada tem a ver com a questão prejudicial que pode ser decidida incidentalmente no processo, inclusive com a autoridade de coisa julgada. Tanto é assim que a doutrina italiana utilizou o conceito de prejudicialidade lógica para demonstrar que uma questão prejudicial – sem necessidade de declaratória incidental – fica coberta pela coisa julgada em virtude do reconhecimento do direito ou do efeito jurídico nessa ancorado (Sergio Menchini, Il giudicato civile , Torino: UTET, 2002, p. 81). Afirmou-se, nesse sentido, que a procedência do pedido de pagamento de aluguéis não poderia deixar de se fundar no reconhecimento da validade da locação, idôneo à produção de coisa julgada, uma vez que de outra forma a decisão final restaria destituída de qualquer suporte lógico-jurídico.

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necessidade de sua preventiva ou antecedente solução e ii) pela potencial idoneidade da sua decisão para definir o processo10

Concluiu-se, a partir daí, que o Código regularia duas espécies de questões: i) as questões prejudiciais previstas no art. 34, ou seja, aquelas que podem ser objeto de uma ação declaratória autônoma; e ii) as questões prejudiciais relativas ao processo e as questões preliminares de mérito, que, sendo potencialmente idôneas para definir o processo, podem dar lugar a decisões autônomas no âmbito do próprio processo. Demonstrou-se que, do mesmo modo que as questões processuais e as preliminares de mérito podem ser objeto de decisão que define o processo, essas podem ser objeto de decisão proferida no curso do processo, sendo que tanto as decisões definitivas quanto as não-definitivas são aptas a produzir coisa julgada. Isso não apenas fez ver que existem outras questões prejudiciais ao julgamento do pedido, mas que a decisão dessas questões sempre faz coisa julgada, definindo ou não o processo11 .

Diante disso, resulta com clareza que constituem questões prejudiciais idôneas à formação da coisa julgada não só as questões processuais, mas também as questões de mérito que não podem constituir objeto de ação declaratória autônoma, como, por exemplo, a prescrição ou a questão que envolve saber se determinada norma deve ser aplicada

Michele Taruffo se valeu da lição do seu mestre – Vittorio Denti – ao escrever “collateral estoppel e giudicato sulle questioni”12. Observou que, quando a questão é decidida de modo a definir o processo – por exemplo, declaração de prescrição –, a decisão equivale a um pronunciamento negativo sobre o efeito jurídico objeto do processo. Por consequência, a decisão tem forma e conteúdo de sentença e, encerrando o processo, passa em julgado. No entanto, não deveria existir razão para dúvida de que isso não ocorre apenas quando a decisão da questão define o processo, mas também quando a questão é decidida de modo a que o processo prossiga rumo à solução da controvérsia sobre a relação

10 A primeira característica poderia ser vista no art. 276, 2, que apontaria para a precedência da solução das questões prejudiciais ao estabelecer que essas são gradativamente decididas antes do objeto do processo. A segunda estaria no art. 187, 2, que confere ao juiz instrutor a possibilidade de investir o “collegio” na decisão de uma questão preliminar quando a sua solução puder definir o processo, declarando negativamente a pretensão do autor. Denti lembrou, então, que – de acordo com o art. 279 – o collegio, mediante sentença, pode definir o juízo decidindo tanto questões de jurisdição e questões prejudiciais relativas ao processo, quanto questões preliminares de mérito, e que, nesses casos, tais questões também podem ser decididas sem a definição do juízo, quando o processo não é encerrado Ver Vittorio Denti, Sentenze non definitive su questioni preliminari di merito e cosa giudicata, Rivista di diritto processuale, 1969, p. 216 e ss.

11 Vittorio Denti, Sentenze non definitive su questioni preliminari di merito e cosa giudicata, Rivista di diritto processuale, 1969, p. 220 e ss.

12 Michele Taruffo, “Collateral estoppel” e giudicato sulle questioni – n. II, Rivista di Diritto Processuale, 1972, p. 284 e ss.

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prejudicada ou em direção ao julgamento do pedido. Taruffo então sintetiza o problema afirmando que do caráter de prejudicialidade como idoneidade da solução da questão a definir o processo decorre, independentemente do conteúdo da específica decisão e do momento ou contexto em que é proferida, que a questão prejudicial não é decidida, em regra, com eficácia meramente lógica, mas com “giudizio pieno”, de que resulta a idoneidade da decisão para produzir coisa julgada 13 .

Não há espaço e necessidade para aqui demonstrar, com mais vagar, a clara superioridade das teorias da prejudicialidade lógica e da potencial idoneidade da questão para a definição do juízo ou do processo. A despeito disso, está bastante claro que não existe um conceito universal de questão prejudicial e que outros conceitos foram elaborados para justificar a coisa julgada sobre uma questão prejudicial que não se confunde com aquela que pode dar ensejo à declaratória incidental.

O conceito de questão prejudicial depende das opções democráticas que definem os sistemas processuais, de modo que não há como imaginar que a questão prejudicial, capaz de permitir coisa julgada sobre questão no direito brasileiro contemporâneo, é a velha questão prejudicial que abria margem à ação declaratória incidental no Código de Processo Civil de 197314.

A proposital desvinculação da coisa julgada sobre questão prejudicial da propositura de ação declaratória incidental, claramente delineada nos parágrafos e incisos do art. 503, é suficiente para evidenciar que a questão prejudicial do Código de Processo Civil de 2015 está em outro contexto, num em que a coisa julgada tem objetivo completamente distinto daquele que anteriormente lhe foi reservado no sistema brasileiro, nas águas da herança que lhe foi transmitida pelo direito italiano.

Questão prejudicial, na perspectiva da coisa julgada que sobre ela recai, ou seja, na realidade do atual Código de Processo Civil, é a que necessariamente deve ser decidida para se julgar o pedido ou é a questão de que “depende o julgamento do mérito”, conforme o art. 503, § 1º, I, do Código de Processo Civil.

Não só os ditos fatos-direitos15 – como, por exemplo, a relação de parentesco diante do pedido de alimentos – constituem questão prejudicial. A questão prejudicial não mais está restrita nem a uma relação jurídica autônoma, capaz de dar origem à declaratória incidental, nem a uma relação jurídica

13 Michele Taruffo, “Collateral estoppel” e giudicato sulle questioni – n. II, Rivista di Diritto Processuale, 1972, p. 284-285.

14 Conforme foi amplamente demonstrado em Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, esp. p. 223 e ss.

15 Proto Pisani fala em “fatti-diritti” em contraposição a “meri fatti”. (Andrea Proto Pisani, Lezioni di Diritto Processuale Civile, p. 64).

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complexa de que deriva o efeito jurídico postulado mediante o pedido. Portanto, não há motivo para dúvida de que a questão da relação de filiação na ação de alimentos ou, ainda, a questão da validade do contrato na ação em que se pretende o cumprimento de uma sua cláusula, constituem questão prejudicial. Na verdade, diante dos exatos termos do art. 503 e da própria razão de ser da coisa julgada sobre questão, toda e qualquer questão jurídica de que depende o julgamento do mérito, como por exemplo a prescrição, é uma questão prejudicial, pouco importando que não constitua relação jurídica.

Tanto a questão de direito que requer a aferição de um fato - como a culpa ou a responsabilidade civil na ação ressarcitória -, quanto a questão de direito que reclama aplicação ou interpretação de uma norma ou a qualificação jurídica de uma cláusula contratual, constituem questões prejudiciais de que depende o julgamento do mérito 16 .

Aliás, é importante sublinhar que o art. 503 tem clara e indisfarçável inspiração no direito estadunidense, particularmente no § 27 do Restatement Second of Judgments17, o qual afirma que, quando uma questão de fato ou de direito é efetivamente discutida e decidida mediante julgamento válido e final, e a decisão é essencial para o julgamento, a decisão é aplicável ou produz efeitos em uma subsequente ação entre as partes, seja a ação baseada na mesma ou em diferente “claim”18 .

Ora, os parágrafos do art. 503 exigem, para o surgimento de coisa julgada sobre questão, exatamente a i) expressa decisão da questão, a sua ii) dependência para o julgamento do mérito e a sua iii) devida discussão, exatamente nos termos do § 27 do Second Restatement, que literalmente alude a “actually litigated and determined” e a decisão “essential to the judgment”, enquanto requisitos para o collateral estoppel19. Essa cópia de requisitos, providenciada pelo legislador brasileiro, obviamente não constitui um acaso, e, portanto,

16 Domenico Dalfino, Questioni di diritto e giudicato, Torino: Giappichelli, 2008, p. 65 e ss; Vittorio Denti, Questioni rilevabili d’ufficio e contraddittorio, Rivista di diritto processuale, 1968, p. 221.

17 RSJ, § 27: When an issue of fact or law is actually litigated and determined by a valid and final judgment, and the determination is essential to the judgment, the determination is conclusive in a subsequent action between the parties, whether on the same or a different claim.

18 O Restatement Second fala em claim preclusion e issue preclusion (que pode ser confundida com o collatteral estoppel). Não é possível traduzir claim como causa de pedir, porém é importante perceber que a claim preclusion descreve a situação em que o julgamento preclui outra ação com base na mesma claim, enquanto que a issue preclusion revela a hipótese em que a decisão de uma questão preclui a sua relitigação em uma outra ação, ainda que fundada em diferente claim. David Shapiro adverte que o conceito de claim ainda é objeto de debate nos Estados Unidos (David Shapiro, Preclusion in civil actions, New York: Foundation Press, 2001, p. 34 e ss).

19 David Shapiro, Preclusion in civil actions, p. 48; Austin Scott, Collateral Estoppel by judgment, Harvard Law Review, v. 56, 1942, p. 1-2; Alan N. Polasky, Collateral estoppel – Effects of prior litigation, Iowa Law Review, 1954, p. 222.

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constitui clara advertência para a necessidade de se abandonar o ultrapassado e hoje socialmente inútil conceito romano de coisa julgada, restrito ao pedido e às partes20. Claramente, o art. 503 do Código de 2015 contém uma nítida e incontestável abertura ao collateral estoppel, consolidado na experiência concreta estadunidense há muito tempo.

O collateral estoppel se diferencia da coisa julgada romana por não exigir, para que a coisa julgada recaia sobre questão, relação jurídica – capaz de dar origem a uma ação declaratória incidental –, podendo, ao contrário, tornar indiscutível qualquer decisão sobre uma “issue of fact or law” 21. O § 27 do Second Restatement admite a aplicabilidade do collateral estoppel às questões de direito que exigem a aferição de fato e às questões que reclamam saber, diante dos fatos, o significado de uma norma ou a sua aplicabilidade. E obviamente não poderia ser de outra forma, na medida em que uma questão prejudicial, de que depende o julgamento do pedido, invariavelmente requer a investigação de fato ou juízo sobre a aplicabilidade ou o significado de uma norma.

A coisa julgada sobre questão nada mais é do que uma correção da absurda e infundada ideia, ainda hoje presente no direito italiano e até pouco tempo no direito brasileiro, de que a questão discutida e decidida no curso do processo só faz coisa julgada quando apresentada ao Juiz mediante ação declaratória incidental22. Como a coisa julgada, nos termos da tradição do direito italiano, depende de pedido ou de ação, haveria necessidade de uma relação jurídica autônoma, hábil a dar ensejo a uma ação incidental. Isso significa que insistir na ideia de que a questão prejudicial do art. 503 é aquela (velha questão prejudicial) que se confundia com a relação jurídica capaz de ensejar ação declaratória toca às raias do absurdo, constituindo ingenuidade inescusável ou simples vontade de manter as coisas como eram, sem qualquer utilidade para as pessoas e para o Judiciário, como há algum tempo, aliás, já reconhece a melhor doutrina italiana23.

20 Ver sobre isso Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, esp. p. 177-204; p. 309-322.

21 Ronald J. Allen e Michael S. Pardo, The myth of the law-fact distinction, Northwestern University Law Review, 2003; Geoffrey Hazard Jr., Preclusion as to issues of law: the legal system’s interest, Iowa Law Review, 1984, p. 81 e ss; Austin Scott, Collateral estoppel by judgment, Harvard Law Review, 1942, p. 3 e ss.

22 Limitar a coisa julgada ao pedido, desconsiderando o valor das decisões a respeito das questões prejudiciais, é não ver que a definição de uma questão é imprescindível para a segurança jurídica, a coerência do direito, a paz social e a eficiência da administração da justiça. Não foi outra razão que Giovanni Pugliese, em notório verbete publicado na Enciclopedia del Diritto, afirmou que a doutrina de Chiovenda “non promuove nel nostro campo risultati socialmente utili, ma aggrava invece l’incertezza del diritto” (Giovanni Pugliese, Giudicato (dir. civ.), Enciclopedia del Diritto, XVIII, 1969, n. 16, p. 845).

23 Ver, com críticas irrespondíveis ao sistema delineado com base na doutrina de Chiovenda, Giovanni Pugliese, Giudicato (dir. civ.), Enciclopedia del Diritto, XVIII, 1969, n. 25, p. 868; Michele Taruffo, “Collateral estoppel” e giudicato sulle questioni – n. II, Rivista di Diritto Processuale,

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2. EFICÁCIA ULTRA PARTES DA COISA JULGADA SOBRE QUESTÃO

O Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 472, dizia que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros (...)”. Porém, o art. 506 do Código de Processo Civil de 2015 afirma que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Como se vê, o Código atual alterou a primeira frase do art. 472 do Código de 1973, suprimindo a expressão “não beneficiando” para deixar claro que a coisa julgada pode beneficiar terceiros.

Permitir que a coisa julgada possa beneficiar terceiro tem nítida relação com a coisa julgada recair sobre questão. A coisa julgada limitada ao pedido ou ao litígio interessa unicamente às partes. Se a coisa julgada diz respeito apenas às partes, torna-se imutável o que efetivamente lhes interessa, ou seja, o julgamento do litígio que lhes pertine24

Aos terceiros só pode importar a questão, de modo que a coisa julgada que sobre ela incide foi obviamente aceita pela lei processual especialmente para beneficiar aqueles que não participaram do processo. Se a resolução do pedido diz respeito a um litígio entre autor e réu, a solução da questão, embora também possa interessar às partes em outra ação, aproveita fundamentalmente aos terceiros. Assim, por exemplo, enquanto autor e réu litigam sobre direito à indenização em virtude de um acidente de ônibus que causou danos a inúmeros passageiros, aqueles que também sofreram danos mas não participam do processo certamente têm interesse na resolução da questão sobre a responsabilidade civil. A coisa julgada sobre a questão obviamente lhes interessa, embora a solução do pedido de indenização diga respeito apenas ao autor e ao réu25.

1972, p. 282; Diego Volpino, L‘oggeto del giudicato nell’esperienza americana, Padova: Cedam, 2007, p. 287 e ss; Domenico Dalfino, Questioni di diritto e giudicato, p. 28.

24 É interessante perceber que a coisa julgada sobre o pedido pode interessar a terceiros quando esse diz respeito a uma questão que eventualmente poderia ser prejudicial. Assim, por exemplo, na hipótese de ação, fundada em patente, voltada a inibir a fabricação de produto, o julgamento de improcedência do pedido inibitório, baseado na premissa de que o registro da patente é inválido, interessa apenas ao réu, que não mais poderá ser importunado ao fabricar o produto. Os terceiros podem ter interesse apenas na coisa julgada que recaiu sobre a questão (prejudicial) da invalidade do registro da patente. Assim, se outra ação, proposta pelo mesmo autor, fundar-se mais uma vez na patente, o novo réu – terceiro em face do processo em que a patente foi declarada inválida – poderá invocar a coisa julgada (sobre a questão) em seu benefício. Entretanto, tratando-se de ação declaratória em que se resolveu, julgando-se o pedido, a questão da validade do registro da patente, limitando-se a sentença a declarar a invalidade do registro, a coisa julgada (sobre o pedido) poderá ser invocada por qualquer terceiro que sofrer ação inibitória proposta por aquele que se diz titular do registro declarado inválido.

25 Exemplos facilitam a compreensão. Considere-se a hipótese de um acidente de ônibus escolar, em que vários alunos tenham sofridos lesões e prejuízos. Definida – no Tribunal de Justiça - a responsa-

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Assim, é correto afirmar que a admissão da coisa julgada sobre questão tem, como mera consequência, a necessidade da sua extensão em benefício de terceiros. Lembre-se que o nonmutual collateral estoppel constitui uma espécie de segundo passo do collateral estoppel (coisa julgada sobre questão), ou melhor, o desenvolvimento esperado e quase natural do collateral estoppel restrito às partes para a proteção e o benefício de não-partes. Realmente, a admissão da coisa julgada sobre questão facilita muito a percepção de que a decisão da questão também diz respeito a terceiros e de que a coisa julgada, por conta disso, não pode ficar limitada às partes

Daí obviamente não ser um acaso o Código de Processo Civil de 2015 ter, entre as suas regras sobre a coisa julgada, apenas duas dotadas de feição inovadora, uma permitindo que a coisa julgada recaia sobre questão (art. 503) e outra afirmando que a coisa julgada pode beneficiar terceiros (art. 506). É pouco mais do que evidente que essas regras são inter-relacionadas, ou melhor, que a regra do art. 506 é uma decorrência da regra do art. 503.

É importante frisar que a eficácia ultra partes da coisa julgada sobre questão é limitada, ou seja, é restrita àqueles que podem ser beneficiados pela coisa julgada, podendo prejudicar apenas aquele que foi parte no processo em que a questão foi discutida e decidida.

Portanto, a decisão de uma questão prejudicial, ainda que possa dizer respeito a pessoa que não participou do processo, jamais poderá prejudicá-la. Além disso, há limites para que a coisa julgada possa beneficiar terceiros. Note-se que, se não há razão lógica para que uma decisão, coberta pela autoridade da coisa julgada, não possa beneficiar alguém, ela não apenas não pode prejudicar aquele

bilidade da escola e a procedência do pedido de ressarcimento em ação proposta por um dos alunos, há, além da coisa julgada que recai sobre o pedido, tornando imutável e indiscutível a condenação da escola a pagar indenização ao autor, coisa julgada sobre a questão da responsabilidade da escola em face do acidente que produziu danos. A decisão que rechaça as razões da escola e declara a sua responsabilidade pelo acidente resolve com força de coisa julgada questão que é prejudicial a qualquer uma das ações de ressarcimento que podem ser propostas pelos demais alunos. Note-se que a coisa julgada sobre a questão, embora possa ser invocada por qualquer um dos alunos que estava no ônibus, incide sobre decisão proferida em processo em que a escola pôde plenamente participar em contraditório, argumentando, provando e recorrendo. Além disso, a coisa julgada só poderá ser invocada em ação baseada no mesmo acidente e na consequente responsabilidade da escola, proposta por outro aluno - que obviamente terá que evidenciar o dano que sofreu - que estava no ônibus. Portanto, a coisa julgada impedirá a relitigação e outra decisão da questão da responsabilidade, ou seja, da mesma questão decidida no processo anterior, em que a escola foi condenada a pagar indenização por conta da sua responsabilidade. A possibilidade de outro aluno invocar a coisa julgada sobre a questão da responsabilidade decorre da necessidade de se impedir a redecisão de questão já resolvida, evitando-se prejuízos à coerência do direito, à segurança jurídica, à autoridade do Judiciário e ao dever de eficiência do Estado, que não pode gastar tempo e dinheiro com a produção de prova e a discussão de uma questão que já foi objeto de adequado contraditório em processo anterior.

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que não participou do processo em que a questão foi resolvida, como também não pode prejudicar aquele que, tendo participado, não teve adequada oportunidade para discutir a questão ou não tinha como saber que a decisão da questão poderia ser-lhe mais prejudicial do que a princípio tinha condições de supor. Quando a parte não tinha como perceber que, ao ser vencida em relação à questão prejudicial, estaria sendo obstada de rediscuti-la diante de um inimaginável número de pessoas, ou que a solução da questão teria repercussão patrimonial tão elevada, não há motivo para negar ao vencido nova oportunidade para discutir a questão.

3. QUESTÃO CONSTITUCIONAL COMO QUESTÃO PREJUDICIAL: A COISA JULGADA SOBRE QUESTÃO DIANTE DA DECISÃO PROFERIDA NO INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE

A questão constitucional é obviamente uma questão prejudicial, assim como qualquer outra de que depende o julgamento do mérito ou da pretensão à tutela do direito material. É possível confundir, no entanto, a eficácia da coisa julgada sobre questão com a eficácia vinculante da decisão proferida no incidente de inconstitucionalidade.

Porém, não há motivo para misturar esses dois institutos. Eficácia vinculante nada tem a ver com resolução de algo que é da titularidade de alguém. A eficácia própria a um precedente obrigatório não possui o objetivo de tornar indiscutível uma questão concreta que diz respeito a alguém ou que pode ser delimitada como pertencente a determinadas pessoas. De modo inverso, a coisa julgada (sobre questão) parte do pressuposto de que há uma questão que interessa especificamente a alguns, partes no processo em que a questão foi decidida, ou a terceiros que, titulares de direito que depende da solução da mesma questão, podem invocá-la quando essa foi devidamente discutida pelo vencido. A questão constitucional sobre a qual recai a coisa julgada é marcada pelos fatos envolvidos no caso concreto num sentido que, não fossem eles, sequer se poderia admitir, numa ação diversa entre as mesmas partes, estar se discutindo a mesma questão. Isso porque a coisa julgada sobre questão impede a rediscussão da mesma e exata questão, enquanto que a eficácia vinculante da decisão de inconstitucionalidade simplesmente obstaculiza a aplicação da lei declarada inconstitucional, não importando o caso e a questão objetos de disputa.

Há decisão de questão constitucional quando, diante de uma dúvida interpretativa, afirma-se determinada interpretação constitucional, assim como quando se admite a inconstitucionalidade do dispositivo, deixando-se de aplicá-lo ou reconstruindo-se a norma. A resolução da questão, em favor de uma parte e contra a outra, permite que a parte vencedora, em ação distinta – em

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que se realiza outro pedido – invoque a coisa julgada sobre questão em desfavor da parte vencida. Assim, por exemplo, se é certo que a coisa julgada sobre o pedido não pode ser invocada pelo contribuinte para deixar de pagar tributo em exercício subsequente, o que efetivamente lhe garante a desnecessidade de voltar a discutir a questão de constitucionalidade da exigibilidade tributária é a coisa julgada sobre a questão prejudicial.

Alguém poderia invocar, precipitadamente, o art. 503, § 1o, III, do Código de Processo Civil, para construir conclusão equivocada em vários aspectos, que se resumiria à afirmação de que a coisa julgada não recai sobre a questão constitucional em razão de o Juiz não poder decidi-la como questão principal. Isso apenas poderia ser feito pelo Supremo Tribunal Federal, dir-se-ia. Tal regra, no entanto, diz claramente que a decisão da questão prejudicial só produzirá coisa julgada quando “o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal”. Trata-se de regra que exclui a eficácia da coisa julgada da decisão de questão proferida por Juiz destituído de competência absoluta para resolvê-la como “questão principal”. Assim, por exemplo, se em ação de ressarcimento proposta perante a Justiça Federal em face de B e da União Federal surge uma questão prejudicial que diz respeito apenas à relação entre A e B, o Juiz obviamente poderá decidi-la, mas a decisão da questão não terá aptidão para gerar coisa julgada. De igual modo, em processo acerca da posse de coisa que envolva alguém que se afirma herdeiro, eventual questão prejudicial que se forme sobre a qualidade de filho não produzirá coisa julgada26. Em outras palavras, o art. 503, § 1o, III, diz respeito a um problema de competência, que nada tem a ver com controle de constitucionalidade.

Não fosse isso, todos sabem que qualquer Juiz tem poder para decidir questão constitucional mediante controle concreto de constitucionalidade, inclusive como questão principal. Nada impede, por exemplo, ação declaratória de inconstitucionalidade de relação jurídica tributária. Portanto, o verdadeiro e ingênuo equívoco que estaria à base do argumento incidiria numa grosseira confusão entre controle abstrato e controle concreto de constitucionalidade. Ora, é óbvio que o Juiz e o Tribunal não podem realizar controle abstrato de constitucionalidade, sendo isso da competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Porém, tão evidente quanto isto é decidir, no controle difuso e concreto, sobre questão constitucional na forma incidental ou principal.

A coisa julgada sobre questão, no Tribunal, aproxima-se da eficácia vinculante atribuída à decisão proferida no incidente de inconstitucionalidade (art. 949, parágrafo único, CPC). Contudo, nem toda questão constitucional é submetida ao órgão especial, dando origem a incidente de inconstitucionalidade. A questão constitucional só deve ser remetida ao órgão especial quando o

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26 Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, p. 275-277.

órgão fracionário não consegue chegar numa interpretação conforme à Constituição. De modo que o órgão fracionário, ao julgar um recurso de apelação, pode decidir, enquanto prejudicial à solução do caso e do recurso, uma questão constitucional, afirmando a constitucionalidade. Isso significa que a coisa julgada pode recair sobre questão constitucional decidida unicamente pelo órgão fracionário.

Quando a questão constitucional é encaminhada ao órgão especial, instituindo-se o incidente de inconstitucionalidade, esse pode decidir que o dispositivo é inconstitucional, ainda que mediante a reconstrução da norma, ou decidir que o dispositivo comporta interpretação conforme à Constituição – não obstante assim não tenha percebido o órgão fracionário.

O art. 97 diz que a inconstitucionalidade apenas pode ser pronunciada pela maioria absoluta dos membros do órgão especial. Ao dispor que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”, o art. 97 afirma, de um lado, que os órgãos fracionários não podem declarar a inconstitucionalidade e, de outro, que esses apenas ficam submetidos à decisão de inconstitucionalidade proferida pela maioria absoluta dos membros do tribunal ou do órgão especial. Não há motivo para supor que, por conta da instituição de um procedimento voltado a garantir a reserva de plenário – ou seja, a necessidade de maioria absoluta de votos dos membros do órgão especial – para a declaração de inconstitucionalidade, tenham todos os órgãos fracionários do Tribunal e Juízes de primeiro grau a ele vinculados que deixar de aplicar a lei que não foi reconhecida como inconstitucional pela maioria absoluta.

O art. 949 diz que “os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. Como a regra processual fala apenas em “pronunciamento”, seria possível imaginar que, qualquer que fosse o seu conteúdo, estaria o órgão fracionário proibido de decidir de modo diferente quando o órgão especial houvesse decidido pela inconstitucionalidade por maioria simples.

Essa interpretação do art. 949 do Código de Processo Civil, no entanto, obviamente não tem racionalidade, na medida em que o incidente de inconstitucionalidade é indissociável do art. 97 da Constituição, que reserva unicamente ao plenário ou ao órgão especial o poder de decidir, por maioria absoluta, pela inconstitucionalidade. Desse modo, quando a decisão de inconstitucionalidade é tomada por maioria simples, ficam os órgãos fracionários autorizados a decidir pela constitucionalidade.

No entanto, se o art. 97 da Constituição só justifica a eficácia vinculante sobre a decisão de inconstitucionalidade tomada por maioria absoluta, o

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art. 927, V, do Código de Processo Civil, confere eficácia de precedente às decisões do órgão especial27. Assim, cabe indagar se a decisão que afirma interpretação de acordo com a Constituição, por maioria absoluta, configura precedente vinculante.

Uma decisão tomada por maioria absoluta, a princípio, constitui precedente. Porém, o incidente de inconstitucionalidade se destina ao controle de constitucionalidade e não à uniformização das decisões do Tribunal. Isso quer dizer que a decisão, ainda que proferida por maioria absoluta, sequer parte da premissa de que há divergência interpretativa – como exige, por exemplo, o incidente de resolução de demandas repetitivas. O incidente de inconstitucionalidade apenas pergunta se a lei é inconstitucional, de modo que o seu resultado, ou seja, a sua decisão, embora obviamente possa declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade, além de apenas poder declarar a inconstitucionalidade por maioria absoluta, somente produz eficácia vinculante quando consigna e ressalva a única interpretação constitucional possível . Fosse de outro modo, o incidente instituído para o controle de constitucionalidade, ao declarar uma entre as várias interpretações constitucionais possíveis , vincularia todos os órgãos fracionários e Juízes de primeiro grau, cumprindo função que está obviamente fora da reservada a um incidente responsável pelo controle de constitucionalidade.

Essa breve alusão ao incidente de inconstitucionalidade não apenas deixa claro que a questão constitucional também pode ser resolvida pelo órgão fracionário – independentemente de incidente –, mas também que a decisão que possui eficácia vinculante é a que declara a inconstitucionalidade ou afirma a única interpretação constitucional possível por maioria absoluta de votos.

Entretanto, qualquer que seja a decisão proferida no incidente, há aí uma decisão que resolve questão de constitucionalidade que, a princípio, é prejudicial ao julgamento do mérito do caso ou do recurso. Mesmo quando analisada pelo órgão especial, a questão constitucional se insere tanto no raciocínio decisório quanto na justificativa do órgão fracionário acerca do recurso. A questão, nesse caso, apenas é decidida por outro órgão, mas não deixa de ser uma questão prejudicial ao julgamento do mérito. Portanto, além de a decisão do órgão especial também ser decisão de questão que, a princípio, é prejudicial, sobre essa recai a coisa julgada. Para esse efeito, certamente não importa o conteúdo da decisão no incidente de inconstitucionalidade. Tanto a decisão de inconstitucionalidade, quanto a de mera constitucionalidade ou a que afirma a única interpretação possível, por maioria absoluta ou simples, constituem espécie de

27 Lembre-se que o art. 927 do Código de Processo Civil misturou entre os seus incisos precedente, súmula, coisa julgada sobre questão e coisa julgada erga omnes. Luiz Guilherme Marinoni, Precedentes Obrigatórios, 7ª. ed., esp. p. 301 e ss.

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decisão que, quando incorporada à decisão final do órgão fracionário, assume natureza de decisão de questão prejudicial.

Porém, ainda que a questão constitucional tenha sido decidida pelo órgão especial em razão do incidente, ela pode não se inserir na decisão do órgão fracionário sobre o recurso, deixando de constituir, assim, uma questão prejudicial ao julgamento do mérito. O órgão fracionário, depois da decisão relativa à arguição de inconstitucionalidade submetida ao órgão especial, pode chegar à conclusão de que falta, por exemplo, requisito de admissibilidade do recurso, a impedir o julgamento do mérito ou do recurso que depende da decisão sobre a questão constitucional. Nesse caso, apesar da decisão no incidente de inconstitucionalidade, não há questão prejudicial decidida, ou melhor, a questão constitucional decidida deixa de ser um pressuposto para o julgamento do mérito.

Isso não significa que a decisão tomada no incidente tenha deixado de ter valor. Ela somente não tem valor enquanto decisão de questão prejudicial e, portanto, torna-se impossível pensar em coisa julgada sobre questão. Mas a decisão não perde validade ou eficácia, preservando valor enquanto decisão que, declarando a inconstitucionalidade ou a única interpretação constitucional possível por maioria absoluta, vincula todos os órgãos fracionários do Tribunal e os Juízes de primeiro grau de jurisdição.

A eficácia subjetiva da coisa julgada sobre questão se aproxima da decisão proferida no incidente quando essa adquire eficácia vinculante. Porém, a coisa julgada, além de incidir sobre uma questão constitucional específica, tem eficácia subjetiva sobre as partes e para beneficiar terceiros, titulares da situação jurídica resolvida. Essa eficácia é completamente diversa da vinculante, na medida que essa, além de não estar restrita à questão efetivamente decidida, não se limita às partes do caso e àqueles que eventualmente podem ser beneficiados.

A eficácia vinculante diz respeito a todos, indistintamente, obrigando os Juízes e os órgãos fracionários do Tribunal a não aplicarem a lei declarada inconstitucional ou a se valerem da norma reconstruída, ou mesmo a aplicarem à única interpretação constitucional declarada possível, em qualquer caso futuro Enquanto a coisa julgada diz respeito à específica questão concretamente decidida, não podendo ser interpretada de modo extensivo, a eficácia vinculante tem a ver com a decisão que declara a inconstitucionalidade da lei ou a constitucionalidade de determinada interpretação, as quais obviamente podem abarcar todas as situações e casos em que a lei for questionada. De modo que, se a eficácia vinculante pode ser invocada por qualquer um contra qualquer pessoa, a coisa julgada sobre questão somente pode ser invocada pelo vencedor e pelos titulares da mesma e exata situação jurídica decidida contra o vencido.

Em resumo: além de a questão constitucional poder ser decidida como prejudicial pelo próprio órgão fracionário, toda e qualquer questão constitucional, decidida em incidente de inconstitucionalidade, constitui questão

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prejudicial quando posteriormente utilizada para o julgamento do recurso pelo órgão fracionário. Porém, nem toda decisão de questão constitucional, tomada no incidente, possui eficácia vinculante, mas apenas a que declara a inconstitucionalidade ou afirma a única interpretação possível por maioria absoluta de votos. Mesmo nessa situação, entretanto, a eficácia da coisa julgada sobre questão e a eficácia vinculante da decisão de inconstitucionalidade convivem harmonicamente, até porque possuem pressupostos e funções diferentes28 . Tudo isso é suficiente para demonstrar que a coisa julgada sobre questão constitucional tem completa autonomia em relação à decisão tomada no incidente de inconstitucionalidade.

4. O FALSO PROBLEMA DA EFICÁCIA DA COISA JULGADA

SOBRE QUESTÃO CONSTITUCIONAL EM BENEFÍCIO DE TERCEIROS

Não obstante o exposto no item anterior, a decisão que, acobertada pela coisa julgada, beneficia terceiros pode trazer preocupação a quem possui os olhos fixos no poder conferido ao Supremo Tribunal Federal para o controle de constitucionalidade.

Considerando-se que cabe ao Supremo Tribunal Federal exercer o controle de constitucionalidade mediante ação direta e por recurso extraordinário, seria possível imaginar que a possibilidade de decidir questão constitucional, com força de coisa julgada que pode beneficiar terceiros, poderia violar a autoridade da Corte Suprema.

Porém, o problema não pode ser visto dessa forma. A coisa julgada sobre questão apenas pode se voltar contra o vencido que discutiu a questão perante o órgão especial – quando instituído o incidente – ou contra o vencido que também discutiu perante o próprio órgão fracionário, quando necessariamente se aplicou a lei. Além disso, a coisa julgada somente beneficia os que são titulares da própria questão decidida.

Portanto, enquanto o prejudicado pela coisa julgada sobre questão teve ampla oportunidade de discuti-la, aqueles que podem ser prejudicados por um precedente – firmado em incidente de inconstitucionalidade ou em recurso

28 Lembre-se que o precedente é o direito que regula, a priori, o caso conflito concreto, de modo que os litigantes não são constrangidos pela sua obrigatoriedade. Um caso é resolvido mediante a aplicação de precedente porque esse revela o direito que o regula. A coisa julgada sobre questão, por sua vez, inibe o vencido, impedindo-o de relitigar. Uma questão não pode ser novamente discutida porque já foi decidida com força de coisa julgada. Note-se que o precedente colabora com o juiz do novo caso, auxiliando-o a resolvê-lo, mas a coisa julgada sobre questão apenas constrange ou limita, vedando a rediscussão e excluindo a possibilidade de redecisão. Ver Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, esp. p. 339 e ss.

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293 extraordinário – não precisam ter participado do processo em que este foi estabelecido. Isso significa que a eficácia vinculante de um precedente não apenas é muito mais abrangente do que a eficácia da coisa julgada sobre questão – já que não se limita a uma mesma questão –, mas também completamente despreocupada com a participação daqueles que podem ser prejudicados.

Aliás, o assunto relacionado à autoridade da decisão acerca de questão discutida é anterior, na história do direito, ao stare decisis. No common law, o estoppel, enquanto base do atual collateral estoppel estadunidense e da coisa julgada sobre questão, surgiu muitos séculos antes do stare decisis, o que significa que a preocupação em decidir da mesma forma os casos semelhantes aparece muito tempo depois da reprovação da tentativa de relitigação do que já foi discutido. Lembre-se que o direito inglês, já no século XI, passou a sustentar a impossibilidade da relitigação daquilo que uma parte afirmou ou colaborou para criar no processo, quando se falou em estoppel by record29 . Essa espécie de estoppel – a origem da coisa julgada sobre questão – baseou-se na ideia de proibição de venire contra factum proprium30, estendendo-se, a princípio, ao resultado da prova31. Num ambiente religioso, moral e jurídico em que o comportamento contraditório era ostensivamente reprovado, não foi preciso muito esforço para o estoppel proibir a rediscussão do que já havia sido discutido e decidido.

Nos Estados Unidos, sempre presente a necessidade de garantir a coerência do direito e a segurança jurídica, relevantes preocupações de ordem econômica colaboraram para evidenciar o erro da ideia de que a coisa julgada interessa apenas ao vencedor, dando origem ao nonmutual collateral estoppel32 , definitivamente aceito mediante os precedentes firmados pela Suprema Corte dos Estados Unidos nos casos Blonder-Tongue v. University of Illinois Foundation33 e Parklane v. Shore34.

A Suprema Corte, em Blonder-Tongue, expressamente afirmou que não é razoável proporcionar a um litigante mais de uma justa oportunidade para a discussão de uma mesma questão, já que em todo processo em que naturalmente houve

29 “The old rule of ‘estoppel by record was derived from an archaic Germanic doctrine under which it was the written record, rather than the judgment qua judgment, which created the estoppel” (Note, Collateral estoppel by judgment, Columbia Law Review, v. 52, p. 647, nota 4). Ver Frederick Pollock e Frederic W. Maitland, The history of english law (before the time of Edward I), v. 1, Cambridge: University Press, 1911, p. 25 e ss.

30 Henry M. Herman, The law of estoppel, Albany: W. C. Little & Co., 1871, p. 8.

31 Robert Wyness Millar, The historical relation of estoppel by record to res judicata, Illinois Law Review of Northwestern University, v. 35, 1940-1941, p. 42.

32 Samuel Issacharoff, Civil Procedure, New York: Foundation Press, 2009, p. 160; Jack Friedenthal, Arthur Miller, John Sexton e Helen Hershkoff, Civil Procedure – Cases and materials, St. Paul: West, 2009, p. 1310 e ss.

33 Blonder-Tongue v. University of Illinois Foundation, 402 U.S. 313 (1971).

34 Parklane v. Shore, 439 U.S. 322 (1979).

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vencedor e perdedor ocorreu não só dispêndio de dinheiro e energia do Estado, mas a Corte proferiu uma decisão que, por corporificar a autoridade do Judiciário, não pode ser desafiada pelo perdedor apenas por estar diante de um novo adversário35 .

É preciso compreender que a coisa julgada inter partes, devedora do direito romano e desenvolvida nos sistemas de civil law36, está comprometida com a sua origem e com uma tradição que, considerando o ambiente privado, preocupou-se apenas em garantir o “bem da vida” – para se usar o exato termo chiovendiano37 – conferido ao vencedor pela decisão.

Esqueceu-se de muita coisa. Fundamentalmente, ignorou-se que, se as decisões do Estado devem ser respeitadas e confiáveis, não há como aceitar que o processo possa ser estruturado de modo a que o Juiz tenha obrigação de decidir várias vezes uma mesma questão para o mesmo litigante, dando-lhe a possibilidade de, apesar de já declarado sem direito, obter vitória em outros casos. Se uma decisão judicial revela o entendimento do Estado acerca de uma questão da titularidade de muitos, a decisão deve poder ser invocada contra quem litigou e foi declarado sem razão e não apenas em benefício do vencedor. Note-se que a ideia de que a coisa julgada serve ao vencedor encobriu os verdadeiros destinatários da coisa julgada. Não há motivo para supor que a coisa julgada, enquanto expressão da tutela da segurança jurídica, possa proteger unicamente o vencedor, como se todos os

35 Bentham advertiu que há razão para dizer que uma pessoa não deve perder a sua causa em consequência de uma decisão proferida em processo de que não foi parte; mas não há qualquer razão para dizer que alguém não deve perder a sua causa em consequência de uma decisão proferida em processo em que foi parte simplesmente porque o seu adversário não foi. Bentham argumentou que, embora a sentença proferida em favor de A e contra B não possa obstaculizar o pleito de C, afirmar que essa sentença não pode beneficiar C (terceiro) contra B (vencido) parece o cúmulo do absurdo (seems the very height of absurdity). Aliás, Bentham foi irônico ao dizer que a regra da mutualidade – ou de que “só pode ser beneficiado pela coisa julgada aquele que pode ser prejudicado” - poderia ficar bem numa mesa de cassino, quando se joga dados, mas nunca num tribunal (Jeremy Bentham, Rationale of judicial evidence, London: Hunt & Clarke, 1827, v. 5, p. 579). A lição de Bentham foi lembrada pela Suprema Corte quando do julgamento de Blonder-Tongue v. University of Illinois Foundation, ocasião em que declarou-se a validade da invocação da coisa julgada por terceiro, alheio ao processo em que a coisa julgada sobre quest ão se formou.

36 “A differenza di quanto accade nell’ordinamento nordamericano, dove dottrina e giurisprudenza hanno ampiamente affrontato il tema del giudicato nei confronti del terzo non solo dal punto di vista del vincolo che costui può subire per effetto del giudicato formatosi tra le parti, ma anche sotto il profilo della possibilità che il terzo si avvalga del giudicato a lui favorevole, un’elaborazione di questo secondo tema manca della nostra dottrina”. (Michele Taruffo, “Collateral estoppel” e giudicato sulle questioni” n. II, Rivista di Diritto Processuale, 1972, p. 293).

37 Chiovenda enfaticamente afirmou que “cosa giudicata non vuol dire giudizio, vuol dire bene reconosciuto o negato” (Giuseppe Chiovenda, Cosa giudicata e preclusione, Saggi di diritto processuale civile, v. 3, p. 238). A relação entre coisa julgada e tutela de um bem da vida implicitamente admite que a coisa julgada deve recair sobre as partes que disputaram o bem. Por isso, a ideia de tutela de um bem, ao tornar a coisa julgada indissociável da figura daqueles que disputaram a res, também dificultou a sua análise enquanto valor que poderia ser invocado por terceiros.

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demais que dependem da decisão para a tutela jurisdicional dos seus direitos pudessem ou devessem ser indiferentes à solução judicial que lhes beneficia38

A partir disso, torna-se possível deixar ainda mais claro que a eficácia da coisa julgada sobre questão é muito menos preocupante do que a eficácia do precedente, não obstante a generalidade da doutrina de civil law, por ignorar o significado de collateral estoppel e a sua íntima relação com o stare decisis, mostre-se deslumbrada com os precedentes obrigatórios e receosa com a eficácia da coisa julgada sobre questão em beneficio de terceiros.

Reitere-se que, ao contrário do precedente, a coisa julgada sobre questão não pode nem ser imposta em face de qualquer pessoa, nem invocada por qualquer um, interessado na resolução de caso apenas similar ao decidido, ou em que se pretenda somente a não aplicação da mesma lei. Por não pretender obstar a discussão do que não foi decidido, a coisa julgada exige que a questão seja idêntica, o que é simplesmente incompatível com os precedentes constitucionais39 O distinguishing, enquanto técnica para o desenvolvimento do direito, abre oportunidade para que o precedente seja aplicado a caso marcado por fatos diferentes, na hipótese de reclamar igual solução jurídica. Ou seja, enquanto a lógica da coisa julgada é a de evitar a relitigação da mesma questão, a do precedente é a de propiciar uma igual solução para casos que, não obstante faticamente diferentes, exigem igual raciocínio e solução jurídicos.

As Cortes estadunidenses são plenamente conscientes dessa importante dessemelhança entre os institutos. Em Trevino v. Gates, a Corte de Apelação do Novo Circuito declarou que, para proibir a relitigação da questão com base em collateral estoppel, a questão sob análise deve ser idêntica (must be identical) àquela discutida na primeira ação. A Corte do Segundo Circuito, em Lord v. International Marine Ins. Services, advertiu que a questão levantada na segunda ação não era “clearly identical” à discutida na primeira. É interessante que as Cortes chegam a dizer que a questão deve ser a “mesma”, obviamente para enfatizar a necessidade de não se proibir a rediscussão de questão que não foi discutida e decidida anteriormente. Assim, por exemplo, em Burlington Northern R. Co. v. Hyundai Merchant Marine Co., a Corte do Terceiro Circuito disse que a questão objeto da preclusão deve ser a mesma (the same) que foi anteriormente discutida e decidida, e, em Alabama Rivers Alliance v. F.E.R.C, a Corte de Apelação do Distrito de Colúmbia advertiu que o collateral estoppel somente se aplica a uma questão que, em substância, é a mesma (in substance the same).

38 Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, esp. p. 190 e ss.

39 Como diz Frederick Schauer, “para que uma decisão constitua um precedente para outra decisão não há necessidade de que os fatos dos casos sejam absolutamente idênticos. Caso isso fosse exigido, nada seria precedente para qualquer outro caso” (Frederick Schauer, Precedent, Stanford Law Review, v. 39, 1987, p. 575).

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Isso significa que quando se decide, por exemplo, que a prática de determinado município é inconstitucional em virtude de determinados fatos, terceiro obviamente não pode invocar coisa julgada para tentar obstar o mesmo município de relitigar questão constitucional que surgiu em virtude de contexto ou de conjunto de fatos totalmente diverso, ainda que a norma discutida seja a mesma. Nessa situação, caso tenha sido firmado precedente, será possível invocá-lo, o que é algo totalmente diferente.

Porém, ao se decidir que o município praticou ato inconstitucional em detrimento de um grupo de servidores, em ação em que foi parte um servidor ou em que foram partes alguns servidores, as pessoas do mesmo grupo de servidores e que evidentemente se enquadram na exata situação litigiosa resolvida, podem invocar a coisa julgada sobre questão. Nessa hipótese, resolvida a questão de constitucionalidade no primeiro processo, a coisa julgada é invocável pelos demais servidores contra o mesmo município, seja mediante ação seja em defesa apresentada em face de ação proposta pelo município.

A Suprema Corte dos Estados Unidos admite coisa julgada sobre questão constitucional, inclusive em se tratando de questão que envolve relação tributária. Em Montana v. U. S., o governo dos Estados Unidos, enquanto responsável por exigência fiscal imposta pelo estado de Montana, recebeu decisão desfavorável da Suprema Corte desse estado. Num segundo processo, o governo dos Estados Unidos voltou a questionar a constitucionalidade da imposição fiscal perante Corte do Distrito de Montana, que, após declarar que o governo não estava proibido de voltar a discutir a questão de constitucionalidade em razão da primeira decisão da Suprema Corte do estado, reconheceu que a exigência fiscal feria a Constituição. Porém, em razão de recurso do estado, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou que a primeira decisão da Suprema Corte de Montana proibia a rediscussão da constitucionalidade da exigência fiscal, de modo que a decisão da Corte do Distrito de Montana, que admitiu a rediscussão da constitucionalidade, foi reformada40.

A Suprema Corte dos Estados Unidos claramente considerou que estava diante de uma proibição de relitigar questão em virtude de collateral estoppel, ou seja, não supôs que havia impossibilidade de rediscussão por existir um precedente. Tanto é que reconheceu que o governo dos Estados Unidos teve “full and fair opportunity” de discutir a questão no primeiro processo e, por conta disso, decidiu que o governo estava estopped de buscar decisão contrária num segundo processo41. Como é óbvio, essa análise seria completamente

40 Montana v. U.S, 440 U.S. 147 (1979).

41 “… We must conclude therefore that it had a full and fair opportunity to press its constitutional challenges in Kiewit I. Accordingly, the Government is estopped from seeking a contrary resolution of those issues here” (Opinion do Justice Marshall; Montana v. U.S, 440 U.S. 147, 1979).

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desnecessária caso a Suprema Corte tivesse admitido que estava diante de um precedente, quando pouco importaria se o governo dos Estados Unidos teria participado do processo, muito menos se teria tido “full and fair opportunity” de participar.

Em 1996, a Suprema Corte dos Estados Unidos não só voltou a tratar de collateral estoppel diante de questão constitucional envolvendo tributação, como declarou que a coisa julgada sobre questão não pode prejudicar quem não participou do processo. Em Richards v. Jefferson County, após três contribuintes terem arguido a inconstitucionalidade de uma taxa de ocupação estabelecida pelo condado de Jefferson County, reconhecida como constitucional pela Corte estadual, outro grupo de contribuintes, mediante class action , voltou-se contra a constitucionalidade da mesma taxa. A Suprema Corte estadual decidiu que o segundo grupo de contribuintes estava proibido de discutir a questão em virtude de collateral estoppel , ou seja, da decisão proferida na primeira ação – que ficou conhecida como “ Bedingfield action ”. Mas a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao julgar o caso, declarou que a decisão da Corte estadual, ao proibir os contribuintes que não participaram do processo de discutir a mesma questão de constitucionalidade, negou o precedente firmado em Hansberry v. Lee 42 – célebre por ter firmado a necessidade da “representação adequada” para compatibilizar a class action com a garantia constitucional de participação no processo -, além de ter violado o due process 43 .

Perceba-se que, em Montana, afirmou-se que decisão de questão constitucional obsta a sua relitigação pelo vencido que teve “full and fair opportunity” de discuti-la, ao passo que, em Richards, esclareceu-se que os contribuintes que não foram adequadamente representados em class action não podem ser proibidos de propor suas próprias demandas para discutir a questão jurídica. Ou seja, afirmou-se, com todas as letras, a coisa julgada sobre a questão constitucional, ressalvando-se que esta não pode prejudicar quando não permitiu adequada participação em contraditório, inclusive mediante representante adequado.

Não se ignora que a coisa julgada sobre questão constitucional assume contornos preocupantes quando se pensa na sua formação em determinadas situações, que envolvem a possibilidade de múltiplas demandas contra um mesmo sujeito. O problema cresce de tamanho quando o vencido é a Fazenda Pública.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, em United States v. Mendoza, decidiu que terceiro não pode propor ação e invocar decisão contrária ao governo dos Estados Unidos em seu favor, argumentando que ela não pode

42 Hansberry v. Lee, 311 U.S. 32, 61 S.Ct. 115 (1940).

43 Richards v. Jefferson County, 517 U.S. 793 (1996).

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298 ser rediscutida44. A Suprema Corte, ao assim decidir, considerou a amplitude da área geográfica em que o governo federal litiga, bem como a natureza dos seus casos45. Essa decisão, no entanto, foi objeto de severas críticas, advertindo-se que, além de ter criado um tratamento processual privilegiado e injusto ao Estado em face dos sujeitos privados – e assim ter violado a igualdade perante o processo -, permitiu às agências governamentais se valerem de estratégia (administrative agency nonacquiescence) para, não obstante decisão judicial desfavorável, prosseguirem atuando em sentido contrário, desrespeitando direitos individuais e a lógica do processo46

Em outras palavras, a decisão firmada em Mendoza foi vista como uma exceção destituída de racionalidade. Admitiu-se que as Cortes devem ter cuidados especiais na aplicação do collateral estoppel em face do governo federal, mas certamente devem poder proibir-lhe de litigar questão já plenamente discutida e decidida. Atualmente, muitas Cortes vêm decidindo que a exceção à proibição de relitigação de questão decidida, criada em favor do governo federal, não é absoluta, não devendo prevalecer quando razões consistentes não estão presentes47

A decisão proferida em Mendoza demonstra que, não obstante a admissão da coisa julgada sobre questão constitucional, há preocupação em não prejudicar o interesse público, evitando-se que o Governo seja prejudicado em virtude de uma única decisão que lhe foi desfavorável, especialmente diante das dificuldades inerentes à amplitude, inclusive geográfica, da advocacia pública. Em Mendoza, aliás, chama-se a atenção para a circunstância de que, em muitos casos, não há recurso à Corte de Apelação, o que significaria uma impossibilidade de defesa adequada do interesse público.

Nessa perspectiva, verifica-se que, no Brasil, o problema da coisa julgada sobre questão, vista enquanto problema em face da Fazenda Pública, não se coloca como nos Estados Unidos. Lembre-se que aqui há duplo juízo obrigatório – reexame necessário ou de ofício – nas causas decididas “contra a União, os

44 “Doctrine of nonmutual offensive collateral estoppel does not extend to the United States” (U.S. v. Mendoza, 464 U.S. 154, 1984).

45 Christina Crimi, § 573. Nonmutual collateral estoppel against government, American Jurisprudence, 2017.

46 Note, Collateral estoppel and nonacquiescence: precluding government relitigation in the pursuit of litigant equality, Harvard Law Review, v. 99, 1986, p. 847 e ss.

47 “… here it is primarily the private interests of two private parties, which are in dispute: the same interests which were fully and appropriately adjudicated by the district court. In such a case where the Board has sought to determine the existence or non-existence of what is essentially a private agreement, blind adherence to the doctrine that the Government is generally exempted from issue preclusion is not compelled. (…) Accordingly, we are not persuaded that merely because the NLRB is a government agency, that in the current context, we should permit the Board to ignore the district court’s judgment” (N.L.R.B v. Donna-Lee Sportswear Co., Inc., United States Court of Appeals, First Circuit, 1987).

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Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público” (art. 496, I, CPC). Isso significa que a coisa julgada sobre questão apenas se forma no Tribunal, quando a decisão de inconstitucionalidade depende da maioria absoluta dos membros do órgão especial, a qual, além disso, pode ser objeto de recurso extraordinário, conforme previsão expressa contida no art. 102, III, “b” da Constituição.

De qualquer forma, não há racionalidade em negar a eficácia da coisa julgada aos prejudicados pelo Poder Público, sob o fundamento de que este pode, eventualmente, deixar de se defender de modo adequado. Isso seria o mesmo do que, por conta de um mal que deve ser superado mediante providências da própria administração, admitir que a função pública de prestar justiça possa negar devida proteção aos direitos que são lesados em massa.

Aliás, o problema das violações em massa obviamente não atinge apenas o Poder Público, mas diz respeito a todas as questões que, uma vez decididas, podem favorecer a tutela de direitos lesados por um único ato de uma mesma pessoa. Porém, a ação declaratória, enquanto ação inversa a ser utilizada pelo demandado que, posteriormente, pode sofrer inúmeras outras ações individuais, é uma alternativa não apenas para o Poder Público, mas a qualquer parte que não deseja se submeter ao risco de ser vencida numa única ação individual, em meio de todas aquelas que podem ser propostas com base no mesmo fundamento. Desse modo, a coisa julgada sobre questão, ao obrigar a propositura de ação declaratória pelo litigante acusado de ter violado direitos de muitos, gera a coletivização da discussão da questão prejudicial à tutela dos direitos, contribuindo, assim, para evitar a proliferação de demandas repetitivas e todas as suas consequências prejudiciais, como a incoerência de decisões, a insegurança jurídica, a ineficiência da prestação jurisdicional, além de desnecessárias despesas às partes e ao Estado.

É certo que, eventualmente, aquele que violou múltiplos direitos de uma única vez pode não conhecer ou ter como identificar os possíveis lesados. Mas, também aí a técnica processual lhe socorre. Nessa situação, nada impede a propositura de ação coletiva passiva, quando a questão pode ser decidida com força de coisa julgada em face de todos os representados no polo passivo48. Afinal, o direito à tutela jurisdicional efetiva, do mesmo modo que torna desnecessária a tipificação da sentença idônea para cada situação litigiosa, prescinde da regulação dos efeitos da coisa julgada para cada tipo de caso conflitivo concreto. Ou seja, não é porque o Código de Defesa do Consumidor apenas regula a ação coletiva proposta pelo representante dos titulares de direitos lesados em massa que não será possível propor ação em face de um legitimado coletivo, apto a defender direitos de um grupo, viabilizando-se a formação de coisa

48 Sérgio Cruz Arenhart, A tutela coletiva de interesses individuais, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013, p. 367-368.

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julgada diante dos representados49. Ora, proibir que aquele que pode vir a ser responsabilizado atue prontamente para discutir e ver solucionada a questão é, além de violar o direito fundamental de acesso à justiça, tentar se apoderar do processo para transformá-lo em instrumento que não pode ser adequadamente utilizado a favor da própria efetividade da tutela dos direitos50 .

Se a coisa julgada pode trazer problemas diante da intensa litigiosidade do direito que depende da questão decidida, isso é algo que se mostra sempre presente quando se discute uma questão que diz respeito a direitos lesados em massa. Aliás, é ingênuo não reconhecer que é a Fazenda Pública, assim como aqueles que violam direitos em massa, que preferem pulverizar a discussão das questões, evitando a coletivização das demandas51.

O problema da coisa julgada sobre questão constitucional em benefício de terceiros é falso. Reitere-se que a coisa julgada sobre questão, em virtude do reexame necessário, exige decisão tomada pela maioria absoluta do plenário ou do órgão especial do Tribunal para a instituição da inconstitucionalidade, abrindo expressamente oportunidade para recurso extraordinário. Isso quer dizer que, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil não há como temer a formação de coisa julgada sobre questão constitucional contra a Fazenda Pública mediante decisão de primeira instância sujeita a recurso voluntário ou mesmo em ação que não abre oportunidade para o duplo grau de jurisdição.

Ao contrário, quando é possível decidir a questão contra o Poder Público somente em incidente de inconstitucionalidade, em local privilegiado do Tribunal e por maioria absoluta, em virtude de exigência expressa da Constituição, é absurdo pensar em não oportunidade adequada para a defesa ou em

49 Lembre-se que o Superior Tribunal de Justiça admite que o réu da ação coletiva proponha ação rescisória contra aquele que foi autor, ou seja, contra o legitimado à tutela dos direitos individuais. Em outras palavras, mesmo depois de os direitos individuais terem sido tutelados mediante sentença transitada em julgada, com a produção de coisa julgada material, entende-se que a ação rescisória pode se voltar contra o legitimado coletivo para obstaculizar a execução ou a realização dos direitos individuais, sem a necessidade de citação dos titulares dos direitos envolvidos. E isso, note-se bem, sob o argumento implícito da dificuldade – e não da impossibilidade - de citação de todos os réus. O que isso quer dizer? Significa claramente que o legitimado coletivo pode defender direitos individuais, colocando-se no polo passivo do processo. Quer dizer não apenas que o legitimado coletivo pode ser demandado como réu, porém, mais do que isso, que o direito à propositura de ação contra o legitimado coletivo obviamente não pode ser usurpado do jurisdicionado. Ver Resp 1.391.709/ PR, 1a. Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 08/03/2016; AR 3.367/BA, 3a. Seção, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 16.08.2013.

50 Luiz Guilherme Marinoni, Coisa Julgada sobre Questão, esp. p. 329-335.

51 Lembre-se da dicotomia litigante habitual-litigante eventual. Os litigantes habituais se valem da oportunidade de litigar com frequência, pulverizando os seus riscos em detrimento da efetividade da tutela dos direitos dos seus adversários – litigantes eventuais.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.)

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 301 surpresa com os efeitos da decisão. Ou, de forma ainda mais clara, quando a própria Constituição se preocupa com os efeitos da decisão de inconstitucionalidade não há motivo para o Judiciário, em virtude de possível estratégia endereçada a prejudicar a Fazenda Pública, realizar qualquer exceção. Não obstante, é imprescindível voltar à essência do problema. É necessário perceber que o verdadeiro nó que precisa ser desatado se concentra na equivocada impressão de que falar em coisa julgada sobre questão constitucional que pode beneficiar terceiros é o mesmo do que pensar em eficácia vinculante da decisão de inconstitucionalidade. A solução de questão constitucional obviamente não exclui nenhuma lei do ordenamento jurídico nem tem o mesmo significado e potencialidade da eficácia vinculante da decisão de inconstitucionalidade proferida por maioria absoluta no incidente de inconstitucionalidade. A coisa julgada sobre questão só beneficia os titulares da questão decidida em face do vencido. Não a todos aqueles que podem ser beneficiados pela não aplicação da lei em face de qualquer pessoa ou da Fazenda Pública.

caPítulo 16

aDvocacia Pública municiPal: a chancela e o DestaQue Do stF Para a sua imPortÂncia como Função essencial à Justiça como moDelo a ser imPlementaDo Pelos gestores Públicos Dos entes FeDeraDos1

Marcelo Alberto Gorski Borges Luiz Henrique Sormani Barbugiani

1. INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal (STF) vem assentando diversas decisões que se referem ora à advocacia pública como um todo, ora mais especificamente à advocacia pública de âmbito municipal. Estas decisões, quando analisadas em conjunto, acabam por demonstrar qual é a correta e a adequada interpretação à conformação da advocacia pública municipal e, ainda que mediatamente, o tratamento que a administração pública deve a ela destinar por meio de seus gestores do Poder Executivo municipal.

O objetivo do presente ensaio é justamente o de realizar a análise conjunta destas mencionadas decisões, mas com a especial pretensão de dar destaque à advocacia pública municipal da Administração Pública Direta, das autarquias e fundações públicas compostas por aprovados em concurso público de provas e títulos para cargo efetivo submetidos ao regime estatutário2 e ponderar como estes precedentes, para além de resolverem especificamente a situação que chegou ao Supremo Tribunal Federal, devem também servir de orientação à administração pública, diante da propagação dos motivos determinantes nos

1 Artigo publicado no site www.migalhas.com.br em 31/03/2023. Acessível em https://www.migalhas.com.br/depeso/384103/stf-importancia-como-modelo-a-ser-implementado-pelos-entes-federados - acesso em 18/08/2023

2 A análise do regime das empresas públicas e das sociedades de economia mista e suas subsidiárias será efetivada em outra oportunidade diante das peculiaridades que permeiam o regime monopolista e concorrencial ensejando uma abordagem mais circunstancial.

julgados do Tribunal Pleno da Corte Constitucional, no seu trato para com os órgãos de consultoria, assessoramento e representação judicial e extrajudicial dos Municípios brasileiros.

2. ADI 3396

No âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3396, o STF analisou a aplicabilidade dos arts. 18 a 21 do Estatuto da Advocacia (Capítulo V), os quais tratam do advogado empregado.

Sobre o assunto Marcelo Borges já se pronunciou no artigo “O Estatuto da OAB se aplica ao advogado público? Análise da ADIn 3396” 3 , ressaltando que nesta ADI se concluiu que os advogados públicos ficam adstritos tanto ao Estatuto da OAB quanto ao Estatuto do ente ao qual estejam vinculados, com as adaptações que se fizerem necessárias em ambas as relações jurídicas, em especial usufruindo das prerrogativas próprias dos advogados não se confundindo com advogados empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho. Necessário frisar que neste julgamento foi expressamente reconhecido ao advogado público o direito à percepção dos honorários advocatícios.

3. DO NÃO CABIMENTO DO CONTROLE DE PONTO

Mais recentemente, ao julgar o Recurso Extraordinário 1400161, tendo como Relator o Ministro Edson Fachin, o STF assentou o entendimento de que a utilização do sistema de controle de ponto encerra dissonância para com a disciplina constitucional da advocacia, função essencial à justiça, nos termos do art. 133 da CRFB, o qual estabelece que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

Sobre o assunto também Marcelo Borges já se manifestou no artigo “Controle de ponto de advogado público? STF reconhece a prerrogativa da incompatibilidade do controle de ponto”4, oportunidade em que ao analisar o julgamento, salientou a completa inconstitucionalidade do controle de ponto dos advogados públicos.

3 Borges, M. A. G. (2022, julho 26). O Estatuto da OAB se aplica ao advogado blico? Migalhas. https://www.migalhas.com.br/depeso/370495/o-estatuto-da-oab-se-aplica-ao-advogado-publico. Acesso em 25 jul. 23

4 Borges, M. A. G. (2022b, dezembro 16). STF reconhece a prerrogativa da incompatibilidade do controle de ponto. Migalhas. https://www.migalhas.com.br/depeso/378826/stf-reconhece-a-prerrogativa-da-incompatibilidade-do-controle-de-ponto. Acesso em 25 jul. 23.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 304

Este último julgado parte da premissa que foi assentada quando do julgamento da ADI 3396, ou seja, a de que os advogados públicos ficam adstritos tanto ao Estatuto da OAB quanto ao Estatuto do ente ao qual estejam vinculados.

É de grande importância este julgado. Isto porque complementa o entendimento anterior e expressamente esclarece que, mesmo ante a existência de uma dupla submissão do advogado público a ambos os estatutos (da OAB e do ente), nenhum deles pode vir a prever o controle da presença, e que se assim vier a fazê-lo, esta legislação encontra-se em desconformidade com o texto constitucional. Impingir a estes profissionais o controle de ponto das suas jornadas é conduta da administração pública que não encontra, como dito, respaldo no texto constitucional.

Este precedente do STF deve abalizar toda uma releitura da jurisprudência construída no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por exemplo, onde se entendia que a submissão do advogado público a ambos os estatutos autorizava a previsão do controle da presença no âmbito da lei do ente.

Dada a expressa manifestação do STF pela não adequação do controle de ponto do advogado público à Constituição Federal e considerando-se as disposições dos arts. 926 a 928 do Código de Processo Civil, é de se esperar que não apenas o TRF 4ª Região, mas todo o Poder Judiciário brasileiro pacifique o seu entendimento na mesma direção.

De outro lado, a súmula nº 9 da Comissão da Advocacia do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil especifica que “o controle de ponto é incompatível com as atividades do Advogado Público, cuja atividade intelectual exige flexibilidade de horário”, sendo oportuno sublinhar a posição de Luiz Barbugiani ao externar que essa prerrogativa não pode ser deturpada em prejuízo à atuação da Advocacia Pública com abusos a pretexto de respeitá-la:

“Ora, de nada adiantará defender essa prerrogativa se a pretexto de inexistir um controle de ponto a quantidade de processos judiciais distribuídas a um Advogado Público for superior à sua capacidade de trabalho. Não é possível, ao se defender uma prerrogativa, chancelar a conduta ilícita de sobrecarga de trabalho, sem a disponibilização dos instrumentos adequados para a sua concretização pelo órgão institucional ao qual se vincula o Advogado Público. Se essa prática irregular for admitida estar-se-ia legitimando evidente assédio moral se comprovado ser direcionado a um Advogado Público especificamente e, até mesmo, o dano moral coletivo repudiado pelo nosso ordenamento jurídico se atingisse toda a carreira da Advocacia Pública”5.

5 Barbugiani, Luiz Henrique Sormani Barbugiani. Um Ensaio sobre as prerrogativas da advocacia pública na era contemporânea. In. Barbugiani, L. H. S. e Castelo, F. (org.). Visões Contemporâneas sobre Direito Publico: estudos em homenagem aos 75 anos da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná. Florianópolis: Habitus, 2022. p. 306.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 305

Diante dessa necessidade de preservação das prerrogativas coibindo os abusos, não só a Ordem dos Advogados do Brasil, como também as associações e os sindicatos instituídos em defesa da Advocacia Pública devem se manter em alerta para que não haja mácula ao bem-estar físico e psíquico dos advogados públicos.

4. DO TETO REMUNERATÓRIO APLICÁVEL AOS PROCURADORES MUNICIPAIS

O Tema 510 foi julgado pelo STF, tendo como Relator o Min. Dias Toffoli (leading case: RE 663696), oportunidade em que se fixou a tese no sentido de que “a expressão “Procuradores”, contida na parte final do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.”

Após o precedente vinculante oriundo do STF inúmeros julgados passaram a rechaçar uma prática comum na jurisprudência de alguns Estados ao limitar a remuneração dos Procuradores do Município ao subsídio dos prefeitos. A título de exemplo citamos os seguintes julgados:

APELAÇÃO. JUÍZO POSITIVO DE ADEQUAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº 663.696/MG, Tema 510. Objeto do paradigma. Qual teto remuneratório é aplicável aos Procuradores do Município. Devolução dos autos para eventual adequação da fundamentação ou, se o caso, manutenção da decisão. O acórdão de apelação proferido por esta Câmara já foi readequado ao Tema 257 do STF, para reconhecer a constitucionalidade da incidência do teto remuneratório sobre os vencimentos dos servidores, inclusive sobre os valores percebidos a título de vantagens pessoais anteriormente ao advento da EC 41/03. Necessária complementação da fundamentação para constar expressamente que ao impetrante, então Procurador do Município, se aplica o teto ‘de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal’, e não do Prefeito. ACÓRDÃO READEQUADO À ORIENTAÇÃO ESTABELECIDA NO RE 663.696 PARA DAR PARCIAL PROVIMENTO AOS RECURSOS DE APELAÇÃO E ACOLHER PARCIALMENTE A REMESSA NECESSÁRIA. (TJSP; Apelação Cível 0103561-70.2005.8.26.0000; Relator (a): José Maria Câmara Junior; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Santos - 1. VARA FAZ PUBL; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023)

APELAÇÃO. Teto remuneratório de Procuradores Municipais. Pretensão de restituição de valores indevidamente descontados pelo Município de Ribeirão Preto ao aplicar redutor com base no subsídio do Prefeito. Admissibilidade. Limitação a 90,25% do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal

Henrique Sormani BarBugiani /
aLcantara
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Luiz
Fernando
caSteLo

Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 307 Federal. Consideração ao julgamento do Recurso Extraordinário 663.696/MG por essa Corte Suprema, submetido à sistemática dos recursos repetitivos (tema 510). Precedentes deste Tribunal de Justiça (TSJP). Recurso provido, portanto. (TJSP; Apelação Cível 1014942-25.2021.8.26.0506; Relator (a): Encinas Manfré; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Ribeirão Preto - 2ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 15/12/2022; Data de Registro: 16/12/2022)

Desta maneira, à luz das disposições dos artigos 37, XI (com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 41/2003), e 132, da Constituição Federal, deve-se considerar como teto remuneratório dos procuradores municipais o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal dentro dos parâmetros constitucionais definidos.

5. DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DOS ADVOGADOS PÚBLICOS

O STF julgou a ADI 6053, que questionava o pagamento de honorários advocatícios devidos à advocacia pública federal. Diversas outras ADIs foram ajuizadas também em face das leis estaduais que previam o pagamento de honorários aos procuradores dos Estados. Todas foram julgadas improcedentes.

O questionamento levado ao STF por parte da Procuradoria-Geral da República era, na realidade, se são devidos honorários advocatícios aos advogados públicos. Este julgamento, que entendeu pela constitucionalidade do pagamento de honorários advocatícios aos advogados públicos representa um importante marco, uma importante vitória para a valorização da advocacia pública.

A decisão proferida na ADI 6053 (e também nas outras ADIs e ADPFs relacionadas aos Estados) no sentido de que a percepção de honorários advocatícios é compatível com o regime de subsídios e o regime estatutário ao qual os Advogados Públicos estão sujeitos pela Constituição Federal é aplicável, na íntegra, também aos advogados públicos dos Municípios.

6. DA IMPORTÂNCIA DA PROCURADORIA DOS MUNICÍPIOS

Ao lecionar sobre controle de constitucionalidade, o Ministro Alexandre de Moraes ensina que o Poder Executivo realiza, em relação ao momento da análise, um controle chamado de preventivo de constitucionalidade da lei ou do ato normativo em relação ao ordenamento jurídico como um todo6.

6 Moraes, Alexandre de Direito constitucional / Alexandre de Moraes. – 36. ed. – São Paulo: Atlas, 2020. p. 1355.

direito
PúBLico em PerSPectiva

Esta é apenas uma das inúmeras facetas que é apta, por si só, a demonstrar a importância da procuradoria junto aos Municípios.

Podemos complementar esta fala com a afirmação de que é no âmbito dos Municípios que imensa parcela das políticas públicas de atendimento aos cidadãos é efetivamente implementada. Para que esta implementação das ações estatais possa efetivamente vir a ocorrer em plena conformidade para com todo o ordenamento jurídico, a participação da procuradoria do Município é imprescindível.

Não é de hoje que vêm sendo travadas várias discussões no âmbito político, sempre se defendendo o reequilíbrio das forças federativas, de maneira a se outorgar maior importância aos Municípios, inclusive com os necessários reflexos em termos arrecadatórios. Esta pretensão está abalizada na afirmação de que “é nos Municípios que a vida do cidadão efetivamente acontece”7, e ela remonta a vários anos. Esta fala foi ratificada, por exemplo, dentre outras oportunidades, na “Marcha dos Prefeitos”, movimento ocorrido entre os dias 27 e 30 de março de 2023 em Brasília.

Já são inúmeras as atribuições de atuação dos Municípios. Todavia, em um cenário de médio prazo, quer nos parecer que existe um viés de aumento destas responsabilidades, com o consequente aumento também de atribuições a serem desempenhadas por parte das procuradorias dos Municípios.

A Administração Pública é regida pelo princípio da legalidade. Significa dizer que o administrador está adstrito aos mandamentos da lei. É evidente que em tal contexto, a importância do Órgão que interpreta todo o ordenamento jurídico para assessorar o gestor público, acaba sobressaindo naturalmente.

O arcabouço normativo brasileiro é extremamente complexo. Compatibilizar a correta aplicação da Constituição Federal, das leis federais, estaduais e municipais é muito difícil. Não bastasse isso, é necessário o conhecimento da jurisprudência do Poder Judiciário e também dos Órgãos de controle externo da administração pública (Tribunal de Contas, por exemplo). Para além de tudo isso há ainda o Ministério Público cumprindo sua atribuição, gravitando no entorno de toda a execução da administração pública, ora expedindo recomendação de atuações, ora questionando judicialmente atuações já levadas a efeito por parte do poder público.

Uma “boa navegação” em todo esse complexo emaranhado normativo significa segurança jurídica para o gestor público e também a correta e adequada execução das políticas públicas que vão laborar, efetivamente, em favor dos cidadãos. Por outro lado, uma “má navegação” acaba fazendo com que o

7 Vide notícia de 2012 ainda: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/e-no-municipio-que-a-vida -acontece/228971.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 308

309 gestor fique respondendo junto aos Órgãos de controle por muitos e muitos anos. O gestor público corre, ainda, o risco de responder inclusive com o seu patrimônio pessoal. Existe a possibilidade até mesmo de responsabilização por atos de improbidade administrativa e/ou criminal em sendo o caso.

Poderíamos passar muito tempo explanando a forma como os procuradores dos Municípios auxiliam na construção de uma melhor sociedade para o nosso país, contudo, nada mais relevante que o reconhecimento do STF em relação à advocacia pública municipal, pois ao assentar as importantes premissas anteriormente arroladas, está a sinalizar para toda a sociedade brasileira que o texto constitucional a recepciona – advocacia pública municipal - com uma deferência de Função Essencial à Justiça (FEJ) e que lhe reconhece direitos e prerrogativas para que a importante função de assessorar a administração pública possa vir a ser bem desempenhada. Estas decisões demonstram suficientemente bem que o STF está a chancelar a importância desses Órgãos jurídicos (procuradorias dos Municípios).

7. PRERROGATIVAS LABORAM EM FAVOR DO AGENTE PÚBLICO

Oportuno registrar que a construção de um plexo normativo que assegura prerrogativas em favor de determinados agentes públicos não labora em favor destes enquanto considerados como pessoas físicas. Esta construção tem o objetivo de respaldar estes agentes no exercício de suas funções, de maneira que eles possam bem desempenhá-las enquanto atores de construção da melhor assessoria jurídica do ente público. Esta atividade repercute, mesmo que mediatamente, em favor de toda a coletividade.

Luiz Barbugiani em artigo intitulado “Prerrogativas da Advocacia Pública: instrumento de defesa do interesse público e de valorização de uma carreira de Estado” preconiza que:

“O tema relacionado às prerrogativas da Advocacia Pública não é dos mais fáceis, devido à interferência de inúmeros fatores na compreensão, interpretação e implementação desse instituto. Denominamos essas prerrogativas de instituto, pois se tratam de instrumento jurídico vocacionado a proporcionar a efetividade do interesse público erigido como objetivo a ser alcançado por meio de mecanismos que permitam uma maior eficiência em sua consagração”8

A título de exemplo, podemos ilustrar que eventualmente a pretensão do administrador de agir de uma determinada maneira será prontamente

8 Disponível em < https://www.pge.pr.gov.br/Pagina/Revista-Juridica-da-Procuradoria-Geral-do -Estado-Edicao-2017>.

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS
do eStado do Paraná

rechaçada pela procuradoria, porque esta pretensão não está em conformidade com o ordenamento jurídico. Não pode o procurador do ente ficar em situação de fragilidade em tal contexto.

É necessário construir um ambiente de segurança psicológica, de segurança jurídica mesmo, para que o consultor jurídico possa entregar a manifestação que se mostrar cabível em relação à situação que for submetida à sua análise.

CONCLUSÃO

Como foi assentado inicialmente, o objetivo do presente artigo é o de fazer uma análise conjunta das mais recentes decisões que vêm sendo proferidas pelo STF em relação à advocacia pública, com atenção voltada especialmente em relação à advocacia pública de âmbito municipal.

Desta análise, podemos extrair as ilações seguintes:

1) são devidos honorários advocatícios aos advogados públicos, inclusive os municipais.

Urge, portanto, que os Municípios respeitem o Estatuto da Advocacia (Lei 8906/94) e o Código de Processo Civil, os quais asseguram ao advogado a titularidade sob os honorários das causas em que ele estiver atuando. Para tanto é imprescindível que os Municípios editem as leis e atos normativos de suas competências para que a distribuição entre os advogados públicos venha a ser efetuada. Disso desdobra segurança jurídica para o gestor e também para os advogados públicos.

Esta espécie de remuneração, pela eficiência, está em conformidade com as mais modernas técnicas de gestão. Estabelece ainda uma legítima relação “ganha-ganha” entre a administração pública e o advogado público baseada no princípio constitucional da eficiência em prol de maior produtividade, a qual é revertida em favor de benefícios em prol de toda a coletividade.

2) o teto remuneratório aplicável é o de Ministros do STF e não dos Prefeitos.

Conforme delineado anteriormente, fixado o Tema 510 pelo STF, é de se considerar como teto remuneratório dos procuradores municipais o subsídio dos Ministros do STF. Para o cálculo desta parcela deverá ser objeto de soma o valor dos subsídios e o valor dos honorários advocatícios.

Em se tratando de remuneração, é oportuno refutar o comportamento de Municípios que fixam os vencimentos de procuradores em patamares que não condizem com a complexidade das funções que lhes são atribuídas. Há Municípios, por exemplo, que oferecem salários menores do que R$2 mil aos seus procuradores. Esta é uma atitude populista, que deve ser afastada. Se

(orgS.)
Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo
310

311 ela aparenta, em um primeiro momento, prestar homenagem a uma suposta economicidade, esta conclusão não resiste a um melhor escrutínio. Como foi demonstrado anteriormente, uma má assessoria jurídica pode comprometer o patrimônio do Município e de seus gestores. Isso certamente não atende ao interesse público.

3) fixar controle de ponto em face do advogado público não encontra respaldo na Constituição Federal Mesmo existindo a submissão do advogado público ao Estatuto da OAB e também ao Estatuto do seu respectivo ente, a utilização do sistema de controle de ponto não encontra respaldo na disciplina constitucional da advocacia (função essencial à justiça - art. 133 da CRFB).

Assentadas essas ilações, se percebe que negar ao advogado público o direito aos honorários que são de sua titularidade, praticar em relação ao advogado público teto constitucional outro que não o de Ministros do STF, ou impingir a este o controle de ponto, são comportamentos que estarão fomentando a litigiosidade. Prospectando um julgamento em relação a estes hipotéticos casos judicializados, é de se imaginar a prevalência das teses assentadas pelo STF.

Não existe, portanto, nem lógica nem razoabilidade em negar a internalização, desde já, destas premissas à realidade da administração pública municipal.

Se o Supremo Tribunal Federal outorga tamanha deferência à advocacia pública municipal, é muito mais produtivo ao gestor público seguir na mesma direção, ou seja, reconhecer estas prerrogativas e fortalecer a sua procuradoria. Assim estará entregando aos profissionais ali atuantes as melhores condições para que a consultoria, o assessoramento jurídico e a representação judicial dos Municípios brasileiros esteja sendo realizada da melhor maneira possível. Ganha a administração pública de nível local com profissionais gabaritados aprovados em concurso público que se manterão na carreira municipal sem prestar concursos para outros entes federados em que as prerrogativas sejam instituídas e preservadas com maior segurança, mas ganha também, e de forma perene, toda a sociedade brasileira com a garantia de independência dos advogados públicos municipais frente às ingerências políticas sem respaldo nos anseios da população.

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aoS
Homenagem
ProcuradoreS do eStado do Paraná

caPítulo 17

o aMiCus Curiae como instrumento De legitimação Democrática Dos Julgamentos1

Luiz Henrique Sormani Barbugiani

Um dos desafios do Poder Judiciário em quaisquer dos países consiste em promover o acesso da população, com qualidade de informação, aos processos em que se discutem interesses individuais e sobretudo coletivos. Esse é um dos objetivos da própria publicidade das audiências, julgamentos e da maioria dos atos e processos judiciais, com as poucas exceções daqueles casos submetidos ao sigilo, por envolver questões de interesse social e típicas da intimidade quando a natureza do seu conteúdo assim o exigir, nos termos do artigo 5º, LX, da Constituição Federal de 1988. É preciso destacar que, mesmo nessas hipóteses, o sigilo é estabelecido conforme o regramento previsto em lei em sentido estrito, para evitar ou atenuar qualquer discricionariedade presente em regimes menos democráticos. Todavia, é prudente ponderar que a mera publicidade dos atos processuais não garante a justiça das decisões, ainda que permita uma maior fiscalização da sociedade acerca dos critérios utilizados em eventual julgamento. Em relação ao aspecto da publicidade, é possível inferir que a transmissão ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, permitiu que milhões de pessoas pudessem acompanhar, em tempo real, a solução de lides que impactam a sociedade, dada a existência de certa repercussão geral sob os aspectos sociais, jurídicos, econômicos e políticos, influenciando a vida de grande parte dos brasileiros senão em sua totalidade. A publicidade dos julgamentos é potencializada pela viabilização de uma plena informação e, consequente, divulgação dos direitos insculpidos em nosso ordenamento jurídico, não só para o povo brasileiro, mas também aos estrangeiros residentes ou de passagem pelo território nacional.

1 O artigo foi originariamente publicado na Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2023 (ISSN 1809-2829).

O conhecimento sobre a existência de direitos é o primeiro passo para que eles possam ser exercitados, contudo, sempre deve ser elucidado na informação disponibilizada quais os instrumentos ou garantias para a prevenção e a repressão às ofensas a esses direitos caso desrespeitados ou menoscabados de forma desproporcional, desarrazoada e ilegítima por quem quer que seja, pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado2.

Na realidade, o acesso ao Poder Judiciário pressupõe inúmeras outras questões que merecem ser devidamente atendidas, dentre elas, a plena ciência sobre os direitos consagrados nas normas constitucionais e infraconstitucionais. O conceito enunciativo de informação é o mais amplo possível e abarca também a prerrogativa de influir no julgamento por meio do contraditório e da ampla defesa, propiciando o debate e o detalhamento das teses jurídicas discutidas no processo. Todos os estudantes do curso de graduação em Direito reconhecem os institutos processuais, como o depoimento pessoal, o interrogatório e a própria colheita da prova testemunhal. É relevante frisar aqui que, muito além, da singela declaração das partes ou das diversas testemunhas3 que reverenciam o direito a ser ouvido em juízo, há a necessidade de uma compreensão muito maior, abarcando não só o direito de ser ouvido, mas também o de ser amplamente compreendido4 em suas inquietudes, aspirações e concepções em prol de uma decisão mais justa e equânime que proporcione um maior potencial de pacificação social.

Com base na ampliação dos elementos probatórios e técnicos absorvidos pelos depoimentos, testemunhos e esclarecimentos de peritos, o órgão julgador poderá apresentar uma decisão com maior profundidade de delimitação e cognição sobre a matéria submetida a julgamento. Nesse contexto, surge em caráter complementar e vocacionado a proporcionar uma ampliação do contraditório em uma concepção mais democrática e plúrima, a figura do amicus curiae .

Na ADPF 54, julgada pelo Tribunal Pleno, em 12/04/2012, consignou-se a importância do amicus curiae, anos antes do CPC de 2015, mais precisamente

2 Sobre a possibilidade de grupos ou entes despersonalizados serem representados em juízo ativa e passivamente (autor e réu) recomenda-se a leitura de Barbugiani, Luiz Henrique Sormani. Ações Coletivas Passivas. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.

3 Os diversos elementos que interferem na declaração de uma testemunha podem ser melhor apreciados na obra Barbugiani, Luiz Henrique Sormani. A Colheita da Prova Testemunhal no Brasil: uma visão antropológica. Rio de Janeiro: Lumen, Juris, 2019.

4 Sobre o direito de ser não só ouvido, mas também compreendido ver Barbugiani, Luiz Henrique Sormani. A interpretação ampla do direito a ser ouvido como conceito jurídico indeterminado no brasil em conformidade com a convenção americana sobre direitos humanos. In. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos. Org. João Otávio de Noronha Paulo Pinto de Albuquerque. São Paulo. Tirant Lo BLanch, 2020.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 314

315 nas ações de controle de constitucionalidade, devido a possibilidade de ampliar o debate e a maior percepção de diversos aspectos da mesma realidade social, ressaltando sua relevância, por exemplo, no mapeamento de outras visões religiosas sobre questões éticas e morais:

“Nos temas de aprofundado conteúdo moral e ético, é importante, se não indispensável, escutar a manifestação de cristãos, judeus, muçulmanos, ateus ou de qualquer outro segmento religioso, não só por meio das audiências públicas, quanto por meio do instituto do amicus curiae”.

Na atualidade, com a vigência do CPC de 2015, o caput, do artigo 138, do diploma processual, elasteceu as possibilidades de participação do amicus curiae, preconizando que:

“O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação”.

Observa-se a preocupação do legislador infraconstitucional em estender para todos os processos de caráter individual ou coletivo a possibilidade de participação do amicus curiae sempre que presente uma relevância justificadora, medida pelo conteúdo da matéria abordada na demanda, uma especificidade da questão que exija um conhecimento mais aprofundado e/ou peculiar sobre o assunto ou, ainda, a repercussão na sociedade da solução do conflito submetido à apreciação judicial. Anteriormente, a previsão restrita a algumas normas especiais, além das ações decorrentes do controle concentrado de constitucionalidade, já era benéfica, mas o aperfeiçoamento do instituto era algo inerente à própria evolução das relações sociais e dos conflitos decorrentes.

Assim, o elemento mais importante do instituto é a maior legitimação democrática das decisões judiciais proferidas e, por isso, a representatividade adequada mencionada no diploma processual deve ser compreendida como a possibilidade de contribuir para a solução da controvérsia com elementos, percepções, visões, circunstâncias e demais questões que possam passar despercebidas pelo órgão julgador, mas são essenciais para a solução mais adequada da questão em debate. Aliás, esse é o entendimento exarado na ADI 5086, julgada pelo Tribunal Pleno, em 18/05/2018, em que se indeferiu o pedido de intervenção do amicus curiae, sendo exigível uma “aderência específica” acerca da matéria objeto do julgamento, o que deve ser ponderado pelos magistrados segundo critérios de conveniência e oportunidade, para não atrasar a marcha

direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do
do Paraná
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processual desnecessariamente ao se exigir uma real e efetiva “aptidão contributiva” a título de representatividade adequada sobre o tema em contraditório, como ressaltado na ADI 6767 ED, julgada pelo Tribunal Pleno, em 27/04/2022.

Apesar do óbice cunhado na jurisprudência do Pretório Excelso, no sentido de que os embargos de declaração, no âmbito das ações de controle concentrado de constitucionalidade, não podem ser apresentados pelos amicus curiae, como enunciando na ADI 5404 ED, julgada pelo Tribunal Pleno, em 22/05/2023, com maior razão deveria ser permitida a interposição para o saneamento de omissão, obscuridade e contradição sobre elemento relevante e crucial para o aperfeiçoamento da tese jurídica final declarada, de forma a proporcionar uma fiel compreensão da matéria em tese, e não para a solução do caso concreto em si, especialmente diante do efeito vinculante de tais pronunciamentos pelo Supremo Tribunal Federal e da redação contemporânea do artigo 138, do CPC, de 2015. Esse dispositivo do código de processo civil se aplica às demais ações individuais e coletivas não submetidas a normas específicas, mas deve influenciar todas as ações, incluindo as regidas por normas extravagantes, sendo evidente que, em teoria, as decisões no controle concentrado são abstratas e mais abrangentes que os processos que apreciam apenas uma situação fática concreta (demandas individuais ou coletivas), da mesma forma que os proferidos pela sistemática dos recursos repetitivos ou da repercussão geral julgada no mérito, que, além do caso concreto, abarcam a definição de teses vinculantes. A edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante devido aos mesmos motivos deveriam ser objeto de embargos de declaração para eventual esclarecimento em prol da maior eficácia social e de sua plena aplicabilidade.

Outro ponto de extrema relevância encontra-se na imparcialidade associada à figura do amicus curiae, no sentido de que não é parte no processo mas mero terceiro, contudo, esse distanciamento se relativizou no âmbito da doutrina e da jurisprudência, na medida em que a representatividade adequada pode exigir não só conhecimento de causa sobre o assunto debatido, mas pressupor, em certas situações, interação com os elementos fáticos e jurídicos debatidos, o que gera além de um certo nível de interesse no resultado, a exigência da presença desse interesse ao menos para legitimar o conhecimento mais aprofundado dessas questões, suas perspectivas e reflexos que poderão contribuir com o julgamento.

Nesse contexto, o papel das associações de representação de classe é de fundamental importância para os esclarecimentos e a ampliação do contraditório no intuito de aperfeiçoar a compreensão acerca das circunstâncias e reflexos de uma decisão de caráter abstrato em um determinado segmento da sociedade. É bem mais inteligente, eficiente e menos custoso para um órgão

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Fernando aLcantara

julgador antecipar os impactos positivos e negativos de uma decisão judicial vinculante por meio de audiências públicas e de elementos colacionados pelos amicus curiae, ponderando os seus reflexos com o sopesamento dos diversos direitos envolvidos do que, posteriormente, após anos de consequências indesejadas, revisar a tese anteriormente consolidada.

Na ADI 2321 MC, julgada pelo Tribunal Pleno, em 25/10/2000, o Pretório Excelso já propugnava os benefícios da participação do amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade, com o resultado de proporcionar maior legitimidade democrática aos julgamentos, considerando que:

“A idéia nuclear que anima os propósitos teleológicos que motivaram a formulação da norma legal em causa, viabilizadora da intervenção do ‘amicus curiae’ no processo de fiscalização normativa abstrata, tem por objetivo essencial pluralizar o debate constitucional, permitindo, desse modo, que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia, visando-se, ainda, com tal abertura procedimental, superar a grave questão pertinente à legitimidade democrática das decisões emanadas desta Suprema Corte, quando no desempenho de seu extraordinário poder de efetuar, em abstrato, o controle concentrado de constitucionalidade”.

Essa propensão do Pretório Excelso em reconhecer suas limitações para alcançar uma cognição exauriente e perfeita sobre as matérias relevantes que julga é digno de deferência e, com a edição do CPC de 2015, uma exigência para todo o Poder Judiciário.

Em sua origem, o amicus curiae era reputado um colaborador imparcial e neutro, proporcionando esclarecimentos de fato e de direito, mas, como é natural, a sociedade não comporta, dentre seus atores, imparcialidade absoluta, motivo pelo qual se passou a admitir certo interesse, mas não o suficiente para o transformar em parte, apenas o razoável para legitimar a sua representatividade adequada. Há ainda uma preocupação salutar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal com a aceitação ou convite dos colaboradores que possam agregar informações novas em perspectivas variadas, sem duplicidade e eventuais prejuízos à duração razoável do processo. Esse entendimento evoluiu não só no Brasil como no direito comparado, sobretudo nos EUA, sendo objeto de destaque no RE 602584 AgR, julgado pelo Tribunal Pleno, em 17/10/2018. Assim, o amicus curiae tornou-se um dos instrumentos de legitimação democrática dos julgamentos pelos órgãos do Poder Judiciário, motivo pelo qual deve ser estimulado em todos os graus de jurisdição e para todas as ações em que estejam presentes “a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia”, prevista no artigo 138, do CPC, de 2015, sem qualquer distinção.

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caPítulo 18

a Delimitação Da raTio deCidendi Dos recursos extraorDinários: uma análise a Partir De JulgaDos Do suPremo tribunal FeDeral

Ramon Grenteski Ouais Santos

1. INTRODUÇÃO

O debate sobre precedentes judiciais tem despertado enorme interesse na academia brasileira nos últimos anos. Esse interesse se refletiu na atividade legislativa, que estabeleceu, no artigo 927 do Código de Processo Civil, padrões normativos judiciais com eficácia vinculante.

Apesar da consagração normativa, a academia não tem empregado a reflexão necessária a respeito da prática concreta das Cortes quando formam, aplicam ou distinguem precedentes. Dito de outro modo, as discussões acadêmicas se preocupam muito com a exposição de conceitos – o que é ratio decidendi, o que são obiter dicta, diferenças entre precedentes obrigatórios e persuasivos etc. –, porém se preocupam pouco em apreciar e, eventualmente, criticar como os Tribunais efetivamente utilizam as técnicas no dia a dia.

Este artigo objetiva contribuir com um melhor entendimento acerca da ratio decidendi¸ em especial as que sustentam precedentes formados por meio de recursos extraordinários1. Pretende-se demonstrar em que medida as teses de repercussão geral podem ou não ser identificadas como ratio e quais critérios podem ajudar a delimitar a autoridade do precedente para casos subsequentes.

1 Neste artigo, o objeto de investigação encontra-se limitado aos recursos extraordinários. Os precedentes formados em ações de controle concentrado, para dar apenas um exemplo, possuem eficácia vinculante determinada pela constituição, além de exibirem peculiaridades em torno da coisa julgada e da causa de pedir, exigindo um olhar mais específico. Desse modo, seria menos proveitoso um artigo que tratasse de todas as decisões dotadas de eficácia vinculante, pois assumiria um caráter genérico.

Não obstante, tais tarefas não podem ser cumpridas a partir de mera revisão de literatura. É indispensável que os conceitos da teoria dos precedentes sejam iluminados pela prática concreta dos tribunais, assim entendida como o uso que os atores processuais costumam fazer quando argumentam ou justificam suas pretensões e decisões.

Por isso, serão utilizados alguns julgados do Supremo Tribunal Federal para ilustrar o sentido e a operabilidade dos conceitos relacionados com a teoria dos precedentes e, quem sabe, contribuir com o aperfeiçoamento do sistema brasileiro de decisões vinculantes.

2. O ARTIGO 927 DO CPC E A EFICÁCIA VINCULANTE

No âmbito do common law inglês, não existe regra escrita que obrigue juízes a seguir precedentes. O princípio não-escrito que alicerça o stare decisis decorre exclusivamente de um imperativo racional para prevenir injustiças e ineficiências2.

Por sua vez, no âmbito do direito brasileiro, fez-se necessária a positivação de uma regra – ainda que haja disputas doutrinárias a esse respeito3 – tornando certos padrões decisórios vinculantes. Essa regra encontra assento no artigo 927 do Código de Processo Civil.

O dispositivo, em seus cinco incisos, alude a decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado (inciso I), enunciados de súmula vinculante (inciso II), acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamentos de recursos extraordinário e especial repetitivos (inciso III), enunciados de súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (inciso IV) e

2 Nessa linha, confiram-se as lições de Neil Duxbury: “Stare decisis não costuma decorrer de um mandamento constitucional ou de uma lei, mas de uma imposição das cortes a elas mesmas. O common law adotou a doutrina do precedente (...) porque efetivamente desenvolve a estratégia de autovinculação para prevenir injustiças, ineficiências e outras fraquezas que poderiam obstruir o processo decisório caso juízes justificassem cada questão jurídica como se fosse inédita, com absoluta discricionariedade e sem nenhuma consideração à sabedoria judicial duramente adquirida ao longo do tempo” (DUXBURY, Neil. The Nature and Authority of Precedent. Cambridge University Press, 2008, p. 116. No original: “Stare decisis is usually not a constitutional or a statutory requirement, but one which courts impose on themselves. When a common law system adopts a doctrine of precedent (…) it effectively develops a strategy of self-binding to guard against the injustices, inefficiencies and other weaknesses that would beset the adjudicative process if judges reasoned every point of law afresh, with complete discretion and without any regard to hard-won judicial wisdom”).

3 Por todos, STRECK, Lenio Luiz. Crítica às teses que defendem o sistema de precedentes - Parte II. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-set-29/senso-incomum-critica-teses-defendemsistema-precedentes-parte-ii. Acesso em 15 de setembro de 2023.

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orientação do plenário ou do órgão especial aos quais os juízes e tribunais estiverem vinculados (inciso V).

Há um intenso debate doutrinário de se os padrões estabelecidos no artigo 927 realmente são obrigatórios e, em caso positivo, se o rol nele previsto exaure as hipóteses de decisões dotadas de eficácia vinculante. Quanto ao tema, Ronaldo Cramer inventariou cinco posições distintas, havendo entendimentos doutrinários para todos os humores4.

Como indicado na introdução, a preocupação central desse artigo está em refletir a partir da prática real dos operadores do direito. O objetivo, neste ponto, é apenas descrever de que modo advogados, juízes, desembargadores e ministros, na maior parte do tempo, tendem a se posicionar sobre a eficácia de precedentes quando estão exercendo suas funções5.

E o esforço descritivo revela que, na maior parte do tempo, os praticantes do direito reputam necessário que alguma norma escrita, a exemplo do art. 927 do CPC, credencie uma decisão para que possa ter força vinculante.

Há muitos indícios que confirmam tal diagnóstico. O portal do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, criou um sistema de busca específico para precedentes qualificados, entendidos naquele ambiente como julgamentos de recursos especiais repetitivos. A publicação denominada “A Constituição e o Supremo”, editada pela Corte Maior, separa os precedentes entre vinculantes e não-vinculantes, tratando como vinculantes aqueles que decorrem de julgamentos em ações de controle abstrato de constitucionalidade e em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida.

Uma recente e emblemática decisão do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n. 949.297 (Tema 881) confirma o diagnóstico aqui realizado. Naquele caso, a Corte examinava um recurso extraordinário, interposto pela União em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que havia concedido a segurança em favor de um contribuinte para impedir que sofresse a cobrança de contribuição social sobre o lucro.

O motivo pelo qual o contribuinte havia vencido a demanda era que tinha a seu favor uma decisão transitada em julgado nos idos de 1992, que, em caráter incidental, havia declarado a inconstitucionalidade formal da Lei n. 7.689/88, a qual serve de base para a cobrança da exação. Ocorre que, posteriormente à formação da coisa julgada que beneficiava o contribuinte, o Supremo Tribunal Federal julgou a ação direta de inconstitucionalidade n. 15, rejeitando a tese de inconstitucionalidade formal da Lei 7.689/88.

4 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 183-188.

5 Ressalte-se que o presente artigo não está defendendo que somente devem constituir precedentes obrigatórios aqueles padrões expressamente previstos no art. 927 do CPC ou em outra norma escrita.

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Assim, havia tanto a coisa julgada no processo individual, embasada na suposta inconstitucionalidade da Lei 7.689/88, como a coisa julgada posterior, em sentido diametralmente oposto, decorrente de julgamento de ação direta de inconstitucionalidade.

A tese da União no recurso extraordinário era que, em se tratando de relações continuativas, ela estaria autorizada a cobrar a contribuição social sobre o lucro sem necessidade de prévia ação rescisória, tendo em vista a Corte Suprema, por ocasião do julgamento da ADI 15 e de outros julgados, haver rechaçado a tese de que a Lei 7.689/88 padeceria de vício formal de inconstitucionalidade.

Para não nos perdermos nessa instigante questão, o que realmente importa para esse tópico é sinalizar que, quando do julgamento do RE 949.297, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese:

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo (sem destaques no original).

Observe-se que o Supremo Tribunal Federal atribuiu a força de interromper os efeitos temporais da coisa julgada às decisões proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade e àquelas proferidas em recurso extraordinário sob o regime de repercussão geral. Disso se extrai que os recursos extraordinários julgados fora do regime de repercussão geral não têm a aptidão de, automaticamente, interromper os efeitos temporais da coisa julgada.

Essa compreensão foi vertida para o item 5 da ementa, segundo o qual “as decisões em controle incidental de constitucionalidade, anteriormente à instituição do regime de repercussão geral, não tinham natureza objetiva nem eficácia vinculante”. Portanto, o sistema assume como premissa que a eficácia vinculante das decisões decorre efetivamente de uma norma positiva que atribui um selo ou uma credencial de padrão normativo obrigatório.

3. PRECEDENTES X JURISPRUDÊNCIA

De forma perspicaz, Luiz Guilherme Marinoni observa que os incisos do artigo 927 do CPC tratam de padrões decisórios bastante heterogêneos:

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A norma diz que os juízes e os tribunais devem observar hipóteses que não guardam qualquer homogeneidade. Mistura decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em controle concentrado de constitucionalidade, súmulas, decisões tomadas em vias de solução de casos ou questões repetitivas e orientação do plenário ou do órgão especial, mas, surpreendentemente, nada diz sobre precedente, ratio decidendi ou fundamentos determinantes da decisão6

Diante do emaranhado de hipóteses tratadas no dispositivo, não se revela imediatamente clara a relação entre julgamentos de recursos extraordinários e precedentes. Assim, o primeiro passo a ser dado consiste em explicar o que se entende, no contexto deste texto, por precedentes, estremando-os de uma noção próxima, que é a de jurisprudência.

Segundo Neil MacCormick e Robert Summers, precedentes são decisões do passado que funcionam como modelo para decisões futuras7. Essa definição, conquanto simples, tem o mérito de capturar a relação intertemporal inerente ao trabalho com precedentes.

Em um sistema que atribui força vinculativa a decisões pretéritas, juízes e tribunais, para solucionar adequadamente os casos em que oficiam, devem investigar se uma situação semelhante foi enfrentada por uma corte anterior. Se sim, o caso atual deve ser decidido conforme a regra ou o princípio vinculante estabelecido no precedente8.

Note-se que a ideia de precedente não se confunde com jurisprudência9, noção há muito conhecida pelo direito brasileiro10. Há uma diferença quantitativa e outra qualitativa entre jurisprudência e precedentes.

6 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 285.

7 MacCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting precedents: a comparative study. London: Dartmouth Publishing Company Limited, 1997, p. 1-2.

8 SLAPPER, Gary; KELLY, David. The English legal system. 9.ed. Abingdon: Routledge-Cavendish, 2009, p. 102: “The doctrine refers to the fact that, within the hierarchical structure of the English courts, a decision of a higher court will be binding on a court lower than it in that hierarchy. In general terms, this means that when judges try cases, they will check to see if a similar situation has come before a court previously. If the precedent was set by a court of equal or higher status to the court deciding the new case, then the judge in the present case should follow the rule of law established in the earlier case. Where the precedent is from a lower court in the hierarchy, the judge in the new case may not follow, but will certainly consider, it”.

9 Rodolfo de Camargo Mancuso, em síntese bastante interessante, identifica cinco sentidos distintos para a expressão jurisprudência: a) como ciência do direito; b) como direito aplicado pelos operadores; c) como a doutrina jurídica sobre determinado tema; d) como a somatória global de todos os julgados dos Tribunais de um Estado soberano; e) como a coleção ordenada e sistematizada de decisões de um Tribunal ou de um tema jurídico. (MANCUSO, Rodolfo Camargo de. Sistema brasileiro de precedentes. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 43). No corpo do texto, empregou-se jurisprudência conforme o quinto sentido delineado por Mancuso.

10 Vale pontuar a observação de Alexandre Freitas Câmara de que, “desde as primeiras leis brasileiras, editadas logo após a Independência, até leis mais recentes (como o Código de Processo Civil de 1973), não se trabalhou propriamente com o conceito de precedentes (especialmente no que

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Segundo Michele Taruffo, jurisprudência representa uma pluralidade de decisões relativas a diversos casos. Todavia, uma única ou às vezes algumas poucas decisões podem constituir um precedente. Esta é a diferença quantitativa.

De forma ainda mais importante, há uma diferença qualitativa entre os fenômenos. O precedente fornece uma regra universalizável que pode ser aplicada a casos futuros mediante um juízo analógico. Por isso, diz Taruffo, “a estrutura fundamental do raciocínio que sustenta e aplica o precedente ao caso sucessivo é fundada na análise dos fatos11”.

É necessário deter-se um pouco mais na diferença qualitativa. Taruffo adverte que o uso dos precedentes, quando comparado ao trabalho com a jurisprudência, implica uma atenção muito maior aos fatos do caso. Deveras, quando se utiliza a jurisprudência, normalmente se destaca o resultado da solução de uma questão sem preocupar-se tanto com a precisa delimitação fática dos vários casos julgados12. Os detalhes se perdem.

4. RATIO DECIDENDI NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS E COMPARAÇÃO DE CASOS

Uma vez que o precedente se extrai a partir de uma decisão judicial, parece intuitivo que nem todas afirmações ou considerações nele contidas servem de guia para decisões futuras. Assim, surge a necessidade de separar a ratio decidendi das obter dicta13.

A ratio decidendi consiste nas razões necessárias e suficientes para o julgamento do caso. Por necessário, MacCormick entende o dever de o juiz de apreciar os pedidos e as causas de pedir das partes; por suficiente, refere-se à capacidade de a razão justificar a conclusão acerca da questão enfrentada14. As obiter dicta, a seu turno, correspondem às opiniões e às valorações judiciais externas aos fundamentos necessários e suficientes da decisão15.

concerne aos precedentes vinculantes) no Brasil, ao menos do modo como este fenômeno é tratado nos ordenamentos ligados à tradição anglo-saxônica. O conceito que por aqui sempre se adotou, reconhecendo-se mesmo ser uma ‘fonte de direito’, foi outro: o de jurisprudência” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Levando os padrões decisórios a sério: formação e aplicação de precedentes e enunciados de súmula. São Paulo: Atlas, 2018, p. 121).

11 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência, p. 142-143.

12 TARUFFO, Michele. Op. Cit., p. 143-144.

13 Note-se que a distinção entre ratio e dicta não diz respeito à característica de o precedente ser obrigatório ou persuasivo. Decisões com eficácia persuasiva, se utilizadas como reerenciais para julgamento de casos futuros, também terão fundamentos necessários e suficientes que suportem a conclusão. Logo, também terão rationes

14 MacCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito: uma teoria da argumentação jurídica, p. 193 e 204-209.

15 MacCORMICK, Neil. Op. cit., p. 193.

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No âmbito do recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, o Supremo Tribunal Federal tem feito mais do que simplesmente julgar casos. Ao final do julgamento, a Corte edita uma tese jurídica a fim de guiar a solução de casos futuros.

Seria essa tese jurídica a ratio decidendi? Do ponto de vista da teoria dos precedentes, me parece que a resposta seja “não”, e isso foi tratado com mais vagar em outra sede16. Mas boa parte deste artigo está focado no esforço de primeiro descrever a prática – o comportamento real dos atores processuais – para depois demonstrar quais os problemas que daí emergem. E a partir do filtro da prática, não soa exagerado afirmar que a comunidade jurídica trata as teses de repercussão geral como as rationes decidendi.

Essa compreensão se compatibiliza com o que normalmente se tem escrito na academia a respeito de ratio decidendi. Para explicar o que é a ratio, a doutrina majoritária incorpora duas distinções, quais sejam, a primeira entre “norma individual” e “norma geral”, e a segunda entre “texto” e “norma”. Como representativo dessa posição, cito o entendimento de Ronaldo Cramer:

Sabe-se que, a partir da interpretação do texto normativo, o julgado cria a norma jurídica individual para resolver o caso concreto. Essa norma individual é construída com os argumentos da fundamentação e se encontra no dispositivo do julgado.

Além da norma individual, o julgado, quando precedente, também cria outra norma, de caráter geral, que servirá de baliza decisória para os casos idênticos. Essa norma é extraída da fundamentação, e é a norma do precedente.

Para compreendê-la, faz-se necessário interpretar a fundamentação do julgado. Quando se diz que o precedente produz a norma, se quer dizer que essa norma se encontra no texto do precedente, e esse texto necessita ser interpretado para que dele seja depreendida.

Lembre-se que texto normativo se distingue de norma. Interpretar significa atribuir sentido a um texto, sendo que norma é produto da interpretação do texto17.

Assumindo como correta a definição acima, que reflete como a maior parte da academia brasileira enfrenta a questão da ratio decidendi, parece que as teses formuladas pelo Supremo Tribunal Federal em recursos extraordinários podem representar a ratio. Se quisermos ser mais cuidadosos – e isso ajuda um pouco, mas ainda é insuficiente –, pode-se dizer que a ratio decidendi seria a tese formulada pelo Supremo, respeitados os fatos do caso.

16 SANTOS, Ramon Ouais; PUGLIESE, William Soares. A teoria dos precedentes como uma teoria normativa da jurisdição. Revista de Processo, vol. 272, ano 42, p. 375-396. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro/2017.

17 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 88-89.

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O problema nem é se a definição de ratio está correta ou não. O problema está em assumir, talvez com uma simplificação exagerada, que o precedente seja um tipo de texto normativo em que sua norma possa ser extraída a partir de sua interpretação ensimesmada. O tipo de raciocínio prático que se exige para aplicar adequadamente precedentes depende mais de cotejo analítico entre o caso passado e o caso atual do que de atividade interpretativa a respeito do precedente. Dito de outro modo, o sentido de norma do precedente somente revela sua potencialidade quando se tem um novo caso a que ele deve ser aplicado ou distinguido.

Um exemplo pode aclarar as ideias. Considere-se o julgamento do recurso extraordinário n. 905.357/RR (tema 864 de repercussão geral), cujos fatos principais são os seguintes:

a) O Estado de Roraima editou a Lei n. 331, de 19 de abril de 2002, instituindo o “índice linear de revisão geral anual” para todo o funcionalismo público, no percentual de 5%, para ter efeitos a partir de 1º de abril de 2002;

b) posteriormente, o Estado de Roraima editou a Lei n. 339, de 17 de julho de 2002, a qual tinha natureza de lei de diretrizes orçamentárias para o exercício de 2003, autorizando a revisão geral anual, “cujo percentual está definido na Lei nº 331, de 19 de abril do corrente ano”;

c) em 2003, o Estado de Roraima não concedeu a revisão geral anual;

d) em seguida, um servidor ajuizou ação declaratória, pleiteando “a condenação do Estado de Roraima ao pagamento do reajuste anual, referente ao ano de 2003, no percentual de 5% de sua remuneração, conforme previsto no artigo 41 da Lei 339/02”;

e) a pretensão foi julgada procedente e confirmada pelo tribunal local, de modo que o Estado de Roraima estava condenado a implantar o reajuste de 2003 no percentual de 5%.

Em seu recurso extraordinário, o Estado de Roraima alegou que a revisão geral anual dependeria de autorização na lei de diretrizes orçamentárias (o que estava presente no caso), mas também de prévia dotação na lei orçamentária do respectivo exercício (o que não estava presente).

O Supremo Tribunal Federal acatou o argumento do Estado de Roraima fixando a seguinte tese: “A revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos depende, cumulativamente, de dotação na Lei Orçamentária Anual e de previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias”.

No Estado do Paraná ocorreu algo semelhante. Em 2015, foi editada a Lei 18.493, prevendo a revisão geral anual para os exercícios de 2015, 2016 e 2017. Depois de implantar os reajustes de 2015 e de 2016, o Paraná promoveu

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o adiamento da revisão geral anual de 2017 a partir de um dispositivo inserido em sua lei de diretrizes orçamentárias18.

O adiamento da revisão geral anual de 2017 gerou milhares de ações judiciais, as quais restaram sobrestadas em razão de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) suscitado pelo Estado do Paraná.

No referido IRDR, o Estado se defendeu invocando o precedente gerado no RE 905.357/RR, aduzindo, entre outras alegações, que o reajuste de revisão geral anual paranaense não foi autorizado pela lei de diretrizes orçamentárias – que, bem ao contrário, desautorizou a implantação –, nem possuía dotação na lei orçamentária no respectivo exercício financeiro. Assim, argumentou-se que a ratio decidendi do Tema 864 indicava que os servidores não faziam jus ao direito de implantar a revisão nas datas previstas em 2017, porque não restaram preenchidos os dois requisitos estabelecidos no artigo 169, § 1º, incisos I e II, da Constituição Federal.

Não obstante, ao julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas, o tribunal local realizou distinguishing. Com o risco de alguma simplificação – porque o acórdão é extenso e bem fundamentado –, o Relator justificou a distinção da seguinte maneira:

2.61. Igualmente, o Estado do Paraná incorre em equívoco quando pretende a aplicação descontextualizada do decidido no RE nº 905.357.

2.62. O aludido recurso volta-se contra acórdão do Tribunal de Justiça de Roraima que condenou aquele ente ao pagamento da revisão geral autorizada pela Lei Estadual nº 339/2002 (Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2003), relativa ao exercício de 2003, com base em percentual de 5% (cinco por cento) estabelecido pelo art. 41 da Lei Estadual nº 331/2002.

[...]

2.67. Pois bem, apesar do esforço argumentativo do Estado do Paraná, presentes distinções que impedem a incidência da ratio à hipótese vertente, quais sejam:

o caso analisado pelo STF dizia respeito à revisão geral anual autorizada pela lei de diretrizes orçamentárias, ao passo que a controvérsia deste IRDR se cinge à revisão geral determinada por lei específica, que estabeleceu o direito ao reajuste com datas e índices certos;

i. no RE nº 905.357, a autorização contida na LDO não restou concretizada em dotação orçamentária na LOA respectiva – decisão que se insere na margem decisória do Chefe do Poder Executivo;

18 Previu o artigo 33 da Lei paranaense n. 18.907/2016: “Art. 33. Não se aplica e não gera efeitos o disposto no art. 3º da Lei nº 18.493, de 24 de junho de 2015, enquanto não forem implantadas e pagas todas as promoções e progressões devidas aos servidores civis e militares e comprovada a disponibilidade orçamentária e financeira”.

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ii. no caso em debate, por outro lado, o reajuste outrora concedido por lei específica nos termos do art. 37, X, da CF– cuja efetiva implementação ficou sujeita à ocorrência de termo (evento futuro e certo) – foi procrastinado de forma indefinida por disposição posterior da LDO/2017, que impediu o gozo de direito patrimonial já incorporado à esfera jurídica dos servidores19 (...)

Observe-se que o julgador considerou que a circunstância de a revisão geral anual de Roraima – para o ano de 2003 – ter sido prevista em lei de diretrizes orçamentárias traduziria uma diferença relevante para o caso do Paraná, em que a revisão geral anual foi prevista em lei específica. No caso do precedente, o Relator considerou que a revisão estava apenas autorizada, sem gerar direitos subjetivos aos servidores; no caso atual, a revisão geral estaria determinada, excluindo da esfera de discricionariedade do gestor a escolha de implantar ou não o reajuste em suas datas originalmente estabelecidas.

O objetivo aqui não é discutir se a decisão do tribunal local20 – e que se encontra desafiada via recurso no Supremo Tribunal Federal – realizou um distinguishing consistente ou inconsistente, mas sim demonstrar que todo precedente, por mais clara que esteja a articulação de sua regra, padece de um grau de indeterminação que remonta, entre outros aspectos, ao cotejo entre o caso do passado e o caso do presente21.

Tal indeterminação se faz visualizar em face da possibilidade de distinguishing , pois, a depender da forma como os fatos são categorizados, eles podem ser interpretados como semelhantes ou como diferentes. No exemplo dado, o tribunal paranaense, debruçando-se sobre o precedente gerado no RE 905.357/RR, reputou extremamente relevante a natureza orçamentária (ou seja, de vigência temporária) da lei que concedeu o reajuste. Ou seja, infere-se que o tribunal local entende que, no caso de Roraima, se o reajuste estivesse previsto em lei específica, o Supremo Tribunal Federal teria decidido de outra maneira. Logo, o tribunal local considera que, no caso de Roraima, a natureza orçamentária da lei constitui fato material ou

19 Cuida-se do acórdão no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 002372167.2017.8.16.0000, julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

20 Registre-se que a decisão possui outros fundamentos. Apenas foi tratada a questão do distinguishing por força da pertinência com o tema deste artigo.

21 Com a perspicácia que lhe é habitual, H.L.A Hart já havia assinalado que precedentes também possuem textura aberta. O jurista inglês apresenta três formas de indeterminação, tendo por pano de fundo a doutrina do stare decisis: (a) em primeiro lugar, não há método único para determinar a ratio decidendi; (b) em segundo lugar, não há formulação única correta a se extrair dos casos, de modo que cada precedente pode dar origem a regras diferentes; (c) em terceiro lugar, a própria possibilidade de realizar distinguishing representa um poder, exercitável pela corte a quem se requer a aplicação de um precedente, de ampliar ou de restringir o âmbito da ratio decidendi (HART, H.L.A. O Conceito de Direito, p. 147-148).

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um fundamento essencial para suportar a conclusão de que o artigo 169, § 1º, da Constituição havia sido violado.

Por outro lado, o Estado do Paraná, em seus recursos, entende que a circunstância de a revisão geral anual de Roraima ter sido prevista em uma lei de diretrizes orçamentárias não configura fato material para a ratio decidendi do RE 905.357/RR. Em outras palavras, qualquer reajuste de revisão geral, seja previsto em lei de natureza orçamentária, seja previsto em lei específica – que, aliás, é o certo, por se cuidar de exigência insculpida no art. 37, X, da Constituição – deve, para ter exigibilidade, estarr autorizado em lei de diretrizes orçamentárias e contar com dotação em lei orçamentária anual, nos termos do artigo 169, § 1º, da Constituição.

Mas as lições que se podem extrair do RE 905.357/RR não se esgotam com o caso do Paraná, em que o tribunal local realizou distinguishing. Também se recolhe muito aprendizado acerca da ratio estudando decisões que seguem o precedente. E este é o caso do ARE 1335907, que, em breve síntese, possuía os seguintes fatos:

a) o Distrito Federal editou leis prevendo reajustes para o cargo de técnico em saúde, com efeitos financeiros programados para o mês de setembro dos anos de 2013, 2014 e 2015;

b) o Distrito Federal implantou os reajustes de 2013 e de 2014, porém não o fez no ano de 2015;

c) uma servidora pública ajuizou ação para exigir a implantação do reajuste faltante, e sua pretensão foi acolhida em primeiro e em segundo grau de jurisdição;

d) o Distrito Federal interpôs recurso extraordinário, o qual foi sobrestado para aguardar o julgamento do Tema 864 (RE 905.357/RR);

e) com o julgamento do tema, o órgão a quo exerceu juízo de retratação e julgou improcedente o pedido, considerando que, de acordo com o Tema 864, “para a concessão de vantagens ou aumento de remuneração, exige-se o preenchimento de dois requisitos cumulativos: dotação orçamentária na LOA e autorização na LDO” e que “não há demonstração de previsão orçamentária para o implemento da 3ª parcela do reajuste salarial que compõe o programa de reestruturação da carreira Assistência Pública à Saúde do Distrito Federal, condição para a exigibilidade daquela vantagem”.

A servidora, posteriormente, interpôs recurso extraordinário contra a decisão de juízo de retratação, mas o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, negou seguimento ao recurso, ao fundamento de que o acórdão recorrido não se afastou da tese fixada no RE 905.347/RR.

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Outros casos interessantes para demonstrar a natural indeterminação da ratio são os julgados que conduziram ao enunciado da súmula vinculante n. 13. No sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, foram indexadas cinco decisões relacionadas com o enunciado. Desse universo, apenas duas decorreram do exercício do controle incidental de constitucionalidade: a) o mandado de segurança 23.780; b) o recurso extraordinário n. 579.951-7, que é posterior à edição do enunciado.

O MS 23.780 foi impetrado por uma servidora pública da Secretaria de Educação de um Estado-membro que, desde 1989, foi posta à disposição do 16º Tribunal Regional do Trabalho para ocupar cargos comissionados. Ocorre que o Tribunal de Contas da União considerou ilegal o vínculo comissionado por violar a decisão n. 118/1994-TCU, que proíbe a contratação de cônjuges ou parentes consanguíneos ou afins, até terceiro grau, de juízes em atividade ou aposentados há menos de cinco anos.

No recurso extraordinário n. 579.951-4, o Supremo reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte que entendeu não haver inconstitucionalidade na nomeação de dois indivíduos – o primeiro, irmão de um vereador, o outro, irmão do vice-prefeito – para os cargos comissionados de Secretário municipal e de motorista. Em seu voto, o relator discorreu sobre a desnecessidade de lei formal para vedar o nepotismo, sobre a aplicação direta do princípio da moralidade administrativa, bem como sobre a eficácia das normas constitucionais.

Após os debates, houve ligeiro ajuste no voto, a fim de distinguir cargos de natureza eminentemente técnica de cargos de natureza política, como o de Secretário municipal. Veja-se que o Supremo se valeu de um fato adicional relevante que modificou a racionalidade exposta no mandado de segurança n. 23.780. Pode-se até duvidar se tal distinção foi boa ou ruim, coerente ou incoerente. Mas o fato é que o STF redimensionou o alcance que seu precedente anterior parecia ter, à luz de uma circunstância que não havia sido ponderada, qual seja, as diferenças entre cargos técnicos e cargos políticos.

A percepção de que o distinguishing consiste em um modo de indeterminação do precedente é fundamental. Assim como o Supremo apresentou uma razão adicional para modificar a regra do seu precedente, seria perfeitamente plausível se fizesse o justo oposto, isto é, se descaracterizasse a relevância da natureza do cargo político para fins de nepotismo.

Ademais, o exemplo também é importante para mostrar que, até quando precedentes são seguidos, há uma redução de sua indeterminação inicial. Ora, se o Supremo Tribunal Federal houvesse rejeitado a alegação de distinguishing, a natureza política do cargo seria incluída no rol de circunstâncias incapazes de derrotar a conclusão do precedente. Ou seja, seguir o precedente diminui o

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331 âmbito de sua indeterminação, porque questões que não foram expressamente enfrentadas pela corte do passado têm de ser resolvidas pela corte atual22.

Desse modo, aproximar a interpretação do precedente à interpretação de textos normativos legislados não é um bom caminho para entendê-los. É nesse sentido que reside a crítica à ideia de que a ratio decidendi seja uma norma geral, distinta da norma individual, que se extrai da decisão. Na verdade, a ratio decidendi possui uma inerente maleabilidade e variabilidade, que se revela, de modo bastante disputado, quando um novo caso, presumivelmente semelhante ao anterior, chega à atenção das cortes23.

5. A RATIO DECIDENDI E SEUS LIMITES COM BASE NAS QUESTÕES DECIDIDAS

Como vimos, o trabalho com precedentes depende inexoravelmente de cotejo analítico entre os casos, o que demanda especial atenção aos fatos da causa. Não é à toa, sinaliza Grant Lamond, que cortes no common law costumam descrever com riqueza de detalhes as circunstâncias do caso24, o que deixa entreaberta a possibilidade de cortes posteriores realizarem distinções.

Na contramão disso, o Supremo Tribunal Federal costuma dar pouca atenção aos fatos. Seja em recursos extraordinários, seja em ações diretas de

22 Grant Lamond defende, com razão, que seguir precedentes também desenvolve o direito: “É importante perceber a simetria entre seguir e distinguir: toda vez que um precedente é seguido, a doutrina jurídica de que faz parte é alterada. Na concepção convencional, seguir um precedente simplesmente mostra que a corte não exerceu seu poder de emendar a regra, de modo que a regra foi simplesmente “aplicada” sem modificação. Mas isso olvida a outra dimensão crucial do precedente – o papel a respeito dos fatos do caso. Sempre que um precedente é seguido, fatos adicionais são acrescentados à lista daqueles reputados insuficientes para derrotar a razão fornecida pela ratio” (LAMOND, Grant. Do precedents create rules?, p. 17. No original: “It is important to see the symmetry of following and distinguishing: every time a precedent is followed, the legal doctrine of which it is a part is altered. On the conventional view, following a precedent simply shows that the court did not exercise its power to amend the rule, and so the rule was simply “applied” without modification. But this overlooks the other crucial dimension of precedents—the role of the facts in a case. Every time a precedent is followed, further facts are added to the list of those regarded as insufficient to defeat the reason provided by the ratio”).

23 A propósito de como a ratio decidendi se encontra a meio caminho entre ser formulada pela corte do passado e ser (re)interpretada por cortes subsequentes (às vezes até a mesma corte que formou o precedente), Luiz Guilherme Marinoni arremata com bastante razão: “A ideia de que a ratio decidendi depende apenas do que as cortes inferiores dizem é tão falsa quanto a ideia de que a ratio decidendi está pronta e acabada com o término do julgamento” (MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedentes e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 131).

24 Esse é um dos mais aspectos mais importantes da doutrina dos precedentes no âmbito do common law. Sobre o tema, confira-se LAMOND, Grant. Do precedents create rules?, p. 15.

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inconstitucionalidade, os relatórios tendem a ser minimalistas, às vezes nem mesmo são registrados os argumentos das partes. É quase como se o recurso extraordinário tivesse um compromisso maior com a formação de uma tese do que de prestar a tutela ao jurisdicionado, e esses fenômenos não deveriam rivalizar.

Mas para além dos costumes judiciais do Supremo, o recurso extraordinário, em particular, é um indutor de empobrecimento dos fatos, justamente por causa de elementos como impossibilidade de revisar fatos e provas, necessidade de prequestionamento, inviabilidade de análise de legislação local etc25.

Para tornar mais compreensível o argumento, recorre-se a mais um julgado do Supremo Tribunal Federal, que é o recurso extraordinário n. 858.075 (Tema 818). Em razão da complexidade do caso, fazem-se necessárias algumas considerações prévias.

O art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com redação dada pela Emenda Constitucional 29/2000, estabeleceu aos entes federados a obrigação de investir percentuais mínimos de suas receitas de impostos em ações e serviços de saúde. Porém, o dispositivo não especificou o que seriam ações e serviços de saúde, prevendo regulamentação mediante lei complementar.

Ocorre que a Lei Complementar n. 141/2012, responsável por estabelecer critérios sobre o que são gastos com saúde, tardou quase doze anos.

Neste ínterim, o Ministério da Saúde editou a Portaria n. 2.047/2002 e a Resolução 322/2003, suprindo a inexistência de lei complementar26. Assim, começaram a surgir demandas judiciais, discutindo se determinadas despesas orçamentárias poderiam ou não ser contabilizadas para compor o percentual mínimo exigido pelo artigo 77 do ADCT.

O caso que conduziu ao Tema 818 se iniciou a partir de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal em face do Município de Nova Iguaçu e da União27. O Parquet sustentava que haveria déficits de investimento em saúde nos montantes de R$ 2.662.030,00 e de R$ 1.447.140,00, respectivamente, nos orçamentos municipais de 2002 e de 2003.

25 É certo que existe algum debate na doutrina, especialmente no que toca ao prequestionamento, se tais características decorreriam da correta interpretação do texto constitucional ou se de um ato de vontade da própria corte. Reputo excepcionalmente interessante BUENO, Cássio Scarpinella. Quem tem medo de prequestionamento. Disponível em https://www.scarpinellabueno.com/images/ textos-pdf/023.pdf. Acesso em 15 de setembro de 2023. Outro texto interessante é WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores no direito brasileiro. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 335-345.

26 À evidência, há uma importante questão jurídica sobre se tais atos normativos, editados para fazer as vezes de uma lei complementar, eram constitucionais ou não. Parece muito claro que, a despeito das boas intenções do Ministério da Saúde, houve violação à reserva de lei complementar estabelecida pelo art. 198, § 3º, da Constituição Federal.

27 Contra a União, pretendia-se que não fossem realizadas transferências de recursos ao município até que suprido o déficit no fundo de saúde.

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Na sentença, além de acolher o pedido em face da União, o Magistrado condenou o município a repor os valores deficitários de 2002 e de 2003 em dois anos, o primeiro no exercício financeiro subsequente à intimação da sentença, e o segundo no exercício seguinte ao primeiro.

Interpostas apelações pelos réus, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região reformou a sentença, com base em “clara afronta ao princípio constitucional da separação dos poderes (CF, art 2º)”.

Quando a questão chegou ao Supremo, ela já estava reduzida em sua complexidade para uma questão central: se o Poder Judiciário poderia ou não controlar a observância dos percentuais mínimos estabelecidos no art. 77 do ADCT. Questões mais complexas, que foram debatidas entre as partes na instância ordinária, restaram obliteradas, porque o recurso extraordinário possui limitações (i) de debate sobre legislação local, (ii) de fatos e provas e (iii) o Supremo, ao menos em tese, só pode decidir sobre o que estiver prequestionado no acórdão recorrido.

Nesse julgamento, quanto à questão central, o Supremo Tribunal Federal decidiu que “não viola a separação de poderes o controle, pelo Poder Judiciário, a tornar obrigatória a observância dos percentuais mínimos previstos no art. 77 do ADCT”.

No entanto, quem se der o trabalho de compulsar os autos, perceberá que a discussão não era simplesmente que o município tinha de investir um determinado valor e claramente investiu menos do que isso. A discussão era que o apontado déficit no investimento do município dependia da análise de se determinadas despesas – por exemplo, despesas com saneamento básico – poderiam ou não ser consideradas como gastos com saúde. Ou seja, a lei orçamentária municipal tinha destinado, a princípio, a quantidade correta de recursos à saúde, porém algumas atividades nela previstas foram reputadas como gastos que não tinham pertinência com saúde pública, a exemplo de saneamento básico.

Todavia, a dinâmica processual pátria compele ao empobrecimento das razões a cada nova instância em que o processo tramita. Ora, como o município havia vencido em grau de apelação com o fundamento de que o Poder Judiciário não poderia, sob pena de violação à separação de poderes, controlar o percentual mínimo, falecia a ele qualquer interesse recursal para conduzir as demais linhas de defesa. Por outro lado, com a redução da complexidade da matéria, restou mais fácil que o recurso extraordinário fosse admitido, e a questão fosse apreciada de modo singelo, como a possibilidade ou não de o Judiciário exigir que o aporte mínimo, de acordo com os percentuais claramente definidos no art. 77 do ADCT, fosse respeitado.

Complexidades como se saneamento básico pode ou não ser considerado saúde, se a aprovação das contas pelo Poder Legislativo tem impacto ou não,

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ou se a Portaria n. 2.047/2002 pode substituir a lei complementar exigida pelo artigo 198, § 3º, da Constituição não chegaram nem perto do Supremo Tribunal Federal e, ainda que se tentasse, provavelmente não haveria êxito, diante das numerosas restrições de admissibilidade a que tal recurso está submetido.

Voltando ao Tema 818, comentou-se que, ao julgar o recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal nada falou sobre aprovação de contas do chefe do Poder Executivo municipal. Logo, em um caso subsequente, em que o ente público réu se defenda e afirme que o Tribunal de Contas e o Poder Legislativo aferiram a correção da aplicação de percentual mínimo de investimento em ações e saúde, a corte em questão terá, por si mesma, de apreciar o peso desse argumento. Ela não poderá afirmar que a decisão tomada no RE 858.075, que gerou o Tema 818, constitui um precedente para a questão de saber se a aprovação de contas pelo Poder Legislativo, antecedida de parecer do Tribunal de Contas, constitui uma defesa apta a afastar eventual condenação.

E deve ser assim porque a decisão judicial, para as partes daquele processo, resta protegida pela eficácia preclusiva da coisa julgada28, porém para as partes de casos subsequentes, tal eficácia não existe. Ou seja, os fundamentos que poderiam servir de defesa para o Município de Nova Iguaçu, parte no RE 858.075, não podem ser mais utilizados para reabrir aquela discussão. Mas, se outro ente federado passar pela mesma situação, ele poderá alegar matérias não enfrentadas no precedente e terá direito a que o Tribunal competente os aprecie e, eventualmente, os considere relevantes para deixar de aplicar o precedente firmado.

Por isso, emerge muito relevante o alerta de Luiz Guilherme Marinoni, no sentido de demonstrar que a eficácia preclusiva da coisa julgada, que torna repelidas todas as alegações e defesas deduzidas e dedutíveis relacionadas a uma mesma causa de pedir, não se aplica no contexto da delimitação da ratio decidendi29. Isso significa que um fato alegado pela parte no caso atual que não foi considerado fato material no precedente pode ser utilizado para realizar distinguishing.

Em outras palavras, o precedente exerce autoridade no limite das questões decididas, não se aplicando a ele os princípios do deduzido e do dedutível.

Registre-se que, no âmbito do common law, a ausência de vinculatividade do precedente a respeito de questão não decidida também é bem estabelecida, como ensinam Rupert Cross e J.W Harris:

28 A eficácia preclusiva da coisa julgada está positivada no artigo 508 do Código de Processo Civil: “Transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido”.

29 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 189-195.

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Já se dizia desde 1661 que os precedentes sub silentio e sem discussão não têm importância. Parece sempre ter sido aceito que se uma proposição de direito, embora implícita na decisão, nunca foi expressamente declarada, seja em argumentação pelas partes, seja em julgamento, a decisão não constitui autoridade vinculativa para ela, ou por haver aqui uma exceção à regra do stare decisis, ou porque tal proposição não faz verdadeiramente parte da ratio30

Nesse ponto se reforça a importância de delimitar adequadamente a ratio decidendi, o que não é possível de ser realizado a partir da mera leitura das teses formadas nos recursos extraordinários. É indispensável contemplar os fatos, as circunstâncias descritas na decisão e as alegações das partes para interpretar corretamente o precedente.

6. OBITER DICTA E TESES DE REPERCUSSÃO GERAL

Como vimos, as obiter dicta configuram as opiniões e valorações contidas no precedente que não são necessárias para suportar a conclusão alcançada. Por isso, as dicta não exercem autoridade sobre julgadores futuros.

Os teóricos do precedente costumam apontar como exemplos típicos de dicta as proposições judiciais que se referem a fatos hipotéticos e a questões não debatidas entre as partes31, o que se alinha, inclusive, com as preocupações externadas na seção anterior.

Apresentada desta maneira, parece simples separar ratio de dicta. No entanto, no âmbito do common law, advogados e julgadores investem muito tempo em qualificar certa proposição como ratio ou como dictum32, disputando-se os limites da autoridade do precedente como em um cabo de força. Não é raro, portanto, que um dictum seja inadvertidamente tomado como ratio.

O recurso extraordinário 693.456/RJ oferece um excelente horizonte de análise. Na origem, tratava-se de um mandado de segurança em que os impetrantes, servidores públicos estatutários, insurgiram-se contra as suspensões de suas remunerações durante o exercício de greve. O juízo de primeira instância desacolheu o pleito dos impetrantes, sob o argumento de que, na ausência de lei regulamentadora, não há como servidores públicos exercerem greve. O Tribunal de Justiça, por sua vez, reformou a decisão, determinando que a

30 CROSS, Rupert; HARRIS, J.W. Precedent in English Law, p. 158-161. No original: “It was said as long ago as 1661 that precedents sub silentio and without argument are of no moment. It seems always to have been accepted that if a proposition of law, though implicit in decision, was never expressely stated either in argument or in judgment, the decision constitutes no binding authority for it, whether on the ground that there is here an exception to stare decisis, or for the reason that such a proposition is not truly part of the ratio”.

31 DUXBURY, Neil. Op. cit., p. 68.

32 ABRAMOWICZ, Michael B. Defining Dicta, p. 5.

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administração pública restabelecesse o pagamento e restituísse os atrasados. Contra essa decisão, foi interposto o recurso extraordinário33.

Duas questões eram objeto daquele julgamento: (i) se a administração pública poderia descontar da remuneração dos grevistas os dias não trabalhados e (ii) se poderia qualificar tais dias não trabalhados como faltas injustificadas.

Relembrando que a ratio constitui os fundamentos necessários (aqueles que o julgador estava obrigado a decidir para solucionar o caso) e suficientes (aqueles que bastam para suportar a conclusão alcançada), quaisquer considerações adicionais deverão ser qualificadas como dicta.

O STF decidiu que os servidores podem exercer o direito de greve, mas que esse direito implica a suspensão do contrato de trabalho – ou a suspensão dos efeitos financeiros do vínculo estatutário –, de modo que a administração pública deve descontar a remuneração, dada a ausência de contraprestação. Quanto às faltas, essas não podem ser consideradas injustificadas.

O fundamento de que a greve suspende os efeitos financeiros do vínculo estatutário, por si só, é suficiente para a conclusão de que os descontos foram legítimos, que era o que estava em julgamento. No entanto, a tese aprovada incorporou elementos adicionais, sinalizando que, se a administração pública houver, a partir de ato ilícito, dado causa à greve, a remuneração não pode ser descontada34.

Examinando a decisão, percebe-se que o acórdão não registra como fato material eventual ilicitude cometida pela administração. A observação é hipotética, e não um juízo acerca de fatos da causa. Pela lógica de trabalho com precedentes, essa parte da decisão constitui obiter dictum.

Com isso, quer-se demonstrar dois aspectos relevantes. O primeiro é que tratar as teses de repercussão como rationes decidendi não se sustenta à luz de uma teoria dos precedentes, porque nada garante que a Corte, na elaboração da tese, tenha se limitado a utilizar os fundamentos necessários e suficientes à conclusão das questões postas pelas partes. Às vezes, a Corte julgará questões que vão além da argumentação contida no recurso e nas contrarrazões.

33 Frise-se que os fatos da causa recuam ao ano de 2006, quando o Supremo Tribunal Federal ainda não havia julgado os Mandados de Injunção 670, 708 e 712, pelos quais se formou a tese de que a lei aplicável aos trabalhadores comuns deve aplicar-se, no que couber, aos servidores públicos. Portanto, o juiz de primeira instância não pode ser acusado de haver descumprido o precedente do Supremo Tribunal Federal.

34 A tese aprovada foi a seguinte: “A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público” (Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 693456, Relator(a): Min. Dias Toffoli, julgado em 27.10.2016, DJe-238 de 18.10.2017).

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O segundo é que um dictum pode ter considerável relevância. No caso do direito de greve, esse dictum funciona como uma sinalização para partes futuras, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal está disposto a decidir de modo diferente se restar comprovado que a administração pública deu causa à greve mediante um comportamento ilícito.

O único indício trazido no acórdão de conduta ilícita da administração apta a afastar os descontos remuneratórios é o atraso nos pagamentos. Veja-se que isso também é (ou deveria ser, à luz da teoria dos precedentes) dictum, porque o Supremo Tribunal Federal não afirmou ter havido atraso nos pagamentos. Aliás, pela lógica da decisão, se tivesse havido atraso, não poderia haver descontos.

É importante perceber que o dictum agendou os futuros debates sobre esse tema, porque, nos próximos casos de greve, os servidores tentarão demonstrar que deflagraram o movimento em razão de comportamento ilícito do Poder Público.

Se a questão conseguir chegar ao Supremo Tribunal Federal, este terá de afastar a pertinência do dictum , afirmando que não está a ele vinculado, ou terá de valorar o comportamento ilícito, para decidir se é grave o bastante para tornar o Poder Público causador da greve. Portanto, o dictum modificou o grau de importância do fato “ilicitude” dentro do balanço de razões de futuros julgadores35.

35 Essa capacidade de os precedentes modificarem o peso de certas alegações, tornando fatos que julgadores considerariam menos importantes como cruciais e, da mesma maneira, fatos que alguns reputariam cruciais em menos importantes, nem sempre é percebida, porque é difícil demonstrar sem recorrer a casos concretos. Em sede doutrinária, Aleksander Peczenik argumentou que precedentes não só excluem razões, mas, acima de tudo, redimensionam o peso daquelas que não foram excluídas: “Precedentes podem ser considerados como razões prima facie para excluir muitas outras razões da argumentação jurídica. Esse ponto pode ser difícil de capturar, porque o uso de precedentes não apenas exclui algumas razões do processo de sopesamento e balanceamento, mas também adiciona algumas novas razões a ele, ou ao menos modifica o peso de algumas razões envolvidas. Na aplicação de um precedente, sopesar e balancear implica um esforço para alcançar um ‘equilíbrio reflexivo’ entre a norma do precedente tomada como ponto de partida para a argumentação e outras razões admissíveis sustentando a decisão de alguém. Esse equilíbrio reflexivo é um tipo de coerência. Mas não existe um algoritmo, um conjunto finito e induvidoso de regras que decidam o que é mais ou menos coerente” (PECZENIK, Aleksander. The binding force of precedent. MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Interpreting precedents, 1997, p. 470. No original: Precedents can be regarded as prima facie reasons for excluding many other reasons from legal argumentation. This point may be difficult to grasp, because the use of precedents not only excludes some reasons from the process of weighing and balancing, but also adds some new reasons to it, or at least shifts the weight of the reasons involved. In the application of a precedent, weighing and balancing implies an effort to achieve a ‘reflective equilibrium’ between the precedent norm taken as the starting point for argumentation and the other admissible reasons bearing on one’s decision. This reflective equilibrium is a kind of coherence. But there is no algorithm, no finite and unambiguous set of rules deciding what is more and what is less coherent ).

7. CONCLUSÃO

O presente artigo buscou ampliar o entendimento acerca de como funcionam precedentes, com enfoque especial nos recursos extraordinários. Constatou-se que, embora a comunidade jurídica utilize as teses de repercussão geral como rationes ou, ao menos, como espelhos do que o Supremo Tribunal Federal efetivamente decidiu com autoridade vinculante, há muitas situações em que tal prática não encontra respaldo algum na teoria dos precedentes.

Além disso, sinalizou-se que a academia não tem levado tão a sério os problemas decorrentes da delimitação da ratio decidendi. As conceituações de que a ratio seria uma norma geral, distinta da norma individual do caso, obscurecem que o sentido de um precedente é, em parte considerável, dependente de como cortes subsequentes o interpretarão e de como se engajarão em comparar o caso que têm diante delas e o caso do precedente.

Também se demonstrou que não é raro que as teses de repercussão geral incorporem mais elementos do que aqueles que, sob a perspectiva de uma teoria dos precedentes, compõem a noção de ratio decidendi.

Desse modo, não há outra forma de avançar na construção de um sistema de precedentes, que efetivamente esteja preocupado com coerência e sistematicidade do ordenamento jurídico, senão pela observação e apreciação de como as Cortes, em seus cotidianos, utilizam as ferramentas desenvolvidas pela teoria dos precedentes. E este artigo buscou fazer exatamente isso: valer-se dos julgados para demonstrar como conceitos de ratio e de dicta são empregados na prática jurisprudencial.

REFERÊNCIAS

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caPítulo 19

instrumentos De coletivização Parcial e cooPeração JuDiciária nos JuizaDos esPeciais

Da FazenDa Pública

1. INTRODUÇÃO

Thiago Simões Pessoa

Eficiência e litigância de massa devem sempre caminhar juntas, pois são conceitos que se complementam reciprocamente. Porém, ao longo dos anos fora possível verificar uma perda significativa de produção, com um esgotamento do Poder Judiciário diante da litigância exacerbada e de massa.

Com o passar dos anos, várias alternativas foram criadas. E em 2015, ao que tudo indica, houve um grande avanço com a criação de formas de coletivização do processo distintas da ação coletiva, a qual vinha se mostrando incapaz de ajudar no combate a litigância de massa.

Posteriormente, em 2020, houve a criação da Resolução 350 do CNJ que estabeleceu diretrizes e procedimentos sobre a cooperação judiciária nacional entre os órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades. Assim, regulamentou mecanismos de cooperação judiciária, como o auxílio direto, atos conjuntos e atos concertados.

Neste texto, busca-se uma harmonia entre os mecanismos de coletivização do processo e os mecanismos de cooperação judiciária visando trazer eficiência no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública.

2. PRINCÍPIOS INFORMADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS

2.1. Oralidade

Por meio deste princípio, deve-se dar primazia pela resolução das questões pela via oral em audiência. Assim, busca-se que a concentração de atos e sua solução conjunta em audiências de conciliação e instrução em julgamento.

Portanto, busca-se evitar delongas desnecessárias e análise de petições por meio de decisões interlocutória, notadamente em razão da irrecorribilidade imediata destas decisões, à exceção da decisão acerca de tutela provisória de urgência (art. 4°, Lei 12.153/09).

São manifestações deste princípio: a) Possibilidade de formulação de pedido oral na Secretaria do Juizado (art. 14, Lei 9.099/95), que será posteriormente redigido a termo pela própria secretaria; b) Possibilidade de contestação oral em audiência (art. 30, Lei 9.099/95); c) Dispensabilidade de reduzir a escrito das provas orais produzidas, como oitiva de testemunha e depoimentos pessoais (art. 36, Lei 9.099/95); d) Possibilidade de apresentação de embargos de declaração oralmente em audiência (art. 49, Lei 9.099/95).

Porém, como se pode perceber, todas as disposições aqui citadas se referem ao regime dos Juizados Especiais Cíveis, que, no entanto, se aplicam também aos Juizados Especiais da Fazenda Pública.

No procedimento dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, pela Lei 12.153/09, conta com ao menos 02 audiências, sendo elas uma audiência de conciliação e uma audiência de instrução e julgamento. No entanto, na prática processual, em razão da grande maioria dos casos se referir a causas repetitivas, nas quais, via de regra, não há a possibilidade de acordo, criou-se a praxe de dispensar as audiências, transformando o procedimento em um “mini procedimento comum”.

Assim, diante dessas peculiaridades da prática forense, vislumbra-se que acaba por restar prejudica, ao menos de certa forma, o princípio da oralidade, o que não dispensa a sua importância, notadamente nas causas em que se mantiver a realização das audiências previstas no procedimento.

2.2. Simplicidade

Os Juizados regem-se por meio de um procedimento oral e sumaríssimo para causas de menor complexidade, como prevê o art. 98, I, da Constituição Federal, destinadas primordialmente aos litigantes eventuais. Assim, a soma destes princípios resulta na necessidade de se outorgar maior simplicidade aos atos processuais que compõe este procedimento.

Frise-se que os litigantes eventuais são pessoas, em muitas oportunidades, que não possuem conhecimento e informação acerca do funcionamento da justiça, motivo pelo qual se deve sempre que possível outorgar interpretação que atinja a finalidade da norma, evitando-se formalismos desnecessários e próprios do dia-a-dia do profissional do Direito.

Até mesmo em razão deste princípio, permite-se a capacidade postulatória das partes, sendo dispensada a presença de advogado para as causas até 20 salários-mínimos, conforme o art. 9°, da Lei 9.099/95, bem como veda-se a realização de citação por edital (art. 18, §2°, Lei 9.099/95).

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Também é manifestação deste princípio, a possibilidade de apenas os atos considerados essenciais serem registrados resumidamente, em notas manuscritas, datilografadas, taquigrafadas ou estenotipadas, sendo os demais gravados em fita magnética ou equivalente, que será inutilizada após o trânsito em julgado da decisão, consoante o art. 13, §3°, da Lei 9.099/95.

Mais especificamente à Fazenda Pública, são claras manifestações deste princípio: a) inexistência reexame necessário (11, Lei 12.153/09); b) inexistência de prazo diferenciado para a prática de qualquer ato processual12 (art. 7°, da Lei 12.153/09); c) possibilidade de realização de exame técnico simplificado, com base no art. 10, da Lei 12.153/09.

Nesta mesma linha, também o “art. 229 do CPC não se aplica aos processos cíveis que tramitam perante o Juizado Especial” (Enunciado 123 FONAJE). Menciona-se que o art. 229 do CPC prevê concessão de prazo em dobro quando os litisconsortes forem representados por advogados pertencentes a escritórios diferentes.

2.3. Informalidade

Como já se adiantou, as partes são em sua grande maioria litigantes eventuais, que desconhecem a praxe forense. Assim, além da simplicidade, devem os atos processuais serem os mais informais possíveis, evitando-se os formalismos próprios da área especializada do Direito.

A partir deste princípio, admite-se a prática de atos processuais de forma informal, a exemplo de intimações via aplicativo whatsapp34, por meio de

1 Recorde-se que a Fazenda Pública possui prazo em dobro para qualquer manifestação processual, de acordo com o CPC, com base em seu art. 183, o que não se aplica aos juizados especiais.

2 O que também abrange a Defensoria Pública, conforme o Enunciado 03 do FONAJE Fazenda Pública – Não há prazo diferenciado para a Defensoria Pública no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública (XXIX Encontro – Bonito/MS).

3 Enunciado 193, FONAJEF: Para a validade das intimações por Whatsapp ou congêneres, caso não haja prévia anuência da parte ou advogado, faz-se necessário certificar nos autos a visualização da mensagem pelo destinatário, sendo suficiente o recibo de leitura, ou recebimento de resposta à mensagem enviada. O STJ também reconhece a validade da intimação por Whatsapp, desde que comprovada inequívoca ciência da parte (REsp 2.045.533/RJ, 3ª Turma, julgado em 08/08/2023.

4 Enunciado 194, FONAJEF: Existindo prévio termo de adesão, o prazo da intimação por Whatsapp ou congênere conta-se do envio da mensagem, cuja data deve ser certificada nos autos; em não havendo prévio termo de adesão, o termo inicial corresponde à data da leitura da mensagem ou do recebimento da resposta, que deve ser certificada nos autos; Enunciado 195, FONAJEF: Existindo prévio termo de adesão à intimação por Whatsapp ou congêneres, cabe à parte comunicar eventuais mudanças de número de telefone, sob pena de se considerarem válidas as intimações enviadas para o número constante dos autos; Enunciado 196, FONAJEF: O termo de adesão a intimação por Whatsapp ou congêneres subscrito pela parte ou seu advogado pode ser geral, para todos os processos em tramitação no Juízo, que será arquivado em Secretaria.

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auto de intimação eletrônica5, por ligação telefônica6, compromisso de comparecimento em prazo determinado para intimações via formulário próprio7, a outorga de mandato de forma oral, salvo quanto a poderes especiais (art. 8°, §3°, Lei 9.099/95), possibilidade de prática de atos em outras comarcas por qualquer meio idôneo de comunicação – art. 13, §2°, Lei 9.099/95 (ex.: ouvir testemunha de forma tele-presencial ao invés de se expedir carta precatória); possibilidade de formulação de pedido oral em Secretaria (art. 14, Lei 9.099/95); dentre outros.

2.4. Economia processual

Em regra, os atos processuais devem ser concentrados em audiências, de modo que sempre que possível exista uma maior eficiência na gestão processual. Caso isso não seja possível, também devem os atos processuais, praticados fora das audiências, promoverem este princípio.

Com toda certeza, a maior manifestação deste princípio no âmbito dos juizados é a irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, como regra. Assim, as decisões interlocutórias são irrecorríveis imediatamente, à exceção da decisão sobre tutela provisória de urgência, da qual cabe recurso, consoante os art. 3° e 4°, da Lei 12.153/09.

Porém, as decisões interlocutórias podem ser recorríveis no bojo do recurso inominado, após a sentença, em regime parecido ao que se tem hoje no Código de Processo Civil. Inclusive, trata-se de um claro exemplo de eficiência processual que influenciou diretamente na elaboração do CPC-2015.

A partir deste princípio, também se deve defender a aplicação do art. 332 do CPC 89, que possibilita ao juiz, nas causas que dispensem instrução probatória, independentemente de citação do réu, julgar liminarmente

5 Enunciado 03, FONAJEF: A auto intimação eletrônica atende aos requisitos das Leis nºs 10.259/2001 e 11.419/2006 e é preferencial à intimação por e-mail.

6 Enunciado 73, FONAJEF: A intimação telefônica, desde que realizada diretamente com a parte e devidamente certificada pelo servidor responsável, atende plenamente aos princípios constitucionais aplicáveis à comunicação dos atos processuais.

7 Enunciado 04, FONAJEF: Na propositura de ações repetitivas ou de massa, sem advogado, não havendo viabilidade material de opção pelo auto intimação eletrônica, a parte firmará compromisso de comparecimento, em prazo pré-determinado em formulário próprio, para ciência dos atos processuais praticados.

8 Neste sentido: Enunciado 507 do FPPC: (art. 332; Lei n.º 9.099/1995) O art. 332 aplica-se ao sistema de Juizados Especiais.

9 Enunciado 159, FONAJEF: Nos termos do enunciado nº 1 do FONAJEF e à luz dos princípios da celeridade e da informalidade que norteiam o processo no JEF, vocacionado a receber demandas em grande volume e repetitivas, interpreta-se o rol do art. 332 como exemplificativo.

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im procedente o pedido 10, nos casos em que este contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

Inclusive, a interpretação do art. 332, IV, do CPC, nestes casos deve ser mais ampla, a fim de incluir enunciados e súmulas das próprias turmas recursais em que vinculados os juízes dos juizados na esfera estadual11.

Da mesma forma, também tem que se admitir a possibilidade do julgamento antecipado do mérito, quando não houver necessidade de produção de outras provas, além das provas documentais e outras já juntadas pelas partes anteriormente, com base no art. 355, do CPC.

2.5. Celeridade

Apesar do dispositivo legal mencionar “celeridade”, deve-se reler o teor deste princípio à luz da Constituição, interpretando-o como duração razoável do processo, o que é um direito fundamental expressamente prevista na Carta Constitucional.

Assim, é objetivo do procedimento sumaríssimo que a resposta da jurisdição seja proferida de forma mais célere se comparado com a justiça comum, incentivando o jurisdicionado a se utilizar deste importante serviço público.

Porém, a celeridade não pode ser obtida com a violação de direitos fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa, que devem sempre ser sopesados ao interpretar determina norma jurídica juntamente com outros direitos fundamentais, tais como a duração razoável do processo.

Portanto, não se pode, em nome deste princípio, se cometer atrocidades jurídicas, o que se vê muito por aí na prática profissional, com a mitigação de garantias constitucionais como o dever de fundamentação do juiz e a extinção do feito sem resolução do mérito ou do recurso12 em hipóteses de vícios sanáveis.

10 Enunciado 508, FPPC: (art. 332, § 3º; Lei 9.099/1995; Lei 10.259/2001; Lei 12.153/2009) Interposto recurso inominado contra sentença que julga liminarmente improcedente o pedido, o juiz pode retratar-se em cinco dias.

11 Neste sentido: ENUNCIADO 101 FONAJE – O art. 332 do CPC/2015 aplica-se ao Sistema dos Juizados Especiais; e o disposto no respectivo inc. IV também abrange os enunciados e súmulas de seus órgãos colegiados (nova redação – XXXVIII Encontro – Belo Horizonte-MG).

12 ENUNCIADO 168 FONAJE – Não se aplica aos recursos dos Juizados Especiais o disposto no artigo 1.007 do CPC 2015 (XL Encontro – Brasília-DF). O art. 1.007 do CPC possibilita a correção

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2.6. Primazia de meios autocompositivos x indisponibilidade do interesse público

É antiga a lição doutrinária de que o interesse público é indisponível. Porém, já há muitos anos, os administrativistas fazem releituras deste princípio a fim de demonstrar que o interesse público, apesar de ser indisponível, pode ser objeto de transação, conciliação, mediação e arbitragem, uma vez que estes institutos promovem o fim máximo do princípio mencionado.

Assim, não cabe mais a velha aplicação indistinta da indisponibilidade do interesse público, cabendo a Administração Pública sempre que possível realizar a solução da controvérsia por meios autocompositivos, evitando a chegada de assuntos ao Poder Judiciário, ou, caso assim não consiga, promover a gestão eficiente dos recursos públicos com reconhecimentos jurídicos dos pedidos, súmulas administrativas para não contestar e não recorrer, dentre outros13.

De outro lado, os Juizados Especiais são norteados pelo princípio da primazia de meios autocompositivos, de modo que, sempre que possível, deve-se buscar a conciliação/ mediação e a transação, consoante se infere do art. 2°, da Lei 9.099/95, o que se aplica também aos Juizados Especiais da Fazenda Pública.

É neste contexto o teor do art. 8°, da Lei 12.153/09, que prevê que “os representantes judiciais dos réus presentes à audiência poderão conciliar, transigir ou desistir nos processos da competência dos Juizados Especiais, nos termos e nas hipóteses previstas na lei do respectivo ente da Federação.”.

Ademais, todo o sistema é elaborado pensando na busca de uma solução autocompositiva, o que se revela claro por meio das regras que exigem a realização de audiência de conciliação, bem como exigência de conciliadores atuantes em conjunto com juízes togados.

Atualmente, cresce cada vez mais a importância das formas autocompositivas, privilegiando-se, sempre que possível a elaboração da audiência de conciliação apenas por conciliador/ mediador especializado, sem a figura do juiz, o que fortalece a possibilidade de acordos e a solução da lide social. Inclusive, não só nos juizados especiais, como também na justiça comum.

Recorde-se que o art. 8º, da Resolução 125/2010 do CNJ, determina que os tribunais devem criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e

do vício no preparo, com penalização da parte.

13 Para saber mais: PESSOA, Thiago Simões. Os novos conflitos coletivos e a readequação da atuação da fazenda pública. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre, Ano XVI, n. 95, p. 104, mar-abril/2020. Disponível em < https://www.academia.edu/43822765/Os_novos_conflitos_coletivos_e_a_readequa%C3%A7%C3%A3o_da_atua%C3%A7%C3%A3o_da_fazenda_p%C3%BAblica>

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Cidadania (Centros ou Cejuscs), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão.

3. EFICIÊNCIA PROCESSUAL E A SOLUÇÃO ADEQUADA DO CONFLITO

3.1. A questão da economia no processo

Desde o início de 2020, o planeta terra vivencia uma das maiores crises sanitárias já existentes ao longo de sua história, decorrente da disseminação do vírus COVID-19, causando a primeira pandemia da era globalizada.

Porém, uma crise sanitária desta magnitude não se limita a causar problemas na área da saúde, mas sim os alastra para todos os campos sociais e econômicos existentes na sociedade, tendo em vista que a interconexão das relações sociais, e mais precisamente a globalização, tornam as relações internacionais (e também o fluxo de informações, pessoas e capital entre as nações) indissociáveis.

Assim, uma crise sanitária também importa necessariamente uma crise nos processos de produção, bem como na economia, de modo a exigir da sociedade uma rápida transformação a fim de se adaptar às novas exigências do mundo atual.

No caso do Direito, a conclusão não é diferente. Foram exigidas muitas alterações e transformações em seus mais diversos campos, exigindo-se de seus operadores e respectivas instituições que se adaptassem rapidamente e buscassem soluções eficientes para os novos problemas e para aqueles não tão novos assim, como a litigância de massa.

É neste contexto que a eficiência, princípio constitucional há muito constante da Constituição Federal para o direito administrativo e constitucional, e mais recentemente presente expressamente do Código de Processo Civil, ganhou novos contornos e um brilho maior, havendo uma dedicação dos juristas em sua concretização.

A partir desta nova realidade emergiram diversos estudos acerca da aplicação do princípio da eficiência no direito processual civil e mais precisamente nas instituições responsáveis por sua concretização, notadamente o Poder Judiciário.

Porém, muito se fala no Direito sobre eficiência, mas muitas vezes nos esquecemos que este conceito é próprio da Economia, sendo importado para o ramo jurídico, no qual ele é aproveitado para definir nossas próprias categorias jurídicas.

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Para a economia, pode-se dizer que um processo de produção é eficiente se: 1. Não se pode gerar a mesma quantidade de produção utilizando uma combinação de insumos de custo menor; 2. Não se pode gerar uma produção maior, utilizando a mesma quantidade de insumos14.

Assim, a partir destas lições poderíamos trabalhar o conceito de eficiência para o direito, e mais precisamente para o direito processual.

Transportando as lições da Economia para o direito processual, por exemplo, pode-se afirmar que um processo é eficiente se: 1. É possível produzir a mesma quantidade de prestação jurisdicional com menos recursos; 2. É possível produzir uma quantidade maior de prestação jurisdicional com os mesmos recursos.

É bom que se diga que quando se afirma que o objetivo é produzir uma quantidade maior de prestação jurisdicional, isso deve ser lido de acordo com o objetivo da própria jurisdição, levando em consideração assim não somente seu escopo jurídico (atuação e cumprimento das normas de direito substancial), mas também, e não menos importante, um escopo social, consistente na busca pela pacificação social, mediante a eliminação de conflitos e insatisfações pessoais15

Entretanto, não se pode esquecer que ainda que se analise neste viés a questão da quantidade (números da atividade jurisdicional), não é possível também deixar de lado a questão da qualidade da prestação jurisdicional. Ressalte-se que o objetivo de um sistema processual, de um ponto de vista econômico, é minimizar a soma dos custos do processo (custos estes não só financeiros), sendo o primeiro destes custos o de proferimento de decisões judiciais equivocadas16.

Desta forma, a utilização da eficiência no direito processual tem como fim a busca a maximização da prestação jurisdicional, buscando alternativas para se produzir mais (solucionar mais casos, sejam eles individuais ou coletivos), com menos ou os mesmos recursos já utilizados, o que encontra um dos seus ápices de aplicação nos Juizados Especiais, local de demandas ultra repetitivas

3.2. Soluções adequadas do conflito

É certo que a sociedade é dividida em inúmeros grupos e isso poderia acarretar as mais diversas classificações, o que também impactaria nas mais diversas teorias sobre o conflito17.

14 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho Y Economía. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. p. 25.

15 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. V. 1. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 128.

16 POSNER, Richard A.. El Análisis Económico Del Derecho. 2 ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 54.

17 ENTELMEN, Remo F. Teoría de Conflictos: Hacia um Nuevo Paradigma. Barcelona: Gedisa Editorial, 2002. P. 48.

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Porém, em uma análise geral acerca da teoria do conflito, poderia se afirmar que são relações de conflitos aquelas em que os indivíduos ou grupos envolvidos possuem objetivos incompatíveis (ou que estes as veem como incompatíveis), de modo que quando seus objetivos não sejam total ou parcial incompatíveis, existirão relações de acordo, as quais gerarão condutas cooperativas e não condutas conflitivas, individuais ou coletivas18.

Assim, de antemão, já é possível vislumbrar que os conflitos aparecem em relações de incompatibilidade de objetivos (ou crença de incompatibilidade), sendo estes objeto de estudos próprios da sociologia e antropologia.

Para a solução dos mais diversos e complexos conflitos, o Direito nos oferece diversos meios de soluções, dentre eles a via judicial e a extrajudicial19, de modo que a jurisdição estatal (e mais propriamente o Poder Judiciário) se apresenta como uma das inúmeras formas de solução.

No campo alheio à jurisdição estatal, inúmeras outras formas de resolução de conflitos existem. John Colley20, em sua obra A advocacia na mediação, traça uma linha dos procedimentos de resolução de disputas existentes nos EUA do menos formal para os mais formais: negociação; conciliação; facilitação; mediação; med.-arb.; arbitragem, procedimentos determinados por tribunal; procedimentos híbridos; julgamento por tribunal.

Outros procedimentos também continuam surgindo a depender da necessidade e da criatividade humana, a exemplo dos dispute boards, forma pela qual se busca a resolução de controvérsias na seara extrajudicial e de forma concomitante ao surgimento dos conflitos, geralmente utilizado em contratos de construção e infraestrutura21.

Assim, cabe aos operadores do direito, e notadamente aos advogados, atuarem como “arquitetos” na busca da construção e adequação do conflito à melhor forma de resolução existente, seja ela a jurisdição estatal ou outros meios de solução adequada22. Somente assim se atingirá o verdadeiro acesso à justiça, o qual não pode ser confundido com o mero acesso ao Poder Judiciário, este somente uma faceta daquele.

18 ENTELMEN, Remo F. Teoría de Conflictos: Hacia um Nuevo Paradigma. Barcelona: Gedisa Editorial, 2002p. 49.

19 BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à Justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 54-55.

20 COOLEY, John W. A advocacia na mediação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 25.

21 RAVAGNANI, Giovani dos Santos; NAKAMURA, Bruna Laís Sousa Tourinho; LONGA, Daniel Pinheiro. A utilização de dispute boards como método adequado para a resolução de conflitos no Brasil. Revista de Processo. Vol. 300. p. 343-362. Fev/2020.

22 CUÉLLAR, Leila. O advogado como arquiteto de processos. In: CUÉLLAR, Leila et. al. (coord.). Direito Administrativo e Alternative Dispute Resolution. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 19-20.

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4. DOS INSTRUMENTOS DE COLETIVIZAÇÃO PARCIAL E MECANISMOS DE COOPERAÇÃO APLICÁVEIS AOS JUIZADOS ESPECIAIS DA FAZENDA PÚBLICA: UMA ANÁLISE DE EFICÊNCIA PROCESSUAL

4.1. Como concretizar a eficiência no mundo material?

Um processo somente pode ser eficiente a partir da adequação dos conflitos às suas respectivas formas de solução, providenciando um uso racional da jurisdição, para que esta se limite aos conflitos que dela necessitam.

Porém, do ponto de vista prático, verifica-se que a eficiência não é uma regra que pode ser cumprida na base do tudo ou nada, mas sim um princípio, que deve ser efetivado por várias vias a partir de um valor jurídico comum.

Assim, convergem fatores de ordem legislativa (existir uma malha legislativa capaz de atender aos mais diversos problemas jurídicos); de ordem material, consistente na disponibilização de recursos materiais e humanos suficientes para a aplicação das normas processuais existentes; e um fator cultural, decorrente das diversas práticas de um determinado povo23.

No tocante ao fator de ordem legislativa, verifica-se que o Código de Processo Civil de 2015 nos contemplou com os mais diversos institutos para a racionalização da prestação jurisdicional (ex.: instrumentos de coletivização parcial do processo e mecanismos de cooperação), sendo certo que ainda existem tantos outros espalhados na legislação esparsa, a exemplo de normas de direito coletivo (formas de coletivização total do processo) previstas no Código de Defesa do Consumidor, Lei de Ação Civil Pública, Lei de Ação Popular, dentre outras tantas.

Cabe neste ponto mencionar que se entende por meio de coletivização total24 a forma de coletivização que aglutina em um só processo (ou fase processual) todas as fases de um processo de conhecimento (postulatória, saneadora, instrutória e decisória), bem como todas as fases de um processo (ou fase processual) de execução. Como exemplo, temos as ações coletivas em geral (coletiviza o processo de conhecimento) e o processo de falência (coletiviza a fase de execução).

23 CAPONI, Remo. O princípio da proporcionalidade na justiça civil primeiras notas sistemáticas. Revista de Processo, São Paulo, v.192, p.397-415, fev. 2011.

24 Para mais informações: PESSOA, Thiago Simões. Ação Coletiva de Produção Antecipada de Provas. Curitiba: Juruá, 2020. P. 15. PESSOA, Thiago Simões. Os novos conflitos coletivos e a readequação da atuação da fazenda pública. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre, Ano XVI, n. 95, p. 104, mar-abril/2020. OSNA, Gustavo. Coletivização total e coletivização parcial: aportes comparados e o processo civil brasileiro. Revista de Processo Comparado, São Paulo, v.1, p.115-138, 2015.

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De outro lado, as formas de coletivização parcial do processo são instrumentos pelos quais se afigura possível a coletivização de fases isoladas, seja do processo de conhecimento ou de execução, como a fase postulatória (ex. litisconsórcio entre muitas partes), a fase saneadora (ex.: definição de pontos controvertidos comuns e formação de calendário processual comum a diversas demandas idênticas), fase instrutória25 (ex.: produção de prova comum a diversas demandas com fatos comuns) ou decisória26 (ex.: decisão conjunta para casos idênticos; IRDR; IAC; Incidente de julgamento de Recursos Repetitivos, etc.).

De outro lado, no aspecto material, decorrente da disponibilização de recursos materiais e humanos para concretização das normas processuais existentes, se vislumbra que dificilmente, em razão da crise econômica e suas decorrências (a exemplo do Novo Regime Fiscal, instituído na Constituição por meio da EC 95/2016 – popular “teto de gastos”), se haverá um aumento do contingente de servidores no âmbito do Poder Judiciário e demais instituições atuantes como sujeitos processuais27.

Assim, deve-se pensar na necessidade de uma atuação mais racional, a fim de promover maior prestação jurisdicional com o nível atual de aparato estatal, o que somente ocorrerá a partir da utilização de meios adequados de solução de controvérsias e uma atuação adequada da própria jurisdição aos conflitos existentes.

Por fim, no aspecto cultural, é possível destacar a necessidade de se abandonar uma “mentalidade individual” para se adotar uma “mentalidade coletiva”, na qual os conflitos coletivos e suas diversas formas de solução ganham destaque, e passam a ser resolvidos de forma mais racional, qualificada e adequada.

A partir destas premissas se propõe uma utilização racional dos instrumentos processuais disponíveis, proporcionando uma solução adequada dos conflitos também por meio da jurisdição, trazendo assim eficiência, segurança jurídica e coerência à atuação jurisdicional.

Assim, levando em consideração os aspectos processuais e materiais, a adequação procedimental na jurisdição estatal pressupõe a utilização da seguinte classificação:

25 Nos Juizados da Fazenda Pública, há um ótimo exemplo no Enunciado 73 do FONAJE: As causas de competência dos Juizados Especiais em que forem comuns o objeto ou a causa de pedir poderão ser reunidas para efeito de instrução, se necessária, e julgamento.

26 Nos Juizados da Fazenda Pública, há um ótimo exemplo no Enunciado 10, do FONAJE (Fazenda Pública): É admitido no juizado da Fazenda Pública o julgamento em lote/lista, quando a matéria for exclusivamente de direito e repetitivo.

27 A título de curiosidade em 2019, houve uma diminuição de 0,4% no número de juízes e 2% no número de servidores, se comparado ao ano de 2018. Para mais informações: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: Relatório Justiça em Números, 2020, P. 91. Disponível em < https://www.cnj. jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em 04 de junho de 2021.

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c) Processos individuais: i) processo individual tradicional, devendo se ater também para as peculiaridades de cada direito material discutido e o seu respectivo interesse social; ii) processo individual mediante a aglutinação da demanda por meio de litisconsórcio, também se atendo aos anseios do direito material discutido;

d) Processos coletivos: i) Processo coletivo por meio do emprego de ações coletivas tradicionais (instrumentos, via de regra, de coletivização total); ii) Processo coletivo por meio da coordenação de procedimentos ou técnicas processuais coletivas (instrumentos de coletivização parcial e mecanismos de cooperação) e processos individuais, a exemplo do IRDR, julgamento de recursos repetitivos, ou mesmo a coletivização da prova;

Frise-se que para realização desta classificação três critérios devem ser elencados: “a inviabilidade da formação do litisconsórcio em demanda comum; b) a presença de afinidade de questões; e c) a existência de utilidade predominante para as partes e para o Judiciário no tratamento coletivo dos interesses”28.

Somente assim, será possível um processo eficiente, partindo-se de um movimento de “desinchar” o Poder judiciário, seguido de uma utilização racional dos recursos materiais e de pessoal, alocando os recursos existentes de forma proporcional aos conflitos que deles demandam, buscando a mudança de paradigma para uma “mentalidade coletiva” de processo.

4.2. Instrumentos de coletivização do processo a serviço da eficiência

No tópico anterior se mencionou a questão da adequação dos conflitos às suas formas de solução, bem como à adequação da própria jurisdição, que convive com conflitos individuais e coletivos, apresentando diversos “tipos” de processos para concretizar seu tratamento adequado.

Primeiro ponto que cabe esclarecimento é que no âmbito dos Juizados Especiais somente não se admite ações coletivas (art. 3°, §1°, I, da Lei 10.259/01 e art. 2°, Lei 12.153/09)29. Porém, como se verá abaixo, as ações coletivas são formas de coletivização total do processo e por isso não se confundem com os instrumentos de coletivização parcial do processo, que são aplicáveis em quaisquer processos, sejam individuais ou coletivos, motivo pelo qual são admitidos em sede de Juizados Especiais.

28 ARENHART, Sergio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 153.

29 Neste sentido: Enunciado 22, FONAJEF: A exclusão da competência dos Juizados Especiais Federais quanto às demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos somente se aplica quanto a ações coletivas.

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No tocante aos meios de coletivização parcial do processo, verifica-se uma infinitude de possibilidades, dado que surgem de acordo com a necessidade de adequação procedimental aos conflitos que deles necessitam, podendo ser típicos ou atípicos, a depender de sua expressa previsão legal ou não.

Quanto aos meios típicos, podemos elencar diversos, a exemplo do julgamento de recursos repetitivos (coletivização da decisão), incidente de resolução de demandas repetitivas (coletivização da decisão), negócios jurídicos processuais coletivos, que podem ser usados como forma de coletivização do saneamento e da produção de prova, e também a ação coletiva de produção antecipada de provas (coletivização da fase instrutória)30.

Porém, meios atípicos também são possíveis, partindo-se de instrumentos existentes para a adequá-los à necessidade do direito material, a exemplo da possibilidade de apensamento de processos por juízos de primeiro grau para decisão única31 ou mesmo a aglutinação de processos unicamente para a produção de provas comuns no juízo singular32, por meio de incidente atípico.

Registre-se que estas possibilidades de medidas atípicas de coletivização parcial do processo encontram respaldo no próprio Código de Processo Civil, que permite em seu art. 69, a possibilidade de cooperação entre juízos, por meio de apensamento de processos e atos concertados entre juízos cooperantes, para obtenção ou apresentação de prova, centralização de processos repetitivos ou mesmo execução de decisão jurisdicional.

No entanto, como se tratam de técnicas coletivas, deve ser conferida publicidade adequada ao feito (ex. publicação de edital no site do Tribunal), um contraditório ampliado (ex. participação ente dotado de representatividade adequada, de amicus curiae e, se necessário, audiência pública) e fundamentar adequadamente (ex. analisar todos os pontos envolvidos, e não só de uma demanda individual em específico).

Ademais, também é possível que um ou mais juízes, de juizados distintos, em que há multiplicação destas demandas, se utilizem de mecanismos de cooperação para promover um julgamento uniforme de questões comuns ou mesmo realizar a produção de prova comum a todas os processos

É possível ainda que o próprio Tribunal afete o tema, diante da sua grande repercussão social ou efetiva repetição de casos, para julgamento comum,

30 Para maiores informações: PESSOA, Thiago Simões. Ação Coletiva de Produção Antecipada de Provas. Curitiba: Juruá, 2020.

31 Novamente cita-se o exemplo dos Juizados Especiais: Enunciado 10, do FONAJE (Fazenda Pública): É admitido no juizado da Fazenda Pública o julgamento em lote/lista, quando a matéria for exclusivamente de direito e repetitivo.

32 Novamente cita-se o exemplo dos Juizados Especiais: Enunciado 73 do FONAJE: As causas de competência dos Juizados Especiais em que forem comuns o objeto ou a causa de pedir poderão ser reunidas para efeito de instrução, se necessária, e julgamento.

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o que se dará mediante instrumentos de coletivização da decisão, como o Incidente de Assunção de Competência – IAC e Instrumento de Resolução de Demandas Coletivas – IRDR.

Nos Juizados, também se admite a coletivização de decisões por meio de Pedidos de Uniformização de Jurisprudência, que também podem ser julgados como representativos de controvérsia. Exemplos práticos podem elucidar melhor.

Caso 1: Imagine um caso em que tramitam nos Juizados Especial demanda que possui o fim de conceder indenização a policiais militares decorrente da utilização de coletes balísticos com prazo de validade vencido, tendo já sido realizada prova técnica na justiça comum33 (ex.: ação coletiva de produção antecipada de provas) constatando que os coletes balísticos possuíam aptidão para causar dano à saúde física dos servidores públicos, em razão de se encontrarem vencidos.

Neste caso, não há a necessidade de produção de prova pericial complexa nos Juizados, pois a prova já fora realizada, não havendo sobre ela necessidade de discussão, não sendo assim ponto controvertido. A partir disso, é possível que as demandas individuais sejam propostas nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, visando a condenação em indenização ao pagamento de danos morais.

Assim, trata-se de um exemplo de coordenação entre mecanismos do processo coletivo e ações individuais, por meio de um modelo de processo coletivizado, a partir da sua utilização conjunta a serviço da eficiência.

Caso 2: Pense na hipótese de inúmeras demandas repetitivas em face da Fazenda Pública, sendo os fatos de origem comum, existindo apenas matéria de direito sob a análise. Nestes casos, pode ocorrer uma coletivização da fase postulatória, mais precisamente a defesa do réu, que poderá deixar contestações depositados em Secretaria para serem juntadas a todos os casos idênticos 34 .

Caso 3: Pense um caso de ações de saúde em que seja necessário a realização de exames técnicos simplificados de igual natureza. Para diminuir os custos da prova, é possível a celebração de negócio jurídico processual entre o juiz de determinado juizado, as partes envolvidas e a Fazenda Pública para realizar mutirão de exames a serem realizados em semana única por profissionais contratados para o período específico.

33 Exemplo retirado do Livro: PESSOA, Thiago Simões. Ação Coletiva de Produção Antecipada de Provas. Curitiba: Juruá, 2020. P. 109.

34 Neste sentido: Enunciado 02, FONAJEF: Nos casos de julgamentos de procedência de matérias repetitivas, é recomendável a utilização de contestações depositadas na Secretaria, a fim de possibilitar a imediata prolação de sentença de mérito.

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4.3. Mecanismos de cooperação nos Juizados Especiais da Fazenda Pública

A cooperação judiciária é tema que ganha grande destaque na atualidade, notadamente após a edição de voto conjunto entre os Ministros Luis Roberto Barroso e Gilmar Mendes em sede de julgamento de medida cautelar na ADI 722235.

Frise-se que é de extrema importância entender os mecanismos de cooperação, pois possibilitam uma infinitude de possibilidades que poderão trazer eficiência, coerência e segurança jurídica aos processos judiciais, caso utilizados de forma correta, notadamente quando envolve litigantes habituais como a Fazenda Pública.

A cooperação judiciária se encontra prevista no CPC, em seus art. 67 a 69, bem como regulamentada pela Resolução 350/2020 do CNJ. De acordo com estes diplomas legais, é possível que magistrados celebrem atos de cooperação, por meio de pedidos de cooperação judiciária36, podendo estes se constituírem em auxílio direito, atos conjuntos ou atos concertados, ou outros instrumentos adequados.

De acordo com os artigos 5°, da Resolução 350/2020 do CNJ, a cooperação nacional: I) pode ser realizada entre órgãos jurisdicionais de diferentes ramos do Poder Judiciário37; II) pode ser instrumentalizada por auxílio direto, atos concertados, atos conjuntos e outros instrumentos adequados; III) deve ser documentada nos autos, observadas as garantias fundamentais do processo; IV) deve ser realizada de forma fundamentada, objetiva e imparcial; e V) deve ser comunicada às partes do processo.

Auxílio direto se trata de mecanismo de cooperação para diligências mais simples, sem grave produção de efeitos, que não demandam ações contínuas, como o compartilhamento de informações (ex.: pedido de encaminhamento de informações sobre processos; pedido de cópia integral de processo com segredo de justiça38) ou pedidos de realizações de diligências ou atos processuais

35 Para mais informações: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=509072&ori=1>.

36 Art. 10, Resolução 350/2020: Os pedidos de cooperação judiciária serão encaminhados diretamente entre os(as) juízes(as) cooperantes ou poderão ser remetidos por meio do(a) Magistrado(a) de Cooperação.

37 Também é possível a realização de cooperação interinstitucional entre os órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades, integrantes ou não do sistema de justiça, que possam, direta ou indiretamente, contribuir para a administração da justiça, conforme o art. 1°, I, da Resolução 350/2020.

38 Exemplo retirado do modelo de pedido de cooperação de auxílio direto, constante do Anexo I, da Resolução 350/2020, do CNJ.

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de um juiz a outro (pedido de intimação de testemunha39, pedido de penhora no rosto dos autos40 ou pedido de oitiva de oitiva de uma testemunha por meio de videoconferência na sede do juízo).

Para atos mais complexos, que envolvem via de regra reflexos em mais de um processo reciprocamente, devem os juízos fazerem uso dos atos conjuntos e concertados, que são mais adequados para disciplinar a cooperação entre órgãos jurisdicionais em torno de um ou alguns processos, ou a prática de atos mais complexos relacionados a esses mesmos processos (art. 11, Resolução 350/202).

Os atos conjuntos são pronunciamentos judiciais realizados de forma conjunta por ambos os juízos, como um despacho ou uma decisão judicial, sendo recomendável sua utilização para situações em que haja produção de efeitos recíprocos em ambos os processos, porém, não demandem a elaboração de um procedimento para ação contínua (ex.: decisão sobre a forma de expropriação de bem penhorado em ambos os processos; decisão para dispor sobre a produção de uma única prova comum a ambos os processos, como um exame pericial único41, etc.).

De outro lado, atos concertados são aqueles que demandam atividades mais complexas entre os juízos, geralmente devendo existir a previsão de um procedimento ou envolvendo a prática de mais de um ato (ex.: realização de instrução probatória conjunta; disciplina para a gestão de casos repetitivos, inclusive prolações de decisões conjuntas sobre pontos comuns; ou em sede de execução, a expropriação de bens penhorados e distribuição entre os diversos credores, respeitando suas preferências legais42).

Ademais, vale frisar que é possível que juízes de juizados celebrem atos de cooperação com juízes não integrantes do Sistema dos Juizados Especiais ou mesmo de diferentes justiças, caso em que os atos de cooperação deverão ser informados aos respectivos Tribunais para conhecimento (art. 11, §5°, da Resolução 350/2020).

Porém, ainda que se trate de ato de cooperação entre juízes de juizados integrantes à mesma justiça ou juízes de juizados e outros juízes vinculados ao mesmo Tribunal, afigura-se necessária a comunicação dos atos de cooperação ao Magistrado de Cooperação, designado pelo Tribunal, para que este promova a adequada publicidade e remeta a informação ao Núcleo de Cooperação Judiciária.

39 Exemplo retirado do modelo de pedido de cooperação de auxílio direto, constante do Anexo I, da Resolução 350/2020, do CNJ.

40 Exemplo retirado do modelo de pedido de cooperação de auxílio direto, constante do Anexo I, da Resolução 350/2020, do CNJ.

41 Exemplo retirado do modelo de pedido de cooperação de auxílio direto, constante do Anexo II, da Resolução 350/2020, do CNJ.

42 Exemplo retirado do modelo de ato concertado constante do Anexo III, da Resolução 350/2020, do CNJ.

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Por fim, em qualquer caso, o ajuste celebrado para a prática dos atos de cooperação deve ser assinado pelos juízos cooperantes, e o instrumento consensual ser juntado aos autos dos processos a ele relacionados previamente à prática dos respectivos atos (art. 11, §1°, Resolução 350/CNJ).

Ainda o termo de ajuste deve ser redigido de modo claro e conciso, com identificação precisa das competências dos juízos cooperantes e indicação das fontes de custeio para a prática dos atos descritos, quando necessário, sendo possível ainda sua revisão e adaptação a qualquer tempo pelos juízos cooperantes, preservados os atos praticados com base na concertação anterior.

Cabe esclarecer que as partes não permanecem alheias a estes procedimentos, devendo ser intimadas dos pedidos de cooperação (art. 3° e 5°, I, da Resolução 350/2020), bem como se manifestarem acerca do ato de cooperação a ser praticado (art. 9°, da Resolução 350/2020), podendo, no entanto, o contraditório ser diferido se a situação assim o exigir.

Também cabe às partes requerer esclarecimentos e solicitar ajustes nos atos de cooperação firmados entre os juízes, bem como requerer a realização de ato de cooperação ao juízo, nas hipóteses da Resolução, o que também pode ser feito pelos sujeitos que possuam representatividade adequada, ainda que não sejam partes no processo, consoante o art. 8°, §§3° e 4°, da Resolução 350/2020.

Dito isso, denota-se que a prática de atos de cooperação é de fundamental importância no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, que atuam, como regra, em matérias de cunho repetitivo, dispondo de situações jurídicas e fáticas de origem comum, de modo que a atuação conjunta de diversos juízos possibilitará a busca da coerência e integridade que a jurisdição tanto necessita.

Insta mencionar que o sistema dos juizados especiais já há muito se encontra a frente nestes quesitos de cooperação, mesmo antes da edição da Resolução 350 do CNJ. São neste sentido os Enunciados do FONAJE n. 73 do FONAJE (“As causas de competência dos Juizados Especiais em que forem comuns o objeto ou a causa de pedir poderão ser reunidas para efeito de instrução, se necessária, e julgamento”) e Enunciado n. 33 (“É dispensável a expedição de carta precatória nos Juizados Especiais Cíveis, cumprindo-se os atos nas demais comarcas, mediante via postal, por ofício do Juiz, fax, telefone ou qualquer outro meio idôneo de comunicação”).

Por fim, cabe esclarecer que estes mecanismos de cooperação também podem ser utilizados em conjunto com os instrumentos de coletivização parcial como no exemplo de mutirão para realização de exames técnicos, que pode ser feito por meio de ato concertado ou ato conjunto de juízes juizados cooperantes.

Assim, a utilização de medidas como estas ajudam a promover os princípios informadores dos Juizados Especiais como a celeridade, a economia processual, a simplicidade e a informalidade, trabalhando a favor da duração

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razoável do processo, utilizando-se também dos avanços tecnológicos a favor do processo judicial.

5. CONCLUSÃO

Diante do apresentado, tem-se que é possível, e necessário, que no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública se busque uma atuação racional, por meio de instrumentos de coletivização parcial do processo em conjunto com instrumentos de cooperação judiciária.

É cediço que é necessária a adequação do conflito e da jurisdição ao direito material e à realidade material, de modo que não se tem como defender atualmente, diante da onda de processos repetitivos que enchem o Poder Judiciário, que se mantenha um modelo de processo tradicional.

Assim, ainda que não se admita ações coletivas no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, existem outros instrumentos disponíveis aos operadores do Direito, que devem, sempre que possível, conferir-lhes aplicação. Portanto, busca-se a alteração de uma “mentalidade individual” de processo para uma “mentalidade coletiva”, pois somente assim poderemos dar respostas eficientes aos novos desafios que o Poder Judiciário enfrenta.

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caPítulo 20

a meDiação como causa susPensiva Da Prescrição Da Pretensão executória contra a FazenDa Pública: um olhar sobre a Justiça multiPortas e o entenDimento Do tribunal De Justiça Do Paraná

INTRODUÇÃO

A Justiça Multiportas representa um inovador paradigma no acesso à justiça, proporcionando aos litigantes uma ampla gama de alternativas para resolver suas disputas, para além do tradicional processo judicial. Essa abordagem pode resultar em resultados mais rápidos, econômicos e menos adversariais, reduzindo o fardo sobre o sistema judicial e promovendo maior satisfação entre as partes envolvidas. É especialmente relevante em casos complexos, nos quais soluções criativas e personalizadas podem ser mais benéficas do que uma abordagem única para todos.

A essência da Justiça Multiportas é, assim, disponibilizar às partes um conjunto diversificado de métodos de resolução de disputas adaptados às suas necessidades específicas e à natureza de suas controvérsias. Entre esses métodos, incluem-se a mediação, a arbitragem, a negociação, a conciliação e outros.

A mediação, em particular, é um método de solução de conflitos em que as partes, com o auxílio de um terceiro imparcial, buscam um acordo que seja satisfatório para ambas. Esse método é baseado nos princípios da voluntariedade, confidencialidade e autonomia das partes. Nesse contexto, ela surge como uma alternativa promissora para a solução de conflitos envolvendo a Fazenda Pública.

Este texto se propõe, assim, a analisar, mediante pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, o impacto da mediação como causa suspensiva da prescrição

Wilson Calmon Alves Filho Mateus Oliveira de Castro

da pretensão executória contra a Fazenda Pública. Para tanto, serão explorados os seguintes tópicos: a Justiça Multiportas no processo civil brasileiro; a definição de mediação e os princípios que a regem, estabelecidos no Código de Processo Civil e na Lei n. 13.140/2015 (lei de mediação); a prescrição da pretensão executória em face da Fazenda Pública e os reflexos da lei de mediação na fluência do prazo; e o atual entendimento do Tribunal de Justiça do Paraná sobre a suspensão do prazo prescricional previsto na Lei de Mediação. Com base neste estudo, espera-se fomentar as discussões sobre a utilização da mediação como forma de solução de conflitos envolvendo a Fazenda Pública e seus impactos na fluência do prazo prescricional, bem como as consequências que as interpretações judiciais podem ocasionar ao erário e à administração da justiça.

1. JUSTIÇA MULTIPORTAS DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

1.1. Breve histórico dos meios alternativos de solução de conflitos

Os meios de solução de conflitos estão presentes no mundo desde o momento em que o homem se organizou em sociedade, ou mais precisamente, quando abdicou do poder de fazer valer com suas próprias mãos sua vontade diante da violação a um direito (autotutela), para delegar tal função a um terceiro.

Em um passado não muito distante, falar em acesso à justiça significava nada além de acesso aos Tribunais. Tal conclusão pode ser facilmente extraída dos clássicos conceitos de jurisdição de Chiovenda e Carnelutti, que muito influenciaram o processo civil brasileiro durante boa parte do século XX.

De acordo com Chiovenda, a jurisdição, no âmbito do processo de conhecimento, “consiste na substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual não só das partes, mas de todos os cidadãos, pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente uma vontade concreta da lei em relação às partes”1. Ao esmiuçar este conceito, percebe-se que além de limitar a atividade jurisdicional àquela prestada por um juiz de direito, nele não há qualquer compromisso com a efetividade da tutela jurisdicional, como se a afirmação da vontade concreta da lei fosse um fim em si mesma.

Já para Carnelutti, a jurisdição tem como finalidade a justa composição da lide, sendo essa o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida2.

1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. Vol. 1. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 62.

2 “(...) prefere ver na jurisdição a justa composição das lides (Carnelutti), entendendo por lide qualquer conflito de interesses regulado por direito e por justa composição feita nos termos deste. Essa definição considera a atuação do direito como meio para atingir o escopo final da composição do

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363 Assim, para o processualista italiano, a lei é insuficiente para compor a lide, fazendo-se necessária a atividade do Estado-Juiz3. Ou seja, também do conceito de jurisdição proposto por Carnelutti, não se extrai qualquer preocupação com a tutela efetiva de direitos, além de restringir a pacificação social à atividade do Estado-Juiz.

Modernamente, Cristiane Rodrigues Iwakura, sem deixar de lado os conceitos dos dois processualistas clássicos, sugere um novo conceito de jurisdição como uma “função exercida por órgão imparcial e independente, com escopo principal de fazer atuar a sua vontade da lei ao caso concreto, mediante a tutela de pretensões, direitos e relações jurídicas contenciosas ou não, mediante provocação das partes e inafastável previsão legal”4.

Neste conceito, a autora sem deixar de incluir a atuação da vontade da lei, inclui no conceito a possibilidade de a jurisdição ser exercida por outro órgão que não o Estado-Juiz, bem como destaca a tutela de direitos, prevenções e relações jurídicas, inclusive não contenciosas, como instrumento para a atuação da jurisdição.

Para além dos conceitos de jurisdição, até recentemente, não havia incentivos à utilização de métodos alternativos ao Poder Judiciário para dirimir litígios. No Brasil pré-Constituição de 1988, o baixo acesso à informação por parte da população média, os altos custos e a baixa efetividade do Poder Judiciário na tutela de direitos, dificultava ou até mesmo impossibilitava a recomposição dos direitos infligidos.

Nesse cenário, duas correntes surgiram nos anos 70 e 80 do século passado, no intuito de abrir possibilidades para enfrentar o problema do acesso à justiça. A primeira delas (não em ordem cronológica, mas em ordem de difusão e popularidade no Brasil), foi capitaneada por Mauro Capelletti e Bryant Garth na obra “O Acesso à Justiça”5, segundo a qual houve três fases ou ondas, de enfrentamento e superação dos obstáculos ao acesso à justiça.

A primeira delas se relaciona à assistência judiciária gratuita, em que o Estado passa a custear o processo para as pessoas desprovidas de recursos, permitindo a elas o acesso ao Poder Judiciário. No Brasil, o grande exemplo dessa onda consiste na Lei n. 1.060/1950, que estabeleceu normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados.

conflito de interesses, procurando assim captar a matéria a que a lei é aplicada e o resultado prático, do ponto-de-vista sociológico, a que a operação conduz”. LIEBMAN, Enrico Liebman. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 1. 3 ed. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 23.

3 Idem.

4 IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Em busca de um novo conceito de jurisdição. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP V. 16, jul-dez. de 2015, p. 112-132.

5 CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.

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Já a segunda onda diz respeito à representatividade nos direitos difusos e coletivos, ou seja, em um litígio coletivo, uma pessoa atua como substituta processual de um grupo ou de uma coletividade na condição de legitimado extraordinário (agindo em nome próprio na defesa de interesses alheios). A Lei n. 7.347/1985, também denominada de Lei da Ação Civil Pública, é o exemplo contemporâneo à obra de Capelletti e Garth.

Por fim, a terceira onda de acesso à justiça inclui o acesso extra muros, ou seja, para além do Poder Judiciário, buscando-se o método mais adequado para a pacificação de cada litígio.

Em paralelo a teoria das ondas de acesso à justiça, o Professor Frank Sander da Harvard Law School, em conferência ocorrida em 1976 nos Estados Unidos6, lançou as diretrizes do que posteriormente veio a ser conhecido como Justiça Multiportas (Multidoor Courthouse System).

De acordo com Sander, diante do crescimento exponencial de demandas perante o Poder Judiciário, seria necessária a redução das disputas judiciais, o que segundo ele poderia ser feito das seguintes formas: a) prevenção de disputas - a1. mudanças substantivas na lei no intuito de reduzir os casos que chegam ao Poder Judiciário - a2. atuação dos advogados de forma antecipada, evitando-se a instauração de litígios (preventive law); b) explorar as formas alternativas de resolução de disputas fora dos Tribunais, também conhecidas como ADR (alternative dispute resolution). Essa segunda hipótese foi desenvolvida pelo Professor de direito de Havard, na famosa conferência.

No Brasil, a Constituição Cidadã alçou à categoria de direitos fundamentais a promoção da defesa do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII), bem como atribuiu à Defensoria Pública a sua devida importância (art. 134), que se seguiu de sua estruturação. Tais preceitos, que são de indubitável importância, também contribuíram para o aumento no potencial de incremento dos litígios. Como o Poder Judiciário funcionava senão como única, como a principal porta para resolução de conflitos, o sistema judiciário brasileiro ao longo dos anos pós-Constituição experimentou um acréscimo substancial nas demandas que corriam perante ele.

A atuação do legislador infraconstitucional também contribuiu muito para a efetivação do acesso à justiça, com leis tais como o Código de Defesa do Consumidor7, a Lei dos Juizados Especiais8, a Lei dos Juizados Especiais Federais9,

6 SANDER, Frank E. A. “Varieties of Dispute Processing”. In. The pound conference: perspectives on justice in the future. Edited by A. Leo Levin and Russell R. Wheeler. Minnesota: West Publishing CO., 1979, p. 65-87.

7 Lei n. 8.078/1990.

8 Lei n. 9.099/1995.

9 Lei n. 10.259/2001.

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direito PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 365 dentre outras. Se por um lado houve um incremento na ampliação do acesso aos Tribunais levando ao judiciário parcela da população até então relegada, por outro desencadeou um processo de hiperjudicialização.

Flávia Pereira Hill atentou para essa questão, ao reconhecer a evolução do acesso aos Tribunais a partir do implemento no sistema jurídico de questões tais como a estruturação da Defensoria Pública, a concepção do Direito Processual Constitucional, a ordenação dos microssistemas dos Juizados Especiais e do Processo Coletivo. Por outro lado, a autora destaca:

Tais iniciativas somadas não só lograram contornar o déficit de acesso aos tribunais, como, em verdade, acabaram por contribuir para que se verificasse, nos dias atuais, um alarmante cenário de congestionamento do Poder Judiciário, diante de aproximadamente 80 milhões de ações judiciais em curso atualmente, e uma taxa de congestionamento bruta, segundo o relatório Justiça em Números de 2019 do Conselho Nacional de Justiça, da ordem de 71,2%. A esse fenômeno, parece-nos adequado intitular hiperjudicialização. 10

Diante desse cenário, e do risco de colapso do sistema judicial, o tema Justiça Multiportas passou a ser de grande importância para o direito processual civil brasileiro, que o incorporou textualmente no CPC/2015, e que será tema do próximo subitem.

1.2. O sistema multiportas no CPC/2015

Carlos Alberto Álvaro Oliveira traz a concepção de processo como instrumento de realização de valores, em especial de valores constitucionais, devendo considerar o processo como uma espécie de direito constitucional aplicado. Não é o caso de apenas exercer a conformação do processo às normas constitucionais, mas de empregá-las no exercício da função jurisdicional, refletindo de maneira direta no seu conteúdo, no que é decidido, e na maneira de condução do processo11. Nesse contexto, destaca-se a importância dos direitos fundamentais. A Constituição de 1988 previu expressamente direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração e a eles atribuiu aplicação imediata (art. 5º, §1º)12. A Constituição da República de 1988, dentre o seu extenso rol de direitos fundamentais previstos no artigo 5º, previu no inciso XXXV que “a lei não excluirá da

10 HILL, Flávia Pereira. Desjudicialização da execução civil: reflexões sobre o projeto de lei nº 6.204/2019. Revista eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro. Ano 14, vol. 21, setdez. de 2020, pp. 164-205.

11 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista da Faculdade e Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 22. Porto Alegre: UFRGS. Set./2002, p. 119-130.

12 Ibidem.

apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Para Marinoni e Mitidiero13, tal previsão somada a proibição à autotutela formam o direito fundamental à tutela adequada e efetiva. Os autores dividem este direito em três vertentes diversas: i) acesso à justiça; ii) tutela adequada e iii) tutela efetiva.

O texto constitucional restringe o direito supracitado à inafastabilidade da apreciação judicial de lesão ou ameaça a direito, o que constitui o conteúdo mínimo do direito fundamental, que pode ser expandido ou restringido por norma infraconstitucional, desde que respeitado o seu núcleo essencial.

Gilmar F. Mendes atenta ao fato de que apesar da ordem constitucional nacional não abranger textualmente a proteção ao núcleo essencial de direitos fundamentais, vedou expressamente qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais14. Para o Ministro do Supremo Tribunal Federal, essa cláusula contribui para a aceitação da tese da existência de um limite do limite para o legislador ordinário ao tratar de direitos fundamentais15. E conclui que o princípio do núcleo essencial dos direitos fundamentais decorre do modelo garantista que se valeu o constituinte16.

O artigo 3º do Código do Processo Civil modificou a cláusula prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988, preservando o seu núcleo essencial. Eis o seu texto: “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. Da leitura desse texto é possível observar a sutil mudança da inafastabilidade do Poder Judiciário para a inafastabilidade da apreciação jurisdicional, o que abriu caminho para que se possa afirmar que o Código aderiu ao sistema multiportas de resolução de conflitos.

Tal sistema é inspirado na ideia de Sanders (Multidoor Courthouse System), já referida neste ensaio. Entretanto, para Fredie Didier Jr. e Antônio Fernandez, no Brasil é mais adequado tratar o tema como sistema de Justiça Multiportas, e não como tribunais multiportas. Isso porque, de acordo com tais autores, “o sistema brasileiro não é organizado a partir de um átrio central, ainda que virtual, mantido e controlado por um único órgão, seja do Poder Judiciário, seja de outra instituição governamental. O átrio imaginário que as partes se situam, é, então, do sistema de justiça como um todo”17.

13 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo, 2018, p. 809-810.

14 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 7 ed. 2015, p. 245.

15 Ibidem.

16 Ibidem.

17 DIDIER Jr., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O Sistema Brasileiro de Justiça Multiportas como um sistema auto-organizado: interação, integração e seus institutos catalisadores. Revista do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte – REPOJURN. Ano 3, n. 01, jan-jun. de 2023.

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O artigo 3º do CPC está topograficamente localizado na parte geral do Código, mais precisamente no capítulo I do título “das normas fundamentais e da aplicação das normas processuais”, do livro I (“das normas de processo civil”), intitulado “das normas fundamentais do processo civil”.

Fredie Didier Jr. leciona que há um conjunto de normas processuais que formam o Direito Processual Fundamental ou Direito Processual Geral18. E segue:

A norma é fundamental, porque estrutura o modelo do processo civil brasileiro e serve de norte para a compreensão de todas as demais normas jurídicas processuais civis - é, por isso, também uma norma de interpretação das fontes do Direito Processual e de aplicação de outras normas processuais. Essas normas processuais ora são princípios (devido processo legal) ora são regras (como proibição do uso de provas ilícitas).

De acordo com Carlos Frederico Bastos Pereira19, são normas fundamentais formais aquelas que estão prescritas como fundamentais, como aquelas previstas nos 12 artigos iniciais do CPC. Para o autor, são materialmente fundamentais as normas estruturantes do processo civil brasileiro, tidas como linhas mestras do Código, como a que prevê a cláusula aberta dos negócios processuais atípicos (princípio do autorrespeito da vontade - artigo 190), o dever de fundamentar as decisões (artigo 489, §1º), e as normas gerais dos precedentes judiciais (artigos 926-928). Pereira ensina que os 12 primeiros artigos do CPC não esgotam as Normas Fundamentais do Processo Civil. Ele classifica essas normas em três grupos: direitos fundamentais processuais (previstos na Constituição); normas fundamentais formais/materiais (localizadas no art. 1-12); normas fundamentais materiais (no restante da parte geral e na parte especial, como as normas dos artigos 190, 489, §1º, 926, 927 e 928 do CPC). Todas elas concretizam o princípio do devido processo legal.

A norma do artigo 3º do CPC está no grupo dos direitos fundamentais processuais, uma vez que está prevista na Constituição, cujo núcleo foi expandido para considerar não apenas a inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário, mas a inafastabilidade do controle jurisdicional, que inclui outras possibilidades para a resolução adequada de conflitos. No ensaio “O Novo CPC adotou o modelo multiportas!!! E Agora?!”, escrito ainda no período da vacatio legis do CPC/2015, João Luiz Lessa Neto20, após destacar a adoção do sistema multiportas, assevera:

18 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 19ª ed. Salvador: Editora Juspodivm. 2017, p. 71.

19 PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Norma Fundamental do Processo Civil Brasileiro: aspectos conceituais, estruturais e funcionais. Civil Procedure Review, 2018, v.9, p. 101-124.

20 LESSA NETO, João Luiz. O novo CPC adotou o modelo multiportas!!! E agora?!. Revista de Processo - REPRO, São Paulo, v. 244, p. 427-441, junho/2015.

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É norma fundamental do processo civil brasileiro a prioridade na utilização das técnicas para facilitar a resolução consensual dos conflitos (art. 3º, §§ 2º e 3º, CPC/2015). É dever do Estado promover, divulgando e fornecendo meios necessários, e dos operadores jurídicos estimular, esclarecendo a população, a difusão e utilização dos meios adequados de resolução de disputas.

É, pois, dever do Estado fomentar a solução consensual de conflitos (art. 3º, §2º do CPC). Tal regra possui desdobramentos ao longo do Código de Processo Civil, como se observa do artigo 334 que prevê como regra geral no procedimento comum a designação de audiência de conciliação ou de mediação, antes da apresentação da contestação pelo réu.

O sistema multiportas e o fomento à resolução consensual dos conflitos constituem normas formal e materialmente fundamentais do processo civil, e como tais devem ser utilizadas como linhas mestras para a interpretação e aplicação das demais normas processuais.

Não há um rol pré-definido e exaustivo das possíveis portas para a solução adequada dos conflitos. A Justiça Multiportas inclui desde a mediação que possui regulamentação legal com a Lei n. 13.140/2015, passando pela ODR (online dispute resolution) em sites como “consumidor.gov”, até formas mais sofisticadas como o “Dispute Board Resolution”21 (Comitê de Resolução de Controvérsia).

A forma para a resolução de conflitos deve ser escolhida a depender da situação substancial envolvida no caso concreto, valendo-se da porta com maior capacidade de proporcionar a tutela adequada e efetiva do conflito. Em razão disso se fala em mecanismos adequados para a solução de conflitos.

Muitas vezes, o Poder Judiciário não será o órgão mais capacitado técnica ou estruturalmente para dirimir um conflito levando-se em consideração aspectos multifatoriais, visando especialmente a mais adequada e efetiva tutela do direito. Por exemplo, questões de direito concorrencial altamente especializadas, que envolvem questões extremamente complexas que fogem da atuação ordinária de um juiz comum.

Entretanto, não se pode confundir mecanismos adequados com celeridade, redução de custos e diminuição do volume de processos no judiciário.

21 “(...) Dispute Boards consiste em mecanismo de resolução de conflitos por meio do qual as partes instituem, no início da relação contratual ou durante o seu iterim, um órgão, contendo um ou mais profissionais que tenham amplo conhecimento da matéria sobre o objeto do contrato celebrado entre as partes, com o objetivo de resolver eventuais conflitos que surjam durante sua execução, seja por meio de recomendação a ser acatada pelos contratantes, seja por meio de uma decisão que encerre o conflito”. CABRAL, Thiago Dias Delfino. Os Comitês de Resolução de Disputas (DISPUTE BOARDS) no Sistema Multiportas do Código de Processo Civil. Revista de Arbitragem e Mediação – RARB, São Paulo, v. 59, out-nov. de 2018

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Apesar de ser possível obter tais consequências, o que a Justiça Multiportas essencialmente propõe é proporcionar um sistema melhor, mais amplo e mais completo de Justiça Civil22.

Tratando do dever de resposta da jurisdição às necessidades do direito material23, Marinoni, Arenhart e Mitidiero24 ensinam que a tutela jurisdicional tem natureza instrumental em relação ao direito material, tendo a jurisdição o objetivo de reconstruir a norma jurídica no intuito de dar guarida às necessidades do direito material, para só então ter como consequência a pacificação social.

Assim como a jurisdição, e as vezes concorrendo com esta, os métodos alternativos de solução de conflitos estão a serviço da tutela do direito material, devendo ser escolhida a forma com maior capacidade de restaurar a paz social com a resolução da controvérsia de forma efetiva e adequada.

2. MEDIAÇÃO

Dentre os meios de solução adequada dos conflitos, a mediação é a que tem suscitado mais atenção dos juristas nos últimos anos. Em 2010, por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 125/2010, pela qual disciplinou os procedimentos de instauração da mediação no âmbito do Poder Judiciário. Na sequência, em março de 2015, foi publicada a Lei n. 13.105/2015 (Código de Processo Civil - CPC), estabelecendo, para além do dever de o Estado promover a solução consensual dos conflitos por meio da criação de estímulos para adoção de meios não adjudicados (art. 3º, §§2º e 3º), regras gerais sobre o procedimento de mediação e conciliação (arts. 165 e seguintes). Por fim, em junho de 2015, veio a lume a Lei n. 13.140/2015 (Lei de mediação), pela qual se dispôs especificamente sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

A mediação, nos termos das normas em referência, caracteriza-se pela presença de um terceiro (mediador) que busca reaproximar as partes em litígio, para que elas possam alcançar uma solução negociada para a controvérsia (Lei n. 13.140/2015, art. 1º, par. único), a partir de uma compreensão mais profunda da complexidade da situação em disputa25.

Demais disso, a mediação poderá ser judicial ou extrajudicial. A judicial ocorre dentro do contexto de um processo instaurado perante o Poder Judiciário,

22 LESSA NETO, João Luiz op. cit.

23 O que entendemos também se aplicar no contexto da Justiça Multiportas.

24 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. op. cit., p. 137.

25 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, p. 175.

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no qual o juiz encaminha as partes para a tentativa de solução do conflito antes de continuar com o litígio formal. Já a extrajudicial é aquela acordada voluntariamente pelas partes, que escolhem submeter seus conflitos à mediação, normalmente antes de ingressar com o processo judicial26.

O objeto conflituoso, por sua vez, pode envolver direitos disponíveis ou indisponíveis que admitam transação (Lei n. 13.140/2015, art. 3º), como os acordos nos procedimentos sancionatórios do CADE (Lei n. 12.529/2011, art. 86). Nessa última hipótese, porém, para validade do acordo será necessária a homologação judicial, com prévia oitiva do Ministério Público (Lei n. 13.140/2015, art. 3º, §2º), exigindo-se, além disso, quando o caso envolver a administração pública, a expressa autorização normativa (Constituição Federal, art. 37), por meio de lei ou ato do chefe do Poder Executivo do ente federativo envolvido na avença27.

Por outro lado, o mediador age para auxiliar o diálogo entre os litigantes. Alguns defendem que a ele é vedada a apresentação de propostas para a solução do conflito28, enquanto outros entendem, por força do disposto no artigo 30, §1º, III, da Lei n. 13.140/2015, que haveria uma “clara indicação de que o mediador pode também fazer sugestões ou apresentar proposta de acordo para as partes se autocomporem”29.

Demais disso, para atuar nessa qualidade, a pessoa deve ser capaz e graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e deve se inscrever em cadastro nacional e do tribunal local, além de estar capacitada em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais (CPC, art. 167; Lei n. 13.140/2015, art. 11).

A mediação, ademais, é informada por diversos princípios (CPC, art. 166; Lei n. 13.140/2015, art. 2º). O princípio da imparcialidade, por exemplo, impede que o mediador tome partido no curso da mediação. Já o da autonomia da vontade das partes ou do consensualismo estabelece que as partes não podem ser obrigadas a participarem de sessões de mediação, se com elas não anuíram. Pelo princípio da decisão informada, por sua vez, o mediador tem o

26 Nada impede a instauração de mediação extrajudicial em paralelo a um processo judicial, podendo este ser suspenso com fundamento no art. 16 da Lei de Mediação.

27 DIDIER JR, F. op. cit., p. 728.

28 GARCIA, Flávio Amaral. Notas sobre mediação, conciliação e as funções da Advocacia Pública: uma perspectiva à luz do Direito Administrativo contemporâneo. Revista Jurídica da ProcuradoriaGeral do Estado do Paraná. Curitiba/PR, n. 11, p. 33-54, 2020.

29 CUNHA, L. C. da. Justiça multiportas: mediação, conciliação e arbitragem no Brasil. Revista Annep de Direito Processual, v. 1, n. 1, 2020 (DOI 10.34280/annep/2020.v1i1.33) - disponível em https://revistaannep.com.br/index.php/radp/article/view/33. Acesso em: 28/04/2023.

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dever de aplicar técnicas que permitam às partes compreenderem a realidade fática que envolve a questão controvertida, muitas vezes comprometida por aspectos emocionais.

No entanto, dentre todos os princípios, o que se destaca é o da confidencialidade. Por meio dele se garante o sigilo informacional do procedimento de mediação, necessário para construção de uma relação de confiança entre as partes e o mediador 30. Desse modo, mediador, partes, advogados, demais auxiliares e assessores devem guardar sigilo das informações compartilhadas no procedimento (Lei n. 13.140, art. 30, §1º), não podendo deles ser exigida a sua revelação, nem mesmo para utilização em processo arbitral ou judicial (Lei n. 13.140/2015, art. 30, §2º), salvo se os fatos constituírem crime de ação pública (Lei n. 13.140/2015, art. 30, §3º). Situação, ademais, que os impede de serem chamados a depor como testemunhas sobre os fatos e elementos que tiveram acesso somente em razão da mediação (CPC, art. 166, §2º).

Por essas razões, aliás, é que é desaconselhável a atuação do juiz da causa na qualidade de mediador. Alguns entendem, inclusive, que essa atuação seria vedada, pois “em não existindo consenso, os conflitantes saberão que o conflito será julgado pelo magistrado, que não terá conhecimento e não será influenciado pela conversa informal”31. Essa foi também a conclusão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que assentou a impossibilidade de a mediação ser presidida pelo juiz da causa, por afronta ao princípio da confidencialidade.

Caso tal situação se verificasse, o magistrado não poderia julgar o feito, sob pena de nulidade32.

Fernanda Tartuce33 e Leonardo Carneiro da Cunha34 também comungam desse entendimento. Este último, por exemplo, ensina:

A mediação e a conciliação não serão, como regra, conduzidas pelo magistrado, evidentemente que as partes podem transigir durante a fase de instrução do processo, e o magistrado, em uma atuação cooperativa, deve estimular o diálogo e facilitar a conciliação, mas haverá um profissional específico e

30 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial, 6ª Edição (Brasília/DF:CNJ), 2016, p. 252.

31 SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação de conflitos: da teoria à prática. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2017, p. 99.

32 TJ-RJ - APL: 02488192020168190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 48 VARA CIVEL, Relator: LUCIANO SABÓIA RINALDI DE CARVALHO, Data de Julgamento: 26/07/2017, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 31/07/2017.

33 TARTUCE, Fernanda. Mediação no Novo CPC: Questionamentos Reflexivos. In: FREIRE, Alexandre et al. (orgs). Novas Tendências do Processo Civil: Estudos sobre o projeto do novo código de processo civil. Salvador: JusPudivm, 2013, p. 761.

34 CUNHA, L. C. op. cit.

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devidamente qualificado para atuar no desenvolvimento da resolução consensual da disputa.

Isso é salutar, pois, na presença do magistrado, que julgará impositivamente o conflito, as partes não podem falar abertamente, sob pena de, em alguma medida, minar a sua estratégia jurídica para a fase do contencioso.

O juiz deve sempre estimular a conciliação (inclusive na audiência de instrução – CPC, art. 359), embora essa atividade deva ser, por excelência, desenvolvida por um conciliador ou mediador habilitado. A preocupação do CPC é assegurar a imparcialidade do juiz e permitir um diálogo mais franco e flexível das partes nos esforços de autocomposição, já que o juiz que conduzir ativamente uma mediação ou conciliação pode, em alguma medida, acabar influenciado em seu julgamento pelas tratativas frustradas e pelo que for dito pelas partes no esforço de resolução amigável.

Por fim, segundo previsão do artigo 17 da Lei n. 13.140/2015, o procedimento de mediação, que tem início com a primeira reunião, momento a partir do qual suspende-se a tramitação de processo judicial já instaurado (Lei n. 13.140/2015, art. 16, caput), bem como o curso do prazo prescricional, se encerra com a celebração do acordo, declaração do mediador sobre a impossibilidade de consenso ou pedido das partes. No caso de celebração de acordo, este constitui-se em título executivo extrajudicial, salvo se homologado pelo Poder Judiciário, pois, neste caso, a natureza do título será judicial (Lei n. 13.140/2015, art. 20).

3. A MEDIAÇÃO ENVOLVENDO PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO (LEI N. 13.140/2015, ARTS. 32 E SEGS.)

A ideia de que a administração pública não pode conciliar, tendo em vista a supremacia do interesse público e a sua indisponibilidade, encontra-se superada. Desde a edição da Lei n. 11.079/2005, por exemplo, que trata dos contratos em regime de parceria público-privada, permite-se a previsão de mecanismos privados para a resolução de disputas decorrentes ou relacionadas aos contratos a ela submetidos (art. 11, III), que envolvem, pois, a mediação, a conciliação e a negociação. É que, conforme lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto35, além de a negociação envolver apenas os meios de realização do interesse público de forma mais eficiente e efetiva, a resolução dos conflitos também se caracteriza como interesse público de extrema relevância, “tanto na esfera social como na econômica, justificando que

35 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Novos Institutos Consensuais da Ação Administrativa”, Revista de Direito Administrativo 231/154. Rio de Janeiro: FGV, 2003. Disponível em: http:// bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45823/45108. Acesso em 28/08/2023.

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sejam encontrados modos alternativos de atendimento ao interesse público envolvido”. Tal situação, ademais, foi consolidada tanto pelo Código de Processo Civil (arts. 3º e 174) quanto pela Lei n. 13.140/2015 (arts. 1º, 32 e seguintes), tornando, assim, impertinente qualquer outra discussão.

Por outro lado, a Lei n. 13.140/2015, ao tratar das formas de autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, ampliou, em relação a esta, o espaço de sua incidência, para disciplinar não somente a mediação, como fez em relação aos particulares, mas, também, outras técnicas, como a negociação e a conciliação. E, assim se fez, para que pudesse diferenciar o tratamento normativo da mediação privada da autocomposição a ser realizada pela Administração Pública, permitindo-se “a utilização das técnicas mais adequadas conforme o tipo de conflito, as partes envolvidas, a estrutura do órgão público”36, bem como possibilitando a adequação normativa aos respectivos regimes jurídicos37

O artigo 32 da referida legislação, por exemplo, prevê somente a possibilidade de autocomposição extrajudicial, por meio de câmaras administrativas a serem criadas por cada um dos entes políticos federados para solução das controvérsias que os envolvem (caput). O modo de composição e funcionamento dessas câmaras, ademais, deverá ser objeto de lei própria de cada ente federado (§1º) e elas terão competência para dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública, avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público e promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta, desde que não envolvam atos ou a concessão de direitos sujeitos a autorização do Poder Legislativo. No curso do procedimento, contudo, deverá ser observada a “legislação específica regedora do pacto gerador do conflito a ser objeto da mediação”, conforme ensina Leila Cuéllar e Egon Bockmann Moreira38. O acordo celebrado, nesse caso, terá natureza de título executivo extrajudicial (§3º).

No artigo 33, por sua vez, a lei prevê a possibilidade de utilização das regras de mediação envolvendo particulares, até que as câmaras sejam criadas

36 SPENGLER, Fabiana Marion; EIDT, Elisa Berton. Em busca de uma regra geral para a realização de autocomposição na administração pública: a insuficiência da Lei nº 13.140/2015, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 281, n. 2, p. 265-289, mai-ago. de 2022.

37 FERREIRA, Kaline. A confidencialidade prevista na Lei de Mediação e os processos de autocomposição envolvendo entes públicos. In: FERREIRA, Kaline; OLIVEIRA, Teresa Cristina; ALMEIDA NETO, Osvaldo (Coord.). Sistema multiportas de resolução de litígios na Administração Pública: autocomposição e arbitragem. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 67-77.

38 CUÉLLAR, Leila; MOREIRA, Egon Bockmann. Administração Pública e mediação: notas fundamentais. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano, v. 16, p. 119-145, 2018.

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(caput), além de permitir a que a advocacia pública instaure, de ofício ou por provocação, procedimento de mediação coletiva relacionados à prestação de serviços públicos.

No âmbito da administração pública há, também, peculiaridades sobre a aplicação do princípio da confidencialidade. Isso porque, o princípio, que encontra amparo no direito à inviolabilidade da intimidade e vida privada (CF, art. 5º, X), está em aparente contraste com o princípio da publicidade dos atos administrativos (CF, art. 5º, XXXIII; 37, caput e §3º, II; 216, §2º). Diz-se aparente porque a solução a ser encontrada não pode eliminar um dos princípios do ordenamento jurídico, de modo que as eventuais restrições devem se limitar ao estritamente necessário para o atingimento do interesse público envolvido.

Desse modo, Tatiana de Marsillac Linn Heck e Luciana Marques Bombino39 defendem que, nos procedimentos de mediação envolvendo a Administração Pública e um particular, é fundamental a preservação do sigilo de informações sensíveis, de interesse exclusivo do ente privado, impedindo, assim, “a exposição desnecessária de seus negócios”. Circunstância que, segundo as autoras, não impediria a divulgação, ao final das negociações, do acordo celebrado com o Poder Público, de modo a promover a convivência harmônica entre os princípios colidentes (confidencialidade e publicidade). Heck e Bombino, afirmam, ademais, que tal solução deve ser aplicada mesmo nos casos envolvendo mediação de controvérsias restritas a órgãos da Administração Pública. Para tanto, invocam as disposições da Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011), que, em seu artigo 7º, §3º, assegura que o acesso “aos documentos e informações neles contidas, utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo” seja permitido somente após a prática do ato decisório, que, no caso da mediação, seria a celebração do acordo, pois “o acesso irrestrito às tratativas, acarretaria a publicização de eventuais análises de riscos processuais aos quais estaria exposta a Administração Pública, o que poderia ser aproveitado contra seus interesses”.

Entretanto, tal entendimento não é pacífico na doutrina. Ravi Peixoto40, por exemplo, entende que, apesar de a publicidade poder ser fator que desestimule a realização da mediação com o Poder Público, ela não pode ser

39 HECK, Tatiana de Marsillac Linn; BOMBINO, Luciana Marques. PRINCÍPIO DA CONFIDENCIALIDADE E PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE: incidência e limites sobre as tratativas conciliatórias na administração pública. Revista da Esdm, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 125-143, 05 dez. 2018. Semestral. ISSN 2595-7589. Disponível em: http://revista.esdm.com.br/index.php/esdm/article/ view/84/78. Acesso em: 24/08/2023.

40 PEIXOTO, Ravi. “Sobre o princípio da confidencialidade na mediação e na conciliação”. Em http:// www.adambrasil.com/sobre-o-principio-da-confidencialidade-na-mediacao-e-na-conciliacao/. Acesso em 24/08/2023.

Henrique
caSteLo (orgS.)
Luiz
Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara

PúBLico em PerSPectiva Homenagem aoS ProcuradoreS do eStado do Paraná 375 afastada, pois é regra de natureza constitucional (CF, art. 37, caput), que, ao ser regulamentada pelo legislador ordinário (Lei n. 12.527/2011), é regra de conduta da Administração, face ao dever de transparência. E o sigilo, por sua vez, é a exceção. Entendimento que, segundo o autor, encontra eco na regra do art. 1º, §3º, da Lei n. 9.307/1996, que trata da arbitragem. Por meio dela, estabeleceu-se o dever de respeito ao princípio da publicidade nas arbitragens envolvendo o Poder Público, a despeito do caráter confidencial ser a regra no curso desse procedimento.

Essas circunstâncias, portanto, revelam que a autocomposição em litígios envolvendo a Fazenda Pública deve seguir procedimento próprio, com a observância dos princípios e regras do regime de direito público, especialmente a legalidade estrita e a publicidade, ainda que postergada para momento posterior à celebração do acordo. Situação que, como se verá no tópico seguinte, influenciará na aferição da ocorrência das causas de suspensão do curso do prazo prescricional prevista nos artigos 17 e 34 da Lei n. 13.140/2015.

4. A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA E A LEI DE MEDIAÇÃO

4.1. Introdução

A prescrição é um instituto que tem por finalidade garantir a estabilidade e a segurança jurídica das relações sociais41, consistindo na perda do poder de exigir de outrem o cumprimento do dever jurídico de reparar o direito violado42, em razão do decurso do tempo (Código Civil, art. 189).

O que se extingue é a pretensão, considerada como o direito de exigir o cumprimento de uma obrigação por outrem, e não o exercício do direito de ação constitucionalmente assegurado, que é público, abstrato, eminentemente processual e indisponível43; tampouco o direito que ampara a pretensão estará extinto com o implemento do prazo final para seu exercício, “tanto que se o devedor ulteriormente vier a pagá-lo, não poderá mais tarde propor ação de repetição de indébito”44.

Por outro lado, os prazos para o exercício da pretensão são aqueles estabelecidos em lei (Código Civil, art. 205 a 206-A). Se o direito tiver sido violado pela Fazenda Pública, em regra, aplicam-se aqueles previstos no Decreto n. 20.910/1932, de modo que “prescrevem em 5 (cinco) anos, contados da data

41 MELLO, C. A. B. DE. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2007, p. 1.009.

42 GAGLIANO, P. S. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1, p. 473

43 Ibidem, p. 456-457.

44 MELLO, op. cit., p. 1.009.

direito

do ato ou fato do qual se originarem” (art. 1º). Além desses, há ainda o prazo previsto no artigo 21 da Lei n. 4.717/1965, próprio para as ações coletivas.

A pretensão dita executória, por sua vez, que se inicia com o trânsito em julgado da sentença de procedência e consiste no direito de se exigir o cumprimento de dever imposto por meio de sentença judicial, se extingue no mesmo prazo da ação, nos termos da súmula n. 150 do Supremo Tribunal Federal. Nos precedentes que ensejaram a formação do referido enunciado, a Corte Suprema assentou:

A execução, realmente, não constitui ação autônoma, senão que é termo, fase da ação, após da sentença. Porque se falasse em prescrição especial da execução força seria existisse em nosso direito – como existe no B.G.B – dispositivo expresso a respeito. Mas, esse dispositivo, não o depara a nossa lei civil” (RE n.º 18.776 – Rel. Min. Orozimbo Nonato, j. 5/6/1951).

Conheço do recurso pela letra d, reportando-me ao citado precedente do Supremo Tribunal [RE 34.944]. Também recordo, a respeito, a lição de Amilcar de Castro, Com. ao Cód. Proc. Civil, v. 10, p. 426: “A sentença não opera novação, nem cria direitos: é ato judicial meramente interruptor da prescrição. E, assim, sendo, desde sua data recomeça a correr a prescrição do direito e, demorando a execução, ou suspensa em qualquer ponto a instância da execução, por tanto tempo quanto tenha a lei fixado para prescrição do direito declarado na sentença, prescrito ficará esse direito” (RE n.º 49.494, Rel. Min. Vitor Nunes, j. 17.04.1962).

Além disso, no julgamento do REsp n. 1.275.215/RS, o Superior Tribunal de Justiça afirmou que “a sentença não é nascedouro de direito material novo, não opera a chamada “novação necessária, mas é apenas marco interruptivo de uma prescrição cuja pretensão já foi exercitada pelo titular”, para concluir que “a pretensão denominada “executória” nada mais é que a pretensão original de direito material deduzida em juízo (no processo de conhecimento), cujo prazo de manifestação (prescrição) foi reiniciado pelo “último ato do processo””. Assim, “quando se pleiteia a execução de um título judicial, faz-se por impulso da mesma pretensão deduzida na fase de conhecimento; e se essa pretensão tinha prazo para ser exercida na fase de conhecimento, o mesmo prazo o terá o titular do direito para exercitá-la na fase de execução”45.

Em igual sentido, decidiu referida corte no exame do REsp n. 1.419.386/ PR, pela relatoria da Ministra Nancy Andrighi, j. 18/10/2016. A decisão foi assim ementada:

45 STJ - REsp: 1275215 RS 2011/0208871-1, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 27/09/2011, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/02/2012.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 376

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA DE REPARAÇÃO CIVIL. SÚMULA 150/STF. DIREITO INTERTEMPORAL. ACTIO

NATA. CC/16. PRAZO VINTENÁRIO. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA.

1. A pretensão do cumprimento de sentença é a mesma pretensão da ação de conhecimento. Não há uma nova pretensão executiva que surge na data do trânsito em julgado da sentença condenatória. Precedente da 4ª turma.

2. O momento em que nasce a pretensão de reparação civil (teoria da actio nata) é o critério para definir a legislação do prazo prescricional aplicável à hipótese. Incidência da Súmula 150/STF.

3. O prazo da prescrição da execução flui a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória.

4. Na hipótese, a pretensão de reparação civil surgiu antes da entrada em vigor do CC/02, incidindo o regime jurídico do CC/16 para contagem do prazo prescricional do cumprimento de sentença.

6. Recurso especial não provido. (REsp 1419386/PR, relatora ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/16, DJe 24/10/16).

A fluência do prazo prescricional, por outro lado, pode ser suspensa ou interrompida nas hipóteses previstas em lei, cujo rol é taxativo, não se admitindo analogia ou interpretação extensiva46, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, pela relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp n. 1.670.364, em 04/10/2017. Nesse julgamento, a Corte da cidadania assentou que:

Dada a imperiosa necessidade de imprimir estabilidade e segurança às relações jurídicas, a prescritibilidade é a regra no ordenamento jurídico pátrio, de modo que a não fluência do prazo prescricional (ou decadencial), devido a uma causa suspensiva ou impeditiva, apenas deve ser admitida nas estritas hipóteses legais, previstas para resguardar interesses superiores.

Além das regras gerais contidas no Código Civil e no Decreto n. 20.910/1932 sobre as hipóteses de suspensão e interrupção do prazo prescricional, há as previsões contidas na Lei n. 13.140/2015, que serão objeto de estudo no próximo tópico e constituem o objeto central deste artigo científico. Por fim, tem-se, ainda, que a prescrição pode ser objeto de renúncia (expressa ou tácita); entretanto, para que isso ocorra, o instituto já deve ter se consumado, não podendo, ademais, prejudicar direito de terceiros (Código Civil, art. 191).

46 MEDINA, J. M. G. Código Civil Comentado [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022 – Comentários ao artigo 197 do Código Civil – disponível em https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/codigos/148837240/v5/page/RL-1.31%20. Acesso em 15/08/2023.

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4.2. A suspensão da prescrição na pendência de procedimento administrativo de resolução consensual de conflitos: a hipótese do art. 34 da Lei da Mediação

A Lei de Mediação traz duas hipóteses de suspensão da prescrição. A primeira tem natureza geral, prevista no art. 17, parágrafo único da Lei n. 13.140/2015. Já a segunda estabelece uma hipótese especial envolvendo a Administração Pública, prevista no art. 34 da aludida Lei.

O art. 17 da Lei de Mediação traz um critério para definir o marco inicial da mediação, que será a data a qual for marcada a reunião inaugural da mediação. Já o parágrafo único estabelece que o prazo prescricional ficará suspenso durante o transcurso do procedimento de mediação.

A hipótese prevista no art. 34 da Lei n. 13.140/2015 determina a suspensão do prazo prescricional quando instaurado um procedimento administrativo com o objetivo de resolver consensualmente o conflito.

Em ambos os casos, a lei se refere à mediação extrajudicial, ou seja, aquela realizada fora do Poder Judiciário. De acordo com Eduardo Talamini, a mediação a qual se refere o art. 16 da Lei n. 13.140/2015, tem natureza extrajudicial. Esse dispositivo regulamenta a suspensão processual quando a mediação extrajudicial corre em paralelo a um processo judicial. O autor destaca que a mediação extrajudicial é aquela “não realizada incidentalmente a um processo como consequência da provocação feita pelo próprio juiz, em sessão oportuna (CPC, art. 334) ou a qualquer tempo (CPC, art. 139, V)”47.

Nesse contexto, o artigo seguinte, que implementa a causa de suspensão do prazo prescricional, refere-se também à mediação extrajudicial. Até porque, no curso mediação judicial, a única prescrição que pode ocorrer é a intercorrente, cujo prazo não correrá enquanto forem praticados atos para a resolução do conflito pela mediação.

Também no que se refere a mediação envolvendo a Administração Pública, o artigo 34 da referida Lei está localizado na seção que trata das normas gerais sobre mediação realizada no âmbito da Administração Direta. O artigo 32, que inaugura essa seção, possibilita a criação de câmaras de prevenção e resolução de conflitos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, o que remete à mediação extrajudicial. O artigo 34 institui causa suspensiva da prescrição relativa a esta hipótese.

Nessa esteira, os artigos 17 e 34 da Lei de Mediação dispõem que a suspensão do prazo prescricional deve ocorrer nos casos em que a mediação extrajudicial houver sido efetivamente instaurada. No caso da mediação comum a

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47 TALAMINI, E. Suspensão do processo judicial para realização de mediação. Revista de Processo - REPRO, v. 277/2018, p. 565–584, mar. 2018.

partir do dia da realização da reunião inaugural, ou, na mediação envolvendo a Administração Pública, a partir da instauração do procedimento administrativo de mediação.

Entretanto, o legislador trouxe uma particularidade nos casos que envolvam o Poder Público. Isso porque o parágrafo primeiro do citado art. 34 da Lei de Mediação estabelece que, nesses casos, a mediação é considerada instaurada a partir do juízo de admissibilidade do órgão ou entidade pública, e, para o fim da suspensão do prazo prescricional, retroage à data da formalização do pedido.

Duas questões surgem: quem exerce o juízo de admissibilidade da mediação que envolve a Administração Pública? O que pode ser considerado pedido formalizado de resolução consensual do conflito?

Para responder à primeira pergunta, é necessário considerar se a mediação é instaurada diretamente no âmbito da Administração Pública sem processo judicial pendente, ou enquanto já corre um processo judicial. No primeiro caso, a mediação é instaurada perante o órgão da Administração Pública com atribuição para a realização da mediação. Para essa situação, o texto do artigo 34 da Lei n. 13.140/2015 é suficiente para concluir que o juízo de admissibilidade é realizado pela própria autoridade competente do Poder Público, como, por exemplo, por uma câmara de mediação existente dentro da estrutura do ente público.

A situação fica mais espinhosa quando existe um processo judicial em curso. Como já foi enfatizado no tópico antecedente, não é aconselhável (e alguns autores consideram até como ilegal), que a mediação seja realizada diretamente pela autoridade judicial, por possível violação à confidencialidade existente no procedimento de mediação. Assim, efetuado o pedido de mediação no processo judicial, o juiz deve delegar a atividade a um terceiro, seja dentro da estrutura do Poder Judiciário, seja para o órgão ou entidade do ente público com atribuição para realização da mediação.

Nesse caso, é possível que o juiz funcione como o intermediador do pedido de mediação, exercendo desde logo o juízo de admissibilidade. Isso porque a atividade de mediador não se inicia nesse momento, onde somente há a verificação dos requisitos para que seja instaurada a mediação. Aliás, conforme preceitua o artigo 3º do CPC, é dever do juiz promover a solução consensual do conflito. Não há qualquer prejuízo a confidencialidade nesse caso, desde que após a admissão da mediação, o juiz delegue a um terceiro o papel de mediador.

A problemática se aprofunda quando já existe um título executivo formado, mas a parte antes de iniciar a execução apresenta uma medida judicial não apta a interromper o prazo para o exercício da pretensão executória. Por exemplo, uma sentença coletiva proferida em uma ação proposta por um sindicato

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condenando o Estado a restituir algum desconto previdenciário ilegalmente efetuado em favor de determinada classe de servidores públicos, em que o sindicato ingressa com uma ação de exibição de documento sem protesto interruptivo. Durante o procedimento, o Estado coopera com o autor e apresenta os documentos solicitados. Tal fato pode levar a suspensão do prazo prescricional48?

Isso leva ao segundo questionamento acima formulado, a respeito da forma que toma o pedido realizado pela parte interessada na mediação. Quando há um pedido claro e direto formulado à uma câmara de mediação, não há maiores questionamentos. Nesse caso, sendo feito o juízo positivo de admissibilidade pela câmara, o prazo prescricional se suspenderá, com retroação para a data em que o pedido foi formulado.

Já quando o pedido é feito diretamente perante órgão jurisdicional, a situação pode não ser tão clara. Isso porque, muitas vezes, pode haver pedidos das partes provocando a cooperação da outra para auxiliar no desenrolar do processo, o que pode gerar dúvida se houve ou não um pedido de mediação.

Para que haja segurança nas relações jurídicas, o prazo para o exercício de uma pretensão, seja ela condenatória ou executória, deve ser claramente identificável pelas partes. Por isso, a interpretação das normas que suspendem, interrompem ou modificam o prazo prescricional deve ser restritiva. Não cabe ao judiciário realizar uma interpretação extensiva da norma que suspende o prazo prescricional para criar uma situação não imaginada pelo legislador, sob pena de causar instabilidade nas relações jurídicas, e incentivo a aventuras processuais com a criação de teses sem lastro legal que apenas servem para abarrotar o judiciário de processos. Além disso, essa situação deságua na violação da tripartição dos poderes, com o judiciário criando uma hipótese suspensiva da prescrição não prevista pelo legislador.

Nesse contexto, não pode ser interpretado como causa de suspensão da prescrição um mero pedido de suspensão processual formulado pelo executado para cooperar com o exequente na produção de determinada prova, como se um pedido de mediação fosse. Muito menos pode considerar que uma mediação extrajudicial seja instaurada de ofício pelo juiz, sem que haja pedido formulado pelas partes.

Os critérios estabelecidos na Lei de Mediação para a suspensão do prazo prescricional devem ser seguidos. Para que a mediação envolvendo a Administração Pública seja apta a suspender a prescrição, deve haver efetiva instauração de procedimento administrativo para a resolução consensual do conflito, que apenas será considerado instaurado com o juízo positivo de admissibilidade realizado, seja pela Administração Pública quando o pedido for diretamente

48 Esse exemplo será aprofundado em um caso prático analisado no próximo tópico.

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a ela formulado, seja pelo Juiz quando o pedido for formulado em comum acordo das partes perante uma autoridade judicial.

4.3. Entendimento do Tribunal de Justiça do Paraná sobre a suspensão do prazo prescricional previsto na Lei de Mediação (Lei n. 13.140/2015)

No final do ano de 2008, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato) ajuizou ação coletiva em desfavor do Estado do Paraná (proc. n. 3203-59.2008.8.16.0004), objetivando a suspensão da cobrança de contribuição previdenciária na alíquota de 14% incidente sobre os vencimentos que ultrapassassem o valor de R$ 1.200,00, bem como a repetição do indébito tributário, relativamente aos valores indevidamente descontados nos últimos cinco anos. O fundamento do pedido era a inconstitucionalidade da instituição de alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária dos servidores públicos, realizada pela Lei Estadual n. 12.398/98, por afronta ao disposto no artigo 150, IV, da Constituição Federal (proibição de tributo com efeito confiscatório).

Os pedidos foram julgados procedentes em primeiro grau de jurisdição e a decisão foi confirmada em grau de apelação. No acórdão, o tribunal de justiça entendeu que a instituição de alíquotas progressivas para contribuição previdenciária violava a regra do artigo 150, II e IV, da Constituição Federal. Determinou, assim, a restituição dos valores pagos a maior pelos substituídos do sindicato autor. As decisões transitaram em julgado em 08/04/2016.

Muito embora não tenha sido imposto à Fazenda Pública o cumprimento de obrigações de fazer, pois, ao tempo do julgamento, a lei impugnada já havia sido revogada pela Lei Estadual n. 17.435/2012, o APP-Sindicato ajuizou, em novembro/2016, com fundamento no artigo 536 do Código de Processo Civil, pedido para suposto cumprimento de obrigação dessa natureza (proc. n. 0008041-64.2016.8.16.0004), consistente no fornecimento das fichas financeiras de todos os substituídos, com o fim de aparelhar futuro cumprimento de sentença de obrigação de pagar.

O Estado do Paraná, por sua vez, apesar de não estar obrigado, por lei ou ordem judicial, forneceu a documentação requerida. No entanto, o APP-Sindicato não ficou satisfeito com o formato em que os dados foram apresentados e, por isso, pediu a complementação das informações por meio de base de dados (planilha). A Fazenda Pública prosseguiu cooperando e, em certo momento, ajustou com o autor pedido de suspensão da marcha processual, para fins de providenciar base de dados que atendesse às expectativas do Sindicato, bem como facilitasse o exame dos cálculos em futuras execuções.

A pretensão de sobrestamento do feito foi acolhida pelo juiz da causa, que consignou em sua decisão que o processo estava sendo suspenso pelo

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prazo de 60 dias para tratativas de acordo entre as partes. Após, vários substituídos se habilitaram no processo, com a pretensão de acesso aos documentos apresentados pelo Estado do Paraná, tendo o magistrado, na sequência, renovado, de ofício, a suspensão do processo, pelo prazo adicional de 90 dias.

Até o momento (08/2023), aliás, esse processo não foi concluído e, apesar disso, vários cumprimentos de sentença, buscando a repetição do indébito tributário, foram ajuizados pelos substituídos, individualmente ou em litisconsórcio. Muitos deles, após o transcurso do prazo de 5 anos, contados da data do trânsito em julgado da ação coletiva de conhecimento. Situação que compeliu a Fazenda Pública a apresentar impugnação, sob o fundamento da prescrição da pretensão executória, nos termos do decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no tema 877 de seus repetitivos49 e da súmula 150 do Supremo Tribunal Federal50.

Em primeiro grau de jurisdição, o Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba afastou a incidência do tema 880 dos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, porém, não acolheu a pretensão da Fazenda Pública de reconhecimento da prescrição da pretensão executória. Para chegar a tal conclusão, considerou que como o processo n. 0008041-64.2016.8.16.0004, no qual se pedia a exibição de fichas financeiras, havia sido suspenso para, segundo ele, tentativas de acordo entre as partes, com objetivo de resolução dos pagamentos devidos pelo executado, a fluência do prazo prescricional também teria sido suspensa, retornando a correr em 30/11/2021, com o fim das suspensões processuais. Desse modo, como entre o trânsito em julgado (08/04/2016) e a primeira suspensão (06/10/2020) haviam passado 4 anos e 6 meses, o prazo final para exercício da pretensão seria o dia 30/05/2022: 6 meses após o fim da suspensão (30/11/2021).

O Estado do Paraná interpôs recurso contra essa decisão, sustentando, na esteira do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, cristalizado no REsp n. 1670364 de relatoria da Min. Nancy Andrighi, que como a suspensão do processo para tratativas de acordo para entrega de documentos não está prevista entre as causas de suspensão do prazo prescricional, ela não é apta a impedir a sua fluência. Noutra frente, apesar de ter o sindicato formulado pedido de fornecimento de contracheques dos substituídos, para subsidiar o ajuizamento de cumprimento de sentença, advogou pela aplicação da tese principal do tema 880 dos repetitivos do STJ, pois o trânsito em julgado da ação de conhecimento deu-se em data posterior àquela fixada para aplicação da tese modulada (17/03/2016). Pediu, assim, o reconhecimento da prescrição e a consequente extinção do cumprimento de sentença.

49 STJ, Tema 877: O prazo prescricional para a execução individual é contado do trânsito em julgado da sentença coletiva, sendo desnecessária a providência de que trata o art. 94 da Lei n.8.078/90.

50 STF, Súmula 150: Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação.

Luiz Henrique
(orgS.) 382
Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo

O recurso foi distribuído para 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (Agravo de Instrumento n. 0022880-62.2023.8.16.0000). Em exame liminar, foi determinada a suspensão do processo, pois se entendeu, em análise não exauriente, que o caso reclamava a aplicação da tese principal do tema 880 dos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça51 e não a sua versão modulada52, tendo em vista a data do trânsito em julgado.

Todavia, no julgamento do recurso, a Câmara divergiu, tendo prevalecido a conclusão no sentido da não ocorrência da prescrição, pois, segundo a ótica da maioria, se aplicaria ao caso as disposições da Lei n. 13.140/2015, notadamente o disposto nos artigos 17 e 34.

No voto vencedor, o relator afirmou que, muito embora a suspensão do processo convencionada pelas partes não seja causa suspensiva da prescrição prevista no Código Civil, a Lei n. 13.140/2015 tem aplicabilidade aos processos judiciais (arts. 24 a 29) e que, por isso, por força do disposto no parágrafo único de seu artigo 17 e no caput de seu artigo 34, a fluência do prazo prescricional foi suspensa durante o período em que o processo esteve suspenso. Isso porque, segundo ele, a conduta do Estado do Paraná de anunciar, nos autos do pedido de exibição de documentos, “a possibilidade de uma solução que envolvesse também valores (execução global) e não somente relativa à obrigação de fazer (fornecimento de fichas financeira)”, como forma de justificar seu pedido de suspensão do processo, se equipararia “à instauração do procedimento administrativo para a resolução consensual do conflito” e a admissibilidade da mediação, nos termos artigo 34, caput e §1º, da Lei n. 13.140/2015. Assim, no caso, a pretensão executória não estaria prescrita.

51 STJ, Tema 880 (principal): “A partir da vigência da Lei n. 10.444/2002, que incluiu o § 1º ao art. 604, dispositivo que foi sucedido, conforme Lei n. 11.232/2005, pelo art. 475-B, §§ 1º e 2º, todos do CPC/1973, não é mais imprescindível, para acertamento da conta exequenda, a juntada de documentos pela parte executada, ainda que esteja pendente de envio eventual documentação requisitada pelo juízo ao devedor, que não tenha havido dita requisição, por qualquer motivo, ou mesmo que a documentação tenha sido encaminhada de forma incompleta pelo executado. Assim, sob a égide do diploma legal citado e para as decisões transitadas em julgado sob a vigência do CPC/1973, a demora, independentemente do seu motivo, para juntada das fichas financeiras ou outros documentos correlatos aos autos da execução, ainda que sob a responsabilidade do devedor ente público, não obsta o transcurso do lapso prescricional executório, nos termos da Súmula 150/STF”.

52 STJ, Tema 880 (modulação): “Os efeitos decorrentes dos comandos contidos neste acórdão ficam modulados a partir de 30/6/2017, com fundamento no § 3º do art. 927 do CPC/2015. Resta firmado, com essa modulação, que, para as decisões transitadas em julgado até 17/3/2016 (quando ainda em vigor o CPC/1973) e que estejam dependendo, para ingressar com o pedido de cumprimento de sentença, do fornecimento pelo executado de documentos ou fichas financeiras (tenha tal providência sido deferida, ou não, pelo juiz ou esteja, ou não, completa a documentação), o prazo prescricional de 5 anos para propositura da execução ou cumprimento de sentença conta-se a partir de 30/6/2017.” (acórdão que acolheu parcialmente os embargos de declaração, publicado no DJe de 22/06/2018).

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A decisão, contudo, não foi unânime. Em voto divergente, o Desembargador Renato Lopes de Paiva assentou, naquilo que interessa ao presente estudo, que as disposições da Lei n. 13.140/2015 não seriam aplicáveis ao caso em julgamento. Segundo ele, o pedido de suspensão processual, requerido no pedido de exibição de documentos, não se enquadraria na hipótese de suspensão do prazo prescricional prevista no artigo 34, pois o juízo de admissibilidade do suposto pedido de resolução de conflitos não teria sido realizado na forma das disposições regulamentares editadas pelo ente federativo, conforme determina a referida lei. Até mesmo porque, conforme o referido Desembargador, a hipótese deve ser interpretada restritivamente, na esteira do entendimento do Superior Tribunal de Justiça53.

Além disso, para ele, também não teria aplicabilidade a regra do parágrafo único do artigo 17 da Lei de Mediação. Isso porque, para essa hipótese, “a suspensão da prescrição está subordinada à realização de mediação, conceituada pela referida lei como “atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório”. Situação não observada “no pedido de suspensão processual requerido, de comum acordo”.

Assim, com o afastamento da aplicabilidade das regras da Lei de Mediação e na ausência de outras causas suspensivas ou interruptivas da prescrição, o Desembargador Renato reconheceu que a pretensão executória estava prescrita, com amparo no estabelecido na súmula n. 150 do Supremo Tribunal Federal. Esse julgamento revela que a aplicação das disposições da Lei n. 13.140/2015 ainda suscitam muitas dúvidas nos operadores do direito, principalmente em relação à interpretação das regras destinadas a regular os conflitos envolvendo a Administração Pública e o necessário respeito ao pacto federativo e aos princípios que regem as suas relações (CF, art. 37).

CONCLUSÃO

No decorrer do texto, demonstrou-se que a adoção do modelo de Justiça Multiportas é norma fundamental do processo civil e, portanto, deve ser incentivada, não apenas pelo Poder Judiciário, mas por todos os envolvidos no sistema de justiça, como advogados, membros do Ministério Público e defensores públicos.

Demais disso, dentre os diversos métodos de solução adequada dos conflitos, elegeu-se a mediação como objeto de estudo. Isso porque a existência de regulamentação específica (Lei n. 13.140/2015) impactou diretamente no exercício das pretensões, com a previsão de novas causas suspensivas do prazo

53 STJ, 3ªT, AgInt no AREsp n. 1.248.140/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, J. 10.08.2020; e, STJ, 3ªT, REsp n. 2.020.818/MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, J. 14.02.2023.

Luiz Henrique Sormani BarBugiani / Fernando aLcantara caSteLo (orgS.) 384

prescricional, de modo a ampliar o rol taxativo, anteriormente restrito às hipóteses regulamentadas pelo Código Civil.

Nesse contexto, à luz dos princípios que regem a Administração Pública, como publicidade e legalidade, e os inerentes ao procedimento de mediação, como consensualismo e confidencialidade, buscou-se encontrar respostas sobre quem seria a autoridade ou o órgão competente para realização do juízo de admissibilidade da mediação que envolve a Administração Pública. Objetivou-se, também, delimitar a forma do pedido de resolução consensual do conflito, levando em consideração as disposições dos artigos 17 e 34 da Lei n. 13.140/2015. Nessa linha de investigação, concluiu-se que a mediação envolvendo a Administração Pública somente é apta a suspender a prescrição se houver a efetiva instauração de procedimento administrativo para a resolução consensual do conflito. Situação que apenas ocorrerá após o juízo positivo de admissibilidade da mediação, realizado pela Administração Pública, quando o pedido for diretamente a ela formulado, ou pelo Juiz da causa, quando o pedido for formulado em comum acordo perante uma autoridade judicial.

Por outro lado, rememorou-se que a aplicação desse regramento pode suscitar dúvidas e até entendimento dissonante daquele defendido neste trabalho. No Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, a 6ª Câmara Cível, ao analisar caso envolvendo a suspensão de processo para suposta tratativa de acordo, entendeu pela aplicação das regras dos artigos 17 e 34 da Lei n. 13.140/2015. Segundo a ótica da maioria da Câmara, a mediação poderia ser presidida pelo juiz da causa e as manifestações produzidas pelas partes se equiparariam “à instauração do procedimento administrativo para a resolução consensual do conflito” e admissibilidade da mediação, nos termos artigo 34, caput e §1º, da Lei n. 13.140/2015, produzindo a suspensão do prazo prescricional.

A decisão, contudo, não é definitiva e as discussões ainda precisam avançar, notadamente sobre a extensão dos poderes do juiz para condução do procedimento de mediação, bem como os efeitos daí decorrentes. Tal situação revela a importância dos debates sobre o tema, na busca de uma solução que seja capaz de aliar os benefícios da adoção, pelos entes públicos, das diversas portas da justiça, sem aumentar a complexidade das regras atualmente existentes, nem comprometer a segurança jurídica, que é componente essencial ao sistema de justiça.

Por fim, buscou-se, com este estudo, fomentar as discussões sobre a utilização da mediação como forma de solução de conflitos envolvendo a Fazenda Pública e seus impactos na fluência do prazo prescricional, bem como as consequências que as interpretações judiciais podem ocasionar ao erário e à administração da justiça.

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“Na obra são realizadas reflexões sobre temas como (a) os direitos das pessoas idosas e com deficiências e a responsabilidade dos entes federativos no âmbito do sistema único de assistência social; (b) o tratamento de dados pessoais pelo poder público, notadamente no âmbito das políticas públicas na área da saúde; (c) a simplificação da linguagem na contemporaneidade como forma de viabilizar o acesso à justiça; (d) a arbitragem e a Lei de Licitações; e, (e) a dispensa de licitação em razão do valor e o conceito de unidade gestora.

Ainda, são lançadas importantes discussões sobre (f) o feminicídio e as políticas públicas para seu enfrentamento; (g) o federalismo fiscal brasileiro; (h) os processos estruturais e a efetivação do direito à saúde; (i) o processo de execução fiscal em face de empresas em recuperação judicial; (j) o preço das obras públicas financiadas com recursos internacionais; (k) o acesso a cargos públicos efetivos e os efeitos funcionais decorrentes de anteriores vínculos precários com a Administração Pública; e, (l) a interpretação, pelos Tribunais Superiores, da Lei de Improbidade Administrativa, após as reformas de 2021.

Fechando a obra, são trazidos comentários sobre a obra Why They Do It: Inside the Mind of the WhiteCollar Criminal, de Eugene Soltes, bem como reflexões sobre (n) o mandado de injunção; (o) a questão constitucional como questão prejudicial no processo; (p) a importância da Advocacia Pública municipal; (q) o Amicus Curiae como instrumento de legitimação democrática dos julgamentos; (r) a delimitação da ratio decidendi nos recursos extraordinários; (s) os instrumentos de coletivização parcial e cooperação judiciária nos juizados especiais da Fazenda Pública; e, (t) a mediação e seus efeitos em relação à pretensão executória contra a Fazenda Pública.”

Ministro André Mendonça

Alexandre Barbosa da Silva

Alice Silveira de Medeiros

André Vitor Quirino dos Santos

Audrey Silva Kyt

Beatriz Spindler de Oliveira Leite

Bruno Rabelo dos Santos

Cristina Bichels Leitão

Diogo Luiz Cordeiro Rodrigues

Eduardo de Oliveira Leite

Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro

AUTORES

Fernando Alcantara Castelo

Gustavo Henrique Ramos Fadda

Hamilton Bonatto

Isabela Cristine Martins Ramos

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Joe Tennyson Velo

Karina Locks Passos

Lincon Coelho de Souza

Luiz Eduardo Gunther

Luiz Guilherme Marinoni

Luiz Henrique Sormani Barbugiani

Marcelo Alberto Gorski Borges

Marco Antônio César Villatore

Mateus Oliveira de Castro

Ramon Grenteski Ouais Santos

Thiago Simões Pessoa

Vicente Martins Prata Braga

Vitor Henrique Malikoski

Wilson Calmon Alves Filho

ISBN

293254 786559 9
9786559293254

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