relações

Page 1

artaffair

magazine

#6 RELAÇÕES



artaffair magazine edição nº 6 - RELAÇÕES Janeiro/Fevereiro 2011

índice Critica de arte MARLENA VINHA 03 Fotografia TIAGO XAVIER 05 Música BOWERBIRDS 08 3D MUÑOZ VELAZQUEZ 09 Ilustração TERESA CAVALHEIRO 11 Cinema IN THE MOOD FOR LOVE 13 Multimédia BRUNO SOARES 15 Literatura MEMORIAL DO CONVENTO 18 Moda THE 50’S 20 Artes plásticas JULIAN BEEVER 21 Destinos CAPETOWN 24 Crónica RELAÇÕES 25

l a i r o t i d e

Relações, relações. Relação é uma palavra complicada, cheia de significados e de duplos sentidos, de segredos, de vontades e de medos. Uma relação nunca é igual a outra, mesmo que composta por duas pessoas em situação semelhante. Assim, também a nossa revista se mostra hoje desigual na sua composição, mais uma vez, aproveitando a época para frisar que são dificeis estas relações de página, espaço, ocupação e libertação das ideias. Na minha experiência nunca vivi duas relações iguais. Do mesmo modo, nunca dancei duas músicas da mesma maneira e nunca editei duas revistas iguais. Uma relação é uma perpétua vontade de ir modificando e melhorando, aprimorando ou fazendo crescer uma ligação entre dois seres (vivos ou inanimados). Bem sei que por vezes é essa constante busca por mais e mais que nos leva a finais menos felizes em que as relações, quer de amizade, amor ou até puro companheirismo, acabam. Nem todas as relações resultam, e por vezes levamos muito tempo a compreender onde foi cometido o erro que minou sua existência. É importante lutar para preservar o máximo de relações possíveis, quer seja com o colega de trabalho, com os primos afastados, os irmãos mais novos ou os amigos que mudaram de cidade. Eu luto diáriamene para preservar a minha relação, e a de todos os meus colegas, com a artaffair. E é, também diariamente, uma luta bem travada. A todos eles um imenso muito obrigado.

Ana Pastoria

Contribuiram para a criação deste número: Ana Pastoria - direcção de arte, revisão editorial e design; Maria Matilde Marques - crónica e destinos; Rita Roque - crítica de arte; Daniela Rodrigues - fotografia; André Tomé - música; André Lages e André Abrantes - 3D; José Carlos Pereira - multimédia; Miguel de Sá - cinema; Miguel Martins - ilustração; Raquel Lobo - literatura; Diana Vinha - moda e Joana Ferreira - artes plásticas.


CRITICA DE ARTE

>03<


por Rita Roque

→←

A pintura abre uma nova percepção do mundo, que engendra várias possibilidades de imaginar o modo como encaramos o mesmo, reexaminando quem nós somos. Relaciona assim, a arte com a vida, sem no entanto ter um propósito didáctico de dizer coisas aos que contemplam, antes trata de implicar fisicamente o espectador de maneira que emerjam as imaginações, estimulando as pessoas a integrar a arte na própria vida, para si. É certamente, uma aventura intelectual tão rica em conteúdo como em referência e desenvolvimentos, tão forte pelos seus desafios e recursos, como pelos seus enigmas. Ao pensar nesta relação emergente e cada vez menos perceptível de fronteiras relacionais entre vida e arte, apresento aos nossos leitores inquietos e ávidos de curiosidade o convite à contemplação de um trabalho sedutor e íntimo que leva ao limite físico e técnico a performance entre pintura e corpo. Em banhos de aguarela, uma pintura banhada por partículas do corpo intitulada Dry Cleaning, é um dos interessantes trabalhos apresentados por Marlene Vinha (n. Penafiel, 1979) sob uma índole íntima e subjectiva, que resulta da ideia de manutenção do corpo, na criação de um conjunto de pinturas que surgiram oriundas da água usada após o banho da própria artista, isto é aguarela do banho sobre papel. Se o corpo é interior, físico e orgânico, vivissecado de dentro e de fora, ele é por isso, ou para isso pretexto para o exercício da pintura. Trabalhar o corpo é, ao mesmo tempo fornecer uma definição de “pintura”, sabendo que aquele que se representa a si mesmo prolonga o caos e a confusão que nos habita. Será neste sentido que a artista nos apresenta uma relação entre o corpo e os objectos representados numa articulação com o suporte, ainda que de forma menos directa. Esta relação irónica de índole performativa actua em dois sentidos, a saber, um como acto e outro como imagem resultante. Por outro lado, em cada acto resultante, isto é, em cada pintura uma história uma situação, numa válida amálgama de cores ternas e íntimas por entre memórias do tratamento do

CRITICA DE ARTE

MARLENE VINHA banhar a relação corpo. Fenomenologicamente minimal, a preeminência visual destas pinturas agem segundo uma serialidade, podemos portanto considerar que o meio criativo das várias representações são idênticas, embora o conteúdo físico H20 e a própria mensagem seja no entanto, totalmente distintos, numa encenação ilusionística de realidade táctil que converge significacionalmente, abrindo espaço à crítica à realidade física, ideológica, social e sensorial de cada imagem representada. Note-se nesse sentido, que o corpo age como presença plástica de atributos, mas é, além disso, um motivo de banalização cultural, veículo de conteúdos afectivos expropriados pela cultura de massas, ou ainda pelos produtos dessa mesma banalização em forma de esponjas ou sabonetes numa combinação alternada de inventário quotidiano. Efectivamente, este trabalho exibe uma orgânica que se mostra enquanto corporeidade, elástica em termos matéricos na presença física da artista, revelando a importância do que não vemos, através das reacções químicas destes materiais no aumento da dimensão matéria, e mais uma vez paradoxalmente reforçando a sua dimensão invisível. Dry Cleaning é da ordem do não-dito, sabendo que no centro do seu paradigma estas personagens inanimadas são sujeitas a um capricho despótico. Destituídas de carácter humano, as figuras assemelham-se a modelos de memória comum. Há nesta pintura um constante diálogo representacional com o corpo enquanto privilegiado, agenciamento reforçado por imagens tão esclarecedoras, dir-se-ia direccionadas, numa teatralidade exterior ligada a um teatro interior. A visão de Marlene Vinha possui a natureza complexa da generosidade e do rigor da atenção ao pormenor, conferindo-lhe uma vertente quase pedagógica crua que a torna única. O veículo da linguagem é neste sentido o desenho, num trabalho perante um olhar educado e treinado, que se reflecte na clareza de traço carregado de significados de tão enganadora simplicidade, tal como uma nuvem por entre a luz do sol.

>04<


FOTOGRAFIA >05<

TIAGO XAVIER corpos, emoções, relações


FOTOGRAFIA http://www.tiagoxavier.com/

>06<


FOTOGRAFIA

>07<


por André Tomé

→←

Aproximadamente quinze mil quilómetros separam as vastas florestas de carvalhos de Raleigh, na Carolina do Norte, e as densas florestas tropicais espalhadas pela Nova Guiné e Austrália. Apesar da longa distântica haverá, nesses ecossistemas tão distintos, algo que os relaciona? Música e pássaros parecem concordar que sim. Bowerbirds (pássaros-cetim) são uma espécie de ave endémica da Austrália e Nova Guiné, cuja particularidade mais notável é o seu ritual de corte e acasalamento. O macho constrói estruturas feitas de ramos adornadas por vários objectos coloridos para cativar as fêmeas que as visitam. Bowerbirds são Phill Moore e Beth Tacular, hoje sediados em Raleigh, que se conheceram em 2005, e em 2006 gravaram o primeiro de três discos, Danger at Sea, prelúdio de Hymns for the Dark Horse (2008) e Upper Air (2009) que têm vindo a consagrar estes pássaros de Raleigh como referências de destaque na pop-folk americana. Tal como as aves que os inspiraram, a união dos dois terá sido em parte influenciada pela arte de cada um. Beth, como artista plástica, e Phill como músico e observador de pássaros. Foi assim, precisamente a observar pássaros, algures num bosque perdido da Carolina do Norte, que estes Bowerbirds começaram por criar os seus primeiros sons, inspirados pelo meio que os rodeava. Beth, aprendeu sozinha a tocar acordeão e tambor de marcha, e com a ajuda de Mark Paulson, começaram a dar concertos pelo país, tocando em pequenos bares e cafés, esquinas de rua, acampando à luz das estrelas em demais bosques e florestas, como que a a música que produziam fosse a extensão crua da voz desse meio natural do qual Phil

MÚSICA

BOWERBIRDS pássaros-cetim

e Beth eram interlocutores privilegiados. É essa pureza, esse som nativo, quase sempre acústico, que os Bowerbirds conseguem produzir. À primeira vista toda esta libertinagem e comunhão com a natureza (In Our Talons), poderá ser ingenuamente interpretada como um produto de um universo hippie perdido, mas há na música e na postura dos Bowerbirds mais do que isso; nega-se um exagero frenético, e uma vontade expressa de vender uma visão extremista do mundo natural, apelando-se, ao invés, ao canto das coisas simples (Dark Horse), ao resultado de uma relação com o mundo natural capaz de produzir beleza e magia (Bur Oak). E é nesse universo verde e cheio de vida que se cantam as relações humanas, o amor de Phill e Beth, imaginamos, sempre com uma aura bucólica a pairar sobre o sentimento carregado de desejo, como quando Phill canta em Hooves “There is no one more beautiful than you/ And you’re the kindling that burns below my heart”. Estudos recentes demonstram que os pássaros-cetim são os primeiros animais, além dos humanos, capazes de criar espaços capazes de alterar perspectivas visuais no olhar de outros observadores, através da construção da tal estrutura de corte. A fêmea, fica assim, com a impressão de que tudo o que está dentro desta é maior do que realmente é. De forma semelhante funciona a música dos Bowerbirds. Para se ouvir em dias de chuva, de retiro espiritual numa tarde de Inverno em frente a uma lareira a crepitar, os sons saídos da guitarra acústica de Phil, do acordeão de Beth e do violino de Mark, levar-nos-ão para longe, para outros espaços e lugares de paisagens melódicas.

>08<


3D

>09<

MUÑOZ VELAZQUEZ a relação 2D e 3D por André Lages e André Abrantes

→←

David Muñoz Velazquez, nascido em Espanha, é um criativo conhecido pelos seus trabalhos de arte conceptual, modelação e texturização tanto a n+ivel de ilustração 2D como 3D. Vamos conhecer um pouco mais deste artista que já chegou onde muitos gostavam de chegar..

Sempre sonhou ser artista ou foi algo que lhe apareceu no caminho? Penso que sempre quis fazer algo relacionado com imagem ou som, costumo passar muito tempo a ouvir música, mais até do que a desenhar, estive inclusive numa banda com uns colegas da escola, era algo que gostava tanto como arte gráfica. Sempre foi o meu desejo fazer algo interessante como trabalho e nunca me importei muito com a opinião dos outros, no caso da minha família, felizmente fui apoiado. Tenho que referir que a minha mãe foi um factor muito importante na minha evolução como artista, ela era nova e tinha a mente aberta, gostava de jogar jogos como eu, davam-me toda a liberdade e motivação para criar e partilhar. Tive muita sorte em ter uma família que me encorajava a ten-

tar fazer aquilo que me deixava feliz. Esse encorajamento foi muito importante para conseguir saltar sobre algumas frustrações e dúvidas. Nunca tive ideia do que seria mais interessante em fazer uma carreira, talvez porque ignorei a maior parte das possibilidades, o que eu queria fazer tinha de ser algo vindo da minha inspiração. Quando tinha 15 anos entrei numa escola de Design Gráfico e tive a possibilidade de praticar desenho, escultura, cor, fotografia e um pouco de computadores, aprendi muito pouco sobre este último, mas adorei. Nesta altura fazia as minhas próprias capas para cds de bandas de que gostava usando o Photoshop e o Corel Draw. Durante esses anos aprendi algo que nunca me tinha surgido por si, aprendi a ter disciplina no meu trabalho e que era fundamental tê-la no processo de criar e acabar algo, tal como a noção do tempo e esforço requerido para os meus trabalhos. Sabemos que uma das suas grandes fontes de inspiração são as personagens de desenhos animados e filmes da sua infância. Foram eles que cresceram conceptualmente e se tornaram no “Icedude” e no “Jamböne”, por exemplo? Bem, nunca tive uma ideia formada, acredito que foi algo que surgiu naturalmente, podem não ser tão diferentes das imagens que tive de infância, provavelmente são muito parecidos mas um pouco mais realistas visualmente falando, ou seja, mais reais. Ainda tenho o mesmo sentimento quando vejo algumas dessas personagens. Algo muito importante é o gosto pessoal para estilos e conceitos, se gostares de fantasia vais ter um sentimento diferente quando vês algumas séries de infância. Para mim é muito importante ter esta sensação transmitida por uma imagem, eu uso essa sensação para as minhas criações, é subtil e por vezes um processo confuso mas é muito bom quando acontece. Não sei se é


a melhor maneira de ver as coisas, mas é a maneira que eu gosto.

Grande parte do seu trabalho em personagens é a título pessoal... Vê as suas personagens como criações completas? Ou gostava de as ver “sair do render” e ganharem vida num jogo ou filme? Durante o processo de pré-produção de um projecto que eu já trabalhei para um jogo, tive de criar personagens durante alguns meses, apenas tive algumas bases, o que me deu bastante liberdade para os desenhar como eu queria. Foi bastante divertido, desafiante mas mais difícil do que estava a espera, foi a primeira vez que fiz isso. Infelizmente o projecto foi cancelado mas alguns dos personagens tornaram-se modelos 3D, foi incrível ver os meus desenhos contextualizados para o mundo 3D por um artista excelente. Foi uma grande experiência que tive. Tem alguma sugestão a deixar aos novos artistas 3D? Eu penso que a maioria dos artistas independentes sabe mais ou menos o que fazer. A minha sugestão seria: escolham aquilo que realmente gostariam de fazer como especialização dentro de todas as áreas do 3D. Maior parte das vezes existe uma capacidade nata mais forte, e é essa que se deve explorar. Obviamente que existe uma enorme quantidade de outras matérias sobre o qual é necessário ter um conhecimento básico, especialmente aquelas que estão mais relacionadas com a área em que se trabalha. Ter um conhecimento genérico de maioria

3D

Em algumas personagens suas, demora-se a perceber se são 2D ou 3D. Ou seja: nota-se no seu trabalho que não tens a preocupação em fazer realçar as técnicas usadas no resultado final. Porquê? Acredito que depende da inspiração que tenho para a criação, da complexidade da imagem, caso seja um retrato ou apenas uma imagem, se tem ou não um cenário. Na maior parte das vezes apenas tenho uma ideia muito pequena, pessoalmente, prefiro criar baseado na improvisação. Por vezes faço um desenho simples se pretendo fazer uma composição específica. Basicamente, se tenho de criar uma personagem gosto do começar do abstracto, se não tenho algo por onde agarrar, faço formas e junto cores até surgir algo interessante. É divertido fazer o mesmo com escultura digital, mais rápido e livre. Costumo fazer e refazer, passo muito tempo até ver algo interessante e tenho muitas variações do mesmo trabalho.

das áreas específicas do 3D é preponderante para criar uma imagem final em termos de ilustração. É sempre importante conhecer as várias técnicas envolvidas, como a modelação de superfícies, escultura digital (zbrush), texturização com software 2D e 3D, shading, iluminação, etc... Alguns deste campos são mais técnicos, outros mais artísticos, mas é sempre preponderante saber conjugar os dois mundos. Procurarem livros e tutoriais em vídeo (que são óptimos). Aulas privadas ou académicas podem ser muitas vezes processos de aprendizagem tão completos como um emprego na área, especialmente para aqueles que estão a começar e querem aprender de forma devida e rápida. O problema é que estes cursos podem ser bastante caros e em alguns casos o ensino pode não ser o melhor. Decidir uma escola a frequentar deve ter como base a opinião de alguém que esteja na indústria. Será certamente um bom investimento, pois os resultados serão os melhores em todos os sentidos. Nunca esquecer que o 3D é apenas uma ferramenta, as pessoas acabam por aprender as técnicas como em qualquer outra ferramenta ou metodologia. E claro, a sugestão de sempre, pratiquem muito! Não se incomodem com as pessoas que vos dizem que estão a perder tempo ou simplesmente não gostam do estão a fazer, porque se vos dá prazer, com prática e tempo os resultados que procuram iram aparecer.

>10<


ILUSTRAÇÃO >11<

TERESA CAVALHEIRO relações animais


ILUSTRAÇÃO http://teresacavalheiro.blogspot.com

>12<


ILUSTRAÇÃO

>13<


por Miguel de Sá

“- Estas revistas são suas? - Sim, são do meu marido.

→←

- Ele sabe ler japonês? - Um bocadinho. O patrão é japonês. - Como devo tratá-la? - O nome do meu marido é Chan.”.

Logo no início de “In Mood for Love” somos confrontados com uma cultura diferente, embora já com laivos de ocidentalização, não estivéssemos na Hong Kong de 1962. A Sra. Chan e Sr. Chow estão a mudar-se de casa no mesmo dia, tornando-se vizinhos. A mulher do Sr. Chow trabalha, frequentemente, até tarde e, por vezes, tem de viajar, tal como acontece com o marido da Sra. Chan – um homem de negócios que passa semanas longe da mulher. É neste ambiente residencial pouco confortável, pouco espaçoso e de pouca privacidade que acontece a troca olhares entre as duas personagens principais. Tudo começa quando os dois vão comprar massa e se cruzam no caminho. As carências deixadas pelos cônjuges levam a que, a pouco e pouco, se aproximem: É o início de uma simples história de amor. Ficará surpreendido pela graciosidade deste filme. Não estou a falar de como as pessoas são extremamente simpáticas e educadas (o que chega a ser um tanto exagerado para os olhos dos espectadores), mas da vida quotidiana, que é representada de forma elegante e agradável, mesmo em cenários degradados. Chega a ser sensual quando nos deparamos com a Sra. Chan. Se deixarmos, perdemo-nos em cada ima-

CINEMA

INum THE MOOD FOR LOVE filme de Kar Wai Wong gem, nos espaços ricos de objectos – cheios de detalhes, desde as paredes riscadas aos padrões dos vestidos. Perdemo-nos até nas refracções das luzes nas paredes, mas, sempre, sem distrairmos o olhar do rumo que a história toma. Este é, também, um filme marcado pela excelente audácia do ponto vista do espectador: nos movimentos harmoniosos (ou brutos, em alguns casos), no espaço que rodeia a acção, na interacção das personagens, a emoção sentida é redobrada. Como espectador, sinto-me curioso e bisbilhoteiro a espreitar pelas janelas, ou pelos cantos, como estivesse escondido por de trás de uma planta ou de um candeeiro a fazer juízes de valor sobre o que está a acontecer. Pelo contrário, ao longo do filme, nunca conseguimos ver os rostos dos pares “traídos” pelas principais personagens. É como se quisessem evitar que tomássemos juízes de valor sobre eles. De certa forma, nem sentimos a falta deste julgamento. Poderia até sentir-se a falta de alguns diálogos, mas isso não acontece, porque a privação é preenchida com imagens e música que embala com fascinação e dramatismo o filme. “In Mood For Love” é uma simples história de amor, escrita e realizada por Kar Wai Wong, repleta de nostalgia e de romance e graduada com mais de 30 prémios, entre os quais dois de Cannes. O filme tem uma magia e um sabor asiático que o torna único e é, por isso, que é ainda mais difícil acreditar que, supostamente, deveria ser menos romântico e mais sensualmente provocante. Até porque, o título inicial era “Summer in Beijing”. A justificação de Kar Wai Wong?: “Quando começo as filmagens, vou ver a história da mesma maneira? Acho que não!”.

>14<


MULTIMÉDIA

BRUNO SOARES corpus ex machina por José Carlos Pereira

→←

exerto - totalidade da entrevista em http://www.artaffairmag-pt.blogspot.com

>15<

Bruno Soares é um jovem estudante trabalhador, realizador, animador e sobretudo sonhador. Ganhou, juntamente com Bruno Gonçalves e Wilson de andrade o prémio de Melhor animação pela Universidade Lusófuna de Lisboa e lançou a sua carreira ao mundo. É inspirador um jovem tornar-se um jovem talento, e queremos ser os primeiros a entrevistá-lo. Bruno, confesso que ainda estou sem fôlego após ter revisto mais uma vez a curta-metragem animada em stop-motion da qual fizeste parte da equipa de produção e realização, juntamente com Bruno Gonçalves e Wilson de Almeida co-produtores/realizadores.

Para os leitores que ainda não estão a par deste tipo de animação pedia-te uma breve iluminação e que explicasses em que sentido é que esta técnica funciona em benefício da tua arte. Antes de mais, muito obrigado pelo elogio e pela oportunidade que a Art Affair nos proporcionou em divulgar um pouco melhor este tipo de arte ainda embrionária no conhecimento de muitos portugueses. A técnica utilizada foi simplesmente a técnica de Stop Motion, ou seja, a criação da ilusão de movimento ao se sobrepor diversas fotografias em simultâneo criando desta forma um video, uma animação. Sendo um pouco mais específico, o nome técnico que foi usado é a pixilação, porque o elemento que é capturado é uma pessoa ou um objecto. Dou como exemplo: fazer com que uma maçã possa “andar” ou “fugir” e finalmente ser saboreada, fazendo-a desaparecer em sucessivas dentadas dadas por uma boca

invisível. Isto é stop motion, é imaginação, ilusão, é arte. É, portanto, uma técnica do cinema de animação que nos permite usar, sem grandes custos, objectos do nosso quotidiano e, usando a nossa criatividade, criar movimentos absurdos ou impossíveis. No que me diz respeito, contribuiu de forma peculiar, na medida em que, podendo utilizar o corpo como elemento da animação e transformá-lo numa mensagem, abriu-me a mente para as inúmeras hipóteses que tenho de experienciar a própria animação, a minha relação com o espaço e ambiente que vivencio quotidianamente e na forma de transmição de ideias ou sentimentos de uma forma simples. Percebendo agora a linguagem com que comunicas em “Corpus Ex Machina” pergunto-te que mensagem querem que seja ouvida, ou até, sentida? O propósito da curta-metragem é que a mensagem seja intrínseca a cada pessoa, que cada um a experencie de forma diferente ao visualizá-la. O nosso principal objectivo não é que se perceba mas que se sinta, que se oiça, e que não se fique indiferente ao acabar de a ver. Simplificando, que cada pessoa a individualize em função das suas sensibilidades e experiência de vida. Na questão anterior atrevi-me a usar o sentimento como algo que a curta nos toca ou quer tocar, pois reconheço que criaram uma envolvência bastante vincada quer visualmente, quer sonoramente. Fala-nos nestes elementos e de que forma os tornaram tão humanos e máquina ao mesmo tempo. Partimos de uma característica que foi a da proximidade, ou seja, inspirámo-nos nas obras da artista Hannah Villiger e pensámos de que forma é que a sua obra nos poderia dar uma luz para ser relacionada


MULTIMÉDIA com o mundo actual. E a principal ideia que nos veio à mente foi a de o nosso corpo estar preso dentro de uma máquina, ou ser ele mesmo a máquina. E esse foi o nosso objectivo ao construir a curta-metragem. Muitos de nós devido a diversas situações que temos de viver diáriamente, tais como o stress, entre outros, agimos por vezes de forma mais fria, mais inhumana, mais mecânica. E por vezes temos de parar, retomar o fôlego, voltar-mos a ser humanos outra vez e constatar que, se fizer-mos uma pausa para reflectir nas acções que tomámos, o que tivermos de enfrentar daí a diante vai-nos correr de forma um pouco melhor e por uma perspectiva diferente. O que gostariamos é que as pessoas se reconhecessem um pouco neste stress que a curta provoca, nesta aflição/sufoco e na extrema necessidade da pausa. Humano e máquina, como sabes o tema desta nossa edição é: “Relações”, tal como vocês o abordam em “Corpus Ex Machina” não é verdade? De que forma é que acreditas na multimédia como potência para levantar questões tão delicadas e no entanto tão necessárias não só a nós no nosso pequeno círculo como toda a humanidade? Exactamente. Tal como nós na curta-metragem servimo-nos da multimédia para transmitir-mos a ideia de relação humano/máquina, esta veio facilitar à sociedade uma melhor transmissão/aceitação de ideias e mensagens. Enquanto que pelo diálogo nem sempre se consegue transmitir ou fazer passar um objectivo, a multimédia veio servir um pouco para colmatar

esta “pequena” lacuna – não sendo restrito a este caso como é lógico – mas proporcionou um outro tipo de relação pessoal, uma melhor forma de comunicação que está a ser usada incansávelmente e já se tornou imprescindível nos tempos que correm. Sei que és português no mundo das artes e da multimédia e sei também que a tua especialidade é a animação. Peço-te que partilhes a tua experiência tendo esse estatuto neste meio, se possível dando atenção aos recursos/ ensino, apoios, competitividade. Abreviando: Enquanto que um realizador de cinema português ainda tem a possibilidade de poder ser reconhecido por algumas pessoas na nossa sociedade, um realizador de cinema de animação é simplesmente desconhecido. Não se entenda que o que se preze é o protagonismo, nada disso, mas, ao invés, é que ainda é escassa a informação que é difundida pelos media portugueses sobre a área da animação. Nomes sonantes como José Miguel Ribeiro, Pedro Serrazina, Nuno Beato, José Pedro Carvalheiros (Zepe), Regina Pessoa, entre outros tantos que já ganharam diversos prémios internationais e dos mais importantes do mundo da animação, pouco significam se não se for da área ou não se tiver o mínimo de interesse pela arte em causa. E é um pouco o que está a acontecer de uma forma geral. Existem recursos, com pouco se pode chegar bastante longe, só falta o interesse, que é em grande parte ofuscado pela falta de informação. Quem se interessa verdadeiramente, entrega-se de corpo e alma a este mundo criativo e dificilmente o volta a

>16<


MULTIMÉDIA

largar. Devido a estas mesmas pessoas, o cinema de animação em Portugal está felizmente a conhecer tempos risonhos. Em relação à multiplicidade de formas que este abrange, praticamente qualquer elemento construtivo é válido na criação de um filme animado. Os realizadores portugueses têm optado mais pela animação 2D, mas, no entanto, uma nova área está a nascer no nosso país. A área do cinema em 3D. E com isto não me refiro à estereoscopia, vulgarmente divulgada por 3D nas salas de cinema, em que se colocam uns “óculos” para visualizar o filme em diferentes profundidades no nosso campo visual. Refiro-me, antes, à criação de personagens e ambientes virtuais em três dimensões como forma de contar uma história. Em relação ao ensino em Portugal, o que existe são alguns cursos de curta duração, quer de animação 2D quer de 3D. Numa vertente académica, são raros os cursos que existem específicos nesta área. Existe a Universidade Lusófona com a licenciatura em Animação Digital e a ESAP de Guimarães com mestrado igualmente em Animação Digital. O que tem acontecido mais frequentemente é que alunos de Belas Artes integrem em equipas na construção de elementos para curtas-metragens ou ingressem em empresas de animação 2D. No que respeita a apoios, se já para a cultura resta uma pequena fatia do Orçamento de Estado, para o cinema de animação sobra ainda menos. Para quem queira concorrer com uma ideia e arranjar financiamento para a concretizar vai ao ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual. Apenas é selecionada uma curta-metragem anualmente. Felizmente, temos realizadores persistentes e temos vindo a obter curtas-metragens fabulosas. Do modo como a animação está a evoluir, o mais provável é que dentro de pouco tempo esta vertente de arte tenha o seu boom. Já foram reconhecidos no vosso trabalho correcto? Que prémios já ganhou o “Corpus Ex Machina” e que planos fazem no futuro a partir deste ponto da

>17<

vossa carreira? Correcto. Até ao momento ganhámos o grande prémio Universidade Lusófona para melhor Animação, prémio este divulgado no CCB – Centro Cultural de Belém. A partir deste ponto, é continuar com a nossa formação académica e usar os conhecimentos adquiridos para continuar, se possível, a realizar mais curtas-metragens. Experimentar, procurar algo novo e artístico com o conhecimento das técnicas que possuimos, é o nosso principal objectivo. Bruno obrigado por partilhares um pouco do teu mundo com os nossos leitores, gostava de por fim pedir-te os concelhos, dicas que nos possas dar, caso suscite interesse nos nossos leitores, para uma primeira experiência com esse estilo tão vasto e cheio de possibilidades que é o stop motion. Para quem o stop motion suscite interesse o melhor conselho que dou é perceberem bem em que consiste na prática a técnica. Peguem na máquina fotográfica que têm em casa ou numa simples webcam e dêm-nas um novo uso ao fotografar sequências de imagens. Animem e descubram se esta não poderá ser a vossa próxima paixão.

Podem ver a curta metragem ou outros trabalhos de Bruno Soares no seguinte link: http://vimeo.com/user963231/videos


por Raquel Lobo

→←

José Saramago foi escritor, jornalista, argumentista, dramaturgo, romancista e poeta. Reconhecido em Portugal, na Europa e no Mundo pela maneira de expor os seus temas de forma espontânea e crítica e, muitas vezes, julgado pelo tom intenso e realista que imprimia nas suas obras, foi-lhe atribuído, em 1995, o Prémio Camões e em 1998, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, sendo a Saramago que se deve o reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Relativamente às suas obras, podemos afirmar que o seu estilo oral e a vivacidade da sua comunicação se sobrepõem à correção linguística. É um escritor que expõe o seu pensamento, opondo-se aos códigos sociais estabelecidos e aceites na sociedade contemporânea, sendo dono de uma escrita incomparável e de uma imaginação infinita. O Memorial do Convento é, então, um dos seus mais conceituados romances, publicado em 1982. Nesta obra é evidente o seu carácter crítico em relação à sociedade do século XVIII, tendo como pano de fundo a cidade de Lisboa e a vila de Mafra. Se por um lado o autor evidencia o contexto histórico, contrastando a sociedade que detem o poder e o povo oprimido, Saramago

LITERATURA

MEMORIAL DO CONVENTO uma obra de José Saramago dá também especial relevância às relações amorosas típicas da época, evidenciando o facto de muitas delas não serem aceites por uma sociedade conservadora e, por vezes, retrógrada. Aqui, Saramago revela o caráter transgressor da obra através de uma relação vivida com intensidade e sem preconceitos entre Baltasar e Blimunda: um amor repleto de cumplicidade e de perfeição, que não é aceite pela sociedade por ser uma relação assumida sem casamento. Simultaneamente, encontramos por toda a obra apontamentos que retratam os traços caraterísticos do rei D. João V, através das traições constantes e envolvimentos com freiras que, longe da rotina diária, cultivam atitudes transgressoras. Esta é uma obra realista e frontal pelos assuntos que são recriados ao longo do romance, e intemporal uma vez que muitos destes se enquadram na realidade da contemporaneidade. Incorporando o real com a ficção, num cenário e com um enredo que lhe dão vivacidade, conteúdo e história, faz com que o leitor descubra e redescubra a cada página do livro a mensagem crítica e mordaz do autor em relação à sociedade da época, tornando-se icónica, não pela beleza das suas palavras, mas pelo significado que encerra.

>18<


MODA >19<


por Diana Vinha

→←

Falemos do New Look, estilo criado pela casa Dior que surgiu nos anos 50, fruto da necessidade da mulher que ansiava por luxo e sofisticação num contexto social e económico ainda combalido pelos anos de guerra e do racionamento dos tecidos. A maquilhagem destaca.se pela valorização do olhar, através de sombras, máscara de pestanas, lápis para os olhos e sobrancelhas, além do eyeliner e em realçar a intensidade dos lábios e a palidez da pele, que deve ser perfeita e imaculada.

O recurso a tintas de coloração capilar é adoptado por grande parte da população feminina, assim como os produtos de alisar e de fixar. Soa a familiar? Penteados como os apanhados e rabos de cavalo, a lembrar o estilo iconográfico de Brigitte Bardot, as franjas fartas de comprimento longo nas laterais, acompanhadas pelo risco ao meio ou ar selvagem e negligé, mas sempre elegante, são hoje recuperados e recoloridos por muitas mulheres. Outra versão que dá o mote à revolução do New Look são os cabelos Pixie, mais curtos e com mechas a cair pelo rosto, também acompanhados de franjas mais curtas e de look girly. Deste recolorir dos anos 50, nos tempos

MODA

NEW LOOK recolorir os anos 50 que correm, conseguimos separar quatro tipologias: as ingénuas chic, encarnadas por Grace Kelly e Audrey Hepburn, que se caracterizavam pela naturalidade e jovialidade, são hoje reconhecidas por jovens entre os 20 e os 30 anos, de espírito feminino e prático, mas chic e cuidado; as Pin-ups que abrangem as camadas jovens mas também mulheres entre os 30 e os 40 anos (tema abordado na edição anterior); as mulheres de estilo colegial inspirado no sportswear ‘rocakabilly’, actualmene ainda usam, além das saias rodadas, calças cigarrete até os tornozelos, sapatos baixos, sweater e jeans. Nos homens o New Look é marcado pelo estilo rebelde imortalizado por James Dean e Marlon Brando, caracterizado pela camisa branca, o blusão de couro e as calças de denim, bem como os Teddy boys com os seus casacos de veludo, de cores gritantes, e cabelo enrolado que agora se vêem reinventados sob a forma de cabelos rapados nas laterais e despenteados na poupa. Várias marcas actuais recuperaram parte deste glamour ao utilizarem comprimentos de saias a 3/4 de espírito mais clássico, vestidos cocktail muito femininos e sofisticados e materiais como algodão.

>20<


ARTES PLÁSTICAS >21<

JULIAN BEEVER relações urbanas


ARTES PLÁSTICAS http://users.skynet.be/J.Beever

>22<


ARTES PLÁSTICAS

>23<


por Maria Matilde Marques

→←

A Cidade do Cabo, na África do Sul, é em si mesma resultado da história de amor de um homem pelo seu sonho de chegar à Índia. Em 1488 Bartolomeu Dias, depois de uns dias de violentas tempestades, dobrou o cabo a que deu o nome das Tormentas. Mais tarde o rei D. João II de Portugal mudou-lhe o nome para Cabo da Boa esperança por ser o local onde o Oceano Atlântico se liga ao Indico. Os padrões colocados por Diaz e Gama no Cape of Good Hope e Cape Point são visitados anualmente por milhares de turistas de todo o mundo. Em Cape Point o mar é na maior parte do tempo tormentoso como se os dois oceanos ao encontrar-se medissem forças continuamente.

Em 1652 o mercador Holandês Jan van Riebeeck estabeleceu um posto de reabastecimento naquilo que se veio a tornar Cape Town. A cidade estende-se aos pés da Table Mountain que atinge no seu pico 1086 metros de altura. Em dias limpos, no topo da montanha a vista da cidade é avassaladora e vê-se também a Robben Island, onde durante o tempo do Aparteid se encontrava a prisão onde, para alem de outros presos políticos, esteve detido Mandela. Hoje, nas instalações do antigo presídio, podem visitar o Robben Island Museam. Na cidade, a não perder, o local que congrega diversão, comercio e cultura é The Victória & Alfred Waterfront o antigo porto de arquitetura vitoriana, situado na Table Bay. Cerca de 400 lojas de roupa, joalha-

DESTINOS

CAPETOWN o extremo sul ria, artesanato, musica, tecnologia, peles ou material audiovisual para todo o tipo de gostos e bolsas , 80 restaurantes, desde o fast food ao gourmet, pubs, bares, hotéis como o Victoria & Alfred Hotel, o majestoso The Table Bay Hotel ou o luxuoso One&Only, Gest Houses ou Bed & Breakfast e museus além do Two Oceans Aquarium fazem de Waterfront o centro da vida diurna e nocturna de Cape Town. A organização de espectáculos musicais variados, exibições artisticas e culturais e desafios desportivos para mais novos ou mais velhos, garantem a popularidade de Waterfront. A Clock Tower, na sua arquitetura Gótico-Vitoriana, é uma imagem emblemática da Waterfrot. Daqui se pode apanhar o ferry para a Robber Island que fica a cerca de 10 km da terra. Para lá da cidade, de um lado, por entre as montanhas, avistamos enormes extensões de vinhas a darem á paisagem um colorido intenso de acordo com a casta das videiras. Para o outro lado, as fabulosas praias do Indico fazem-nos esquecer completamente que estamos no continente africano. Não passem sem comer, em qualquer dos pitorescos restaurantes á beira mar, um apetecível “ocean basket” onde, à volta de um irrepreensível arroz solto, encontramos uma variedade de peixe fresco frito e mariscos. Se chegarem a Simon’s Town, apreciem as colonias do vulnerável pinguim africano, espécie de rara beleza. Cape Town, remete-nos para um mundo completamente diferente do esperável.

>24<


CRÓNICA

RELAÇÕES na dualidade do ser por Maria Matilde Marques

→←

Relações são, por assim dizer, analogias, ligações, conexões, conformidades, afinidades, semelhanças e no entanto Fernando Pessoa dizia que o sermos todos diferentes é o axioma da nossa naturalidade e só nos parecemos de longe, na proporção em que não somos nós. O que nos remete para a compreensão da dificuldade em que residem sistematicamente as relações.

Não existe coisa mais difícil do que relacionarmo-nos verdadeiramente com alguém, se isso for o mesmo que encontrarmos um espaço de conformidade e profunda ligação. Ou não? Gothe afirmava a impossibilidade de cortar para sempre com as pessoas que pensam verdadeiramente como nós. Ou, caso o fizéssemos, mais tarde ou mais cedo seriamos confrontados com a obrigatoriedade das ideias concordantes. Há sempre alguém com ideias e pensamentos concertados com os nossos. É quase impossível sermos sós. Para Friedrich Nietzsche ao homem é vitalmente necessário estabelecer relações quer para se poder rever no próximo quer para podermos esquecer-nos de nós mesmos, o menosprezo por nós próprios pode levar-nos a uma compaixão geral para com a humanidade e pode ser utilizado, intencionalmente, para uma aproximação com os demais. De uma forma ou de outra relacionarmo-nos com outros parece ser inevitável. Mais sociais ou menos sociáveis, mais ou menos amigáveis, mais activos ou mais brandos é certo que ao homem é necessário ligar-se, conectar-se, comparar-se e criar afinidades. Imitamos desde meninos porque adoptamos

>25<

modelos, e crescemos erguendo a nossa individualidade sobre os alicerces das nossas relações. William James para quem a mais cruel das torturas seria colocar um homem completamente à margem da sociedade, sem que ninguém desse por ele, teorizou sobre a possibilidade de esse homem invisível ao olhar dos outros, acabar fatalmente por enlouquecer ou mesmo morrer. Já para Will Durant tudo na vida se resume às relações que existem entre homem e mulher e às destes com os filhos, tudo decorre em redor destes dois núcleos do amor - amor entre macho e fêmea e amor de mãe. Francesco Alberoni disserta profusamente e escreve uma obra literária de 160 paginas sobre relações como o enamoramento e amor que descreve como movimentos colectivos, porque de mais que um, em torno de uma ideia ou ideologia comum. Dois seres que se deslocam na vida caminhando a par ao encontro de um lugar comum, lugar esse que reestrutura obrigatoriamente a existência individual de cada um para dar corpo a uma nova identidade colectiva. Primeiro o enamoramento e depois o amor que consolida o espaço comum dos dois indivíduos num novo ser. E quando corre mal, porque é que desmorona o castelo erguido a dois? Carl Jung explica-nos que cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. Quando nos esforçamos demasiado por penetrar noutra pessoa, descobrimos que a impelimos para uma posição defensiva e que ela cria resistências porque, nos nossos esforços para penetrar e compreender, ela sente-se forçada a examinar aquelas coisas em si mesma que não desejava examinar. Toda a gente tem o seu lado obscuro que - desde que tudo corra bem - é preferível não conhecer.



Tema da próxima edição: MOVIMENTO Aceitam-se trabalhos até 1 de Fevereiro.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.