Fernanda Albuquerque de Almeida

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POR UMA ESTÉTICA DO MACHINIMA Fernanda Albuquerque de Almeida 1 Resumo: Desde 2000, o termo machinima refere -se ao processo de apropriação do ambiente do jogo eletrônico para produção cinematográfica. A técnica ganhou projeção devido às facilidades para criação de narrativas fílmicas, mas produções experimentais como "Ab stract Livecoded Machinima (Missile Command)" de Dave Griffiths e "Order of Chaos" de Claus-Dieter Schulz distanciam-se da narrativa ao explorarem a interferência no código de programação do jogo e a apropriação de eventos artísticos realizados dentro desses mundos. Tais filmes abrem espaço para a investigação sobre uma possível estética do machinima, entendida como o conjunto de características formais e técnicas que agem na geração das imagens que o constituem, diferindo-o das demais formas de produção audiovisual. O objetivo deste artigo é propor uma investigação acerca dos componentes particulares do machinima e na possibilidade deles constituírem uma estética diferenciada da cinematográfica ou da videográfica, tais como delimitadas por Philippe Dubois em "Por uma estética da imagem do vídeo". Palavras-Chave: machinima, jogos eletrônicos, linguagem cinematográfica, estética videográfica

Este artigo objetiva investigar a construção de uma possível estética do machinima, entendida como o conjunto de características formais e técnicas que agem na geração das imagens que o constituem e que demonstram usos específicos da matriz do jogo eletrônico para criação audiovisual. De maneira simplificada, o machinima pode ser entendido como uma nova forma de produção em vídeo que tem como base mundos virtuais interativos em tempo real, ou seja, ele configura o processo (e a técnica) de apropriação do ambiente do jogo eletrônico e todos os itens que fazem parte dele (como cenários, avatares, figurinos etc.) para criação audiovisual. A investigação se inspira na abordagem de Philippe Dubois acerca da estética videográfica em seu artigo "Por uma estética da imagem do vídeo", na qual ele analisa os itens que caracterizam a produção em vídeo em relação a dois pilares da linguagem cinematográfica: o plano e a montagem; mantendo-se à distância, entretanto, da transposição indiscriminada das características dessa linguagem para determinar os potenciais do vídeo. Da mesma forma, busca-se traçar uma análise comparativa entre as características indicadas pelo autor como próprias do cinema e do vídeo e as exploradas nos machinimas "Abstract Livecoded Machinima (Missile Command)" de Dave Griffiths e "Order of Chaos" de Claus-

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Mestranda do Programa de Pós -graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Un iversidade de São Paulo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 501 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Dieter Schulz, que demonstram aproveitamentos próprios dessa técnica, como a interferência no código de programação do jogo e a apropriação de eventos artísticos realizados dentro desses mundos, em detrimento de incorporações de possibilidades já previstas na videoarte ou no cinema tradicional (narrativo). No percurso proposto, serão revisitados alguns acontecimentos históricos importantes para a legitimação do machinima, tendo as seguintes questões como guia: a. O machinima estaria limitado à incorporação dos elementos constitutivos do cinema ou das experimentações em vídeo? b. Por estar associado indiscutivelmente ao jogo eletrônico, ele estaria limitado às possibilidades técnicas desse jogo? c. De que forma a matriz do jogo, um ambiente virtual interativo em tempo real, possibilitaria uma inovação no nível estético além de constituir um novo leque de opções técnicas para criadores interessados em realizar propostas audiovisuais?

Considerações históricas acerca do machinima Assim como Dubois inicia sua reflexão com a interrogação acerca do nome vídeo em seu artigo, o ponto de análise inicial desta investigação é a formulação do termo machinima. Em 1999, Anthony Bailey, jogador e criador da série "Quake Done Quick "2 , sugeriu à lista de discussão q2demos que nomeassem os filmes que estavam sendo feitos em jogos eletrônicos desde 1996 pela combinação dos conceitos machine (máquina) e cinema. Entre os jogadores presentes na lista, Hugh Hancock se tornou um entusiasta da ideia, divulgando-a nas demais redes sociais da época e promovendo também um erro ortográfico que seria posteriormente incorporado ao termo: a palavra machinema havia sido difundida como machinima. Tal fato não configurou um problema, pois assim a palavra conteria também o conceito anima, do latim que se refere à alma como sopro da vida, considerado por Bailey o que faltava ao conceito original. (HANCOCK, et al., 2007, p. 12-13) Estando então intrínseca ao seu nome, a referência ao cinema sempre se manteve marcante na história do machinima, estendendo-se aos dias atuais. Essa referência diz respeito, principalmente, ao seu modo discursivo dominante que contém a instauração de uma 2

Co mo o próprio nome sugere, a série apresenta o registro das fases do jogo Quake sendo realizadas no menor tempo possível. 502 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


narrativa (ficção com personagens, ações, organização do tempo, desenvolvimento de acontecimentos, crença do espectador etc.) 3 como componente fundamental. Não à toa, o filme considerado o primeiro machinima tem como uma das suas características inovadoras (dentre os filmes feitos em jogos eletrônicos que haviam até então) o desenvolvimento de uma narrativa. Além da proposição do termo ter sido formulada por jogadores de Quake, da Id Sotware, o primeiro machinima remonta ao lançamento desse jogo, em 1996, que continha uma ferramenta de gravação e replay das ações realizadas. Essa funcionalidade foi extensivamente utilizada pelos jogadores para demonstrar habilidades e investigar a performance de competidores, ou seja, embora estivessem produzindo vídeos, não havia uma consciência cinematográfica, apenas a preocupação com a competição. Conhecidos como Quake movies, esses registros eram sempre gravados sob a perspectiva típica do jogo de tiro em primeira pessoa (fps ou first person shooter) e um dado interessante é que eles não compunham de fato arquivos de vídeos, mas sequências de códigos, em formato .dem 4 , que quando acionadas eram executadas pelo jogo em tempo real na forma de um filme, ou seja, elas eram reproduzíveis apenas em softwares com configurações idênticas daqueles em que tinham sido produzidas. Isso significa, por exemplo, que se um filme fosse gravado com um mod5 instalado, seria reproduzido apenas em uma outra cópia do mesmo jogo contendo o mesmo mod. Em termos práticos, pode-se imaginar a seguinte situação: o jogo x possui o personagem 1; o mod implementa o personagem 2; um arquivo .dem é gerado pelo registro das ações do personagem 2; logo, sua reprodução dependerá do mod que implementa o personagem 2 estar instalado no jogo, pois sem ele este personagem não existe. Ainda em 1996, um clã conhecido como the Rangers (ou United Ranger Films) utilizou tal ferramenta para registrar o desenrolar de uma breve história que foi captada em uma perspectiva diferente da típica do fps, ou seja, foi registrada uma sequência de ações com a preocupação da composição cinematográfica. Para os padrões de Hollywood, não foi algo inovador, mas o trabalho marcou a transição de registros de jogabilidade do jogo Quake para

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Emprestamos a definição de narrat iva co mo modo discursivo predo minante do cinema de Dubois, 2004, p. 77. O formato .dem não é compatível co m players de vídeos convencionais, apenas com o software (jogo) em que foi criado. 4

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a criação de propostas audiovisuais e "Diary of a Camper" foi considerado, então, o primeiro machinima. Ainda assim, foi apenas no ano 2000 que o machinima se desligaria da sua matriz para ser reproduzido. Nesse ano, Joe e Jeff Gross, da Tritin Films, tiveram a ideia de registrar as ações do jogo Quake com uma câmera externa à primeira tela, gerando assim um arquivo de vídeo editável e executável em players e plataformas de reprodução de vídeos convencionais (videocassete, dvd player etc.). Tal fato contribuiria com a expansão da técnica e o filme "Quad God" seria distribuído inclusive em revistas, ultrapassando os limites das listas de discussão de jogadores e atingindo a mídia maintream. Ele também geraria polêmica entre os jogadores que sentiam que o machinima estava se distanciando da cena demo (.dem) original. (KELLAND, et al., 2005, p. 30) Embora o jogo Quake tenha tido papel fundamental no desenvolvimento do machinima, outros também contribuíram para a sua popularização. Jogos como The Sims II e The Movies, com propostas diferentes das de Quake (ou dos jogos de fps em geral que exploram a temática da guerra e do combate), ampliaram de forma substancial tanto o público quanto os criadores de machinima. The Sims II, da Electronic Arts, não continha apenas uma ferramenta de gravação das cenas, mas facilitava a criação de narrativas personalizadas no estilo de novelas ao permitir a customização de avatares, figurinos e cenários a qualquer usuário, estando essas ações incluídas no próprio funcionamento do jogo. The Movies, da Lionhead Studios, disponibilizava ao usuário um estúdio de Hollywood e seu objetivo era a produção de um filme. Ambos jogos, assim como o filme "Quad God", também geraram polêmica, pois “muitos veteranos sentiam que a essência do machinima era demonstrar proeza em estender o motor do jogo além dos limites intencionados por seus desenvolvedores e jogos como The Sims II e The Movies simplesmente simplificavam demais isso.” (KELLAND, 2011, p. 28) Tais polêmicas podem ser consideradas indícios das incoerências acerca do machinima. Ao aproximar-se demais do cinema, incorporando funcionalidades ligadas à criação de filmes nos jogos, estaria o machinima se afastando das suas raízes que remontam aos jogos de fps e à cultura entorno deles? Em caso afirmativo, esse afastamento seria prejudicial ao desenvolvimento de suas potencialidades?

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Um mod é uma modificação feita para um determinado jogo que deve ser instalada com se fosse u ma nova funcionalidade do seu jogo matriz. Mods são desenvolvidos normalmente pelos próprios jogadores e podem atribuir ao jogo novos personagens, comandos, mapas etc. 504 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O machinima e os modos discursivos da criação audiovisual O machinima está intrinsecamente ligado aos jogos eletrônicos que compõem a sua base e, dessa forma, está ligado também à sua cultura, ou seja, aos costumes e crenças relacionadas a esses jogos e seus jogadores. Parte dela diz respeito às modificações que os jo gadores, e também criadores, produzem a partir dessas bases com ou sem o apoio (e a permissão) de seus desenvolvedores. Esse fenômeno de apropriação para criação funciona como um ciclo sem fim que é inerente ao funcionamento do mundo digital em sua forma básica, ou seja, o computador e as redes online. Dessa forma, relaciona-se à ética hacker teorizada por Steven Levy em "Hackers: Heroes of the Computer Revolution" . A ética hacker nasceu nos primórdios do computador nos laboratórios de universidades dos EUA, tendo permeado seu desenvolvimento e elencado como princípios básicos alguns itens que descreviam o potencial dessa máquina. Entre eles, os hackers apoiam o uso do computador para a livre troca de informações, a interferência na sua estrutura e em sistemas no geral como processo de entendimento do funcionamento do mundo e a sua utilização para se criar arte. Segundo seus princípios, a desmontagem de sistemas contribui para o entendimento de como funcionam, permitindo assim maior autonomia dos demais hackers (ou usuários) na criação de coisas mais interessantes. Nesse sentido, a interferência nas estruturas das máquinas constitui, então, a ação fundamental para ampliação do potencial artístico e comunicacional desse meio. O mesmo fenômeno, de apropriação para criação, é também inerente ao momento histórico atual, onde a remixagem é presença constante em todas as áreas de criação. Não é por acaso que um dos assuntos mais polêmicos da atualidade seja a discussão acerca dos direitos de propriedade intelectual e como a disseminação da informação e de conteúdo na internet tem afetado a indústria do entretenimento. Questões acerca da autoria sempre acompanharam o machinima, pois, como se sabe, ele surge da apropriação de outra mídia para criação de conteúdo em formato audiovisual e, embora não haja um consenso sobre esse assunto, algumas empresas desenvolvedoras de jogos enxergam com clareza os pontos positivos da abertura de seus produtos para que outros criem a partir deles. O produtor Jeff Morris declara que a sua empresa Epic Games "está muito interessada em ver uma comunidade próspera de mod, pois ela não apenas estende a vida do produto de base, mantendo-o instalado e movendo novas unidades, como também é uma grande fonte de 505 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


recrutamento para a nossa própria companhia...". (KELLAND, et al., 2005, p. 16) A declaração de Morris dialoga com os princípios de livre utilização do computador formulados na ética hacker e, portanto, incentiva que seus softwares sejam utilizados para criação. Entre as produções da Epic Games, está o jogo Unreal Tournament 2004, que serviu de base para muitas modificações e também para um dos precursores mais inventivos do machinima, o alemão Friedrich Kirschner. Kirschner é responsável por algumas das primeiras e mais desafiadoras criações da vertente experimental do machinima, pois interfere na visualidade do jogo de modo a não deixar pistas da técnica empregada. Seu trabalho "The Journey" (FIG. 1), feito no jogo Unreal Tournament 2004, é uma peça única e "seus personagens parecem desenhados à mão, flutuando em um fundo pintado, não havendo nenhuma dica de 3D, fotorrealismo ou ação de jogo." (idem, p. 54) O trabalho é menos uma narrativa do que uma experimentação visual de linhas e cores em movimento que remete às animações em 2D com incrus tações de imagens típicas da videoarte. Segundo Matt Kelland, talvez este seja o uso mais impressionante do machinima: quando não se consegue identificar a ligação do trabalho com a sua base.

FIGURA 1: Friedrich Kirschner, The Journey, 2004

O caso de Kirschner, porém, não representa a maioria dos trabalhos realizados, mas faz parte de um pequeno grupo inventivo que estende os aproveitamentos do machinima através de suas experimentações. No artigo de Dubois, a formulação da estética videográfica é desenvolvida a partir do questionamento de qual seria o modo discursivo do vídeo. O autor indica a narrativa como modo majoritário do cinema e "a mixagem de imagens mais do que a montagem de planos" (DUBOIS, 2004, p. 78) como principal parâmetro estético da criação 506 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


em vídeo. Na busca por uma possível estética do machinima tendo como base os questionamentos de Dubois, a mesma pergunta pode ser transferida: haveria, então, um modo discursivo do machinima? Como afirmado anteriormente, até mesmo em seu nome, o machinima carrega uma referência muito intensa provinda do cinema. Além disso, importantes instituições voltadas ao machinima, como a Academy of Machinima Arts and Sciences (AMAS), reforçam essa ligação acabando por ofuscar outros aproveitamentos. A AMAS é uma organização sem fins lucrativos, fundada em março de 2002, em Nova York, por vários produtores de machinima e seu objetivo é conscientizar as indústrias atuais da existência da técnica, assim como apoiar e dar credibilidade a essas produções. Atualmente, a organização não tem promovido eventos e, desde 2007, não são aceitas novas filiações, porém, há alguns anos, seus concursos eram organizados em categorias similares às do Oscar (The Academy of Motion Picture Arts and Sciences) como Melhor Fotografia, Melhor Direção, Melhor Edição e, embora também houvesse uma categoria voltada aos filmes independentes, a ênfase no modelo de Hollywood era perceptível. No site da AMAS e creditada a Paul Marino, seu diretor executivo, precursor do machinima e também autor da primeira publicação voltada a esse objeto, está descrita a seguinte definição de machinima, considerada oficial: "Machinima é filmagem em tempo real, ambiente virtual em 3D, muitas vezes usando tecnologias de videogames em 3D. Em u ma definição expandida, é a convergência de filmagem, animação e desenvolvimento de jogos. Machinima são as técnicas de filmagem do mundo real aplicadas em u m espaço virtual interativo onde personagens e eventos podem ser controlados por humanos, scripts ou inteligência artificial. Co mbinando as técnicas de filmagem, produção de animação e tecnologia de engines de jogos em 3D em tempo real, machinima é uma ótima forma em custobenefício de produzir filmes com g rande controle criat ivo." (MARINO, 2005)

O último parágrafo da definição diz respeito à principal abordagem das reflexões acerca do machinima: a vantagem em termos de custo e benefício de se optar por utilizar o machinima para produção fílmica em relação aos custos exacerbados de uma grande produção cinematográfica, ou seja, o machinima sempre foi considerado uma alternativa para produção fílmica pela acessibilidade da sua técnica e não com relação as suas possibilidades estéticas. Tal fato pode ser demonstrado também na introdução de "Machinima: Making Animated Movies in 3D Virtual Environments": 507 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


"Muitos de nós sonham em fazer filmes. Infelizmente, poucos realizarão esse sonho. O custo total de fazer u m filme é tanto que apenas os mais talentosos, dedicados e afortunados serão confiados à tarefa de criar a mais excitante das formas modernas de arte. O restante de nós deve assistir e continuar sonhando. O machinima promete mudar isso. Pegando carona no ritmo vertiginoso do desenvolvimento da tecnologia de jogos, ele coloca os recursos necessários para fazer filmes excitantes nas mãos de literalmente milhões de pessoas ao redor do mundo. Co m potencial de longe maior que uma simp les câmera de v ídeo, ele pode trazer u m estúdio de filmagem inteiro à sua casa, completo com cenários, atores e efeitos especiais. Para cineastas aspirantes do mundo inteiro, machinima é nada menos que um sonho se tornando realidade." (KELLAND, et al., 2005, p. 06)

Pode-se afirmar, então, que o modo discursivo do cinema foi incorporado ao machinima. Porém, este artigo caminha em direção oposta, concentrando-se na tentativa de afirmar e demonstrar os motivos e a importância de se desvincular o machinima desse modo para descobrir seus próprios potenciais. Nesse sentido, Dubois corrobora com a ideia de que a associação ilimitada com determinada linguagem o u estética pode ser problemática:

"Todo vocabulário forjado para se falar da imagem cinematográfica acaba sendo transposto, tal e qual, sem maiores cautelas, como se esta transposição não apresentasse problema. Co mo se pudéssemos apenas pensar a imagem eletrônica por meio dos conceitos (e do filtro, e da linguagem) do cinema. Co mo se não houvesse diferença entre ambos. (...) Ora, as imagens em movimento funcionam todas do mes mo modo? A operação de montar planos no cinema é a mes ma de editar imagens em vídeo? As questões em jogo são as mesmas em ambos casos?" (DUBOIS, 2004, p.75)

Em seu artigo, o autor elenca como modos principais de representação em vídeo o plástico (a "videoarte" em suas formas e tendências múltiplas) e o documentário (o "real" bruto ou não - em todas as suas estratégias de representação), "ambos com um senso constante de ensaio, da experimentação, da pesquisa, da inovação." (DUBOIS, 2004, p.77) Essa consideração é particularmente interessante, pois dialoga com a produção experimental de machinima que explora as possibilidades que a base do mundo virtual interativo apresenta. No modo plástico, são encontradas propostas não narrativas que priorizam a exploração das imagens geradas no jogo. Assim como na videoarte "TV-Magnet", de Nam June Paik, que produziu interferências na transmissão dos sinais elétricos da imagem da televisão utilizando ímãs, entre os machinimas desse grupo há os que resultam do registro de interferências sobre os códigos de programação que geram as imagens do jogo. Um dos trabalhos mais intrigantes 508 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que exploram essa abordagem chama-se "Abstract Livecoded Machinima (Missile Command)" (FIG. 2).

FIGURA 2: Dave Griffiths, Abstract Livecoded Machinima (Missile Command) , 2008 FONTE: Griffiths, 2008, flickr do artista. Disponível em: <http://www.flickr.co m/photos/dave-griffiths/2832078262/>. Acesso em: 10 agos. 2012

O trabalho consiste basicamente no registro audiovisual de uma sequência de interferências feita em tempo real no código de programação do engine 6 de jogo em 3D desenvolvido pelo artista chamado Fluxus 7 . Nesse ambiente virtual interativo, Griffiths simula ações que lembram o jogo homenageado, Missile Command, mas, desta vez, com uma variação ainda maior de cores e sons por ser composto em uma tecnologia mais recente que a do jogo da década de 1980. Um aspecto interessante deste vídeo é que o artista traz para frente da imagem do jogo o código de programação que a constitui, tornando visível a estrutura que gera as imagens. Como na mixagem de imagens feita nas experimentações em vídeo, há aqui a sobreposição das imagens que constituem o machinima: a imagem do jogo e a do código de programação que a gera. Entretanto, não há transparências, nem janelas, nem incrustações indicadas por Dubois como as principais características que compõem a estética videográfica. Por ser o código de programação composto por letras e números, ou seja, imagens vazadas, mesmo que colocado sobre a imagem do jogo sem demais edições, ambos elementos podem ser vistos. Esse trabalho destaca uma forma bastante particular de explorar 6

"O engine do jogo é o coração do software que faz o jogo rodar. (...) A primeira coisa que ele faz é criar o mundo virtual do jogo na sua tela. (...) Sempre que ele ou o jogador decide que um personagem irá fazer algo, o engine do jogo executa a animação apropriada com o ambiente ou os outros personagens." (KELLAND et al., 2005, p. 14) 509 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


os potenciais de criação audiovisual a partir de ambientes virtuais interativos em três aspectos: primeiro, ao criar interferências no código deste ambiente; segundo, ao fazer isso em tempo real (técnica chamada livecoding); e, terceiro, ao tornar visível o código que constitui a imagem do ambiente. Ele se apropria do mundo do jogo não para criar uma narrativa inspirada no modo cinematográfico nem para replicar as formas de mixagem da imagem indicadas por Dubois como características da estética do vídeo, mas para explorar visualidades que surgem apenas nas apropriação de um jogo digital. Quanto ao segundo grupo, chamado documentário na produção e m vídeo, no caso do machinima, ele não se vincula ao real até mesmo porque a sua matriz não é a realidade na qual se vive, mas em realidades virtuais, tampouco replica o formato do documentário jornalístico que contém o desenvolvimento de narrativas. Sendo assim, opta-se por chamá-los de documentais para marcar a diferença entre o formato documentário jornalístico que também existe no machinima. Os machinimas documentais são registros audiovisuais de ações realizadas normalmente no contexto artístico dentro dos seus jogos de base. Muitos são fruto de participações criativas no Second Life (SL), da Linden Research Inc., um mundo interativo em tempo real no qual pode-se replicar ou reinventar a vida real. Nesse mundo, há círculos artísticos ativos com apresentações de performance, espetáculos de dança e exposições e eventos de arte contemporânea regulares. Dentre estes artistas, o alemão ClausDieter Schulz, conhecido no SL como Rohan Fermi, produziu o machinima abstrato intitulado "Order of Chaos" (FIG. 3), que se baseia na instalação homônima do artista Igor Ballyhoo. O trabalho é basicamente o registro de diferentes tomadas da mesma instalação que são dispostas em uma tela única marcada ora por divisões retas horizontais, ora por até duas diagonais que se cruzam, formando quatro quadros cada qual com uma sequência. O registro de várias partes do mesmo objeto sob ângulos diferentes dialoga com a videoarte "TVCubisme" (1985), de Wolf Vostell, e, consequentemente, com sua herança cubista. Entretanto, desta vez, não é feito o registro de ações do mundo real, mas de eventos e objetos apenas acessíveis no mundo virtual em que foram realizados e que, graças ao machinima, podem ser transpostos para o mundo real através do registro fílmico.

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Mais informações disponíveis online em: <http://www.pawfal.o rg/flu xus/>. Acesso em: 29 julh. 2012. 510 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 3: Claus-Dieter Schulz, Order of Chaos, 2009

Considerações finais Diante do que foi abordado nas considerações históricas acerca do machinima, percebese a referência bastante intensa ao modo discursivo do cinema tanto na formulação do termo quanto nos eventos criados para a sua disseminação; todavia, na análise comparativa entre as características da videoarte, teorizadas por Dubois, e dos machinimas escolhidos para esta análise, entende-se que a vertente experimental do machinima se relaciona mais à criação em vídeo do que ao modelo cinematográfico. Essas considerações, entretanto, ainda escondem as respostas dos questionamentos propostos inicialmente como guia desta reflexão. Como foi demonstrado na análise comparativa tecida na segunda parte da investigação, os machinimas "Abstract Livecoded Machinima (Missile Command)" e "Order of Chaos" dialogam com as experimentações em vídeo, mas desenvolvem sua própria maneira de explorar as imagens geradas pelo software do jogo, que difere da base eletrônica da videoarte. Com relação ao cinema, embora o machinima carregue uma referência intensa em função da sua consideração como alternativa em termos de custo e benefício para criação cinematográfica, a sua força expressiva emerge justamente quando a narrativa do modo discursivo predominante do cinema é colocada de lado, fornecendo espaço para a experimentação das possibilidades que a matriz do machinima disponibiliza. Constata-se, dessa forma, que embora o machinima não extrapole as composições videográficas e cinematográficas em termos de plano e montagem, ele não se limita à incorporação dos seus elementos para criação de visualidades, explorando o universo que lhe é próprio.

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Esse universo, os softwares de jogos, é composto de uma série de funcionalidades previstas pelos seus desenvolvedores e possui histórias e temáticas específicas, além das propostas de interação do usuário com o produto. Apesar disso, através da interação inventiva de jogadores com maior domínio técnico sobre o funcionamento do jogo e também conhecimentos de programação, os jogos são ampliados e a eles são incorporadas demais funções, elementos e possibilidades. É na cultura da modificação que reside o potencial maior do machinima na produção de novas estéticas. Na interferência dos ambientes dos jogos, a visualidade deles pode ser completamente transformada: não apenas os criadores podem esconder a sua matriz como podem abri- la, descobrir como funcionam e, então, reconfigurála. Esse processo de apropriação para criação permeia toda produção de conteúdo nos mundo s digitais interativos e é base da ética hacker, conforme exposto anteriormente. Em poucas palavras, os jogos eletrônicos compõem uma base bastante flexível que pode trabalhar à serviço dos criadores de machinima sem limites de interação dependendo apenas do conhecimento que tiverem. Mesmo que o machinima não constitua uma força expressiva com o alcance das técnicas já consolidadas em níveis estéticos ou talvez comunicativos, pois dificilmente ele se tornará predominante nos discursos televisivos ou no cine ma, ele se institui uma força estética expressiva relacionada à internet, ao computador e aos jogos eletrônicos, que exigem a manipulação do usuário para que completem a sua missão. Referências Bibliográficas DUBOIS, Philippe. Cinema, Ví deo, Godard. Tradução de Mateus Araújo Silva. São Pau lo: Cosac Naify, 2004. HANCOCK, Hugh; INGRAM, Johnnie. Machini ma for Dummies. Wiley Publishing, Inc, 2007. LEVY, Steven. Hackers: Heroes of the Computer Revolution. London: Penguin Books, 2001. KELLAND, Matt; MORRIS, Dave; LLOYD, Dave. Machini ma: Making Ani mated Movies in 3D Virtual Environments. Florence: Course Technology PTR, 2005. KELLAND, Matt. Fro m Game Mod to Low-Budget Fil m: The Evoluti on of Machini ma. In : LOWOOD, Henry; NITSCHE, M ichael. (Org.). The Machinima Reader. London: The MIT Press, 2011, p. 23-35. MARINO, Pau l. FAQ: So, what is machinima. In: Academy of Machini ma Arts and Sciences , 2005. Disponível em: <http://www.machin ima.o rg/mach inima -faq.ht ml#what>. Acesso em: 09 julh. 2012.

Filmes

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Abstract Li vecoded Machi nima (Missile Command). Direção: Dave Griffiths. 11 min. 34, 2008. Disponível em: <http://www.pawfal.org/dave/index.cgi?Projects/Missile%20Co mmand>. Acesso em: 09 julh. 2012. Diary of a Camper. Direção: United Rangers Films. 01 min . 21, 1996. Disponível em: <http://archive.org/details/DiaryOfA Camper>. Acesso em: 09 julh . 2012. Order of Chaos. Direção : Claus-Dieter Schulz. 03 min. 58, 2009. Disponível em: <http://vimeo.co m/15096478>. Acesso em: 23 julh. 2012. Quad God. Direção: Tritin Films. 33 min, 2000. Disponível em: <http://www.youtube.com/user/DirectorGoss/videos?query=quad+god+classic+part >. Acesso em: 23 julh. 2012. The Journey. Direção: Friedrich Kirschner. 08 min. 38, 2004. Disponível em: http://vimeo.co m/1110082. Acesso em: 09 julh. 2012.

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