Gina Dinucci

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ANIMA

Fotografia como amálgama de tempos Gina Dinucci 1 Resumo: O presente artigo tem o intuito de perscrutar o processo criativo da fotoinstalação “Anima” estabelecendo um diálogo com as camadas de passado, futuro e presente que as fotografias provenientes de apropriação possuem. Trata-se uma instalação exposta no Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia em Belém – PA, contemplada com uma menção honrosa em 2010 que utiliza fotografias resgatadas de um álbum esquecido. Palavras-Chave: Anima, Tempo, Fotografia, Fotoinstalação . Abstract: This article has the purpose of peering into the creative process of the photo installation “Anima” establishing a dialogue with the layers of the past, future and present that the photographs proceeding from the appropriation contain. The installation has been exhibited at the Contemporary Daily Photography Award in Belém-PA, Brazil, awarded with an honorable mention in 2010 wich uses photographs rescued from a forgotten album. Key words: Anima, Ti me, Photograph, Photo installation

Introdução Essas mulheres captadas em tão clássico e tradicional retrato nos olham agora de modo mais enigmát ico, indireto, apagadas em sua função primeira, mas ilu minadas (…) parado xalmente por um negro quase absoluto . (KLAUTAU, 2010, p. 15)

Anima é uma instalação que utiliza fotografias resgatadas de um álbum esquecido. Exposta no Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia em Belém – PA, foi ganhadora de uma menção honrosa em 2010. O percurso da obra se deu em três etapas: primeira - encontro com o álbum segunda - tempo em que o álbum ficou arquivado em meu poder terceira – elaboração e produção da fotointalação “Anima” O presente artigo tem o objetivo de relatar o processo criativo do trabalho identificando a intersecção dos tempos passado, futuro e presente. Para fundamentar tal busca empresto do autor 1

Instituto de Artes - UNESP 530 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Maurício Lissovsky (2010), a noção de que a fotografia contemporânea é um campo de lutas e um amálgama de tempos, que incorpora não só reflexões sobre a imagem pronta, mas também sobre o fazer fotográfico e o objeto fotografado. Quando tiramos uma imagem de seu lugar, quando reanimamos a sua presença, estaremos mergulhados em um amálgama de tempos? Este trabalho nasce da vontade de compreender essas massas de temporalidade e não pretende esgotar as várias opiniões relevantes, contrárias ou favoráveis a respeito do mesmo assunto, nem tampouco levantar importantes obras já produzidas utilizando a apropriação de imagens fotográficas em desuso. Trata-se do relato de uma história inacabada que precisa ser relida para poder reviver. É somente a presença de signos em movimentos contínuos, mais uma obra do tempo. 1. Um relato sobre o processo criativo de Anima 2 A fêmea é portadora de vida, ela anima. No nível místico, o espírito é considerado masculino; a alma que anima a carne, feminina. (CHEVA LIER e GHEERBRA NT, 2009, p. 598)

Um álbum de formatura, de 1942, de um colégio católico feminino, com uma série de 111 fotografias de mulheres, é encontrado em uma das prateleiras empoeiradas de um sebo. A vontade de refazer as suas histórias, imaginar seus sonhos me levou a pesquisar as alunas. A descoberta de que a grande maioria já estava morta ou na fase dos 90 anos fez com que eu me questionasse sobre o significado daquelas imagens. Será que elas já não tinham mais importância para ninguém? Havia ali o rompimento com a vida, o anúncio da ausência e a iminência da morte. As fotos, ao serem desprezadas, estavam deixando de cumprir seu papel primordial: o de eternizar o efêmero. Resolvi, então, re- fotografar todo o álbum em baixa luz, buscando novos sentidos para as imagens. Assim nasce a série “Anima”, para reanimar a alma das fotografias, dar-lhes um novo movimento e recuperar a sua primeira função: a de ser observadas. A

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Texto ret irado do Dossiê enviado ao Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia – Belém – PA. 531 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fotoinstalação contém 30 fotografias das alunas de tamanho 25 cm x 20 cm, e uma da madre superiora, de 78 cm x 62 cm. A disposição das imagens da instalação segue a hierarquia do álbum e formam retângulos alinhados simetricamente.

FIGURA I - Fotoinstalação ANIMA em exposição no MUFPA – FOTO: Irene Almeida FONTE: Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, 2010 - http://www.diariocontemporaneo.co m.br/

2. Amálgama de Tempos A fotografia sempre foi considerada uma maneira eficaz de se conhecer as coisas do mundo e, de alguma forma, eternizá- las. Mas desde os experimentos com as fotomontagens dos surrealistas e a total ruptura com a arte retiana dos ready-mades de Marcel Duchamp, as imagens fotográficas subvertem a função de lápis da realidade. Apesar de ser técnica inseparável do ato de registro, nas vanguardas do século XX, ela desprende-se do compromisso com a verdade, é reconhecida como portadora de signos artísticos e, portanto, tem seu potencial de subjetividade aprofundado. Entre a duração, como uma forma de perpetuar a morte, até o instante do ato 532 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fotográfico, visto como o congelamento do tempo, a temporalidade sempre foi a principal e mais problemática discussão dentro da fotografia. A busca pelo instantâneo em sua historiografia afastou gradativamente as imagens fotográficas da experiênc ia temporal. A percepção da duração do tempo, antes observada nos fantasmas e espectros causados pela longa exposição, escapou das imagens as transformando em registros objetivos, dotados de inegável nitidez. Mas, é possível que fotografias sejam deslocadas de sua função instantânea para impregnar-se de duração? Segundo Lissovsky (2010, p. 61), que empresta de Dubois o conceito de imagem-ato, se observarmos a fotografia como um agora-passado seria impossível lhe restituir a duração, porém vista como um agora- futuro, a sua duração provavelmente lhe seria devolvida e tal restituição só poderia ser uma doação daquele que a observa. Deste modo, ele propõe então, que a fotografia seja vista pelo avesso, ou seja, para além do corte temporal que lhe é inerente. A apropriação de imagens de arquivos esquecidos, ou em desuso, e sua ressignificação são práticas que se iniciam num contexto modernista e parecem não se esgotar nas produções da arte contemporânea do século XXI. Quando utilizo tal procedimento busco mais do que garimpar imagens, ou restituir histórias e arquivos, anseio escavar sentidos a partir de mudanças do campo da percepção do tempo. Para causar esse deslocamento, as imagens foram re-fotografas tornandose paradoxalmente esvanecidas, apagadas de sua nitidez e transformadas em sutis massas de luz.

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FIGURA II: Detalhe da Fotoinstalação “Anima”

Com esse processo buquei torná- las incompletas, imagens propulsoras de uma nova experiência temporal. Soulages (2010, p. 279), influenciado pela psicanálise, cha mou de transferência o ato de deslocar fotografias de uma função do sem-arte para um segundo espaço, no qual a sua característica se modifica para a de um objeto de arte. A transferência pode ser apenas uma utilização da foto como simples material, ou ent ão, ao contrário, chegar, através da própria fotografia, a u m questionamento radical de u ma prática artística. Esse questionamento não deixa de evocar a ativ idade reflexiva em arte e em filosofia, assim co mo o trabalho sobre a transferência, que é o essenc ial da problemát ica da cura analít ica. (SOULA GES, 2010, p. 279)

Esse processo assemelha-se ao ready-made, mas com um importante diferencial: ter como principal objetivo alguns critérios estéticos, além de conceituais na escolha das imagens. Soulages (2010) afirma que precisará existir a essência da fotograficidade na obra para ela escapar de ser considerada apenas um documento. A fotograficidade é, pois, a especificidade fotográfica e sua relação paradoxal com o irreversível e o inacabável, que se articulam principalmente dentro de sua temporalidade. Já Sontag (2004, p. 32) afirma que no fim, o tempo termina por situar a maioria das fotos no nível da arte, desta maneira, o que pode transferir

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conteúdo artístico a uma imagem originalmente documental é a exper iência estética dada no futuro, que tende a afastar seu corpo de um sentido puramente social. As fotos, quando ficam escrofulosas, embaçadas, manchadas, rachadas, empalidecidas, ainda têm u m bo m aspecto; muitas vezes, u m aspecto até melhor. Nisso, como em outros pontos, a arte com quea fotografia mais se parece é a arquitetura, cujas obras estão sujeitas à mes mainexo rável ascensão por efeito da passagem do tempo; muitos prédios, e não só o Pathernon, provavelmente têm um aspecto melhor como ruínas). (SONTA G, 2004, p. 94).

As marcas físicas do tempo gravadas nas imagem as transformam em ruínas interessantes ao campo da arte e, nesse aspecto, quanto mais traços de passado a imagem contém, mais ela pode ser retomada sob um olhar poético. Juntando, portanto, o s dois conceitos, o de Soulages e Sontag, pode-se dizer que “Anima” é uma espécie de ruína em estado de transferência, pois os retratos tradicionais que são retirados de sua função documentária e de seu tempo, quando ressignificados, são imediatamente reconhecidos como portadores de um passado carregado de afeto e também de projeções para um futuro. Essa discussão que já é em partes interna a sua própria técnica, forma uma tessitura entre o que é, o que já foi e o que será. O processo de produção de “Anima” envolveu um tempo longo e gradual. Entre o álbum ser encontrado, refotografado e finalizado como uma instalação, houve um percurso muitas vezes dado em um tempo que poderíamos chamar de suspenso, emerso, como um buraco na memória. O mergulho temporal dá-se, ou renova-se de fato quando as imagens reencontraram o seu observador e ocupam um espaço específico para elas. As apropriações das fotografias, nesse sentido, movimentaram dramaticamente o seu tempo e transmutaram-se num instante, o presente no passado, a vida na morte 3 . A obra propõe então, um desvendar das camadas desses tempos que se fundem nas imagens, camadas que se agrupam entre memórias e intuições, que não se mostram em apenas um golpe de olhar, pois a experiência temporal da duração é requisitada ao observador. Quanto mais tempo for doado às imagens, mais elas se farão existentes. Portadora de um movimento contínuo, “Anima” será sempre uma obra inacabada e passível de recuperação. O

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SONTA G, op. cit. pg. 86. 535 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


seu tempo não é demonstrado objetivamente, mas sua massa é percebida pela duração que, não significa uma linha reta e horizontal, mas um fenômeno de transformação instável. Conforme a visão da semiótica, “Anima” poderia ser considerada uma operação tradutora interlinguagens, ou intersemiótica visto que os nítidos retratos analógicos são refeitos digitalmente, e que de um álbum tátil nascem fotografias em grande formato, proibidas ao toque. Desta maneira, “Anima” cumpriu a função de reanimar o passado, porém problematizando-o e atribuindo- lhe novos sentidos. O passado como ícone, como possibilidade, co mo orig inal a ser traduzido, o presente como índice, co mo tensão criativo-tradutora, como mo mento operacional e o futuro como símbolo, quer dizer, a criação à procura de u m leitor. (PLAZA, 2008, p. 8).

As fotografias que compõe Anima no seu processo de semiose (ação do signo) são portanto, o índice em movimento, uma cadeia de signos que se renovam sucessivamente - a representação da representação - o tempo sobre o tempo. A ressignificação das fotografias do álbum assumiu a função semelhante a de um aparelho desfibrilador, transformando o instante do ato fotográfico em experiência da duração e da morte, mas também do nascimento. A morte das imagens nada mais é do que um vir-a-ser: “Toda alma é uma melodia que convém renovar”4 e só 4

MALLA RM É apud BA CHELA RD, Gastón. A Intuição do Instante. Campinas-SP: Verus Editora, 2010, p. 57.

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é possível renovar uma alma na morte, mas mesmo o que está morto deixou rastros de sua existência, palimpsestos. Então, o que por sua natureza é índice, transmuta-se em objeto e transforma-se novamente em índice. A obra - organismo vivo – sofre a ação de movimentos circulares que transformam o seu corpo em fusão de tempo, em massa viscosa.

Referências BACHELA RD, Gaston. A Intuição do Instante . Trad. Antônio de Pádua Danesi. Campinas -SP: Verus Editora, 2010. CHEVA LIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Sí mbolos. São Paulo: Editora José Oly mpio, 2009. DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Trad. Marina Appenzeller. Camp inas -SP: Papirus, 2006. ENTLER, Ronaldo. Entrevista de Mauricio Lissovsky ao Forum Latino Americano de Fotografia de São Paul o. Disponível em: http://www.foru mfoto.org.br/pt/2010/07/ mauricio-lissovsky/ Acesso em: 20/03/2010. KLAUTAU, Mariano. Catál ogo Prêmi o Diário Contemporâneo de Fotografia – Brasil Brasis. Belém: Diário do Pará, 2010 LISSOVSKY, Mauricio . A Máquina de Es perar: Origem e Estética da Fotografia Moderna. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. SONTA G, Susan. Sobre Fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo : Co mpanhia das Letras, 2004. SOULA GES, François. Es tética da Fotografia: Perda e Permanência. Trad. Iraci D. Polet i e Regina Salgado Campos. São Paulo : Ed itora Senac, 2010. PLAZA, Julio. Tradução Intersemi ótica. São Paulo : Perspectiva, 2008

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