‘AS FIANDEIRAS’ Bricolagens, inter-relações e desdobramentos de um mito Josimar Ferreira 1 Resumo: “As Fiandeiras”, quadro de tema mitológico produzido no Barroco Espanhol, é uma das mais complexas obras de Velázquez, trabalha o tema fiar, o tecer, e sua ligação com a vida e a morte. É uma busca pela fábula antiga e seu modo de entendê-la, interpretá-la e reinterpreta-la. Uma bricolagem de mitos entrelaçados. O quadro em análise tem significado ambíguo permite várias interpretações. Aqui será analisada a sua interpretação mitológica, tendo como ponto de partida o título original, „A Fabula de Aracne‟. É colocado em perspectiva três textos mitológicos, textos estes que convergem em um ponto de fuga que é o próprio texto pictórico em sua estrutura narrativa. Palavras- chave: Fiandeiras. Reinterpretação. Bricolagem. Atualização.
“O barroco remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não para de fazer dobras. Ele não inventou esta coisa [...] Mas ele curva e recurva as dobra s, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra conforme dobra. O traço do barroco é a dobra que vai ao infinito.” Gilles Deleuze
Contextualização Histórica O quadro “As Fiandeiras”, é uma das mais complexas obras de Velázquez, conhecido também como “A Fabula de Aracne”, trabalha o tema fiar, o tecer, e sua ligação com a vida e a morte. Essa obra é um tema mitológico produzido na ultima fase do pintor, pertencente ao Barroco Espanhol. Podemos dividir a vida de Velázquez em quatro períodos que vão marcar sua evolução artística. 1º Período: Velázquez em Sevilha. Diego Rodríguez de Silva y Velázquez, nasce em Sevilha em junho de 1599, filho de integrantes da pequena nobreza. Sevilha influenciou de modo determinante a formação de Velázquez. Em dezembro de 1610, ingressa no ateliê de Francisco Pacheco, que será seu grande mestre. Homem de ampla cultura e bem relacionado com os meios intelectuais, ensina 1
Graduado em Artes Plásticas pela FAAC/UNESP, campus de Bauru (2011). Atualmente aluno especia l do mestrado em Artes Visuais no CEA RT/UDESC e em Filosofia no CFH/UFSC, ambos em Florianópolis/SC. 248 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
coisas essenciais e que o desenho é fundamento de toda beleza pictórica, um quadro não deve estar só bem colorido, mas bem composto, bem desenhado despertando uma emoção estética. Ao ser nomeado pintor oficial da Corte, em 1623, Velázquez encerra a etapa sevilhana, que iniciou co o estudo de diversos tipos humanos – velhos, jovens, mulheres, etc, o colorido do vestuário e objetos de gêneros variados – É predominante nesta etapa a técnica tenebrista, que destaca fortemente as figuras iluminadas em primeiro plano sobre um fundo escuro, utilizando uma cor espessa que recobre totalmente o quadro. As obras correspondentes a esse período se distribuem em quadros de gênero religiosos e retratos, “Cristo em casa de Marta e Maria”, “A Mulata”, “a Velha Fritando Ovos”, “Aguadeiro de Sevilha” entre outros. Em algumas dessas ele já usa o estudo de um “quadro dentro do quadro”. 2º Período: Velázquez em Madri. Como pintor de Câmara, tem acesso às coleções reais, tanto no Alcazar, como no Prado e no Escorial. As coleções são ricas em obras venezianas, particularmente em Ticiano e Veronês. Obras que serão decisivas na formação do p intor. Conhece o pintor flamengo Peter Paul Rubens, que passava por Madri. Viaja para a Itália no ano seguinte, pois o fundamento da boa pintura estava em Veneza. Nesta etapa da obra de Velázquez, ocorre uma maior valorização da luz em função da cor e a composição, o que conduz a ordenações mais estudadas e o aclaramento dos fundos. É deste período também a grande atividade como retratista. Pinta também, as primeiras obras de temas mitológicos, nas quais a visão realista da mitologia é a característica ma is marcante, vemos isso em “O Triunfo de Baco” ou “Os Bebados”. A primeira viagem à Itália, em agosto de 1629, encerra a primeira etapa madrilena, desta viagem procura um enriquecimento através do conhecimento direto dos mestres italianos – Tintoretto, Miguel Ângelo e Rafael – e realiza: “A Túnica de José” e “A Forja de Vulcano”, conseguindo realizar a captação do fugaz, do movimento contido, conforme a estética barroca. 3º Período: Atividade palaciana.
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Ao regressar de Madri, em janeiro de 1631, Velázquez inicia uma etapa de atividades palacianas. Tem o encargo da reforma dos palácios reais. Gozando da confiança do rei e diante da necessidade de adquirir obras para os novos salões reais, Velázquez decide novamente viajar à Itália, em janeiro de 1649, onde sua técnica vai se enriquecer em vários aspectos. O pintor busca a representação da luz real, o que conduz as pinceladas quebradas e justapostas, diferentes das superfícies continuadas da primeira fase madrilena. As pinceladas são agora mais fluidas, conseguindo um efeito ótico a uma certa distância, iniciando assim, os princípios técnicos que triunfam com a pintura impressionista no século XIX. São predominantes neste período, os retratos da “Rainha Mariana da Áustria”, o de “Felipe IV” e o da “Infanta Margarida”, com trajes da alta realeza. Surpreendente é o trato do “Papa Inocêncio X”. A este período correspondem também, a “Vênus no Espelho”. Em junho de 1651 Velázquez está de volta à Corte. 4º Período: A última fase. Pouco depois do seu retorno a Madri, Velázquez é nomeado para mais um cargo dentro do Palácio: o de “Aposentador Maior”, intensificando sua atividade na corte, p que não impede que nesse período realize suas obras mais importantes. As duas viagens que o pintor realizou à Itália fizeram com que o gosto pela linguagem clássica ocasionasse sua devoção pela fábula antiga e seu modo de entendê-la e interpretá- la. Com “As Meninas”, Velázquez realiza sua obra prima. Obra também de diversas interpretações, como tema da história, se encontra dentro do âmbito da vida dos reis; como realização artística, é a culminância dos recursos pictóricos, tanto técnicos como de representação, com seu efeito de profundidade, a incrível captação da atmosfera o jogo de luz, a ruptura do plano real e o imaginário e a brilhante presença do retrato. Dentro da mesma linha do naturalismo, os quadros mitológicos são particularmente importantes na ultima fase de Velázquez, tanto pela técnica pictórica no tratamento de luz, cor e composição, como a composição intelectual e simbólica do tema.
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“A Fiandeiras”, obra mais representativa de Velázquez, dentro do tema mitológico, está inserida no momento na história da arte pictórica em que se sente um cansaço ante os quadros de temas religiosos, daí uma busca também por temas mais irreais – os mitológicos. A Espanha de Felipe IV condensa-se nos efeitos causados pela Contra-Reforma, no absolutismo monárquico, nos conflitos políticos e religiosos, no sentimento de honra e na esfera do teatro que era um reflexo da própria vida. Em Mad ri respirava-se um ambiente teatral. As lutas acirradas entre os filósofos do idealismo e do materialismo e uma cosmovisão científica também são características desse período. Embora seja o barroco espanhol e uma cultura particular, não podemos nos esquecer de que algumas realizações da era barroca foram internacionais. Para Arnold Hauser (2000) a nova cosmovisão cientifica decorreu da descoberta de Copérnico por volta de 1610. A teoria de que a Terra se desloca em torno do Sol, em vez de o universo mover-se ao redor da Terra, como se sustentava antes, mudou para sempre o antigo lugar atribuído ao homem no universo. Em 1650 Galileu comprovou o movimento dos corpos celestes. A Terra não é o centro do universo, ela é apenas um dos planetas que giram em torno do Sol, que é o centro do sistema. Saímos, então, da posição de centro do mundo para nos tornarmos apenas parte; deixamos de ser o centro privilegiado para ser uma coisa instável que roda em torno de outro. A Terra não é o centro do sistema e nem está rodeada por esferas fixas, pelo contrário, há um espaço infinito onde esses corpos celestes estão girando e não se sabe o tamanho desse espaço. É esse espaço móvel e infinito, o espaço da pintura barroca. O homem que não tem mais certezas definitivas, cria o espaço barroco. Por isso nesse espaço não cabe tudo, podemos observar isso na obra de Velázquez, um grande representante desse período. Já não se põe tudo dentro de um quadro, porque já se sabe da relatividade do espaço e da visão. Se a Renascença se caracterizou pelo equilíbrio, pela harmonia, pela racionalidade das construções, o Barroco passa a impressão de que o mundo está fora do quadro e que o pintor apreendeu, apenas, uma parte dele. Segundo Gombrich (2000), nas principais obras de Velázquez vemos que ele confiou na nossa imaginação para seguir a sua orientação e completar o que está de fora. 251 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
Bricolagens e desdobrame ntos do mito Ao reconhecer em “As fiandeiras” uma narrativa, torna-se necessário o estudo da cena, das seqüências e do encadeamento lógico. Através de uma análise inicial da composição e ordenação dos elementos observamos na obra de Velázquez, vemos o estilo pictórico do séc. XVII, que como diz Wölfflin (2000) deixa-se de ver em linhas e passa-se a ver em massas, ao invés de isolar os objetos, reúne-os. É como se todos os pontos fossem animados por um movimento. As figuras têm a sua existência associada aos demais motivos do quadro. Com relação à desvalorização do estilo linear, podemos observar que a forma de contornos favorece uma ligação, na qual uma forma busca a outra, criando a impressão de um movimento contínuo. O que tem importância é a unidade e o conjunto do quadro. Característica essa do período em questão. Os olhares das personagens da obra descrevem direções visuais, percorrem espaços, as figuras estão representadas por meio de linhas curvas e graciosas, reforçando a ilusão de movimento, dando a sensação de um grande “gerúndio”; elas estão trabalhando... conversando... fiando...ando...ando.
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FIGURA 1 “As Fiandeiras” – Velázquez. Óleo em tela, 220x289 cm. Museu do Prado, Madri (Espanha). 1657.
O movimento dos corpos é um destaque que completa e desempenha funções de movimento. Os objetos que compõe o ambiente também determinam direções visuais : segmentos de retas verticais, horizontais e inclinadas; linhas circulares e curvas que se misturam às diferentes vistas possíveis dos corpos das figuras femininas (frente, lado, costas). O que mais destaca pela configuração é a roca em movimento rotatório. Sabemos que uma roca de fiar gira com muita força, e em virtude da velocidade, nenhum dos raios pode ser visto. A visão dos raios destruiria a impressão de movimento, conseguida com grande habilidade pelo artista. Um dos motivos preferidos pela pintura barroca, segundo Wölfflin (2000) consiste em intensificar o movimento em direção à profundidade, através de um primeiro plano e uma
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súbita diminuição de tamanho que dirige ao fundo. O quadro esta estruturado em dois espaços e neles podemos estabelecer novas relações. O primeiro espaço, caracterizamos como: espaço-sombra; espaço-opacidade; espaçosimplicidade; espaço-produção; espaço-trabalho. Nele estão presentes elementos que assim o configuram como um ambiente de trabalho, de produção: uma roca, novelos de lã, fios, escada, entre outros objetos. As vestimentas das mulheres são simples: saias sem amarração,mangas das camisas dobradas, pés descalços. Tudo um trabalho árduo e sem interrupção. O segundo espaço caracterizamos como: espaço- luz; espaço-brilho; espaço-luxo; espaço-produto; espaço-ócio. Os elementos que assim o configuram são: os ricos tapetes expostos na parede para serem apreciados, colocados em destaque, as damas bem vestidas, um instrumento musical, indicando um local de diversão. Apesar
dos
espaços
terem
“qualidades” diferentes,
estabelecem
entre
si
correspondências plásticas e temáticas. Por correspondências plásticas vemos o jogo de luz e sombra que percorre os ambientes, pelas direções visuais, pela homogeneidade de cores, pelo efeito de profundidade, pela simetria. Existe uma relação entre a parte e o todo, sentimos a existência de programas narrativos organizados com elos que se unem. Com relação às correspondências temáticas, podemos tomar como ponto de partida a relação processo-produto que há no quadro. A roca é o elemento definidor do processo, colocada no primeiro plano e em grande proporção e o tapete, colocado ao fundo, como definidor do produto. O tapete, colocado no fundo do quadro, somente possui “vida” em relação às mulheres que fiam e a seu instrumento de trabalho – a roca. Para se chegar ao tapete é preciso tecer o fio. Temos um programa narrativo precedendo outro. Em As Fiandeiras a história se articula em três seqüências que se constroem, no interior do relato. Nos três casos o relato se foca em seqüências gradativas: o fio, o tecer, a trama, o tapete. A ação das personagens passa-se em um cenário, que envolve e limita o lugar da cena sobre o qual se mostram sucessivamente os episódios sucessões. A relação à estruturação do espaço do quadro está ligada ao se u espaço cenográfico. O ambiente teatral 254 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
era o que se respirava em Madri, na época de Velázquez. É visto em grande parte de sua obra, como em As Fiandeiras e em As Meninas. Trabalha com a sua mecânica de funcionamento, agrupamento e ação das personagens. O ambiente que vemos é uma oficina de trabalho. Uma cortina é recolhida, o que permite associar à idéia de representação, como se a obra tivesse começado e estivéssemos ali presentes. Na parede (direita) flocos de lã, à esquerda um golpe de luz, o que indica que poderia existir uma janela aberta. Na parede frontal abre um vão, que conduz a uma outra habitação, com dois degraus. Uma parede oculta na parede esquerda, deixa entrar uma luz intensa que ilumina a cena. Há dois tapetes na parede, um posto de frente e outro na lateral direita, onde se encontram damas, uma delas olhando para a oficina, serve de elo entre os dois espaços. A presença do tapete confirma a influência do teatro, assim como o instrumento musical composto no quadro. Para Omar Calabrese (1987) é um motivo bastante repetido, e que nunca foi analisado pelos historiadores da arte em seu significado. O tapete não é um elemento lexical, mas sintático. Não funciona como tapete apenas o reconhecemos como tapete. Analisando as figuras colocadas no tapete, apesar da falta de nitidez na sua representação, notamos a presença de dois anjos no canto superior. No canto inferior direito do mesmo tapete, vemos ainda um fragmento de um lenço vermelho e a cabeça de um toureiro. Essas figuras representadas nos remete a um quadro de Ticiano, denominado o Rapto de Europa. Velázquez e outros artistas tinham uma grande devoção pelo pintor veneziano, tudo leva a crer que este quadro foi copiado quando ele passou por Madri. A obra de Ticiano foi colocada como um tapete que dá unidade temática ao quadro, mas não funciona como tapete. Usou um tapete como espelho que reflete uma cena, fato que não estava lá. É o cenário da encenação do Rapto de Europa, um possível “pano de fundo” para a representação de Velázquez. O pinto r fez isso em outras obras, em que se questiona o que ele quis pintar de verdade. O quadro em análise é característico da cultura do séc. XVII, seu significado ambíguo permite várias interpretações. Aqui será analisada a sua interpretação mitológica, tendo como ponto de partida o título original, „A Fabula de Aracne”. É colocado em perspectiva três 255 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
textos mitológicos, textos estes que convergem em um ponto de fuga que é o próprio texto pictórico em sua estrutura narrativa. Sabemos que os artistas dessa época se inspiravam nos versos pagãos de Ovídio (1983), se debruçam em temas da Antiguidade. O interesse pelos deuses pagãos sempre esteve presente como motivo artístico. As Metamorfoses de Ovídio, influenciaram artistas renascentistas, que foi fonte de períodos seguintes. Um quadro é um texto, todo texto teria ponto de entrada e pontos de fuga, quando vamos ler se produz uma leitura que caminha em uma direção. Encontramos nos planos do quadro uma coerência textual entre três narrativas mitológicas que a compõe: “As Parcas”, “A Fabula de Aracne” e o “Rapto de Europa”. Todas estão inter-relacionadas dentro de um novo texto que é “As Fiandeiras”. Os mitos que estão presentes no quadro vão determinar um percurso narrativo. O tema fiar está presente nas três cenas, a ultima brilhantemente composta por Velázquez em forma de tapete. Os três textos estão entrelaçados, formando um tecido, onde eles se cruzam. As fiandeiras do primeiro plano, mulheres tecendo nos chamam a atenção no nosso percurso e nos convida à entrar na cena. São representadas como mulheres tecendo, mas seriam as Parcas, no entanto essa relação com as Parcas não é imediata ou transparente. Passa antes a idéia de tecer, que também seria a função das Parcas, conhecidas como as “fiandeiras do destino” na mitologia. Há também uma ligação entre vida e morte, tema comum no maneirismo barroco. Brandão (1997) afirma que as Parcas são uma projeção das Moiras: Cloto, Laquésis e Atropos, fiandeiras da vida e da morte: uma segura o fuso e puxa o fio da vida, a segunda enrola-o e sorteia o nome de quem de quem deve deixar a luz e a terceira corta-o inflexivelmente. O destino é fiado para cada um pelas Parcas. Como se observa, a idéia de vida e morte é inerente à função de fiar. No espaço mais iluminado do quadro, o segundo espaço, vemos o mesmo núcleo temático – o tecer. Aqui a referência é mais direta com a mitologia, pois “A Fábula de Aracne” é o título original do quadro, e essa fábula tem como tema central uma trama, a disputa entre a deusa Minerva (Palas Atena) e a mortal Aracne, tecelã de tapetes. Nesse 256 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
espaço temos três damas bem vestidas observando a cena, e duas figuras, possivelmente Minerva e Aracne, pivôs da disputa em questão. No livro de Ovídio (1983), encontramos o texto que narra essa fábula. Palas Atena (Minerva), deusa da guerra, da sabedoria, e das artes (arte para os gregos era técnica), ela presidia os trabalhos femininos da fiação, tecelagem e bordado. Aracne filha de um tintureiro e hábil tecelã, desafia a deusa à uma competição pública, a deusa aceita o desafio. Atena representou em sua tapeçaria os doze deuses do Olimpo em sua majestade. Aracne, maliciosamente compôs aventuras amorosas de Zeus (Júpiter), com jovens mortais onde ele se metamorfoseou como cisne, como sátiro, como ouro, como fogo, como serpente, como carneiro, como cavalo entre outras formas e como touro, onde ele rapta Europa. Atena examinou o trabalho da jovem, nenhum deslize, nenhuma irregularidade. Estava perfeito. Vendo-se vencida ou igualada em sua arte por uma simples mortal e irritada com a cena criada por Aracne, a deusa fez em pedaços o trabalho de sua competidora e ainda a feriu com sua lança. Insultada Aracne tentou se enforcar, mas Atena não permitiu, aliviou- lhe o peso e transformou-a em aranha, para que tecesse pelo resto da vida. A deusa Minerva é representada por Velázquez com a lança na mão e um elmo na cabeça, vestida para a guerra, pois é assim que o pintor nos faz reconhecer a deusa, e Aracne no centro da obra, quase incorpórea, como se nesse exato momento que a olhamos estivesse sendo convertida em aranha. Velázquez parece quis captar esse exato momento. A deusa Minerva e a donzela Aracne parecem puros clarões impressionistas ante um tapete envolto em luz. Neste mesmo espaço da narrativa aparecem damas vestidas luxuosamente, que possui uma leitura ambígua. Fazia parte do contexto histórico em que a obra se insere, a importante “Fabrica de Tapetes Santa Isabel”, esse local era visitado com freqüência pelas damas da corte e pela família real. Também podemos associar elas as ninfas e as musas que presidiam a cena na fabula. Se fossemos visitar a fábrica de tapetes em Madri, não veríamos como “viu” Velázquez, Minerva e Aracne, ali materializadas, nem as Parcas tecendo. Velázquez fez uso de um ambiente comum para retratar o tema mitológico.
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Conclusões No fundo como já foi dito anteriormente Velázquez utilizou-se de um tapete para representar uma cena que não está ali, e esta cena foi tecida também por Aracne em seu desafio com a deusa Minerva. Desta forma Velázquez brinca com o tema presente em toda a obra – o tecer, quando transforma o quadro de Ticiano no pano de fundo de sua narrativa. Talvez estivesse querendo fazer uma reflexão sobre a arte pictórica como já havia feito em “As Meninas”. Em as Meninas ele se coloca pintando, aqui ele coloca uma obra já pronta. Velázquez fundiu em uma admirável unidade a fábula e a cotidianidade de forma clara e impressionante. Segundo Gilles Deleuze (1991), uma obra barroca, é uma obra que remete a varias dobras levadas ao infinito. Vemos isto nesta obra e nos mitos inter-relacionados entre si. Estão uns dobrados sobre os outros, que se redobram e se desdobram dentro da imagem articulada e construída pelo artista. A obra ao invés de um todo homogêneo, é na realidade uma narrativa complexa suscetível de numerosas escolhas interpretativas. As formas parciais aqui – a roca, o fuso, fio, o tapete – foram fundidos num movimento geral que domina a tela, produzindo o efeito de um todo articulado, que passa pelo tema mítico do fiar. Assim, as Parcas, que são figuras que comandam o destino das pessoas, vão determinar também o percurso da tela em questão, parece que elas estão criando a trama em questão.
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