Lyara Luisa De Oliveira Alvarenga

Page 1

PASSANTE - CORPO E IMAGEM EM EXPERIMENTAÇÃO AUDIOVISUAL Lyara Oliveira 1 Resumo: Trabalhos artísticos de experimentação audiovisual muitas vezes esbarram em aspectos da narrativa audiovisual convencional. Neste artigo configuro uma proposta de prática poética que passa por questionamentos das esferas pragmáticas da produção audiovisual. Apresento reflexões e exponho o modo de realização da videoinstalação Passante, realizada em 2011 como parte de minha dissertação de mestrado cuja proposta inicial previa a realização de uma pesquisa que conjugasse prática artística e reflexão teórica. A presença do corpo do indivíduo no espaço público e sua interação com os acontecimentos banais ou extraordinários desse espaço são o ponto de partida para as indagações que aqui apresento. Palavras chave: arte contemporânea 1, narrativa audiovisual 2, experiência 3, corpo 4, imagem 5 A ABSTRACT: Artworks on audiovisual experimentation often run into the conventional aspects of audiovisual narrative. In this article I set up a proposal for a poetic practice that involves questions of the pragmatic spheres of audiovisual production. Here I present ideas and expose the way of making the video installation Passante held in 2011 as part of my mastership, which the original proposal provided for the holding of a research which combines artistic practice and theoretical reflection. The presence of the individual's body in public space and its interaction with the ordinary or extraordinary events, in this space, is the starting point for the investigations presented here. Keywords: contemporary art, audiovisual narrative, experience, body, image

1. Desconstrução e questionamento nas práticas contemporâneas No contemporâneo, trabalhos experimentais em audiovisual fazem uso de procedimentos desconstrutivos tanto no que concerne a desestruturação da condição da narrativa em si quanto com relação a uma desestruturação do modo de uso da linguagem audiovisual tradicionalmente empregada na elaboração das narrativas hegemônicas. A experimentação se coloca tanto no campo das objetividades físicas quanto no campo das linguagens. Nos trabalhos de diversos artistas contemporâneos é reconhecível uma vontade de lidar diretamente com as narrativas audiovisuais de modo desconstrutivo e questionador. “Os procedimentos desconstrutivos na arte dizem respeito à destruição e à reconstrução da noção 1

Faculdade Santa Marcelina 611 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


de objeto artístico, inserindo-se em práticas cujos objetivos giram em torno da desmontagem de um significado para se obter outro.” (MELLO, 2008, p. 115). Esses procedimentos têm origem ainda nas vanguardas modernistas e são retomados a partir dos anos 60. A desconstrução está diretamente ligada à ideia do experimental. Christine Mello indica a corrente desconstrutiva na arte como uma vertente experimental. Ao mesmo tempo, mostra que a prática experimental carrega a experiência do processo artístico como parte fundamental de sua constituição (2008, p. 119). A forma de agir desconstrutivamente na arte aproxima-se do ideal de ação proposto por Vilém Flusser, que atribui ao artista a função de elucidar os dispositivos de produção formatados pelos modos convencionais de operação nas mais diversas áreas. Flusser apresenta em seu texto Filosofia da Caixa Preta (2002) uma série de definições de termos que, a princípio, dizem respeito a uma análise da fotografia, mas que podemos aplicar a todas as “máquinas contemporâneas de produção simbólica” como destaca Arlindo Machado (2007a, p. 43). Para Flusser, a máquina fotográfica é um aparelho, um equipamento que traduz pensamento conceitual em imagem, perante o qual é possível assumir duas posturas diferentes. A primeira à qual a maioria das pessoas adere é a postura de funcionário, onde o indivíduo manipula o aparelho agindo em função deste, atuando de acordo com o programa (combinação de regras que regem o aparelho). A segunda postura possível, muito mais difícil e complexa, é a postura de fotógrafo, na qual o indivíduo procura inserir na imagem resultante informações não previstas pelo aparelho. Machado complementa essa idéia dizendo que é nessa segunda categoria que devem se colocar os que se pretendem artistas. “O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina, ou do programa que utiliza, é manejá- los no sentido contrário ao de sua produtividade programada.” (MACHADO, 2007a, p. 14).

612 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Desconstruir e subverter as normas estéticas instituídas no campo do audiovisual são as premissas para a reflexão que aqui toma forma. Existem diferentes e variados modelos de apreciação crítica da narrativa audiovisual. A forma trabalhada em minha prática artística para propor uma reflexão questionadora e poética que produza estranhamento no código audiovisual é a da prática artística que faz uso do vídeo como meio de ação e, ao mesmo tempo, trabalha a narrativa como um dispositivo de articulação de pensamento. Procuro empreender uma forma de pensar e realizar trabalhos que sigam num sentido contrário ao das narrativas audiovisuais hegemônicas e aos seus modos de produção. Nesse sentido, desenvolvo um plano de realização de trabalho audiovisual que parte de um acontecimento1 e das imagens e sons por ele gerados para instigar uma potencialidade narrativa, justapondo registro e articulação narrativa, ao mesmo tempo em que a noção de acontecimento também ocorre na exposição do trabalho, pois a proposição narrativa só é viável quando de sua apresentação. Ao invés de atuar por meio da junção conceitual de fragmentos para conduzir a uma ordem linear lógica que se institui a partir de uma organização discursiva - procedimento adotado nos meios hegemônicos de produção -, tento criar uma narrativa enquanto fluxo, trabalhando a partir do tempo da experiência. Uma narrativa que é, sim, construção e elaboração, mas que se evidencia enquanto construção. Uma narrativa não ilusionista – no sentido em que ela não se propõe a criar uma ilusão de coesão e continuidade – aberta ao acaso e capaz de ativar uma experiência emocional e espacial. A minha proposta de realização artística está ligada a uma reflexão mais ampla, que é a de produzir processos narrativos, pensados a partir das imagens e dos sons, tentando confrontar a linearidade programada das narrativas audiovisuais hegemônicas, que formalmente partem de bases verbais escritas, forjadas em processos lineares progressivos (FLUSSER, 2007, p.113). Retive para isso, como ideia norteadora, outra colocação de Flusser, esboçada no livro O Mundo Codificado, que sustenta a crença na possibilidade de formulação de pensamento a partir de imagens (2007).

613 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Seguindo mais essa premissa, tento elaborar ensaios experimentais audiovisuais sobre a questão da narrativa que fujam de uma abordagem da estruturação conceitual verbal e tratem a narrativa como um processo organizador de pensamentos. O ensaio audiovisual Passante, sobre o qual trato nesse texto, é fruto de um trabalho processual, onde a captação das imagens e dos sons junto ao acontecimento tem importância equivalente aos procedimentos de pós-produção. É no processo de realização que se instaura a desconstrução dos cânones da narrativa audiovisual em diferentes esferas: sobre aspectos da narrativa em si e/ou sobre os modos vigentes de produção audiovisual. 2. Um corpo estendido na calçada Passante está inserido numa investigação e prática artística mais ampliada e extensiva dentro de minha prática artística. A videoinstalação foi desenvolvida durante a pesquisa de mestrado sobre o uso de predicados narrativos em práticas artísticas contemporâneas. As imagens foram captadas, editadas, reeditadas, repensadas junto à realização de leituras, da apreciação de outros trabalhos em vídeo e cinema e da redação da dissertação. Tudo em função da proposta de pesquisa teórica-prática apresentada desde como projeto de pesquisa. A seguir, apresento um breve detalhamento sobre a realização e concepção de Passante (videoinstalação sem áudio, 2011 – looping).

FIGURA 01: Frame do vídeo da videoinstalação Passante

614 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 02: Frame do vídeo da videoinstalação Passante

FIGURA 03: Frame do vídeo da videoinstalação Passante

Em Passante, a proposta é evidenciar o momento do acontecimento, ou do nãoacontecimento: um corpo estendido na calçada. Isso pode ser o desfecho, o início ou o meio de uma situação. O que se apresenta de efetivo é a situação posta do corpo na calçada. Pessoas passam, mas nada acontece. A situação não se altera. O espectador não sabe exatamente do que se trata. É uma mulher? É um travesti? Ela está morta, bêbada, adormecida ou ferida? (FIG. 01, 02 e 03)

615 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A qualquer momento ela poderá se levantar sozinha, alguém poderá ajudá-la ou alguém poderá constatar que ela está morta. Qualquer uma dessas ações geraria um acontecimento que desencadearia um possível desenrolar da situação. Mas isso não acontece. Durante o período de captação da situação, isso realmente não aconteceu. O tempo de captação foi contínuo. No entanto, no vídeo, esse tempo é esfacelado em planos separados que são expostos simultaneamente, gerando um único quadro que é resultado de planos diferentes de uma situação que é basicamente a mesma, mas em momentos diferentes. A imagem se desdobra em várias sobreposições e acaba por determinar a reincidência constante do gesto. A ação de passar diante do corpo. O gesto que poderia gerar um acontecimento, mas que não gera, que vai se repetindo e repetindo. E o não-acontecer se prolonga ad infinitum, pois o vídeo não tem fim, nem início, nem meio. Ele apenas se desenrola, se repete e a situação permanece a mesma. Essa repetição, no entanto, não leva necessariamente a um entendimento mais fácil ou imediato da situação que se coloca. A sobreposição de imagens de baixa definição, em meia fusão, e o movimento instável da câmera dificultam um possível entendimento imediato da situação. A questão da repetição relaciona-se com a idéia de reiteração que paira sobre a narrativa audiovisual. No cinema, onde a atenção do espectador está totalmente voltada para filme (ou pelo menos é o que se deseja), a narrativa praticamente não se repete, ela segue uma linha constante e racional de condução linear da história, que costuma ser bem amarrada e obedecer a uma ordem de lógica causal. Já na televisão, um meio dispersivo que disputa atenção com mundo ao seu redor, a narrativa precisa ser recorrente, circular, reiterar as idéias e sensações a cada novo plano (MACHADO, 2000, p 87). Em Passante, a reiteração da imagem é importante. A imagem do corpo caído é ignorada no ambiente real. Os passantes que presenciaram a situação na rua veem, mas não enxergam. O passante espectador do vídeo é compelido a ver e a enxergar. Ele pode, obviamente, só passar e também não enxergar. A obra demanda a sua atenção para decifrar aquela imagem explícita e aparentemente simples, que se repete indefinidamente. O 616 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


espectador é compelido a enxergar, desvendar e entender a imagem que ali se apresenta. A situação se repete e se repete, e é sempre a mesma. É possível entendê- la? É possível se compadecer? É possível se inquietar? É uma repetição que não leva a um desfecho. Uma sequencialidade que promove uma narrativa em potencial, em suspenso, que não se desenrola nunca, que está ali para evidenciar o instante, o acontecimento ou a falta do acontecimento, já que ninguém reage ou toma qualquer atitude ao passar diante do corpo estendido no chão, o trabalho não converge para um final, se sustenta sobre uma sugestão de inacabamento. A repetição aqui não é apenas redundância. Ao mesmo tempo em que evidência e explicita, ela gera um ritmo para o vídeo. Um ritmo inconstante, fluido, instável. A repetição se articula como um princípio organizativo e funciona de modo parecido ao de outros sistemas poéticos, que também se valem deste recurso como, por exemplo, a música, a poesia, história em quadrinhos e a tapeçaria (MACHADO, 2000, p. 89). A apresentação em espaço expográfico prevê uma projeção em baixa definição, em lugar claro, de fácil acesso e preferencialmente por onde passem muitas pessoas. Tais indicações visam a potencializar o efeito do vídeo, instigando os espectadores passantes. O corpo do próprio espectador pode ser inserido na obra, pois quem passa pela videoinstalação provoca uma sombra que interfere na projeção e que ao mesmo tempo é inserida no quadro. O espectador pode ser mais um passante que não vê ou ser alguém que compartilha daquela tragédia efêmera e cotidiana. (FIG. 04)

FIGURA 04: Imagem da videoinstalação Passante (2011)

617 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Cabe ainda mencionar que o que despertou o interesse na captação e na posterior vontade de transformar o material captado em trabalho poético foi a indignação com a cena que ocorria no meio de uma rua do Centro de São Paulo e o questionamento ético que ela levantava. A duração da captação foi curta, não era suportável olhar e enxergar aquela situação. Depois de se passarem aproximadamente três minutos, interrompi a gravação e fui verificar a pessoa que estava no chão. Tratava-se de um travesti semidesacordado, aparentemente em estado alterado. Logo que ele conseguiu se levantar apareceu uma mulher que se disse sua conhecida e ficou lá para ajudá- lo. Perguntando ao redor pude constatar que ele se encontrava ali no chão desde as primeiras horas daquela manhã. No momento da captação já passava um pouco das onze horas. Antes de chegar a essa última versão, as imagens de Passante foram editadas num clip simples com duração de um minuto e dez segundos. O clip foi disponibilizado em meados de 2010 no YouTube, sob o título de Inconveniência. Desde então, o vídeo já contabilizou mais de doze mil acessos, sem que nenhum tipo de divulgação fosse feito. É o meu vídeo com maior visibilidade. Esse grande número de acessos chamou atenção e também me instigou a continuar trabalhando com as imagens. Uma das intenções em Passante é gerar um questionamento da concepção de continuidade linear causal e conceitual, que está nas bases da narrativa aud iovisual. Para isso, emprego como estratégia uma maior aproximação com o acontecimento que dá ou poderia dar origem à narrativa. Procuro estabelecer menos uma representação e mais uma apresentação presentificada do acontecimento, sugerindo uma continuidade que esteja atada ao acontecimento ou, então, uma suspensão da continuidade. É a proximidade com um determinado acontecimento que gera a intenção de criar e realizar o trabalho. Ao mesmo tempo, quando de sua apresentação, o trabalho também se dá enquanto acontecimento, na medida em que tenta gerar uma experiência que lhe seja pertinente. A tentativa de presentificação se relaciona a uma característica intrínseca ao meio videográfico de sempre conjugar a imagem no presente. Não há como estabelecer uma distinção visual entre algo que está sendo transmitido ao vivo e algo que foi gravado. Mesmo 618 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que a imagem tenha sido captada anteriormente, toda vez que é exposta ela se atualiza e se faz acontecimento. 3.Processos de investigação e prática artística Tenho realizado ensaios audiovisuais para diferentes plataformas: alguns para exibição em monocanal, outros para apresentação na forma de instalações e, mais recentemente, tenho utilizado os sites de compartilhamento YouTube e Vimeo como meio de divulgação de trabalhos. Procuro alcançar uma prática desconstrutiva, agindo a partir da exploração de espaços/ambientes que o tempo todo se interpenetram: o espaço urbano de ação coletiva, e o espaço de ação individual, determinado pelo do corpo e sua vontade de ação. Investigo a presença do corpo e a percepção do indivíduo nesses espaços de dobra, lidando com questões como a relação tempo/espaço, a memória e a ética. E indagando sobre a relação efêmera que ocorre entre realidade e subjetividade. Na realização de meus trabalhos, tento lançar um olhar carregado de percepção narrativa sobre ações banais e cotidianas, observando instantes de conflito, de acontecimento e, da mesma forma, captando os tempos mortos, os tempos de passagem, tempos distintos ao cronológico, regulamentar. A intenção é destrinchar o instrumental modelar de produção audiovisual, explorando o potencial poético dessa ação elucidativa. Em meu trabalho de prática poética existem algumas linhas de investigação dentro das quais tento me organizar. Uma das linhas de investigação parte da observação, em espaços de ação coletiva, das relações humanas, das relações dos indivíduos com o espaço e da presença do corpo desse indivíduo em relação à ação que se propõe e em relação a outros corpos que habitam e/ou circulam nesse mesmo espaço. O que busco são pequenos flagrantes situacionais, como na videoinstalação Passante. Nela, o material original foi captado em uma gravação realizada no centro de São Paulo, que não fora previamente programada, mas que, no entanto, se origina em uma disposição prévia de observação.

619 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Esse modo de investigação propõe uma intensa subjetividade na forma de expor uma percepção narrativa. O resultado almejado é a realização de trabalhos questionadores do campo da narrativa audiovisual, tentando borrar os limites entre realidade e percepção subjetiva narrativa. Para realizar os trabalhos me imponho uma proposta de jogo de linguagem. Um jogo aberto ao acaso, onde não há roteiro pré-estabelecido, o que existe é uma predisposição poética de observar a realidade e proceder com a captação de som e imagem, o que instiga a realização de um ensaio. O procedimento artístico se instaura em decorrência da proposição de reverter aquele estado banal de vivência em experiência artística, ou um estado intenso de experiência emocional e experiência artística. Trabalho a ideia de experiência conforme conceituação de Walter Benjamin em seus textos O Narrador e Experiência e Pobreza (2008). Segundo Benjamin o conceito de experiência deriva do acúmulo de dados e informações que afluem na memória, estando ligados à tradição do discurso vivo e à transmissão direta de conhecimento. A experiência é intensa, está diretamente ligada ao real, se dá na confluência com o acontecimento, pode ser individual ou coletiva, mas é sempre subjetiva. Já a vivência, por sua vez, é fugaz, efêmera e superficial, ela se dá pela proximidade com o fato, se realiza por meio de choques com a realidade, sem gerar, com esta, uma confluência profícua. Em Passante a situação está posta em seu aspecto vivencial. No entanto, paira sobre a situação real indícios fictícios. Proponho a narrativa como procedimento, tentando não incidir sobre as dicotomias convencionais entre realidade/ficção, memória/observação. O que importa é explanar a detonação de um estado emocional e não contar e/ou enunciar um fato acontecido Lúcia Santaella apresenta uma definição de narrativa convencional, bastante simples e eficaz, extraída da tradição literária. “Uma narrativa ideal começa por uma situação estável que uma força qualquer vem perturbar, do que resulta um estado de desequilíbrio. Uma força dirigida no sentido inverso

620 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


restabelece o equilíbrio. O segundo equilíbrio é semelhante ao primeiro, mas ambos nunca são idênticos” (SANTAELLA, 2009 p. 322). Ensaios como Passante se realizam na exploração intensiva da força que perturba, pois o desequilíbrio que ela provoca realmente não tem fim. O que o trabalho sugere é focar a atenção nesse momento de perturbação e em seus desdobramentos imediatos sem levar a qualquer tipo de conclusão. Na apresentação deste tipo de obra, procuro também estabelecer um sutil jogo de linguagens que requer o envolvimento do espectador, pois é preciso que ele aceite se colocar como participante e se disponha a assumir as instâncias de narrador, personagem e espectador. Diferentemente dos ensaios experimentais como o apresentado aqui, uma narrativa audiovisual hegemônica é realizada na maioria das vezes seguindo um processo bastante estruturado2. A lógica de realização seria: p rimeiro a ideia (de origem abstrata, fictícia ou real), em seguida, o desenvolvimento da ideia em forma roteiro (que pode ser sistemático, fechado, ou apenas uma sugestão das ações narrativas) e, só depois, a gravação das sequências. Tal processo, em geral, atende mais a um plano prático de produção do que a uma ordem narrativa. As gravações são extremamente fragmentadas. Em razão disso, a captação de imagens obedece a rígidas normas de continuidade, seguindo uma lógica de causa e consequência, tanto narrativa, quanto na relação de tempo/espaço diegético. Na última etapa do processo, a pós-produção, é onde são almagamados os fragmentos, de modo a dar forma a um produto final coeso. A narrativa audiovisual hegemônica coloca-se no papel de explicar a história, por isso ela busca a linearidade, a verossimilhança com o real, a coerência narrativa, a explicação intrínseca às relações de causa e efeito. Mesmo quando começo, meio e fim são embaralhados em sua ordem de apresentação, de modo geral, ainda sim, persiste a lógica causal entre esses elementos e ao final o espectador ainda é capaz de organizar mentalmente a ordem do enredo. Nos meus ensaios, busco esgarçar a tecitura desse modo de produção. Sugerio uma radicalização desse modelo, aproximando-me não de uma noção de enredo/estória, mas de

621 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


acontecimento. Tal proximidade proporciona uma possibilidade de distanciamento da linearidade de relações causais. Talvez o mais radical aqui seja sugerir uma aproximação menos distinta entre o que se quer narrar e o ato de narrar, conjugando tudo isso à experiência resultante do acontecimento. De forma que o acontecimento dite o modo de realização. Propondo um estreitamento e uma indistinção entre forma e conteúdo, sem incorrer numa quebra absoluta da continuidade. Essa maior aproximação com o acontecimento proporciona uma continuidade não formalizada. Mas uma continuidade que possa estar ou não, no acontecimento em si. Diferente da continuidade conceitual, orquestrada a partir de normas e convenções da linguagem instituída. O que tento criar pesquisando e realizando obras audiovisuais experimentais são trabalhos que se distanciem dos conceitos de verossimilhança e coerência linear causal que estão arraigados à narrativa audiovisual hegemônica. “Não existe continuidade ou descontinuidade na história, mas apenas na explicação da história” (PARENTE, 2009, p. 33) Esse trabalho, aqui apresentado, tenta realizar, a partir de uma prática artística subjetiva e do desvio das normas instituídas, uma operação pela diferença. Tal procedimento não é de modo algum inédito, entretanto, ele se atualiza no desafio de encarar o mundo contemporâneo e trazer a público uma experimentação poética. A escolha de pensar em conjunto teoria e realização prática incide num processo complexo, aberto e experimental. O que ofereço neste artigo é um vislumbre de uma possibilidade de se pensar e realizar uma desconstrução dos modos operacionais da narrativa audiovisual hegemônica, de forma a gerar uma experiência poética dentro do campo da arte contemporânea. Nota 1 A conceituação de acontecimento, bem como, de apresentação narrativa como acontecimento estão expostos nas teorizações de André Parente (2000), que se apoia nas proposições de Gilles Deleuze e Maurice Blanchot.

622 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e política. São Pau lo: Ed itora Brasiliense, 2008. FLUSSER, Vilém. Filosofi a da Caixa Preta. Rio de Janeiro : Ed itora Relu me, 2002. _____. O Mundo Codificado. São Pau lo: Cosac Naify, 2007. MACHADO, Arlindo. Arte e Mí dia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2007a. _____. Televisão levada a sério. Senac:São Paulo, 2000. MELLO, Christine. Extremi dades do Ví deo. São Paulo : Ed itora SENAC, 2008. PARENTE, André. Narrati va e Moderni dade. Os cinemas não narrati vos do pós - guerra. Camp inas: Papirus, 2000. _____. A Forma Cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Katia (org.) Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009. SANTA ELLA, Lucia. Matrizes da Linguagem e Pensamento Sonora Visual Verbal. São Pau lo: Ilu minuras, 2009.

623 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.