Teresa Midori Takeuchi

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COR, LUZ E FIGURINO NO CINEMA NOVO E NO NOVO CINEMA BRASILEIRO Teresa Midori Takeuchi1 Resumo: Partindo do pressuposto de que a visualidade do figurino reconstrói o personagem literário adaptado para o cinema brasileiro, este tema propõe estudar as relações entre cor, luz e o figurino no cinema brasileiro. Tais elementos fazem parte de um sistema articulado no campo da comunicação sígnica, pois se constituem temas a serem analisados por meio da interpretação simbólica na visualidade do cinema. A relação que discute a articulação desses elementos é pautada na transposição entre o texto literário e as imagens cinematográficas, tendo a intersecção da estética cinematográfica proposta no cinema novo de Glauber Rocha e o novo cinema de Sérgio Rezende. Se pensarmos o cinema a partir do conceito de arte para Picasso – “a arte é uma “mentira”que nos faz perceber a verdade”, podemos associar esta analogia ao apreciarmos filmes inspirados da matriz literária, cuja traição narrativa é paradoxal à fidelidade da essência literária. Assim, podemos inferir que a cor e o figurino no cinema podem ser entendidos como elementos primordiais para se construir a identidade dos personagens, seja para a expressão da sexualidade, a identificação com uma classe social ou ideologia. Os filmes escolhidos para a leitura investigativa são aqueles que objetivam a construção da figura do sertanejo na imaginária ficcional: Deus e o Diabo na Terra do sol (1964), de Glauber Rocha, com o figurino de Paulo Gil Soares e Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, com o figurino de Beth Filipecki. Os recortes dos filmes citados perpassam pelo contexto da época retratada na obra Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha e a conjuntura em que se passou o filme. Palavras-chave: cor, luz e figurinos no cinema. Adaptação para o cinema. Literatura e cinema. Paulo Gil Soares. Beth Filipecki.

1. Introdução O cinema e a linguagem literária estão ligados desde o surgimento das primeiras tentativas de representação de narrativas em um determinado espaço e tempo. A linguagem do cinema é constantemente recriada pela necessidade de inovação, pela função de representar, ora momentos do cotidiano, fatos históricos, musicais ou recriar histórias a partir da ficção literária. Quando se pensa em correspondência entre as linguagens artísticas, pressupõe-se que há interação entre elas, aproximando-se por mecanismos próprios de suas linguagens, entre as artes ditas do tempo, sendo que as artes rítmicas são tão espaciais como as artes ditas do espaço, como descreve o esteta Etienne Souriau, em sua obra A correspondência das Artes, (1832), publicado em 1983 pela editora Cultrix.

1 Artista plástica, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp e doutoranda pelo mes mo Instituto. e-mail: te.midori@g mail.co m

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Em relação ao diálogo entre o cinema e a cor, Pereira (2002) observa que, na imensa gama de cores, desde as oferecidas pela natureza até as oferecidas pelo homem por meio das produções visuais artísticas ou comerciais demonstram como são interpretadas a partir de conhecimentos

empíricos

e

a

partir

das

simbologias

criadas

e

compreendidas

psicologicamente. Tais simbologias nos fornecem sentidos e interpretações diferentes. Conhecemos, então, a cor no meio ambiente, sendo estímulos comuns, aos quais associamos significados; e ainda, vemos as cores como significados, símbolos construídos pelo homem, pela sua história e experiências. Segundo Diegues (2006), atualmente, quando todos os filmes no circuito são coloridos, o preto e branco virou uma exceção utilizada apenas por questões estilísticas , como constata o produtor Júlio Uchoa ao afirmar que quando todos os filmes lançados no circuito são coloridos, o preto e branco virou uma exceção utilizada apenas por questões estilísticas. Mas no caso do cinema novo seria por questões principalmente de baixo custo. Outro aspecto a chamar atenção é a reflexão dos mecanismos da recriação cinematográfica quando esta se inspira em um romance literário, enfocando elementos como cor, luz e figurino no cinema brasileiro. Esses elementos são primordiais que reinterpretam uma obra literária por meio da visualidade do cinema brasileiro, convidando-nos para a sua reflexão estética e ideológica. Assim, os recortes dos filmes aqui analisados tecem relações entre Cinema e Estado e suas respectivas políticas cinematográficas, uma na época do cinema novo e o outro no período do novo cinema, ou o cinema da retomada, cuja inspiração partiram de uma mesma obra literária Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Para a análise tanto estética quanto ideológica de cada filme, pressupõe-se a necessidade de uma investigação da origem de cada tipo de cinema aqui proposto, para se estudar os aspectos visuais cinematográficos. Primeiramente, como é sabido, o cinema novo foi criado por um grupo de intelectuais, que certamente usufruíram do consumo de produtos estrangeiros desde a sua infância, perceberam que poderiam continuar a beber desta fonte estrangeira, mas de maneira consciente. A partir daí, descobrem a possibilidade de criar um novo tipo de cinema brasileiro com base nos preceitos antropofágicos do modernismo, reforçando seus vínculos com a tradição literária: filmes baratos, mostrando o lado realista do Brasil, revelando os mecanismos de exploração do trabalho inerentes à estrutura do país. 354 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Passado a época da ditadura, contexto de onde se originou o cinema novo e após o período do cinema marginal, este sem a preocupação com o engajamento político, mas ambos realizados com baixos orçamentos, surge a Embrafilme para financiar os filmes da década de 70. Esta começou a agonizar desde a década de 80 até sofrer a estocada final no início dos 90, quando uma nova lei de audiovisual, que se iniciou a partir de 1994, alavancou um novo tipo de cinema, o cinema da retomada, nome característico dado pelo período de significativo aumento da produção de filmes, daí a “retomada de fôlego” para sair do “afogamento” provocado pelo fechamento da Embrafilme, condições estas viabilizadas através de uma política cultural baseada em incentivos fiscais para os investimentos no cinema. 2. O neorrealismo no cinema novo Do desejo de ver um cinema realizado com maior realismo e expressão com recursos limitados, mecanismos inspirados pelo neorrealismo italiano e o diálogo derivado da estética Nouvelle Vague francesa, surge o cinema novo. Temas universais como crianças, malandros, policiais, camponeses, favelados e pessoas do povo eram representados de maneira a revelar visceralmente o seu modo de viver com todas as suas adversidades, abordando problemas sociais com lances de certa ousadia surrealista. Não no sentido nonsense e debochado como a estética francesa dadaísta de René Clair (Entr’acte, 1924), que via na surrealidade um instrumento poético e o mundo cotidiano apenas como pano de fundo, mas no sentido experimental de técnicas cinematográfica de autoria. A estética do cinema novo vinculava o posicionamento ideológico do diretor, como nos filmes neorrealistas, iniciados na Itália em 1945, que tanto cativaram cineastas e artistas cariocas e baianos. Estes decidiram então adotar a mesma ideologia, contrários aos propósitos dos filmes exuberantes outrora produzidos pela Vera Cruz, e de sentido diferenciado daqueles destinados puramente ao entretenimento, próprio das palatáveis chanchadas realizadas pelos grandes estúdios. Ismail Xavier explica que o Cinema Novo problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas, apresentando-se no mercado, mas procurando ser a sua negação, articulando sua política com uma deliberada inscrição na tradição cultural erudita. O conceito desejado era o cinema criado com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, idealizado pelo cineasta Glauber Rocha, tão extravagante e desvairado quanto René Clair enquanto

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cineasta experimental em sua liberdade de criação, onde se confirma no fato de o Cinema Novo ser conceituado como “cinema cabeça ou autoral”. Em relação ao movimento literário e a tessitura entre as artes plásticas com o cinema brasileiro, Ismail Xavier (2001, p. 23) analisa que: Em parte inspirado nas vanguardas históricas européias do início do século, o Modernismo de 1920 criou a matriz decisiva dessa articulação entre nacionalismo cu ltural e experimentação estética que foi retrabalhada pelo cinema nos anos 60 em sua resposta aos desafios de seu tempo.

Quando o Cinema Brasileiro era realizado pela burguesia e refletia seu cosmopolitismo e as influências estrangeiras, valorizava a estética ao conteúdo, em contraposição, o Cinema Brasileiro propriamente dito inicia-se pela tentativa de dar uma visibilidade diferenciada, pautada no princípio da valorização do nacional com a concretização de filmes que retratam o povo brasileiro em suas diversidades regionais, culturais e, com o Cinema Novo, a desigualdade social e seus conflitos, tendo o oprimido como o protagonista da história, de maneira crua e nua, quase ao estilo naturalista. Assim, as obras cinematográficas misturam a cultura literária com o folclore popular, as crenças, a fé do indivíduo e seus anseios, produções estas que são responsáveis por vários sucessos da crítica e muitos também de bilheteria. Tanto em Deus e o diabo na terra do sol quanto em Guerra de Canudos, vemos as imagens fortes, reforçadas pela luz quente, figurinos que remetem ao Sertão Nordestino e o cenário “seco”, como a realidade de milhares de brasileiros assolados não só pela secura do clima, mas pela hostilidade perante a exclusão social de um sistema opressor.

Ismail

Xavier(2001) observa que tais preocupações em Glauber Rocha derivam, em parte, de seu diálogo com Os Sertões, de Euclides da Cunha, que legitima a resposta do oprimido, evidenciando a presença, no Brasil, de uma tradição de rebeldia que negaria a versão oficial da índole pacífica do povo.

3. A luz e a pintura no cine ma O cinema teve a sua herança, sendo essencialmente, a técnica de criação de imagens por meio de exposição luminosa, fixando esta em uma superfície sensível. Se por um lado os princípios fundamentais da fotografia se estabeleceram há décadas, desde a introdução do 356 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


filme fotográfico colorido os avanços tecnológicos têm sistematicamente possibilitado melhorias na qualidade das imagens produzidas, popularizando o uso da fotografia. Graças à fotografia, surgiu o Cinema, de onde originou a técnica e a arte de registrar e reproduzir imagens com impressão de movimento, bem como a indústria que produz estas imagens. Em relação ao diálogo entre o cinema e a pintura, esta, ao longo dos séculos foi se transformando e atingindo um grau de realismo cada vez maior. Até que, na metade do século XIX, com o advento da fotografia, esta tomou o lugar da pintura no que tange no registro de realidades, além de facilitar o acesso, a distribuição e sua reprodutibilidade. Com a chegada do cinema, que trouxe movimento às imagens fotográficas, antes estáticas, as composições das cenas continuam a buscar referências de utilização de luz e de cores nas artes plásticas. Os fotógrafos, tanto da fotografia estática como da fotografia de cinema referenciam inúmeros pintores e obras da pintura na concepção da fotografia de seus filmes. A pintura até hoje continua sendo objeto de estudo e referência para enquadramento, luz e cor no cinema. Em um ensaio sobre adaptações no cinema, Por um cinema impuro, André Bazin (1985, p.84) levanta o problema da inflexão do cinema com relação às outras artes e faz a seguinte colocação: O cinema é jovem, mas a literatura, o teatro, a música, a pintura são tão velhos quanto a história. Do mes mo modo que a educação de uma criança se faz por imitação dos adultos que a rodeiam, a evolução do cinema foi necessariamente inflectida pelo exemp lo das artes consagradas. Sua história, desde o início do século, seria portanto a resultante dos determinis mos específicos de qualquer arte e das influências exercidas sobre ele pelas artes já evoluídas.

Obras de pintores famosos como o holandês Johannes Vermeer (1632 - 1675), o norteamericano Edward Hopper (1882-1967), o espanhol Salvador Dali (1904-1989) entre outros, são referências constantes apontadas em diversos filmes como Moça com Brinco de Pérola (2003), do cineasta britânico Peter Webber, O Fim da Violência (1997), do alemão Wim Wenders e Blade Runner (1982), do norte-americano Ridley Scott, Um cão andaluz (1928), do mexicano Luís Buñuel (e co-roteiro de Salvador Dalí), e fotógrafos do mundo todo, que buscam a construção de luzes e cores, gradações e seus contrastes, essencialmente presentes nas artes plásticas, visando causar estesia por meio do espetáculo cinematográfico, com quadros marcantes, dramáticos, insólitos ou desoladores. Com o passar do tempo, o cinema também assumiu a responsabilidade de retratar os mais diversos temas, principalmente as 357 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


mazelas do povo no seu cotidiano, de onde surge o cinema da escola neorrealista italiana. Histórias do dia-a-dia surgem com obsessão nos filmes de Visconti, Felini, que mostram a possibilidade da forma mais acessível de se fazer cinema com recursos escassos. Walter Salles encontrará na pintura a inspiração para a fotografia do filme nas técnicas de sombra e luz do pintor Eduard Hildebrandt (século XIX) conforme declarou em sua entrevista, na parte dos extras do DVD Abril Despedaçado. Na questão da reprodução da luz tropical ainda na fase do branco e preto, Carlos Ebert afirma que foi Os Fuzis (1963), de Rui Guerra, fotografado pelo argentino Ricardo Aronovich, na época recém chegado ao Brasil, e que lhe deu entrevista ao site da ABC- Associação Brasileira de Cinematografia, comenta: (...)E vejo filmes às vezes, fotografados por grandes diretores de fotografia europeus, em lugares que poderiam se parecer com a luz do nordeste, da Bahia, ou do sertão (embora esta seja única), mu ito bem fotografados, certinhos até, mas que fora a qualidade técnica e mesmo pictórica, não refletem na fotografia, a realidade da luz, da temperatura ou a realidade social da locação em questão.

Em Deus e o diabo na terra do sol, Glauber Rocha envereda-se através das figuras míticas do sebastianismo e do Conselheiro; da história caminhando na saga do cangaço, visto pela ótica da epopéia histórica da guerra de Canudos; da literatura clássica de Euclides da Cunha e Graciliano Ramos; o contraste do preto no branco tem inspiração na representação simbólica das ilustrações em xilogravura e da literatura de cordel, tecidas no cotidiano e na cultura popular. Para compreender a estética de seu filme, podemos investigar a posição do cineasta pela sua escolha ideológica, o que justifica o fato de seu filme não ser a realista (Rocha, 2004, p.114):

A origem de Deus e o diabo é uma linguagem metafórica, a literatura de cordel. Eu gostava mais desse gênero, gosto também de Vidas Secas mas não tem mu ita afinidade comigo. Nelson tem gosto pela objetividade e a eficácia por isso escolheu Graciliano e lhe foi fiel. Ele fo i criticado por não ter inventado o seu tema, mas ele disse que escolheu Graciliano porque gostava e o difícil era justamente ser-lhe fiel.

Waldemar Lima, diretor de fotografia deste filme, criou a luz sem o uso de filtro, que pudesse causar uma sensação de desconforto nas cenas da seca nordestina. Segundo Hamilton Oliveira (2012), explica que Glauber e Walter concordavam que a saga do sertanejo Manuel 358 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


só poderia ser contada com uma luz que traduzisse e simbolizasse a crueza da caatinga. A solução estética era super-expor o filme, “estourar” a imagem, no entender do fotógrafo: Walter se apropriou da luz natural do sertão nordestino para compor uma fotografia que traduzia o universo imaginado por Glauber. Sem ut ilização de lu z artificial ou rebatedores. O que resulta é uma explosão de luz na paisagem da caatinga, nos rostos dos atores, no céu sempre branco e estourado.

A partir destas observações, deduz-se que os aspectos técnicos de luz e cor devem estar ligados ao contexto da trama, agregando-lhe significados simbólicos. Os filmes caracterizavam-se por imagens com movimentos lentos, falas longas e cenários simples. Muitos são realizados em preto-e-branco para dar a ideia de pobreza e o diálogo com a cultura popular da xilogravura e literatura de cordel, pela temática do discurso político e estético. No campo das artes gráficas, podemos considerar essa interlocução nos discursos “subversivos” dos cartuns de Henfil (1944-1988), ao compor as paisagens que este se inspirou do Cinema Novo e do capítulo “Terra”, de Os Sertões euclidiano, para ambientar seus personagens do trio da caatinga: o Capitão Zeferino, Bode Francisco Orelana e Graúna. Assim como Glauber traduziu Os Sertões metaforicamente, Malta (2008, p. 50) caracteriza o tom engajado do traço de Henfil, na mesma linguagem figurada: O cenário por onde circulam os personagens é desolador. Os cactos, que acentuam a aridez local, funcionam co mo alegoria da escassez e do desconforto. As caveiras de gado – os macabros Caverinos – simbolizam a pro ximidade da morte. Além do aspecto inovador no campo da técnica – com “fotografia” revolucionária e espaços vazios – os personagens da série Zeferino serviam como esperança matinal e válvula de escape aos seus leitores(...).

Malta ainda revela que foi Glauber quem acordou Henfil para a caatinga, que relata nas Cartas da mãe (1983, p.54) -“para a revelação de que a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo. Foi inspirado em Glauber que criei os quadrinhos do Zeferino e da Graúna”(2008, p. 51). 4. Figurino de Paulo Gil Soares e Beth Filipeck

O guarda-roupa ou o figurino no cinema tem a função de contextualizar a narrativa visual no tempo e no espaço, juntamente com a cenografia, a fotografia e a trilha sonora. Com estes elementos estéticos, um romance é recontado na linguagem audiovisual, permitindo a 359 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


recriação da linguagem do texto escrito para a visualidade cinematográfica. Nesse sentido, a reinterpretação literária dos personagens será reconstruída, psicologicamente e socialmente por meio de simulações de ações, e visualmente através do guarda-roupa, que funciona como a segunda pele do personagem. Com base na relação entre diferentes perfis sociais, nossos heróis sertanejos nos sensibilizam nas diferentes formas de comunicação contemporânea, permeadas de significados simbólicos articulados aos signos de identidade. Em Deus e o diabo na Terra do sol, o personagem do jagunço, Antonio das Mortes foi inspirado na vida de José Rufino, cuja indumentária, foi criada por Paulo Gil Soares, jornalista e cineasta que realizou um dos mais incisivos e antológicos documentários em Memórias do Cangaço (1965). Inclusive, entrevista o próprio coronel José Rufino deste documentário. Antonio das Mortes foi construído com aproximações com o cinema e com o teatro. Do cinema, observa Bueno (2007), “a inspiração contou com as referências estéticas de Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein (1898-1948); e dos westerns. Do teatro, Glauber se inspirou em O Diabo e o bom Deus, uma peça redigida por Jean-Paul Sartre (1905-1980)”. Euclides da Cunha (1975, p. 94), em Os Sertões, no capítulo de “O homem”, descreve a indumentária da figura do jagunço, como aquele cujas vestes são de um traje de festa ante a vestimenta rústica do vaqueiro: As amplas bombachas2 , adrede talhadas para a movimentação fácil sobre os baguais, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam em espinhos dilaceradores de caatingas. O seu poncho vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos esgalhos das árvores garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redo mão desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, 3 em que ret inem as rosetas das esporas de prata; lenço de seda, encarnado, ao pescoço. Coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis, e tendo à cinta , rebrilhando, presas pela guaiaca4 a pistola e a faca - é um vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta existência algo romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra -o o arreamento complicado e espetaculoso. O gaúcho andrajoso sobre um pingo bem aperado, está decente, está corretíssimo. Pode atravessar sem vexames os vilarejos em festa .

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Referente à vestimenta do jagunço e do vaqueiro brasileiro, a bombacha é uma peça de roupa, calças típicas abotoadas no tornozelo, usada pelos gaúchos. O nome foi adotado do termo espanhol "bombacho", que significa "calças largas". Klévisson Viana (2006) se refere à calça co mo “culote”, com a cintura bem alta e pernas no meio da canela. Tal modelo permit ia agilidade na hora de correr pela caatinga. 3 Russilhona: botas de cano longo, próprias para montar. 4 Guaiaca: Cinto largo, de couro macio ou de camurça, guarnecido de pequenas bolsas, e que serve para guardar dinheiro, portar armas etc. Guaiaca: Cinto largo, de couro macio ou de camurça, guarnecido de pequenas bolsas, e que serve para guardar dinheiro, portar armas etc. 360 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Em seguida, o autor descreve-o psicologicamente e fisicamente (1975, p.96): O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro. Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito firme de o destruir, seja co mo for.

FIGURA 1: Cena de Deus e o diabo na terra do sol (1964) Antônio das Mortes (Maurício do Valle)

Para a caracterização do vaqueiro, Euclides (1975, p.95) o descreve como “o de guerreiro antigo exausto da refrega” da seguinte maneira:

vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, mu ito justas, cosidas às pernas e subindo até às virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado – é como a forma grosseira de um campeador med ieval desgarrado em nosso tempo. Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...

Em relação à indumentária do sertanejo, Euclides faz a seguinte descrição (1975, p.97) Envolvos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana pau-a- à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam.

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FIGURA 2. Cena de Deus e o diabo na terra do sol (1964). Manuel (Geraldo Del Rey) e o beato Sebastião (Lídio Silva). Fonte: http://umpoucosobrecinema.blogspot.com.br/2010/10/deus -e-o-diabo-na-terra-do-sol-1964.html

O argumento ganhou a roupagem do jornalista e cineasta Paulo Gil Soares, que transpôs imageticamente os personagens da obra euclidiana e também “vestiu” Terra em Transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber. Em Manoel, aparece primeira vez como vaqueiro, depois, como beato e, por último, como cangaceiro. Sua postura de revolta cruza com o olhar destemido de Corisco, que sustenta o punhal, símbolo da masculinidade. Neste, a meia-lua do chapéu remete a Lampião, que dá o tom à composição visual do sertanejo que, em Deus e o Diabo… , simboliza a difícil luta de um povo castigado pelo sol. Entre camisas desabotoadas e adereços cristãos, o vento que balança o vestido simples da esposa Rosa, também movimenta a batina do beato Sebastião e a capa imponente que cobre o jagunço Antônio das Mortes. O filme ainda contrasta a música erudita com a popular, seja na erudição do som de Heitor Villa-Lobos com as canções populares que preenchem a sonoridade das feiras nordestinas. Com relação ao Novo Cinema, ou Cinema da Retomada, Leopoldo Nunes (apud Senador, 2003), acredita que o que ocorreu neste novo ciclo de cinema foi a criação de “uma elite cultural com o dinheiro público”, enquanto “a grande maioria dos produtores culturais foi excluída”. Pode-se encontrar tais opiniões diferentes entre os críticos da Veja e Bravo! e m Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende, conforme a pesquisa de Silva (2008):

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A justificação de valor por critério de conteúdo na crítica da Veja é bastante limitada, rapidamente as passagens iniciais do filme (quase paradas), saltando para as seqüências finais mais agitadas em virtude da guerra. Apesar de Canudos ser descrito como co mpetente e belo (assim co mo na Veja), ao que parece, a justificação de valor atribuída na revista Bravo! por Ivana Bentes é negativa, sobretudo, porque a obra tem sérios problemas de condução ideológica e estética. Ivana Bentes só apreciou o desfecho da obra: “Guerra de Canudos s ó explode na longa seqüência.

Com base na opinião de Bentes em relação ao filme de Rezende, podemos apreender que, a inspiração da narrativa cinematográfica a partir do texto literário é quase fiel aos personagens e fatos históricos, assim como a preocupação realística na reconstrução do figurino. Podemos associar um figurino de Filipecki com a construção estilística euclidiana no capítulo de “A terra”, no trecho “As caatingas” (Cunha, 1975, p. 39) se associarmos a descrição da vegetação aos personagens com uma cena de nudez, presente durante a luta em Guerra de Canudos: Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.

FIGURA 4: Os Desastres da Guerra, 1810-1815, Francisco de Goya (1746-1828). Fonte: http://girlindelhi.files.wordpress.com/2011/09/los -desastres-de-la-guerra-goya1.jpg

FIGURA 3: Cena do filme Guerra de Canudos, dirigido por Sérgio Rezende. Fonte: DVD Guerra de Canudos, 1997

Em relação à nudez como parte do figurino na teledramaturgia, Cao Albuquerque afirma que “o nu não pressupõe o silêncio. Ele é carregado de significados que dizem muito a respeito do personagem ou de uma cena.” (Memória Globo, 2007, p.29). A única cena em 363 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que aparece o nu masculino durante o combate em Guerra de Canudos, provavelmente foi

inspirada na série de águas- fortes da gravura de Goya: Os Desastres de guerra (1810–1815), cujo horror é amostrado nesta série de maneira crua, nua e penetrante.

Podemos inferir que a cor e o figurino no cinema podem ser entendidos como elementos primordiais para se construir a identidade dos personagens, seja para a expressão da sexualidade, a identificação com uma classe social ou ideologia. Betton (1987, p. 37) pontua a relação do figurino com o cenário e à atmosfera geral do filme:

O guarda-roupa dos atores está muitas vezes intimamente ligado à atmosfera geral (...). Devemos avaliá-lo em relação a um certo estilo de encenação, do qual ele pode ampliar ou diminu ir o efeito. Sobressairá do fundo dos diferentes cenários para valorizar os gestos e atitudes das personagens, de acordo com a postura e ou contraste, no grupo dos atores e no conjunto de um plano.

A figurinista Beth Filipecki em seu depoimento no trabalho do filme Guerra de Canudos nos conta que o sertanejo, como uma metáfora do homem eterno, é o herói sertanejo da Idade Média, um ser íntegro apesar do sofrimento. Buscou sua inspiração para o seu trabalho com o figurino nos mestres da pintura como Goya (1746-1828), El Greco (1541-1614) e Portinari (1903-1962), que, segundo a figurinista, são pintores que trabalharam, respectivamente, o desespero da guerra, a religiosidade e o camponês. Também se inspirou nas fotos de Sebastião Salgado. Em relação à cor, a proposta era o monocromatismo e Rezende (1997, p. 120) justifica a escolha:

Em Canudos, as pessoas são da cor das casas, a cidade é da cor da caatinga, a caatinga é da cor da terra, e o figurino se integra com isso. A unidade desse mundo de uma só cor se rompe com a chegada das tropas, choque expresso através das cores vibrantes das fardas dos militares. Canudos se transforma e as roupas dos canudenses também. O tom azul, dos camisolões feitos para a Guarda Católica, conforme determinou Conselheiro, vai cedendo lugar para os tons terra. As roupas que, na fundação de Canudos, eram mais estruturadas, começam a se rasgar. As saias sobrepostas vão sendo retiradas; os xales usados como blusas, caem. Tudo vai ficando mais sujo e mais pobre. Na fase final da guerra, o que sobre é remendo, é lixo.

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FIGURA 4: Cena do filme Guerra de Canudos, dirigido por Sérgio Rezende. Fonte: http://blogo-342.b logspot.com.br/2011/ 04/cena-do-filme-brasileiro-guerra -de.html

Em relação à estética euclidiana, o professor José Leonardo do Nascimento (2012, p.3) observa que a natureza se humaniza na percepção do escritor – “ É ali que ele descreve um cosmo conflituoso, onde a guerra já está ali, nas espécies naturais brigando pela sobrevivência. Certos personagens da guerra canudense e até mesmo espécies da caatinga baiana sugeriam- lhe relevos esculturais”. Nascimento destaca que Euclides da Cunha, ao escrever sobre a sutil fronteira entre a ciência e a arte, sua obra foi entrevisto como trabalho de análise da sociedade brasileira e obra de arte, pois incorpora na narrativa de imagens diretamente inspiradas pelas artes plásticas. Explica que “Certos personagens da guerra canudense e até mesmo espécies da caatinga baiana sugeriam- lhe relevos esculturais”, exemplificando com um fragmento do texto (2011, p. 4): [...] sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repart idos em co lunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros [que] dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas e acesos[...]

Conclusão Com relação à adaptação de uma obra literária para a tela pela sua transformação em cinema, Betton (1987, p. 11) nos coloca questões que nos permitem fazer um apanhado das inúmeras semelhanças, bem como das divergências que existem entres estas duas linguagens. 365 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Betton conclui que “O cinema como um espetáculo artístico, é também uma linguagem estética, poética ou musical que comunica pensamentos, ideias e sentimentos”(1987, p.115). Em relação à importância do figurino de cinema, televisão ou teatro, Cao Albuquerque (2007) define - “O figurino é o aspecto visível de um ser invisível. Não há personagem sem figurino. Mesmo que o personagem esteja nu, ainda assim é preciso que existam recursos de figurino para que ele se torne personagem”. Harvey (2003) esclarece que o vestir, “como a pintura, consiste de valores tornados

visíveis. Vivemos em um mundo permeado de valores identitários, sociais, políticos, éticos – e os vemos no nosso estilo de vida.” O sociólogo estabelece a relação dinâmica entre os homens, as suas roupas e a complexa simbologia que é o ato de vestir da vida social em forma visível. O autor afirma que a pessoa vestida é uma persona que interpretamos, pois assim que começamos a escolher nossas próprias roupas, damo-nos conta de que já fomos vestidos desde criança por necessidades sociais. Assim, inspirado na vida real, ou na ficção, em relação ao figurino Betton (1987, p. 57) afirma que “o objetivo do guarda-roupa é exaltar a beleza, o caráter, a personalidade dos „heróis‟, e valorizar os gestos e atitudes das personagens, além de sugerir ou traduzir simbolicamente caracteres, estados de alma, ou ainda, de criar efeitos dramáticos ou psicológicos”. Neste sentido, a paleta de cores (ou a sua ausência) e suas gradações, a luz e o figurino são elementos visuais constitutivos que participam da criação da atmosfera, da exatidão ou inexatidão histórica e clima psicológico, incluindo as artes plásticas também como fonte de inspiração para a recriação dos personagens inspirados da matriz literária. O cineasta e seus colaboradores têm a liberdade de recriar, com o roteiro, os personagens literários que originou o filme, traindo ou não a sua essência, a fim de mostrar, na tela, o palco de conflitos das questões locais e nacionais, mas contido no universal.

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Filmografia Ficha Técnica Deus e o diabo na Terra do sol (Brasil, 1964). Preto e Branco; 125 minutos. Direção e Argumento: Glauber Rocha. Produtor Luiz Augusto Mendes. Produtores Associados: Jarbas Barbosa e Glauber Rocha. Diretor de Produção Agnaldo Siri A zevedo. Roteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Júnior. Diálogos: Glauber Rocha e Paulo Gil Soares. Diretor de Fotografia e Câmera: Waldemar Lima. Montagem: Rafael Valverde. Música Heitor Villa-Lobos. Canções: Sergio Ricardo e Glauber Rocha. Figurino: Paulo Gil Soares. Elenco Geraldo Del Rey (Manuel), Ioná Magalhães (Rosa), Maurício do Valle (Antônio das Mortes), Corisco (Othon Bastos), Dadá (Sonia dos Humildes) e Líd io Silva (Beato Sebastião), Marrom (Cego Júlio ) Antonio Pinto (Coronel), João Gama (Padre) Milton Roda (Coronel Moraes). Guerra de Canudos. Drama.169 min. Brasil, 1997. Morena Filmes.Distribuição: Colu mbia TriStar Pictures.Direção: Sérgio Rezende. Roteiro: Sérgio Rezende e Paulo Halm. Direção de arte: Cláudio A maral Peixoto. Música: Edu Lobo. Fotografia: Antônio Luís Mendes. Desenho de produção: Henrique Murthé. Direção de arte: Cláudio Amaral Peixoto. Figurino: Beth Filipecki. Edição: Isabelle Rathery. Elenco: Paulo Betti, Marieta Severo, Cláudia Abreu, José Wilker, Tonico Pereira, Roberto Bontempo, Tuca Andrada.

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