BOLETIM ARTE NA ESCOLA • EDIÇÃO #77 • AGOSTO / SETEMBRO 2015
VIVÊNCIA
De Villa-Lobos à cultura popular nordestina
Foco na cultura popular nordestina, mais próxima das raízes dos alunos, contribuiu para que assimilassem os valores culturais da região onde vivem
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Heleno Araújo * Uma das maiores satisfações de ser professor é perceber como o conhecimento é construído dentro da sala de aula, e que estar atento aos alunos pode resultar em benéficas correções de rota. No início deste ano letivo me deparei com uma situação assim. Tinha previsto focar a obra de Heitor Villa-Lobos nas aulas do primeiro ano do Ensino Médio da Escola de Educação Profissionalizante Pedro de Queiroz Lima, em Beberibe (CE), mas me surpreendi ao notar que os estudantes, além de não conhecerem o músico nem pelo nome, nunca tinham escutado nenhuma de suas composições. Quando apresentei as “Bachianas Brasileiras”, por exemplo, eles acharam engraçado, disseram que aquilo não era música, riam da letra, do coral, de quase tudo. Aos poucos fui descontruindo as melodias e apresentando os diferentes ritmos, os instrumentos usados, as entonações das vozes e explicando como cada parte tinha sido produzida, da utilização da música clássica até o folclore presente na composição. Neste processo, me dei conta de quanto os jovens estão acostumados a consumir apenas o que a mídia tradicional entrega, familiarizados apenas com o que ouvem no rádio ou assistem na televisão. Porém, quando apresentados a outras formas culturais, acabam compreendendo e se interessando também por elas. Assim, resolvi mudar a rota e comecei outro projeto, focado na cultura popular nordestina, mais próxima de suas raízes, para que assimilassem os valores culturais da região onde vivem, conhecessem os diversos artistas anônimos da comunidade local e reconhecessem seus talentos dentro de um projeto artístico. Como o tema é amplo e tenho cerca de 180 alunos, distribuídos em quatro turmas, dividi o projeto em Teatro, Música, Dança, Artes Visuais, Cinema e Literatura, ficando cada grupo responsável por uma delas. Começamos por uma ampla pesquisa de campo, cujo resultado foi compartilhado com os colegas em um seminário. O desconforto inicial dos estudantes com o tema transformou-se aos poucos em confiança, o que atribuo à interatividade do trabalho. Esse processo criativo precisa ser um momento lúdico para os alunos, de liberdade, envolvimento e vazão emocional. Por isso, a minha interferência é mínima em relação ao conteúdo e procuro atuar somente como instigador do pensamento crítico. Para os alunos não se concentrarem apenas na linguagem em que estão trabalhando e perceberem a conexão que existe entre todas elas, procuro começar cada aula com um breve espetáculo produzido por mim para mostrar a nossa rica diversidade cultural. Num dia entro na sala cantando uma música, em outro recito um poema, em outro faço um monólogo ou um repente com o nome deles. Além de atrair a atenção da classe, já que cada início de aula vira um momento especial, essa brincadeira é
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fundamental para quebrar a hierarquia da sala de aula e torná-los mais abertos para a atividade a ser desenvolvida. A pesquisa na prática Em paralelo à pesquisa temática, os grupos estão produzindo alguns trabalhos. Por exemplo, a ideia da turma de Teatro é encenar o cordel encantado, com os alunos cuidando de toda a elaboração do espetáculo, como a criação do figurino, coreografias, música, texto e cenário. Já o grupo de Música está trabalhando com ritmos nordestinos com foco na percussão alternativa. Além da pesquisa musical, o grupo cria os próprios instrumentos com garrafas PET, canos de PVC e madeira. O grupo de Artes Visuais está pesquisando a presença de personagens nordestinos em obras de artistas clássicos, e ao final do projeto, pretende fazer uma exposição com os trabalhos que já vêm desenvolvendo em sala de aula, com pintura em tela, xilogravura e desenho. O grupo responsável por Cinema está selecionando filmes para projeção e debate. Já a turma de Literatura está focada em resgatar a literatura de cordel. Como complemento para as atividades de sala de aula, temos feito trabalhos de observação da comunidade. Os alunos saem pela cidade fotografando cenas cotidianas, desde paisagens até pessoas. A nossa região é repleta de artistas desconhecidos, que trabalham com artesanato e diversos materiais, como areia colorida, bordados e rendas. Meu objetivo com essa atividade é desenvolver o olhar para o entorno e seus personagens, e criar um estímulo para a pesquisa, já que, além de captar imagens, eles precisam entrevistar as pessoas, fazer o registro oral das histórias coletadas e produzir um documento com os relatos. Motivação Percebo que, ao longo do processo, os alunos estão se apoderaram do projeto. Não raro vejo os grupos falando e “se fizéssemos isso, se fizéssemos aquilo”, e o trabalho vai ganhando mais e mais camadas, mais propósitos e tornando-se cada vez mais rico. Por exemplo, a turma que começou pesquisando música já está produzindo os próprios instrumentos. Os alunos que estudam cinema já pensam em fazer um pequeno documentário. O importante é a criatividade fluir e não impor limites. Apesar de não terem aulas regulares de Arte no segundo ano do Ensino Médio, muitos alunos já estão pedindo para continuar o projeto como atividade extracurricular, uma vez que eles estudam em período integral. A área embaixo da escada na escola, antes sem uso, transformou-se em um ponto de encontro do grupo, uma espécie de espaço cultural bastante frequentado fora do horário de aula. Esse contato direto com as mais diversas linguagens também tem revelado alguns talentos e habilidades. É claro que não pretendo formar nenhum artista, mas gosto de deixar essa possibilidade em aberto caso alguém se identifique e queira seguir como profissão.
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Esse projeto me ensinou que ao ouvir os alunos, é possível criar um trabalho bem mais envolvente, maduro e com melhores resultados. Não posso dizer que o projeto “Cultura Popular Nordestina” tocou todos os 180 alunos da mesma maneira, porém quando vejo o espaço cultural, que antes era uma área vazia e sem utilidade, ocupado por eles, percebo que se o professor tomar a iniciativa, se dar por inteiro e mostrar que realmente ama o que faz, que está aberto a propostas e sabe ouvir o que eles têm a dizer, os alunos vão se apropriando da escola e percebem que o aprender pode ser algo realmente prazeroso. *Heleno Araújo é professor de artes na EEEP Pedro de Queiroz Lima Beberibe (CE). Graduado em pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará e pós- graduando em artes (Música) na Faculdade Darcy Ribeiro (Graduale). Participa do grupo de estudo em cultura popular na UECE e desenvolve diversas atividades em artes em escolas com música, desenho e pintura, teatro de bonecos.
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