O espaço geográfico hildebert isnard

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HILDEBERT ISNARD Professor Honor:irio na Universidade de Nice

CAPITULO II·

0 ESPA<;O GEOGRAFICO COMO PRODUTO SOCIAL

A vida e una: ela defnie-se pelas caractedsticas fundamentais a todos os seres vivos. E hoje uma tendencia de certos et6logos passai:, sem dificuldade, do animal ao homem; depois do antr6pomorftsmo, o zoomorfismo: «A ideia da humanidade unica sofre tim eclipse» (1). Se «o homem esta morto», a natureza humana e doravante um paradigma perdido (2).

0 ESPA(_;O GEOGRAFICO

1.

A territorialidade do homem

A territorialidade como a agressividade seriam manifestayoes espedficas da Vida. 0 homem nao escapa a regra: ele e, declara Jean Rostand, urn animal territorial. As questoes: «0 Homo Sapiens pertenced. a uma especie territorial? Se-lo-a enquanto ser racional ou enquanto criatura animal que delimita o seu dom{nio, rechassa o invasor ou defende o seu dom{nio? Tera deste modo decidido ou tera obedecido a urn impulso irresist1vel ?». Robert Ardrey responde ( 1) S. Moscovrcr, Quelle unite: avec Ia nature Oil contre?, in •L'unite de l'homme», Seuil, p. 753. (2 ) Tirado de uma obra de Edgar MoRJN, Le paradigme perdu: Ia nature hunwine, Seuil, 1973.

LIVRARIA ALMEDIN A COIMBRA -1982

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I


sem hesi tar: <<0 homem e um animal territorial pela sua propria essencia ... 0 seu comportamento territorial e inerente a sua natureza e de origem evolutiva». E acrescenta vivamente: «0 nosso apego a propriedade e biologico e inato» (1). Deixaremos a Robert Ardrey a responsabilidade desta ultima afirmac;ao. Etologos protestaram contra todo o determinismo biologico. Para Alexander Alland, se bern que enraizado na natureza biologica do homem, a cultura liberta-o das formas dgidas de controle que regem o comportamento animal. E assim que os Semais da Malasia Central e os Pigmeus da floresta Ituri no Congo nao so nao sao agressivos como tambem sao territoriais: Diferentes bandos de Pigmeus (2 ), escreve ele, encontram-se, na ocasiao de movimentos migratorios e de expedic;:oes de cac;a na floresta, mas esses encontros nao originam reacc;:6es antagonicas e os grupos nao se consideram ligados a lugares particulares». 0 geografo nao tem qualidade para intervir 110 debate; mas tern de cohstatar-se que qualquer sociedade humana vive num espac;o que considera como necessaria para a sua existencia, quer seja em virtude de uma heranc;a biologica, quer de uma tradic;ao cultural. E uma evidencia afirmar que nao ha sociedade sem espac;:o que lhe seja proprio, no interior do qual as gerac;6es se sucedem numa continuidade tal, que uma identificac;:ao se realiza entre um povo e o seu territorio. Nada de magico nesta identificac;:ao com um patrimonio que permite a sobrevivencia. Na base do patriotismo ou do nacionalismo, existe incontestavelmente um apego, muitas vezes apaixonado, a terra natal. Depois de seculos de dispersao alienante, OS Judeus pensam reencontrar a sua identidade num regresso a Terra Prometida ( 1) . 2 ( )

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L'imperatif territorial, pp. 16, 91, 92. La dimension humaine, Seuil, 1974, p. 133.

A. ALLAND,

que os votou ao sofrimento do exilio. Quando por diversas razoes sao obrigados a emigrar, OS homens partem a procura de urn novo espac;:o onde posssam reconstituir o seu meio original. A posse de urn espac;:o e pois uma necessidade vital para uma sociedade. E sobre este conceito de espac;:o vital que se fundou a geopolltica para justificar as guerras de agressao. A defesa ou a conquista do espac;o constituiu, durante muito tempo, a trama da Historia: as guerras presidem a formac;:ao territorial dos Estados no interior das fronteiras que sao, como o nome indica, linhas de confrontac;ao entre os povos. A colonizac;:ao e uma anexac;ao, por uma sociedade, do espac;o de outra sociedade diferente. Tal como no passado, o controle do espac;:o e Uffia exigencia para OS grandes imperialismos que aspiram a proeminencia do mundo: a Terra divide-se, cada vez mais, em dois espac;:os ideologicos. No dominio do capitalismo, as sociedades transnacionais disputam entre si os espac;os a submeter a sua explorac;ao economica. Quanta ao socialismo, procura assegurar-se de pontos de apoio as articulac;6es dos grandes espac;:os maritimos e continentais. Os espac;:os sociais organizam-se no interior de limites que constituem linhas de equillbrio entre eles. Esses limites garantem a cada grupo humano a plena posse do seu territorio, colocando-se muitas vezes sob a protecc;:ao dos deuses e cada urn tern a obrigac;ao de os conhecer e de os respeitar. Os Pigmeus Mbuti praticam a cac;a e a recolecc;:ao na floresta equatorial do Congo mas, contrariamente aqueles a que se refere Alexander Alland, deslocarn-se no interior de um perimetro que fixa o espac;o reconhecido a cada bando composto por uma vintena de familias. Nos Carnar6es, na regiao de N'Kongsarnba, as aldeias sao isoladas umas das outras por orlas de floresta, alinhamentos de pedras, fragrnentos de ceramica. Passa-se o rnesrno com as

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tribos n6madas do Sara, tendo cada uma delas o seu proprio espa~o de percurso delimitado pelos acidentes do terreno. Nao os respeitar equivale a uma agressao que desencadeia represalias. A causa e compreensivel: o espa~o e uma componente da estrategia da vida. A sociedade humana nao escapa a regra geral, ela e inseparavel do territ6rio com 0 qual forma urn todo. «Cada grupo social, escreve Henri Laborit (1), vive num contexto geoclimatico, num nicho ecol6gico onde encontra a materia e a energia necessarias a manuten<;:ao da estrutura de cada individuo que o compoe, necessarias tambem a manutew;:ao da estrutura social». Significari que a sociedade humana depende, tambem ela, da ecologia como ciencia das rela<;:oes dos seres vivos com o seu habitat? Existiri uma ecologia humana?

2.

Que ecologia humana?

Seriamos tentados a acreditar nela quando nos lembramos que a reparti<;:ao das ra<;:as humanas a superf:fcie da terra obedeceria a uma certa zonalidade, como se cada uma estivesse ligada as condi<;:oes mesol6gicas originais: a zona intertropical e 0 dominio das ra<;:as de cor diferente da ra<;:a branca que se expande na zona temperada. Hi concerteza, numerosas excep<;:oes e estas observa<;:oes: a ra<;:a amarela ocupa latitudes medias da Asia, os Amerfndios estendiam-se do Equador ao Cfrculo Polar. Ao considerar hoje as coisas, e evidente que, a zonalidade provivel das origens sucedeu uma ubiquidade que misturou as ras;as em todas as latitudes. Os Negros invadiram a zona ( 1)

Eloge de Ia fuite, Robert Laffont, p. 168.

temperada enquanto os Brancos se instalaram na zona tropical e mesti<;:agens completaram a confusao. Foi a Hist6ria que agitou o ordenamento racial do planeta: migra<;:oes, transferencias de popula<;:oes provocaram deslocamentos maci<;:os a longas distancias. 0 homem nao ficou no lugar que lhe estava destinado e ainda por cima perturbou a ordem natural dos vegetais e animais. Sabe-se da dispersao de que o homem tern toda a responsabilidade, colocando fora dos seus domfnios ecol6gicos primitivos, a vinha, o milho, o cavalo e o carneiro, para s6 citar os exemplos mais conhecidos. Nao se contestara portanto a validade de uma necessaria ecologia do homem «considerado como urn organismo vivo submetido a determinadas condi<;:5es da existencia e reagindo as excita<;:oes recebidas do meio natural» (Max Sorre) ou mais simplesmente o homem considerado como urn ser biol6gico sensfvel as varia<;:oes da temperatura, de hurnidade, de pressao atmosferica, aos ataques de complexos patogenicos. Sabe-se, por exemplo, que com a altitude o sangue humano torna-se mais rico em hemoglobina e em gl6bulos vermelhos para se adaptar a rarefac<;:ao do oxigenio. A prolifera<;:ao das bacterias em meio tropical humido dizimou durante muito tempo as popula<;:5es, provocando mesmo o desmoronamento de civiliza<;:oes. Na Idade Media Europeia, as doen<;:as infecciosas, tais como a desinteria ou a peste realizaram com as fomes e as guerras uma especie de regula<;:ao eco-demogrifica que fixaram as sociedades tradicionais numa auto-estabiliza~ao (1). Que dizer das carencias alimentares que continuam a manter uma parte da humanidade no limite de sobrevivencia? Como todos os outros seres vivos, o homem nao escapa verdadeira(1) E. LE RoY-LADURIE, L'histoire immobile, «Annales», ESC, Maio-Junho, 1974, p. 673.

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mente as mutac;:oes bruscas devidas ao acaso: a malaria que atinge duramente as populac;:oes da Africa Ocidental, poupa contudo certos grupos, pois novos modelos geneticos seriam dotados de genes de hemoglobina anormais permitindo-lhes viver em zonas contaminadas (1). E inutil insistir, pois Max Sorre estudou longamente estes problemas num magistral tratado que tem urn titulo sugestivo: Les Jondements biologiques de la geographie humaine. 0 ge6grafo nao pode desinteressar-se dos estudos empreendidos pela ecologia humana que pertence as ciencias biol6gicas (2 ): tern a sua parte nessas investigac;:oes na medida em que a organizac;:ao do espac;:o se repercute sabre as condic;:oes ecol6gicas. Isto e o que provam numerosas observac;:oes efectuadas na zona tropical humida. 0 desbaste da fl.oresta densa originado pela extensao das culturas expoe ao sol as toalhas de agua que se tornam igualmente focos de malaria num espac;:o ate entao preservado. Os trabalhos de Pierre Gourou (3) demonstraram que, pelo contrario, em qualquer parte onde as sociedades estavam suficientemete organizadas para assegurar o controle das aguas pela drenagem dos pantanos e a pratica da irrigac;:ao, a malaria perdia a sua virulencia. Objectar-se-a que houve urn tempo, talvez ainda mesmo hoje o seja nas regioes mais isoladas, onde os homens e os outros seres vivos formam comunidades organizadas em ecossistemas espac1a1s.

( 1) Hip6tese de WEISENFELD, Sickle cell trait in human and cultural evolution, citado por Alex{!nder ALLAND in La dimension humaine, Seuil, 1974,

p. 132. (2)

(3)

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R. DuBOS, L' hom me et I' adaptation au milieu, Payot, 1973. Nomeadamente Les pays tropicaux, PUF.

Nao ted. sido assim no Paleolitico? Habitando em cavemas, o homem vestido de peles de animais, tirava a sua subsistencia da colheita, da pesca e da cac;:a no espac;:o vital que a horda conquistara. No entanto, mais do que ser territorial e ecol6gico, tal como as feras que ele defrontava, ja era urn Homem capaz de responder as agressoes do meio atraves de invenc;:oes. Muito cedo, soube utilizar o fogo que devia perturbar a ordem natural das coisas, fabricar utensllios de pedra, todo urn arsenal de artefactos de extensao pelos quais a sua liberdade iria rapidamente afirmar-se contra a necessidade. Mais ainda, ja era capaz de pensar o mundo, de o interpretar como testemunham os frescos com que ornamentou as paredes das suas grutas. Enfim, era dotado da possibilidade de comunicar aos seus descendentes os resultados da sua experiencia. Com o Homem nasceu a cultura, este banco de informac;:oes que se enriquece de gerac;:ao em gerac;:ao. ÂŤ0 homem, dira o biologista (1), grac;:as aos seus mecanismos associativos, aos seus processos de formular hip6teses, actualizados por ensaicis sucessivos, e capaz de acrescentar uma informac;:ao que transforma materia e energia, interessando a sua sobrevivencia e a manutenc;:ao da sua estruturaÂť. Com a descoberta da agricultura e da criac;:ao de gada, o Neolitico abre a era da organizac;:ao do espac;:o pela acc;:ao humana, organizac;:ao que se estendera, pouco a pouco, a quase totalidade da superffcie terrestre. Doravante o homem e dotado da possibilidade de organizar o seu meio, adquiriu o domfnio sabre os outros seres vivos, vegetais e animais e, progressivamente, 0 dos elementos ffsicos tais como 0 solo, a agua e ate mesmo o clima que utiliza para a realizac;:ao dos seus desfgnios. Isto e, criou o seu habitat. Criador e criac;:ao, intimamente interdependentes, nao se apreendem urn sem o outro. Tal e (')

Henri LABORIT, op. cit., p. 169.

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realmante a concepc;:ao da geografia. Por isso, o objecto da ecologia humana limita-se as relac;:oes biol6gicas entre 0 homem e o meio (1).

3.

Os projectos de sociedade

Toda a organizac;:ao supoe urn objective a atingir. 0 ecossistema resulta, temo-lo visto, de uma organizac;:ao de componentes. 0 seu objective consiste na realizac;ao de equilibrios que asseguram 0 desenvolvimento da vida grac,:as as interdependencias funcionais e constata-se «a posteriori». E por isso que seria ambfguo falar de projecto ou em finalidade; talvez se pudesse invocar a 16gica interna de processes ffsico-biol6gicos, de actividades termodinamicas programadas para criar e manter a estrutura contra os factores de desordem. Completamente diferente e o espac;o geografico que e criac;:ao humana. «0 homem nasce com a emergencia do projecto, escreve Roger Garaudy (2). Ao contririo das outras especies animais movidas pelos impulses instintivos do passado, o futuro que concebe exerce uma influencia eficaz no projecto que constroi>>. Produz as suas pr6prias orientac,:oes: o objective que visa resulta de uma tomada de consciencia cada vez mais clara das exigencias incessantemente diversificadas e complexas. A acc;:ao tem portanto a sua racionalidade, exerce-se no meio para o par de harmonia com o seu projecto que e de viver e sobreviver aos perigos e as contrariedades que o envolvem por todos os lados. Esforc;:a-se por adquirir a autonomia ao substituir os Para Jacques RUFFlE: «A ecologia humana e, antes de mais nada toda a sociedade humana>>. De la biologic ala culture, Flammarion, 1976, p. 302. 2 ( ) Parole d'homme, Robert Laffont, 1975, p. 164. 1 ( )

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determinismos naturais pelas relac;:oes aleat6rias com o meio exterior (1). Mais do que qualquer outro ser vivo, tern a capacidade de multiplicar as possibilidades de acumulac;:ao e colocac;:ao em reserva constituindo outras tantas medidas contra-aleat6rias. A grande aventura do homem no globo terrestre ted. sido, defmitivamente, ter construido o espac;:o segundo modelos diferentes dos ecossistemas originais, de ter substituido a intencionalidade pela necessidade. A realidade objectiva do espac,:o natural opoe-se, assim a realidade projectiva do espac;:o geografico nascido da iniciativa humana finalizada. Os projectos das sociedades constituem pois uma das chaves do conhecimento do seu espar.;:o, resultam do sistema de valores, tradic;:oes, atitudes culturais, sociais e pollticas, numa palavra, da ideologia na qual cada sociedade colhe as suas motivac;:oes e as suas razoes de agir. As sociedades primitivas tern a sua racionalidade: fundam-se no dominio das relac;:oes de parentesco que realizam, num todo indiferenciado, a vida dos individuos, as relac,:oes entre os grupos, o exerdcio do poder, as concepc;:oes religio~as e as actividades de produc;ao. Identificado com o seu grupo social, o homem_ maximiza as satisfac,:oes que tira da sua participac;:ao: festas, danc,:as, repastos sao manifestac;:oes comunitarias que visam manter a coesao da colectividade. Quaisquer que sejam as suas aptidoes, as suas experiencias pr6prias, e diflcil ao individuo emancipar-se. Toda a inovac;:ao aparece como urn sacrilegio cometido contra os antepassados fundadores que transmitiram em heranc;a, aos seus descendentes, mna organizac;:ao s6cio-espacial que deu as suas provas. Todavia, tradic;:ao nao significa recusa de toda a melhoria: a partir do sec. XVI OS Africanos adoptaram as plantas introduzidas da (1)

P. VENDRYES, Vers la theorie de l'homme, PUF, 1973.

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America integrando-as no seu sistema de cultura e de alimentas;ao sem que dai resultasse qualquer perturbas;ao. 0 que chamamos economia (1) nao e senao un1 aspecto da realidade social global cujas relas;oes de parentesco constituem uma sociedade tradicional: sao estas relas;oes de parentesco que fixam os direitos de utilizas;ao do solo, divisao dos trabalhos, partilha das colheitas. Tecnica de produs;ao, o trabalho e tambem uma pratica social e ritual, visando satisfazer o conjunto das necessidades vitais da colectividade e tambem procurar urn excedente destinado, nao a realizar uma acumulas;ao sem a qual nao ha crescimento econ6mico, mas para constituir reservas contra-aleat6rias e sobretudo para permitir os sacrificios nos altares das divindades e consume de ostentas;ao em proveito da comunidade. Organizada na sua auto-subsistencia, a sociedade .tradicional e regulada para se manter num estado de estabilidade dinamica. Completamente diferente eo projecto das sociedades modernas, herdado do Renascimento e do seculo XVIII e que poe como axioma, que o progresso material e a condis;ao necessaria a expansao do homem, sendo 0 projecto do desenvolvimento econ6mico apoiado pela ciencia e pela tecnica. Por urn processo que nao vamos analisar aqui, este projecto deu origem ao capitalismo; acumular o capital com vista a produs;ao crescente do lucro, disputando-se o controle, tornam-se a finalidade da acs;ao nas sociedades do mundo ocidental. Supoe o dominic dos obsticulos que poderiam entravar a realizas;ao do projecto, dai o liberalismo politico, o monop6lio da ciencia, o estimulo da investigas;ao social para assegurar o escoamento alargado da produs;ao. ÂŤProduzir mais, mais saber, maior controle, mais bens e servis;os>> (2) para consumir mais; ( 1) Ver Maurice GODELIER, Ratiol!alite et irrationalite en economie, 2 T., Maspero, 1971. (2) Ivan lLLICH, La convivialite, Seuil, Col. ÂŤPointsÂť, 1973, p. 133.

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tudo e mercadoria. mesmo o espas;o ate recentemente considerado, como sem valor. E a industrializas;ao desenfreada que, da especializas;ao e da multiplicas;ao dos seus produtos, devia alimentar este impulso. Doravante, o homem identifica-se com aquilo que possui e o consume social tende a veneer o consumo privado. Libertada, a iniciativa privada cai na anarquia, rapidamente substitufda como motor da mudans;a pela estrategia da grande empresa que ultrapassa fronteiras. A competis;ao renhida origina toda a especie de desigualdades e de hierarquias entre os individuos e entre os espas;os. A sociedade capitalista que domina a racionalidade unidimensional da economia, enfraquece-se por uniformizas;ao. Animada pela dinamica da mudans;a, esti con.denada a evoluir, por desequilibrios e por crises, para uma expansao indefmida ou para a desagregas;ao. Desses excessos devia surgir urn outro tipo de sociedade moderna: a sociedade socialista. Longe de repor em questao a exigencia do desenvolvimento econ6mico como condis;ao da realizas;ao do homem, conta com a industrializas;ao para desencadear e arrastar as outras actividades. A colectivizas;ao das fon;:as produtivas tira toda a razao de ser a competis;ao para o controle do capital. Libertos desta motivas;ao geradora de tensoes sociais, os individuos podem conjugar os seus esfors;os na procura do interesse geral. Tal e, em prindpio, a finalidade do socialismo. Na realidade, as coisas sao menos simples: na URSS e nas varias democracias populares a iniciativa privada nao pode praticamente exercer-se na produs;ao sem que por isso seja posto cobro as desigualdades hierarquicas. Na Pol6nia e na Jusgolivia, a propriedade individual manteve-se na agricultura e s6 a China

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adoptou uma estrategia de crescimento econ6mico fundado na igualdade absoluta e no consenso colectivo do esfon;o (1). Do mesmo modo que as sociedades nao ficaram acantonadas nos seus espayos, os seus projectos transbordaram as fronteiras sendo introduzidos pela coloniza~ao em todos os pafses em que as instalava como conquistadora. Aquelas que pertenciam ao domfnio das civilizac;:oes tradicionais nao estavam em condic;:oes de os adoptar par causa da sua impreparayao s6cio-hist6rica e da inadequayao dos seus comportamentos. As suas racionalidades irredutiveis, a do colona e a do indfgena ficaram logo em presen~a uma da outra, repartindo entre si os espac;:os e os homens, para os moldar segundo a sua respectiva finalidade. Esta dualidade s6cio-espacial e as rela~oes dialecticas que desencadeou sao, provavelmente 0 caracter dominante da geografia da coloniza~ao. Hoje, as no~oes de desenvolvimento econ6mico, de industrializayao segundo as concep~oes do capitalismo ou do socialismo, propagaram-se a todo o planeta para nele serem aplicadas. Era necessaria lembrar, mesmo que sumariamente, o objectivo que as diferentes sociedades determinam para assegurar uma vida e uma sobrevivencia conformes ao seu sistema de valores. Com efeito, este objectivo encontra a sua realiza~ao na organizac;:ao do espac;:o. 0 espa~o geogrifico aparece assim como a projecyao no solo da sociedade que o criou obedecendo a mesma racionalidade. Mas, o proprio metoda geogd.fico consiste em partir, nao da sociedade para atingir o espayo, mas do espac;:o para atingir a sociedade, exactamente da mesma maneira como compreender o autor atraves da sua obra.

(1) Ver a este respeito J. PUF, 1974, p. 119.

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ATTALI

e M.

GUILLAUME,

L'anti-economique,

4. . A cria~o do espa~o geografico Para manter a sua credibilidade junto das outras ciencias humanas, tais como a antropologia, a sociologia, a economia, a geografia deve definir o objecto das suas investigac;:oes e limitar-se a ele. Ja se sabe que a geografia propoe-se estudar a organiza~ao do espa~o pela acc;:ao hununa. Par ordenamento deve entender-se a preparac;:ao adequada do espac;:o ao projecto escolhido pela sociedade e o espa~o constitui assim a materia prima a moldar. Esta materia prima nao oferece recursos senao aos homens com urn genera de vida estritamente biol6gico. Para os outros oferece somente possibilidades que a efidcia da sua cultura transforma em recursos. Para todos, opoe muitas vezes obstaculos dificeis de superar. As calotes polares sao meios repulsivos. 0 homem de hoje, qualquer que seja o desenvolvimento da sua ciencia e da sua tecnica, ainda nao conseguiu dominar o fmpeto dos fen6menos naturais tais como o vulcanismo, os terram.otos, os raz de mare, os ciclones tropicais que exercem a sua forc;:a de destruic;:ao em vastos espac;:os habitados. 0 equilibria do meio natural rompe-se muitas vezes pelas fortes variac;:oes das caractedsticas dos seus componentes: o clima, em particular, conhece oscilac;:oes de uma tal amplitude que os 1 ecossistemas sao levados a reconstituir-se em novas bases ( ). A Hist6ria e marcada par crises que provocaram estas rupturas de continuidade. A mais celebre e a dessecac;:ao que fez do Sara o deserto actual: o Homem do Neolitico vivia af da agricultura, da criac;:ao (1) Ver sobre este assunto Jean LEBRON, Equilibres naturels et recherche scent ifique, Impact. ÂŤScience ct Societe)), Unesco, vol. XIV (1964), n. o 1.

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de gado, da pesca, como e testemunhado pelo abundante material de pedra abandonado no proprio local. 0 IV milenio marca o inkio da desertificac;:ao, desencadeando as migrac:;:oes das populac:;:oes negras para Sui, sendo substituidas por pastores libios e depois pelos n6madas berberes de hoje. Tem-se atribufdo a secura a responsabilidade das fomes que castigaram em anos sucessivos as populac:;:oes africanas do Sael, da extensao anormal para o Sul das altas pressoes do anticidone dos Ar;ores, encontrando-se o limite das chuvas tropicais de verao recuado tambem para Sul. A retomada recente das chuvas provocou a multiplicac;:ao dos roedores que devastaram regioes inteiras na Bacia do Senegal. E nao somente as colheitas foram destrufdas, mas urn recrudescimento das doenr;as vir6ticas e de temer entre as quais a febre amarela. Junto dos Siwalik, 0 Terai permitia no seculo IV uma populac:;:ao densa vivendo em cidades, hoje em ruinas. A floresta recuperou o espar;o conquistado pelos homens e a malaria tornou-a numa das regioes mais febris da India. Para E. Hutington, a hip6tese duma mudanr;a de clima foi responsavel por uma variac:;:ao de morbilidade infecciosa, apresentando-se como explicac:;:ao mais plausfvel (1). Na ÂŤHistoire du dimat depuis 1' an mih (2), Emmanuel Le Roy-Ladurie, cita ainda o exemplo da agricultura pre-colombiana do Arizona e do Novo Mexico. Conquista o espar;o pouco antes da nossa era, atinge 0 apogeu entre OS seculos VIII e XIII, suporta entao uma popular;ao concentrada em grandes aldeias vivendo da colheita de ab6boras, milho e feijao. No fim do seculo xur assiste-se ao declinio que se prolongara durante longos anos. Vastas regioes conquistadas pelo deserto

estao quase vazia aquando da chegada dos espanh6is. Seria a oscilar;ao ainda do clima que durou de 1250 a 1300 que teria enxugado as terras e dizimado as populac:;:oes. Acabamos de ver que as oscilac;:oes do clima ao longo de um espac;:o de tempo determinam mutas:oes estruturais na organizac:;:ao do espar;o. Na sequencia dos trabalhos deLe Roy-Ladurie, outros investigadores multiplicaram os exemplos de incidencias sobre a agricultura, da variabilidade de curta durar;ao dos dimas regionais, sendo possfvel medir recentemen.te, quando a poHtica extern.a da URSS foi afectada por sucessivas colheitas de cereais deficit:irias (1) . Isto e incontestivel. No entanto, o ge6grafo que desconfia dos determinismos sumarios, ficara muito circunspecto: objectar:i as an.alises preceden.tes que, se OS homens viverem efectivamente a desertificac;:ao do Sara, esta foi suficientemente lenta para que tivessem podido preparar uma resposta. Subsiste af uma agricultura, sendo a populas:ao sedentiria mais numerosa que a n.6mada grar;as aperfurar;ao de poc;:os artesianos e sobretudo ao escavamento dessas compridas can.alizac;:oes subterraneas que constitui a rede das <foggarasÂť (21 ], trabalho de toupeiras. Dizia E.-F. Gautier, que implica nao s6 tempo, mas tambem a capacidade de mobilizar os esfors:os dos homens que constituem as comunidades. Quanta as regioes saelianas, se e verdade que anos sucessivos de seca desencadearam a crise, esta foi fortemente agravada pela dependencia colonial que, impondo a economia monet:iria, incitou os camponenses negros a reduzir os pousios para aumentar a produr;ao de culturas de exportar;ao em detrimento de culturas c a so brecarga pastoril fez o res to. E portanto so brc

(1) Citado por M. SORRE, Les fondcments de la geographic hw11aiue, T.I: Les fondeme11ts biologiques, A. Colin, 1947, p. 394. 2 ( ) Flammarion, 1967, pp. 288 e seguintes.

(1) Ver o n. o 3, Maio-Junho de 1974, de Amwles, Economies, Societes, Civilisations: Histoire et cnvironneme11t, A. Colin.

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equilibrios ecol6gicos pr6ximos da ruptura que a seca se abateu transfortn:ando a crise em desastre (1). · Por seu lado, Max Sorre refutou a explica<;:ao climatica de E. Hutington sobre a ruina da sociedade indiana do Terai ao propor atribuir a recrudescencia da malaria, a deteriorar;:ao do sistema de drenagem que conduziu a uma diminuir;:ao do nivel de vida e consequentemente da resistencia a malaria. E. Le Roy-Ladurie reconhece sem relutancia, que o clima nao e 0 unico a desempenhar urn papel no desenraizamento dos povos do Arizona-Colorado visto que este exodo «se prosseguin muito para alem de 1305, depois do regresso das chuvas e durante todo 0 humido seculo XVI. Contudo a tendencia para a queda demografica subsiste depois do periodo seco». Acrescentar-se-a; para confinnar a posir;:ao dos ge6grafos, uma observa<;:ao de P. Gourou (2) que recusa explicar a impor:tancia das sociedades indias da Amazonia pelo peso das influencias naturais: «Se, acrescenta ele, uma civilizac;:ao engenhosa ai tivesse nascido, nao faltava quem dissesse que tinha sido favorecida pela imensa extensao das terras cultivaveis, pela abundancia e regularidade das chuvas e por uma admirivel rede navegavel». Para concluir, retomaremos a opiniao de Serge Moscovici: <<0 homem tern o poder de suscitar, de combinar as forr;:as naturais em funr;:ao do imperativo da colectividade, tendo em conta a sua extensao e a sua estrutura (3). Limitar-nos-emos a acrescentar que todo o interesse da Geografia reside na resposta dos homens ao desafio das contrariedade exteriores. Com efeito, esses homens herdam geralmente espar;:os ja organizados por gera<;:oes precedentes, herdando tambem urn (1) Jean 2 ( )

(3)

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COPANS, Sccheresse et fa111ines du Sahel, 2T., Maspero, 1975· Pour une geograplde humaine, Flammarion, 1979, p. 95. La socit!te contre nature, p. 388.

projecto elaborado por aqueles. E disso que resulta o que se pode denominar de contradir;:5es internas. Uns contentam-se em prosseguir, outros procedem a novos arranjos mais adequados aos seus proprios projectos. A sucessao consiste muitas vezes na transformar;:ao de uma materia prima ja degradada e fortemente comprometida, tendo que pagar os excessos ou os erros cometidos pelos antepassados. A recuperar;:ao dos Alpes do Sul choca-se com dificuldades quase insuperaveis. Na Idade Media procedeu-se a vastos arroteamentos destinados a aumentar a extensao das culturas e das pastagens. Estes cortes macic;:os de matas ate elevadas altitudes, expuseram as vertentes a agressividade da erosao mediterranea. Os solos descarnados deixam aparecer a rocha-mae esburacada em vastas superficies que nao sao totalmente cobertas pelo manto irregular de garrigue; as ribeiras entulham os seus leitos de depositos de aluvioes grosseiros. E uma regiao vazia e preciso reconstruir totalmente. degradada que hoje Que dizer dos espac;:os que a colonizac;:ao abandonou as popular;:oes tornadas independentes ? .Ao lado das regioes que ela propria organizou para tirar um rendimento duradouro tais como as plankies viticolas da Argelia ou as aglomerac;:oes industriais do Catanga, outras submetidas a uma economia destrutiva sao gravemente atingidas nas suas potencialidades; outras ainda, como as reservas bantus da Africa do Sui sao votadas ao esgotamento pelos excessos de explorac;:ao, a qml conduz ao superpovoamento e assim ao afastamento dos autoctones. Ap6s quatro seculos de contactos com o Ocidente, a Africa, segundo a expressao de Jean-Paul Harroy, e uma «terra que morre)). A restaurar;:ao do patrim:6nio espacial e para OS jovens estados um pesado handicap ao seu desenvolvimento econ6mico, mas ela e condir;:ao previa de todo 0 progresso.

e

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U Ina das solw;oes consiste em fazer tabua rasa do !iassado e reorganizar o espac;o sabre o modelo a que o pais se propoe. A operac;ao nao pode ser deixada a iniciativa individual, devendo ser dirigida segundo urn plano de conjunto, com urn grande entusiasmo e na unanimidade nacional. Urn modelo que tern sido apontado eo da revoluc;ao sovietica que procedeu a uma vasta remodelacrao do espacro abandonado pelo Csarismo. 0 espac;o, dizemo-lo nos, e a materia prima que toda a sociedade projecta organizar a sua imagem. Qual vai ser a estrategia da accrao criadora? Os seres vivos sao autorregulados biologicamente para resistir a crescente desorganizac;ao que sofre a materia inanimada, grac;as as informacroes captadas no meio envolvente e traduzidas em comportamentos racionais. Alem disso o homern e dotado da possibilidade de multiplicar ate ao infinito as suas respostas, de as memorizar e de as transmitir pela linguagem aos seus descendenttees: es banco de informar;oes constituido ao longo das geras:oes e uma componente da cultura propria de cada civilizas:ao. A cultura aparece aqui como urn sistema de codigo que orienta a acr;ao humana: por seu turno, esta enriquece a massa de experiencia acumulada. 0 meio, com efeito, lange de ser hostile estimulante: obriga. o homem, que nele capta a informar;ao, a descobrir as potencialidades que estao latentes. Desta forma, a cultura assegura a estabilidade sem, no entanto, se opor a inovar;ao. A cultura constitui portanto um conjunto de saber ÂŁ:1zer, particularmente a tecnica aplicada para dar forma a materia inanimada: talhar urn silex em forma de instrumento, captar uma nascente para a irrigacrao, imaginar utensilios, ordenar o espar;o. Alimentada de informar;oes, e essencialmente organizacrao, resistencia ou desordem entropica. Permite assim ao homem 46

atingir uma autonomia cada vez maior, face as contrariedades exteriores, e por conseguinte, uma maior liberdade. Nao consiste numa adaptas:ao, mas numa invenr;ao do habitat pelo habitante (1). Emigrando, os homens conservam os comportamentos que derivam da sua cultura e transferem a sua concepr;ao do do espar;o para o seu novo meio. Malaio-Polinesios implantam em Madagascar a paisagem de arrozais irrigados; os calvinistas franceses plantam vinhas na Africa do Sul; em plena terra mucrulmana, os colonos transformam a Mitidja segundo urn plano languedociano, com a geometria disposta em fiadas de cepas e de ruas, das aldeias com tectos de telhas, vermelhos agrupadas a volta do adro da igreja. Este apego ao sistema cultural deforma e mascara a realidade das coisas. Quantos erros nao ted cometido a colonizac;ao, ao querer introduzir metodos sem ter procedido ao estudo previa do novo meio. Durante meio seculo, OS colonos franceses teimaram em desenvolver na Argelia plantac;oes de cana de acrucar, de cacau, cafe e algodao sob o pretexto de que a historia dos seculos anteriores lhes tinham ensinado que, colonizac;ao significava agricultura tropical. Conhecem-se tambem os custosos insucessos dos ingleses no Tanganica, desejosos de alargar a area de cultura do amendoim, utilizando nos arroteamentos processes mecanicos que aceleraram a degradac;ao dos solos. Ao contrario do ecossistema que resulta, como vimos, de interacc;oes biologicas, o espac;o geogrifico nasce da iniciativa humana e exprime o projecto proprio de cada sociedade. Nao se adapta ao meio natural, utiliza-o como substracto, transforma-o, condiciona-o o melhor possivel para a realiza( 1) Ver S. Moscovrcr, Quelle unite: avec Ia nature ou contre ?, in ÂŤL'unite de l'hommeÂť, Seuil, 1974, pp. 752 e seguintes.

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yao das intenyoes humanas ao ponto de o tornar, muitas vezes, irreconhedvel. Em que se tornarao as florestas do mundo? Cederao lugar as pradarias, aos campos cultivados, as plantayoes. Se, como ecossistema se inscreve na natureza, o espa~o geogrifico nao segue essa ordem, e regido por aquila que o homem define para se tornar aut6nomo. Mas esta ordem imposta e fragil: logo que a ac~ao humana enfraquece, nao resiste a dinamica dos sistemas naturais que tern reconquistado rapidamente o terreno perdido [22]. Com a proliferac;ao dos seres vivos, o regresso ao ecossistema e atingido rapidamente. 0 espa~o geografico encontra-se num equilibria instavel e s6 se mantem pela constante intervenc;ao do homem; todo o abrandamento na vigilancia arrasta a sua degradac;:ao. Sao as causas hist6ricas, mais que as mutac;:oes do meio que explicam a sua rufna. Fac;:amos o ponto da situac;:ao. Uma primeira conclusao impoe-se: refere-se a especificidade do espac;:o geografico. 0 homem subtrai o espac;:o aos ecossistemas; trata-o na sua dinamica, orientado pela cultura, organiza-o, transformando-o em espac;:o geografico. Isso feito, fica por saber como se exerce essa aq:ao criadora.

5.

0 espac;o geografico: produto social

Grac;:as as relac;oes dialecticas que estabelece com o meio, o homem adquire primeiramente urn conhecimento empfrico, seguido de urn conhecimento cientffico; descobre os obsticulos, as potencialidades e inventa a tictica que permite responder-lhe. E na pratica que se efectuou a aprendizagem do meio e se conceberam os primeiros utensflios, as primeiras tecnicas. A observac;ao nascida do contacto directo com a natureza permitiu

a desco berta das interdependencias que regulam os ecossistenus: os camponeses avaliam a fertilidade das suas terras pelas cores, pela vegetac;:ao que apresentam; a experiencia revelou-lhes os si:nais precursores da chuva, da geada, as exposic;:oes mais favoraveis. Por exemplo ,o campones africano cedo compreendeu a importancia dos solos florestais, m6veis, ricos em humus e sem plantas concorrentes; o Pigmeu aprendeu a preferir afloresta densa, a floresta secundaria mais rica em vegetais comestiveis e em cac;:a. De todas estas informac;:oes, o homem tirou urn saber cuja efidcia epouco a pouco afirmada: descobriu a selecc;:ao das plantas uteis, a domesticayao dos animais, a noc;:ao de campo - que devia desempenhar urn papel tao importante na organizac;ao do espac;:o agricola. Considere-se o conjunto de o bservayoes que foi preciso reunir para ordenar, num conjunto viavel, os elementos constitutivos da vida rural. Claro, tudo isto exigiu uma longa sequencia de seculos feita de exitos e fracassos. Assim se compreende o apego de todos os camponeses a uma cultura tao penosamente adquirida, que mantem religiosamente, com o receio que a inovac;:ao incontrolada viesse introduzir a desordem: o respeito pelos antepassados, fundadores da tradiyao, condiciona o seu comportamento. 0 ordenamento do espac;:o comec;:a com a agricultura, que se observa nas pequenas comunidades. Como aumento da populac;:ao, a sociedade que se torna complexa exige uma acc;:ao mais profunda no meio envolvente. A maior parte das velhas civiliza1 c;:oes agrarias organizaram-se naquilo que Robert L. Carneiro ( ) chama ÂŤareas circunscritasÂť, quer dizer, espac;os limitados por (1) Citado porE. LE RoY-LADURIE, L'histoire immobile, <<AnnalesÂť, ESC, Maio-Junho, 1974, p. 673.

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48 4


obstaculos dificeis de superar: montanhas, desertos, oceanos, no interior dos quais o engenho dos homens teve de se manifestar para explorar as possibilidades novas, susceptfveis de assegurar a subsistencia de densidades mais elevadas: tal foi o caso do Egipto e da Mesopotamia transformando urn meio desertico a partir de um rio que permititu a passagem a agricultura intensiva gras:as a irrigas:ao. 0 ordenamento do espac;:o pode resultar, muito mais do que se pensa, da execuc;:ao de um projecto conceoido para atingir um fim previamente fixado. A planificac;:ao nao e uma poHtica concebida pelas sociedades modernas, ela e uma obra elaborada ao longo da historia. Basta, para disso se convencer, lembrar alguns exemplos. E de referir que o empreendimento dos reis Merina, prosseguindo deliberadamente durante mais de tres seculos a transformac;:ao dos pantanos repulsivos da bacia de Tananarive, numa planicie fertil onde as aguas dos rios, controlados numa rede de diques e canais assegurando a irrigac;:ao, enquatito que urn povoamento de aldeias de colonos instalados ao abrigo das inundac;:oes sabre massas rochosas emersas permanentemente, explora arrozais concedidos em lotes familiares de urn hetra ou seja uma area a volta de tres quartos de hectare [23] Era a aplicac;:ao em Madagascar de urn nwdelo asiatica de ordenamento introduzido por imigrantes originarios da Indonesia. Outro exemplo relativo ao Senegal: o ordenamento do Ferlo e a obra da Confraria Mourida (1) [24]. Este movimento religioso muc;:ulmano fundado entre 1886 e 1889 por urn morabito espertalhao ensina que a agricultura e a submissao ao chefe sao as condic;:oes necessarias a santificac;:ao. A comunidade dos fteis ( 1) Cheikh Africaine, 1969.

so

TIDIANE SY,

La cortfrerie senegalaise des Mourides, Presence

foi instalada em. terras outrora ocupadas pelos pastores Fulas. Foram repartidos em campos rectangulares de dois quilometros e meio de comprimento por meio quilometro de largura, sendo mais tarde reduzidas as dimensoes para urn quilometro por duzentos e cinquenta metros. Os campos rodeados par cortinas de arvores destinadas a combater a erosao eolica provocada pelo harmatao [25], desenha urn bocage tropical de linhas geometricas que substituiu a estepe arbustiva. Esses campos foram plantados com amendoim em rotas:ao com a cultura alimentar do milho miudo. Muitas vezes, a colonizac;:ao procedeu ao planeamento do espac;:o conquistado para melhor instalar o seu povoamento. No Quebec, os franceses criaram de urn e de outro lado do rio Saint-Laurent, uma paisagem de alinhamentos a partir de uma rede de estradas paralelas ao rio, em que o solo e dividido em rectangulos atribuidos par concessoes individuais, dispondo-se as casas com intervalos regulares ao longo dos caminhos. No oeste, e a quadricula regular do sistema da milha dos townships ingles que prevalece. Na Argelia, a primeira fase do povoamento decidido pelo general Bugeaud instalou na mata de palmeiras anas do Sael Ocidental, uma serie de aldeias dispostas em xadrez colocadas em lugares defensives com o fim de bloquear as infiltrac;:oes das hordas de arabes a caminho de Argel: a volta de cada aldeia, a terra era concedida em explorac;:ao de uma duzia de hectares comportando varias parcelas repartidas par diferentes areas para permitir a policultura de subsistencia, tao do agrado do agricultor nao especializado. Mais proximo de nos, a Russia Sovietica inscreveu o sen socialismo na organizac;:ao do espac;:o: uma vez a propriedade individual abolida, a planificac;:ao teve o campo livre para criar em vastas extensoes desempedidas de sebes que con.stituiam limites de vastos dorninios agrkolas continuos no centro dos quais as grandes aldeias

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kolkhozianas [26] ou sovkhozianas [27] agrupam os habitan,tes, os servic;:os, os estabulos e as dependencias das explorac;:oes. Nos paises capitalistas, a planificac;:ao do espac;:o nao pode ser rigorosa, limitando-se a controlar de maneira mais ou menos apertada, a interdic;:oes rnais ou menos eficazes. Os poderes publicos intervem na extensao das cidades, na implantac;:ao dos complexos industriais, no equipamento das regioes desfavorecidas. Em Franc;:a, por exemplo, participam no desenvolvimento da economia do «Midi» Mediterraneo encarregando-se do controle de Durance e de Verdon, cujas aguas devem assegurar o consumo das cidades, das fabricas e a transformac;:ao do sistema de culturas pela irrigac;:ao, contribuindo para a instalac;:ao do grande centro industrial de Fos e dos centros turisticos da costa Languedociana, deserta desde sempre. Quanta a Italia, bastari lembrar o papel decisivo do Estado na execuc;:ao de um plano de desenvolvimento do Mezzogiorno. 0 ordenamento de urn espac;:o nacional e em grande parte condicionado pelo sistema politico que a hist6ria ai · organizou: para comprovar isso, basta comparar a Franc;:a com a Alemanha Ocidental (1 ). Em Franc;:a, a grande centralizac;:ao politica que acumulou os poderes de decisao e de acc;:ao na capital, e icontestavelmente responsavel pelos desequilibrios socio-econ6micos que nao deixaram de se fazer sentir entre a regiao parisiense, com uma concentrac;:ao de populac;:ao e de actividades ate a sua paralisac;:ao, e as regioes perifericas mantidas no subdesenvolvimento. Na Alemanha, pelo contd.rio, o funcionamento do sistema federal permitiu uma igualizac;:ao de possibilidades de desenvolvimento entre os «Landers» (28]: nao ha dominio de urn sobre o outro,

(1)

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J.-C.

PERRIN,

Le developpement regional, PUF, 1974.

nao ha diferenciac;:oes espaciais capazes de suscitar pengosas contradic;:oes internas. No entanto, e evidente que nas sociedades liberais, e 0 capitalismo que dirige 0 jogo da organizac;:ao do espac;:o. A sua propria racionalidade impele-o a tirar o maximo proveito sem se preocupar com os desequilibrios que provocam os seus investimentos selectivos. As regioes que privilegia recebem uma infraestrutura produtiva, actividades diversificadas com efeitos cumulativos que as dotam de uma capacidade de desenvolvimento aut6nomo e continuo. Os equipamentos de interesse colectivo e os servic;:os especializados melhoraram o bem-estar das populac;:oes. Neste meio dinamico, estas populac;:oes podem conseguir a elevac;:ao do seu nivel de vida e a possibilidade de uma promoc;:ao social. Quanto as outras regioes, abandonadas a si mesmo, nao s6 sofrem de urn atrazo que se vai ampliando, mas tambem nao podem esperar manter-se na situac;:ao atingida em func;:ao da falta de investimentos de que sao vitimas. Os produtos agdcolas ou as materias primas que trocam pelos produtos industriais conhecem uma depreciac;:ao continua; a parte mais activa da sua populac;:ao, privada de toda a esperanc;:a de progresso, e forc;:ada ao exodo para regioes mais favorecidas. Ebern essa e todos estarao de acordo, a dualidade de situac;:oes que existe em Franc;:a entre a Regiao Parisiense e o Macic;:o Central, por exemplo; ou na Italia, entre o Norte e o Sui da peninsula. Assim, gerador de desenvolvimento desigual, o capitalismo e responsive! pelas enormes disparidades socio-espaciais de que sofrem os paises onde ele reina sem poderes compensadores suficientemente eficazes. Hoje, o capitalismo vai ainda mais longe no controle que exerce sobre o espac;:o. Indiferentes as fronteiras, as sociedades

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internacionais (1), instalam-se por todo o lado onde existe urn mercado susceptive! de absorver a produ<;ao que a sua publicidade impoe ao consumo. A sua implanta<;ao obedece as {micas leis do lucro e dornina<;ao econ6rnica da sua sede social, situada no estrangeiro, exercendo irnpiedosarnente os seus poderes de decisao. Decidern da contrata<;ao, dos salarios, dos pre<;os, do aurnento ou da redu<;ao das actividades; tern a sua merce toda urna popula<;ao de trabalhadores e, atraves deles, do futuro de cidades inteiras e do espa<;o rural que as envolvern. E bern esta a situa<;ao criada pela instala<;ao avolta da laguna de Berre, das companhias petroliferas francesas, inglesas, americanas que aÂŁ controlarn urn dos maiores cornplexos de refinarias e de petroquirnicas do mundo estando Marselha e toda a sua regiao na sua dependencia. Essas sociedades internacionais encontrararn nos paises subdesenvolvidos a possibilidade de realizar elevados lucros em consequencia do baixo pre<;o da terra e da rnao-de-obra. Elas detem ai vastas areas organizadas para servir as suas especula<;5es. Na Africa Ocidental, possuem ranchos consagrados a cria<;ao industrial de bovinos; no Senegal, a B. U.D., filial de uma sociedade californiana, explora urn dominio de 1 000 hectares de culturas horticolas agro-industriais, na qual trabalham 3 000 assalariados em pedodos de ponta; as 100 000 toneladas recolhidas anualmente sao exportadas para a Europa c para os Estados Unidos. Em tais condi<;oes ja nao e s6 sobre o terreno que o ge6grafo deveri procurar as chaves da explica<;ao de uma organiza<;ao espacial: a iniciativa esta noutro lado, na capital ou no estrangeiro. Sera necessaria utilizar doravante o conceito (1) Les finnes multinationales, Travaux et Recherches de Prospective, Documentation Franr;ais, n. o 43, Fevereiro, 1973.

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dos espa<;os alienados para designar regioes que devem. ao exterior, nao s6 a sua cria<;:ao e a sua integra<;ao no mercado mundial, mas ainda a sobrevivencia da sua organiza<;ao, enfim regioes cuja popula<;ao indigena jarnais controla, e que ate os pr6prios poderes publicos dificilmente controlam. Entre a sua politica do espa<;o e a do capitalismo, as divergencias surgem: na localiza<;ao das suas empresas, as grandes sociedades sao sobretudo sensiveis as vantagens que lhes fornecern as economias externas, quer dizer a reuniao num mesmo lugar de uma infraestrutura, duma abundante e qualificada mao de obra, de um mercado de servi<;os, de urn dinamico centro de neg6cios, de colectivividades complementares diversificadas. 0 Poder, ao contrario, pretende trazer para ai, onde faltam os equipamentos colectivos, as actividades econ6micas que fixarao os homens e as coisas no espa<;o. Depois de urn longo pedodo de estreita conivencia, um afrontamento e hoje previsivel (1). E evidente que nem todos os espa<;os estao ainda nesta situas:ao. Se a dispersao das suas implanta<;oes e hoje um elemento fundamental da estrategia das grandes empresas, nem por isso a existencia das regioes esta inteiramente dependente das decisoes das poderosas sociedades nacionais ou multinacionais: ÂŤAcontece que se assiste a uma notavel espontaneidade econ6mica, como o revela por exemplo, aquela extraordinaria prolifera<;ao de pequenas e medias empresas de confec<;ao de texteis, de cals:ado, de mednica, surgidas em pleno bocage em volta de Cholet (2). (1) Ver J.-C. PERRIN, Le developpement regional, PUF, 1974, eM. GUILLAUME, Le capital et son double, PUF, 1975. Ver tambem, P. GEORGE, L'ere des tech11iques PUF, 1974, pp. 142, 143, 144: <<Uma das principais distinr;6es entre as preocupa<;6es dos Estados e as das sociedades industriais baseia-se na diferenr;a entre a globalidade das responsabilidades do Estado e a especificidade das preocupa<;6es da empresa. (2) J. FoNTAINE, Les vingt-deux Francs, in <<L'ExpansionÂť, Marr;o de 1976, p. 75.

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Se a Ford e outras sociedades vieram instalar-se no Gironda, as grandes vinhas, herdeiras duma estreita intimidade com o meio, e os grupos ainda dominantes que retardaram o desenvolvimento industrial do sec. xrx conservam todo o seu peso na organizac;ao do espac;o e da sociedade da regiao bordelesa (1). De qualquer forma, acontece que a produc;ao do espas;o se situa no cerne da competi~ao social que desencadeou o capitalismo. Mais do que nunca, os investimentos para af se precipitam pois e neste Sector que a taxa de lucro e superior a media, em razao da abundante mao de obra que exigem as constru~oes imobiliarias. «A mobiliza~ao do espas;o, escreve Henri Lefevre (2), torna-se frenetica e leva ate a autodestruic;ao dos espas;os antigos e novos». 0 consume do espa~o aumenta ate ao desperdfcio: 0 espas;o ja nao e urn bern de uso, e uma mercadoria que se presta a toda a especie de especula<;:oes frutuosas. Os ordenamentos que se constroem diversificam-se para satisfazer novas necessidades. A materia prima (o espas;o), nao sendo inesgotivel, necessita alargar-se a custa do espas;o ag:icola que ja nao e rentavel, reconverter-se, transformar-se para se adaptar as necessidades que nao cessam de surgir. As cidades alargam-se em detrimento dos seus arredores hortfcolas que cedem o lugar a bairros habitacionais, parques, estadios, zonas industriais, centros comerciais, aeroportos. .. As autoestradas abrem largas e compridas faixas atraves de campos e florestas e campos militares instalam-se em meios rurais degradados em que a vida modema hesitava em penetrar. 0 consume de espas;o rural redobra hoje com o desenvolvimento desenfreado dos lazeres. Citadinos constroem residencias ( 1)

G.

LE GALL, Elements pour des scenarios sociaux, in «Prospectives»,

n. o 4, 1975, p. 15. (2)

56

La production de l' espace, «Anthropos», 1974, p. 338.

secundarias nas aldeias ou em parcelas conquistadas as culturas: as estas;oes de desportos de inverno ocupam areas de pastagens, derrubam florestas nas vertentes montanhosas; os construtores civis levantam os seus muros de betao ao longo das costas do Mediterraneo: na Costa Brava, compram por qualquer pre~o, a beira-mar' propriedades agdcolas onde edificam inesteticos edificios que sao arrendados aos turistas a pre<;:os exorbitantes. 0 semanario espanhol Europeo interroga-se sobre o futuro dos filhos dos camponeses espoliados da terra, onde cultivavam o trigo e a fruta. Na origem do ordenamento do espas;o existe, ja o dissemos, a vontade de realizar urn projecto de vida: projecto colectivo da pequena comunidade ou do grande Estado que determinam e escolhem o seu destino, segundo uma tactica empirica ou prospectiva, projecto do grupo detentor dos meios de produs;ao, 0 qual e impasto ao conjunto da sociedade. De qualquer maneira, esta organizas;ao exige a interven~ao de trabalho humano que forilece a energia necessaria para a constru<;:ao do espas;o geograftco. Para ser mais eficaz, este trabalho deve ser baseado na aprendizagem que transmite ao homem o saber e a experiencia acumulado pelas gera~oes anteriores. Consiste na utiliza~ao em comum das fors;as produtivas de todos: e urn trabalho sociaL Como tal, e pois a expressao do sistema de relas:oes que cada sociedade estabelece entre os seus membros. As sociedades camponesas tradicionais apoiam-se menos nas rela<;:oes de produ~ao do que nas relas;oes sociais: rela~oes dos vivos com os antepassados, dos vivos entre si conforme a idade e o sexo. Traduzindo essas estruturas, o trabalho e tanto urn acto ritual como tecnico e s6 e fecundo na condi<;:ao de respeitar a heran<;:a de praticas pelas quais se exprime o acordo com. as divindades locais. Testemunha

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tambem a intima colabora<;:ao dos grupos sociais numa divisao das tarefas. Divisao sexual: nos Gbeya, por exemplo, fixados nos norte do rio Ouham na Repl1blica Centro Africana, cada familia constitui uma comunidadc de trabalho em que as culturas alimentares mais antigas, portadoras dum valor sagrado tal como o milho mil1do e o inhame estao reservados aos homens; a cultura da mandioca, de introdu<;:ao relativamentc recente, e abandonada as mulheres; mas a do algodao, mais recente ainda, e praticada individualmente por todos OS membros da familia e ate o rapaz duma quinzena de anos cultiva a sua parcela e dispoe da sua colheita como entender. Na floresta do Gabao, os Bantus vivem da cultura itinerante sobre queimadas: os homens derrubam as arvores, ro<;:am, queimam, preparam sumariamente o solo no qual as mulheres plantarao, em regime de policultura, o inhame, mandioca, batata doce; mondarao, colherao e transportarao a produ<;:ao para a aldeia. Por niveis etarios formam_-se grupos de trabalho que se encarregam de certas tarefas: os Baribas do Volta, por exemplo, cultivam parcelas por conta da aldeia, vendem o seu trabalho aos proprietarios e ajudarn os pobres. No seio das sociedades camponesas, a entre-ajuda reveste-se de urn caracter comunitario, tendo correspondencia a touiza [29] dos camponeses argelinos. Consiste num trabalho colectivo: a constru<;:ao duma casa, o amanho das tcrras, a colheita, tudo executado no interesse duma familia, tomando parte nele todos os habitantes sem distin<;:ao de idade ou de sexo. Trabalho executado com alegria e cantares encerrando-se com um banquete. A entre-ajuda pode ate alargar-se a varias comunidades vizinhas. M. Godelier (1) lembra que, nos Andes, os habitantes ( 1) A antropologia econ6mica, primitives?, Denoel, 1971, p. 211.

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i11

L' Anthropologie science des sociCtes

das aldeias indias associavam os seus esforc;:os para desbravar, plantar e colher: Blas Valera denomina esta reciprocidade de ÂŤlei da fraternidadeÂť. As grandes obras do ordenamento do espac;:o exigiram a mobiliza<;:ao duma numerosa populac;:ao, mas para tanto era preciso que fosse imposta pela omnipotencia de um monarca. A corveia real generalisada fomeceu a mao de obra necessaria para 0 aproveitamento das terras conquistadas as aguas originando as planicies de Tananarive. 0 Estado Inca impos um sistema de presta<;:ao de trabalho as comunidades camponesas para a construc;:ao das estradas, cidades, dos canais de irrigac;:ao e dos socalcos. Ainda hoje, as mais importantes realiza<;:oes de remo~ delayao do territ6rio chines saiem das maos dum exercito de trabalhadores agrupados em equipas. A instituic;:ao da escravatura respondeu as exigencias da valorizac;:ao do espac;:o, tanto nas sociedades antigas como nas sociedades coloniais ate meados do sec. xrx. Ja sabemos que as transferencias de populac;:ao provocaram modificac;:oes profundas no mapa da repartic:;:ao dos hom.ens na superfkie da Terra. A Africa, esvaziada das suas for<;:as activas, deve-lhe em parte, as dificuldades actuais para sair da estagnac;:ao. 0 continente americana herdou os problemas de integrac:;:ao racial que parecem insoll1veis. Hoje o capitalismo generalizou o recurso a mao de obra recrutada na regiao ou nos pafses que dispoem de urn excedente de forc;:a de trabalho: na Europa Ocidental, a imigrac;:ao provem essencialmente da Bacia Mediterranica e dirige-sc para as regioes industriais onde a sua implanta<;:ao trouxe o aparecimento de paisagens ins6litas no espa<;:o urbana. Muito cedo o homen.1 aprcndeu a invcn.tar ferramentas, maquinas que, nao s6 poupam como facilitam a utilizac;:ao do esforc;:o. 0 facto e bastante conhecido e parece-nos inl1til

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insistir nele: s6 evocaremos a extraordinaria eficicia do material usado hoje para nivelar o solo, arrasar as colinas, escavar tuneis, abrir estradas, edificar im6veis... Quanto mais elevado e 0 nivel das tenicas, mais a construc;ao do espac;:o geogrifico escapa aos constrangimentos do meio natural, mais livre fica o homem para realizar os seus projectos. A sociedade esta inteiramente motivada para a organizac;:ao do espac;o em conformidade com o objective a que se propoe. Entrega nessa tarefa todos os meios de acc;ao que o seu estado civilizacional poe a sua disposic;ao: a forc;a de trabalho dos homens, o engenho das suas invenc;:oes, o apoio nas suas crenc;as, das suas esperanc;:as, das suas ambic;:oes. Assim concebido, o espac;o geogdfico e, na verdadeira acepc;ao da palavra, um produto social porque resulta do trabalho que a sociedade organiza para alcanc;ar os seus objectives. Mas uma sociedade define-se essencialmente pelo sistema de relac;oes que constitui a sua realidade profunda. E e este sistema de relac;oes que se projecta no ordenamento do espac;:o. Isso e, afinal, o que revela a analise de alguns exemplos.

6. 0

espa~o geografico: Projec~ao no solo das rela~oes

sociais

A)

Espafo e relafoes de parentesco

No macic;o antigo da Grande Kabilia na Argelia, o homem da montanha pertence a grupos sociais localizados num. espac;o delimitado: famllia, aldeia, tribo que reunem os descendentes reais ou supostos de urn antepassado comum considerado como o fundador. Estes grupos de parentes sao regidos por urn

c6digo de costumes que lhes sao pr6prios; os Kanoun. Conservaram a sua coesao atraves da religiao do Islao e da colonizac;ao, nomeadamente o grupo familiar que revela uma extraordinaria vitalidade. Enquadrados rigidamente na familia, os individuos vivem, trabalham, consomem em comum sob a autoridade do patriarca. Virando as costas ao exterior, as casas abrem para urn patio fechado onde, ao abrigo dos olhares indiscretos, a vida pode desenrolar-se livremente. E a justaposic;ao destes bairros familiares fechados que desenham a planta da aldeia. Pelo agrupamento de famllias, a aldeia da uma forte impressao de unidade, mas na realidade, divide-seem duas partes que se distinguem uma da outra, com func;:oes e restric;oes diferentes e ate uma certa rivalidade latente entre os habitantes. E o caso dos fOfs:cof bouadda ou partido dominado fOf oufella ou partido dominante. No entanto, a aldeia apresenta-se como uma comunidade administrativa a maneira duma pequena republica rural pela assembleia dos chefes de familia: a esta tradic;ao comunit:lria, se deve a coesao da densa concentrac;:ao de ¡casas no cume dum pico rochoso ou ao longo de uma crista. Em volta, nas vertentes, estendem-se os jardins, os campos de cevada, as matas de f1gueiras e de olivais repartidos em propriedades familiares exploradas em comum. Nenhum vestigia de acc;:ao individual se observa nesta paisagem que refl.ecte unicamente o dominio do patriarca. Dominio ciosamente defendido contra qualquer perigo exterior: entidade baseada na consanguinidade, a aldeia afirma-se opondo-se as outras aldeias. A utilizac;:ao dum sitio de acesso dificil testemunha as lutas que cada urn teve de travar para salvaguardar a sua independencia.

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A n1.esma estrutura do espas:o se verifica nos Chleuhs de Marrocos: ÂŤA aldeia, escreve G. Surdon (1), e uma projecc;:ao da consanguinidade no soloÂť. Dela sao exclu1dos todos aqueles que nao estao ligados aos habitantes por lac;:os de parentesco: os ferreiros, os judeus e estrangeiros sao relegados para lugarejos afastados. Mas ate mesmo a grande aldeia pode canter em si bairros distintos correspondentes a clas que se gue_reiam uns aos outros. A Africa e abundante em exemplos de espac;os geograficos concebidos para responder as exigencias das relac;:oes sociais: clas, etnias, linhagens absorvem OS indivfduos e tiram-lhes iniciativa. A sociedade e um complexo de relac;:oes entre o homem e o seu grupo e entre os diversos grupos. Os factos sao hem conhecidos grac;:as a abundante colheita de observac;:oes coligidas por soci6logos e ge6grafos. Os exemplos sao numerosos e bastari relembrar algumas anilises entre tanto material acumulado, tornando a escolha embarac;:osa. Conquistador do Futa-Djalon, o Fula organizou o espac;:o de forma a manter a sua supremacia. A linhagem que vem em directo do fLmdador detem urn direito colectivo de propriedade: os diferentes ramos de linhagem localizam-se em outros tantos lugares em volta da mesquita. 0 conjunto constitui a missidie, centro religioso e dirigente: instala-se nos pontos mais elevados donde os habitantes podem vigiar seu gado e os antigos cativos. Os outros fulas povoam lugarejos ou foulassos, situados em volta da missidie. Quanta aos Negros descendentes dos Dialonkes submetidos pela guerra, sao agrupados em aldeias de agricultores-servos, os roundes nos lougans de boas terras no fundo dos vales. 1 ( )

Institutious et Coutumes des Berberes du Maghred, Tanger e Fes, Les Editions Internationales, 1938, p. 303.

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0 solo e propriedade colectiva da comunidade de sangue Fula e cada missidie conhece com precisao os limites do seu proprio territ6rio. E ao Conselho dos Chefes de Famllia que incumbe a tarefa de repartir, cada ano, as terras ad.veis entre aqueles que a elas tern direito. Na extremidade setentrional do lago Niassa, nos Nyakusa, os homens que pertencem ao mesn1o nfvel etirio vivem nurn mesmo lugar sob a autoridade de um chefe designado pelo chefe supremo que lhes atribui terras de cultura, recebendo a1 cada homem a sua mulher. A partir da idade de onze a treze anos, os rapazes deixam a casa paterna para se estabeleceren1 num novo lugar mas, ate ao casamento, regressam cada dia para comer com a mae e trabalhar numa agricultura de enxada com o pai (1). No entanto, o ge6grafo nao se deve deixar enganar pela etnologia, qualquer que seja o valor dos seus trabalhos; se as relac;:oes de parentesco conservam muitas vezes urn valor explicativo indiscudvel na organizac;ao do espac;o, etambemevidente que o contacto prolongado com a Europa provocou transformac;:oes profunda sna construc;ao socio-espacial da Africa. Esta tem necessariamente de se adaptar as exigencias da economia de mercado introduzida pela colonizac;:ao e hoje mais do que nunca, aquelas que condicionam a independencia. Mas os poderes ligados as tradi\=oes resistem: por exemplo, na regiao de N'Kongsamba nos Camaroes, os chefes opoem-se com toda a tenacidade a tendencia dos jovens casais em se afastarem da aldeia para ir viver em lugares ou em cubatas dispersas; veem nisso urn risco de desmembramento da entidade de linhagem e uma ofensa

( 1)

Georges Peter MURDOCK, Africa its peoples and their culture history, McGraw-Hill Book Cy, 1959, p. 361.

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a

autoridade que lhes vern dos antepassados, mas tudo em vao pais a aldeia perde a sua coesao. Os factos sao por si evidentes; mesmo nas sociedades em evoluc;:ao rapida, as estruturas espaciais herdadas dum passado revelam muitas vezes urn extraordinario poder de continuidade. E bern o caso da Lorena onde as grandes aldeias compactas se dispoem pontualmente nos campos abertos e livres. A responsabilidade deste tipo de organizac;:ao explica-se por uma disciplina de vida comunitiria ligada ao sistema de afolhamento trienal que implicou, no seu infcio, a redistribuic;:ao peri6dica das parcelas. Desaparecidas as relac;:oes sociais, a paisagem reflecte, provavelmente, urn comportamento adquirido que nao atingiu o individualismo proprio da economia liberal.

B) Espafo e relafoes etnicas As diferenc;:as etnicas estao muitas vezes na origem de relac;:oes diflceis e ate hostis entre os grupos socio-culturais, justapondo-se entao em espac;:os compartimentados. Tal foi o caso verificado, durante muito tempo, em numerosas cidades muc;:ulmanas onde rac;:as e religioes viviam lado a lado sem se misturarem: dividiam-se em bairros autonomos e fechados cujas populac;:oes, alvitas, cristaos, judeus, conseguiram uma existencia propria. Max Sorre (1) lembra que, em 1932, Anti6quia contava 30 000 habitantes repartidos em 45 bairros constituindo outras tantas celulas urbanas vivas. Em Marrocos, os judeus, ainda que participando activamente na economia, ( 1)

Les fondements de Ia geographie humaine, T. III; L' habitat, A. Colin,

1951, p. 206.

estavam acantonados em mellahs situadas junto da qasba, sob a protecc;:ao do sultao. Nos Estados-Unidos, a imigrac;:ao multinacional deu lugar ao mesmo fenomeno de compartimentac;:ao dos espac;:os urbanos um mapa etnico de Chicago publicado por M. Halbwachs (1) em 1932, estabelecia a repartic;:ao em bairros proprios dos Alemaes, dos Suecos, dos Checoslovacos, dos Polacos, dos Italianos, dos Judeus, dos Negros. Ainda hoje, a segregac;:ao racial isola os Negros americanos ou os Sulafricanos em verdadeiros ÂŤghettosÂť. A Europa Ocidental tambem ela, conheceu os guetos reservados aos Judeus; hoje, sao os trabalhadores vindos da Bacia Mediterranica que se concentram nos bairros pobres e, frequentemente ainda, nos ÂŤbidonvilles>> da periferia das grandes cidades. Nos pafses industrializados, a segregac;:ao etnica agrava-se com a segregac;:ao economica, sendo as relac;:oes de produc;:ao, mais do que as relac;:oes socio-culturais, que condicionam a organizac;:ao do espac;:o.

C) EspafO e relafiies de produfii'O A economia, com efeito, domina as outras componentes da vida social: levou-as a responder as suas exigencias para assegurar a coerencia do sistema. 0 seu poder de estruturac;:ao introduziu a unidimensionalidade na sociedade e no seu espac;:o. Em razao duma evolut;:ao mais ou menos ripida, os ordenamentos herdados do passado sofrem uma remodelac;:ao que lhes permite atingir a produc;:ao do lucro maximo. ( 1) Reproduzido por H. BAULIG, Amerique septentrionale, 2. a parte, p. 417, Geographie Universelle, A. Colin, 1936.

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Conhece-se por exemplo a transformac;:ao das estruturas fundiarias em Franc;:a. A Revoluc;:ao e 0 seculo XIX tinha pulverizado a terra numa quantidade de pequenas propriedades individuais divididas por um grande numero de parcelas: antes do emparcelamento, o cadastro continha 76 milhoes de parcelas de uma area media de 46 ares. Desde meados do sec. xrx, o alargamento da economia concorrencial de mercado desencadeou um n1.ovimento cada vez mais rapido para a constituic;:ao de unidades de produc;ao agricolas maiores e menos dispersas. Este movimento de concentrac;:ao acelerou-se no fim da Segunda Guerra Mundial. Sao conhecidos os seus resultados: de 1955 a 1971, o numero de explorac;5es decresceu de 2 280 000 para 1 588 000 ou seja uma diminuic;ao de quase 700 000, enquanto a area media de explorac;ao subia para mais de 20 ha. Esta evoluc;ao realizou-se a custa das explorac;:oes inferiores a 20 ha. cuja percentagem de superficie agricola u.til baixava de 39 para 27% do total, ao 路 passo que a das explorac;5es superiores a 20 ha subia de 61 para 73%. Desta situac;:ao resultaram profundas perturbac;:5es nas estruturas da sociedade e do espac;o frances: o exodo rural veio acelerar a urbanizac;ao e a proletarizac;ao da populac;:ao; a queda demogrifica de certas regioes e tal que aldeias abandonadas estao em minas, terras voltam pouco a pouco ao ecossistema, pois a acc;ao humana sabre o meio afrouxa. A paisagem rural conhece, as vezes, remodelac;oes radicais: na Bretanha, e nomeadamente no Finisterra, o arrasamento dos comoros impasto pelo emparcelamento substituiu 0 芦bocage禄 (30] tradicional por grandes extens5es de campos abertos que pertencem a um s6 proprietirio. Concerteza que as coisas nem sempre se desenrolam scm resistencia, pela razao que as estruturas espaciais correspondem 66

a mentalidades que se opoem a inovac;5es. Apesar das dificuldades crescentes do escoamento dos seus vinhos, o Baixo Languedoc recusa-se violentamente a abandonar a viticultura para cultivar outras especies mais especulativas tornadas possiveis pela instalac;:ao de canais de irrigac;ao. Na economia liberal, as relac;5es econ6micas suscitam antagonismos de que a utilizac;:ao do espac;o e muitas vezes o alvo. Ha mais liberdade de acc;ao na economia socialista porque a apropriac;:ao do espac;:o nao e objecto de competic;:ao social. Todavia, a URSS conheceu resistencias a abolic;ao da propriedade rural privada; os camponeses reagiram violentamente antes de se deixarem integrar na colectivizac;ao das terras. Foi alias necessaria conceder-lhes o prazer da livre escolha de uma casa e de uma parcela destinada a produc;ao familiar. Hoje o espac;o agricola esta repartido entre vastas empresas: os sovkhozes e os Kolkhozes muitas vezes contiguos, construindo unidades de produc;ao cujas dimens5es sao adequadas a utilizac;ao do material mecanico de grande rendimento. Geralmente, agrupam-se ao centro, as casas, os palheiros, os estabulos e currais, OS armazens, OS ediffcios de servic;os necessarios a vida de varios milhares de habitantes. Na verdade, a maior parte dessas povoac;5es constituem pequenas cidades rurais dotadas de equipamento social. Se, contrariamente ao capitalismo, a revoluc;ao socialista pode, fazendo tabua rasa da heranc;a dos seculos, edificar urn novo espac;o agricola adaptado ao seu projecto, nem por isso aboliu as relac;5es de concorrencia para a explorac;ao da terra: entre as empresas estatizadas e cooperativas, surgiu uma competic;ao baseada em relac;oes de fon;:as desiguais que favorece os sovkhozes. Estes, preferidos pelos poderes publicos que os consideram路 como a forma final dos socialismo, nao cessam de crescer em detrimento dos Kolkhozes: de 1940 a 1972, o numero 67


de trabalhadores nos dominios do Estado passou de 2 para 10 milhoes, ao passo que o das cooperativas se via reduzido de 29 para 16 milhoes (1). Quanto as pequenas parcelas individuais, ainda que limitadas a um meio hectare, conseguiram dar aos trabalhadores uma certa autonomia em rela<;ao ao sistema a tal ponto que a sua supressao foi encarada por diversas vezes. Em contrapartida, o dominio do regime socialista deveria exercer-se plenarnente na organizas:ao do espa<;o industrial-urbana, pois a rapidez do crescimento das cidades ultrapassou as possibilidades de construs:ao de predios . Disso resultou uma verdadeira segrega<;ao dernogdftca na politica da habita<;ao. Assirn, Leninegrado (2) conta 1 003 000 alojamentos para 1 600 000 farnilias o que levou a agrupar 83% das pessoas s6s e 60% das farnllias de duas pessoas no centro da cidade em apartamentos cornunitarios de que cada urn consta 3,2 fam:llias em media. S6 47% das farnilias rnais numerosas ocuparn apartamentos individuais na periferia da cidade. De qualquer forma, o espa<;o seja ele agricola ou urbano, nao constitui na URSS urn capital cuja posse geraria rela<;oes sociais antag6nicas. A procura do dominio social esta noutro Iugar: «no controle das regalias que advem de ser poder e que relegarn todos aqueles que se situam num escalao inferior da hierarquia polltica (3). 0 espayo, e particularmente 0 espa<;o urbano, e, pelo contrario, na economia capitalista, o terreno onde a cornpeti<;ao se exprime com mais for<;a. Desta competi<;ao resulta uma organiza<;ao espedfica que se desenhou pela prirneira vez em Pierre CARRIERE, L'Economie en URSS, Masson, 1974, p. 104. Collectif de Leningrad. Un habitat pour toutes les couches de la population, Recherches internationales Ia fumier du marxisme, n. o 83:-2, 1975, pp. 68 e seguintes. (3) H. LABORIT, op. cit., p. 228.

(1)

( 2)

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a

Londres, na epoca do capitalismo triunfante ingles, para, em seguida se generalizar pelo mundo fora: e 0 fen6meno de <<cidade» que sed. analisado mais adiante. Bastari dizer aqui que consiste na localizas:ao, no centro das cidades onde o valor do solo e mais elevado, das actividades do terciario superior, excluida a fun<;ao residencial que a elas cede o seu Iugar. Sirnultanearnente, urn movimento ciendfico exurbaniza para a periferia, a fun<;ao habitacional, as actividades industriais, os grandes centros comerciais na procura de espa<;os baratos. As rela<;oes de produs:ao fixam nao s6 a hierarquia dos individuos na sociedade, mas tambem a sua distribui<;ao espacial no cora<;ao da cidade. Aos diferentes estatutos socio-econ6micos dos homens, correspondem outros tantos bairros urbanos. Toda a cidade possui bairros burgueses, bairros opedrios, bairros subproletarios que se distinguem uns dos outros pela arquitectura dos seus predios, o trayado das ruas, a densidade da populas:ao, o pre<;o do terreno, 0 genera de vida, OS seus comportanientos, OS ru{dos, os odores. Sem duvida que observando as coisas mais de perto, os factos nao sao tao simples como parecem. Os investigadores levaram mais Ionge a sua analise. A localizas:ao dos grupos sociais na cidade obedece, e certo, aos imperatives do estatuto ccon6mico, mas intervern tatnbem aqui a estrutura dcmografica: os casais idosos e scm filhos alojam-se perto dos servi<;os do centro, tal como a «Pequena Cidade dos V elhos» que conta 1 560 pessoas no centro de Copenhaga, enquanto os casais novas com ftlhos de tenra idade vivem em casas unifamiliares na perifcria arejada (1). ( 1) Ver tambem J.-B. RACINE, Un type nord-americain d'expansiott metropolitain: La courotme urbaine du grand Montreal, 3T., Service de reproduction des theses, Universite de Lille III, 1975, p. 748.

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A organiza~ao espacial da cidade resulta pois, em grande parte, de urn processus pr6prios do tipo de sociedade que a efectuou. Analisada como tal, permite ao observador decompor as rela~oes sociais que constituem_ a armadura da popula~ao. Durante muito tempo, a problematica do ge6grafo defmiu-se como o estudo das rela~oes do homem com o meio natural. Na verdade, estas rela~oes nao sao directas, passam sempre pela mediac;ao das rela~oes sociais. Vamos mais longe, ao aftrmar que o meio natural e o tema no qual se analisam essas rela~oes sociais: a aldeia escolhe empoleirar-se num escarpamento rochoso para responder a inseguran~a. Mas, uma vez afastado o perigo, abandona-lo-a para se aproximar da estrada que o leva ao mercado urbano. Determinado espa~o agricola torna-se objecto duma especula~ao desenfreada menos por causa das suas qualidades intdnsecas, do que pela orienta~ao do desenvolvimento da cidade. Alias, ja nao e com o meio natural que o homem de hoje esd relacionado, mas sim com o meio geograftco que a sociedade foi organizando no decurso da sua hist6ria, muitas vezes, tratando-se de uma «reciclagem» do espa~o. Se, como pensamos te-lo explicado suficientemente, o espa~o geografico e urn produto social e se, como tal exprime relac;oes entre grupos sociais pelos quais se define uma sociedade, o espa~o geograftco apresenta a caracteristitica de conter em si uma carga de grande significado: e urn «semantico» [31] (1). Existiria pois, como o aftrma Marc Guillaume (2), uma simb6lica do espa~o.

( 1)-

0 espac;o geografico: campo de representac;oes simb6licas

Simbolismo que traduz em sinais visiveis nao s6 o projecto vital de toda a sociedade: subsistir, proteger-se, sobreviver, mas tambem as suas aspira~oes, cren~as, o mais fntimo da sua cultura. Uma simb6lica mais rica nas sociedades tradicionais que nas sociedades industriais, pois, nas sociedades tradicionais, todos OS actos sao portadores de testemunhos. Importantes obras ( 1) analisaram em pormenor o papel das religioes na organiza~ao do espa~o. A casa, a aldeia, a cidade sao urn campo privilegiado de representa~oes simb6licas .assim como as catedrais g6ticas da Idade Media, constituem uma linguagem sobre as concep~oes que uma sociedade faz da sua propria organiza~ao e da organiza~ao do mundo. Limitar-nos-emos em apresentar aqui alguns exemplos sen<d.o o verificado nos Betsimisaraka particularmente signiftcativo. Esta tribo malgaxe ocupa as falesias arborizadas que se despencam no Oceano Indico. As suas comunidades agrarias ou ifehitra» [32], unidades de base da organiza~ao da etnia, agrupam um n(unero limitado de descendentes de um mesmo antepassado e cada uma destas linhagens possui, em regime de propriedade colectiva, urn territ6rio florestal sob a protec~ao dos tumulos dos antepassados construidos no cimo dunn colina. Os bois zebus de cada familia, reunidos em manadas da aldeia ai pastam permanentemente. A alimentac;ao dos homens baseia-se na cultura itinerante do arroz, praticada em queimadas florestais ou tauy (33].

a

A expressao e de Jacques Ruffte, De Ia biologic Ia culture, Flammarion, 1976, p. 350. ( 2) Le capital et son double, PUF, 1973, pp. 17 e seguintes.

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7.

(1) E particularmente Pierre DEFFONTAINES, Geographic et religions, NRF Gallimard, col. <<Geographie humaine», n. o 21, 1948.

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\

Em cada ano, a comunidade procede a distribuic;:ao das terras entre as familias, que se instalam na parcela que lhe foi atribuida, incendeia a vegetac;ao com o cuidado de conservar os troncos calcinados que servirao de refugio aos espiritos afastados pelo fogo. Uma palhota sobre estacaria e construida no cume da encosta desbravada com o fim de manter contacto com as divindades da floresta (1). Desta forma, em paz com os poderes ocultos, a familia semeia o seu arroz, sacha ate a colheita, segundo o calendario dos trabalhos fixado pela tradic;ao. A organizac;:ao do espac;:o e as actividades dos homens obedecem a regras sagradas que seria impio transgredir. Em toda a ilha de Madagascar, a casa e urn rectangulo alongado de norte para sul opondo urn muro continuo a exposic;:ao hostil do Leste e abre-se largamente a Oeste para onde o Sol poente se desloca, sendo o angulo Nordeste dedicado aos antepassados. As paredes e aos angulos formados por elas ligam..:se significados zodiacais favoriveis ou nefastos. A cubata nao e s6 a habitac;:ao dos homens, ela reflecte toda uma cosmogonia. Muitas vezes, para respeitar os imperatives da orientac;:ao, as casas camponesas estao dispostas obliquamente ao longo das estradas. Em Tristes tropiques, Claude Levy-Strauss analisou com muita profundidade as significac;:oes simb6licas do habitat dos «Bororo». Contentar-nos-emos em lembrar aqui uma das suas conclusoes: «A estrutura da aldeia nao s6 permite o jogo perfeito das instituic;:oes, mas resume e assegura as relat;oes entre o homem e o Universo, entre a sociedade e o mundo sobrenatural, entre os vivos e os mottoS>>. 1 ( )

J.

DEz, ...

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«A aldeia temporaria junto da qual se faz a queimada escreve e o lugar privilegiado da aproximat,:ao com os poderes ancestrais».

Tal como o espac;o rural, a cidade e na sua organizac;ao a consequencia das caracteristicas socio-culturais das sociedades tradicionais. Jacques Binet mostrou-o num artigo precisamente intitulado: «Urbanismo e linguagem. na cidade africana» (1). A disposic;:ao em bairros, «este urbanismo em cacho, escrevc ele, tern razoes muito longinquas c liga-se a tradit;oes muito antigas e duma certa maneira, a filosofia cLissica de Africa. E acrescenta: «As vezes, e uma metatisica que se exprime atraves da planta da cidade». E inutil insistir no cad.cter ritual das cidades chinesas que apresentam um plano quadrangular. <<A Terra e considerada como quadrada e 0 quadrado e sagrado; a cidade tern de se adaptar ao plano geral do Universo... 0 urbanismo c aqui geomantico [34] no interior, todas as ruas estao dispostas em xadrez e os viajantes foram surprecndidos pela im.ensa monotonia das aglomerac;:oes chinesas com o seu geometrismo sagrado (2). Pierre Gourou (3) lembra como o Imperio Khmer coil.cebeu a organizac;:ao da regiao de Angkor: «0 conjunto angkoreano e a justaposic;ao de superficies quadradas de ordemento... 0 espac;:o quadrado e conforme com a representa<;ao que os indios tinham da forma do mundo. Geralmente o plano quadrado inspira-se na cosmogonia e na simb6lica :india, tomando o ordenamento do territ6rio urn carictcr sagrado». Mas tem tambem um significado econ6mico, pois o equipamento hidriulico instalado permitia a dupla colheita anual do arroz. Os pentapolos de Mzab exprimem o ideal politico c religioso dos Kharijitos. Tidos como hereticos, estes fugiram as (1) Dioge1te, Gallimard, n. o 93, 1976, pp. 90 e scguintes. (2) P. DEFFONTAINES, Gtfographie et religions, pp. 156-157. (3) As mudant,:as de civilizat,:ao e a sua influcncia nas paisagens, Illlpact, UNESCO, vol. XIV, n. o 1, cap. 64, pp. 63 e scguintes.

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perseguis:oes refugiando-se no Sara, fundando ai cidades-Estados cuja organizac;ao simboliza a sua sociedade teocd.tica (1). Chardai:a cobre urn monte rochoso, estando o cume ocupado pelos edificios religiosos, minaretes e mesquitas em volta dos quais varios bairros hierarquizados estao dispostos em drculos concentricos ate ao sope das encostas; primeiro o bairro dos clerigos, mais abaixo, o dos fieis ibaditas, vindo depois o dos estrangeiros a comunidade (Arabes, Judeus, Negros). Fora das fortificas:oes muralhadas, os souks, e mais lange os palrnares onde se espalharn casas individuais que s6 no verao estao ocupadas. Toda esta sirnb6lica responde nas sociedades tradicionais a necessidade de interiorizar o espas:o, de o dominar integrando-o no sistema de cultura, de instaurar entre os diferentes quadros da vida uma unidade agradavel, cornpensadora para os individuos. A industrializas:ao do espac;:o nao eliminou todos os vestigios duma simb6lica vinda de urn pas~ado longinquo. Apesar do estreito parentesco que lhe confere a economia, o muhdo latino, o rnundo gerrnanico, o mundo anglo-sax6nico ainda se distinguem uns dos outros pela expressao diferente que apresentam as suas casas, os seus campos, as suas aldeias, as suas cidades tais COmo seculos de historia OS projectaram. No entanto, esta diversidade apaga-se cada vez rnais face a uniforrnizas:ao que resulta do emprego dos mesmos rnateriais, das mesmas tecnicas. 0 espa<;:o das civilisas;oes industriais, ele tambem, tern o seu c6digo: tern urn valor de linguagem, mas de uma linguagem carregada de significados econ6rnicos. As estruturas fundiarias, os predios, os bairros urbanos, as estradas, a circulas:ao, todos os componentes da paisagem constituem tantos outros sinais reveladores do sistema econ6mico e do (1)

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M.

MERCIER,

La civilisation mbair1e art Mzab, Alger, Pfister, 1922.

estatuto social dos individuos, permitindo identificar o espa<;:o industrial, definindo a sua dependencia ao capitalismo ou ao socialisrno. 0 espa<;:o da civilizas:ao industrial tende para a unidimensionalidade, estando lange da riqueza de expressao do espa<yo correspondente a civilizas:ao tradicional. Sociedade e· Espa<;:o apresentam-se assim, tal como a relas:ao entre criador e criac;ao. Esta permite aquele realizar-se segundo a sua propria razao de ser, nela reflectindo a sua imagem fiel. Entre eles, a identificac;ao e total.

8. A sociedade identifica-se com o sen

espa~o.

Os bi6logos recordam muitas vezes a solidariedade da vida com o sen meio. E J. Salk (1) que escreve: <~cada ser vivo possui urn meio interno c urn meio externo que sao parte integrante da sua propria existencia. E Edward T. Hall (2) acrescenta que «o homem e os seus espas:os constituem apenas um s6 e {mico sistema ... Esta interdependencia do homem e dos scus cspa<yos dcveria fazer com que dessemos mais atenc;ao aos cspa<yos que criamos, nao s6 no nosso proprio interesse, mas tambem para aqueles com os quais se corre o risco de nao se poder adoptar». A organiza<;ao do espa<;o cria entre o homem e o meio lac;:os misticos que realizam uma intima adapta<;:ao do social e do espacial: e o que afirma J. Faublee na sua Etfmographie de Madagascar (3): «0 Malgaxe integra-se no universo iden-

(1) Jonas SALK, Metaphores biologiques, Calmann Levy, 1975, p. 76, ( 2) E. T. HALL, La dimension cachee, Seuil, 1971, p. 231. (3) Paris, Les Editions de France et d'Outre-Mcr, 1946, p. 116.

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tificando-se com ele... Uma certa simbiose opera-se entre si e o meio onde vive habitualmente; desde entao, a aldeia onde habita, os arrozais que cultiva, a regiao onde vive sao ja urn pouco de si... Eles identificam-se». A identificac;:ao efectua-se sobretudo entre o tumulo e a terra que o cobre: os dais ligam o homem aos seus antepassados que organizaram o fokontany, o espac;:o onde se perpetua o fokonola, a comunidade familiar. A ligac;:ao ao meio e tal que o Malgaxe nao pode suportar a eventualidade de nao ser enterrado no solo natal. A nossa civilizac;:ao tradicional conheceu esta conivencia entre os grupos sociais e o seu espac;:o: na Idade Media, a ca:;a pirenaica, «a domus, escrevia Emmanuel Le Roy-Ladurie (1), ou o grupo domestico vivendo debaixo no mesmo tecto organiza-se na sua dependencia... o fogo da lareira, os bens e as ten·as, as crianc;:as, as alianc;:as conjugais». E «uma pessoa moral, indivisivel em hens e detentora de urn certo numero de direitos: exprime-se pela propriedade duma terra, pela utilizac;:ao das florestas e das pastagens comuns de montanha>>. E desta identificac;:ao profundamente sentida que nasceu o animismo com que o homem se projecta no mundo inanimado atraves das suas crenc;:as, receios e esperanc;:as. 0 animismo, escreve Jacques Monad (2), estabelecia entre a Natureza e o Homem uma profunda alianc;:a, fora da qual apenas parece estender-se um.a assustadora solidao. Por esta alianc;:a, a «antropomorfizac;:ao» da natureza comunica ao homem poderes sobrenaturais que formam o conteudo da magia (3). (1)

i11ontaillou, village occita11, NFR-Gallimard, 1975, pp. 53 e 60. Le hasard et la necessite, Seuil, 1970, p. 44. (3) Ler-se-a com proveito as paginas que Maurice Godelier dedicou a este assunto in L'Antrohpologie: Science des societes primitives, obra colectiva publicada por Denoel, 1971, pp. 216 e seguintes. 2 ( )

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A Geografia reteri as analises anteriores que a organizac;:ao do espac;:o tern por finalidade estabelecer ao procurar uma correspondencia necessaria entre a sociedade e o espac;:o, grac;:as a qual uma sociedade se sente adaptada ao seu espac;:o assim como a felicidade do homem dever:i encontrar-se em si mesmo. N a verdade bern o caso das sociedades tradicionais bern adaptadas ao espac;:o. Visavam atingir nao o desenvolvimento, mas apenas a permanencia atraves de uma estabilidade dinamica. Regidas pela sua propria racionalidade, estas diferiam profundamente das sociedades industriais, obrigadas a transformac;:ao pela insacibilidade. 0 seu estado de equilibria nao era estagnac;:ao, resultava sim de uma coerencia estrutural entre as necessidades de uma sociedade e a organizac;:ao do espac;:o. · 0 conjunto permanecia estavel entre as oscilac;:oes provocadas pelas agressoes do meio circundante. Mas sao especialmente as agressoes das outras sociedades que vern destruir esta ordem. As do capitalismo, sob a forma colonial, estenderam-se por toda a terra, provocaram em todas as civilizac;:oes tradicionais transformac;:oes resultantes da oposi~ao que a sua brutal introduc;:ao originou entre as sociedades e os espac;:os. A tribo JK no Uganda deslocada ha uma vintena de anos do seu territ6rio habitual, perdeu a vitalidade e ja nao conta hoje senao com algumas dezenas de individuos': «lncapazes de se reconverterem em agricultores, estes cac;:adores, outrora felizes e pr6speros, transformaram-se em menos de tres gerac;:6es, nalgumas pequenas comunidades de aldeoes degenerados, cuja (mica preocupac;:ao e a sobrevivencia individual e que tern renunciado pouco a pouco a toda a vida social» (1). No seu livro Psicanalyse et anthropologie (2), Geza Roheim cita o exemplo dos Kaingang que vivem hoje como n6madas

e

( 1)

(2)

Colin TuRNBULL, Un pmple de Gallimard, p. 347.

fa~1ves,

Stock, 1973.

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na floresta, refugiados nas montanhas entre o Brasil e a Argentina, depois de terem praticado uma agricultura a base de milho e ab6boras nos planaltos donde foram expulsos. 0 traumatismo originado pela separas:ao da terra mae, fez dos Kaingang um povo cheio de angustia, urn povo que se desintegrou quando se viu afastado do seu espas:o organizado. No Senegal, a monocultura do amendoim expulsou o milho miudo e as outras culturas alimentares de solos arenosos do Cayor, donde os. Ouolofs tiravam a sua subsistencia. Preparado para produzir especies destinadas ao consumo dos pa1ses industrializados, 0 seu espas:o e, doravante, intimamente integrado no mercado mundial que detem o controle da produc;ao, dos investimentos, dos poderes de decisao e o alargamento da sua ac<;ao substrai esse espas:o ao domfnio dos habitantes que esperam do exterior uma parte da sua alimentac;ao. A esta reestrutura<;ao do espac;o, corresponde necessariamente a uma mutac;ao da sociedade autoctone levada a alicerc;ar a sua organizas:ao, ja nao sobre a celula familiar, cla ou etnia, mas sobre a posic;ao dos individuos no processo da produc;ao, uma sociedade que ja nao se rege no sistema de parentesco, das tradic;oes, das festas, dos ritos, mas construida e apoiada unicamente na economia monetaria. Sobre urn espac;o descodificado ou melhor, privado das significas:oes simb6licas que referem o seu modo de vida, o homem ja nao esta mais em equilibria com 0 meio que lhe foi imposto do exterior; ja nao e senhor de si, vive como utn estranho na sua propria terra e este div6rcio e gerador de desordem, de inseguranc;a, de alienac;ao. Pense-se tambem nos traumatismos que sofrem os habitantes dos nossos grandes centros proletarios e das novas cidades, condenados a viver num espat;:o urbano concebido para realizar 0 maximo lucro e nao para responder a sua necessidade de viver em comunhao com o meio. 78

Todavia, aparecem formas de resistencia entre as populac;oes, a quem pressoes exteriores impoem uma organizas:ao do espac;o estranho as suas tradic;oes. Aos Betsimisaraka de Madagascar nao falta o engenho (1) pois, como ja sabemos, estes habitantes de montanha continuam a viver da cultura itinerante do arroz sujeitos a organizac;ao socio-espacial que lhes legaram os seus antepassados. Nos anos 1935-1940, a administrac;ao colonial francesa impos-lhes a cultura do cafe. Nas margens de um rio foi aberta uma picada ao longo da qual se estabelecem plantac;oes e as cubatas constituem-se em aldeias. Constata-se assini que a vida dos Betsimisaraka se divide entre os dois espac;os segundo uma dicotomia estrita. Primeiramente, entre as actividades produtivas de Novembro a Julho, o ciclo do arroz leva a instalac;ao da familia nas palhotas de montanha; em Agosto, e a descida a aldeia onde as plantac;oes de cafe exigem trabalhos ate Outubro [35]; A estas migrac;oes estacionais correspondem dois generos de vida diferentes. Na tavy orizfcola, o Betsimisaraka prossegue o dialogo com os antepassados: usa vestuario de fibras vegetais, come arroz em concavidades das folhas da bananeira e reparte as tarefas segundo a divisao sexual do trabalho. 0 regresso a aldeia cafezeira restabelece o contacto com o mundo exterior: a familia retoma o vestuario europeu, usa as alfaias de importas:ao, consome os produtos comprados no mini-mercado. Cada um trabalha na plantas:ao de seu pai: a mulher deixa o lar conjugal de Agosto a Outubro e vai fazer a colheita do cafe na sua aldeia natal na companhia de seus irmaos e irmas. 0 casal consome em comum a produc;ao ( 1) Gerard ALTHABE, Oppression et liberation dans l'imaginaire: les communautes villageois de Ia cote orientale de Madagascar, Fran<;ois Maspero, 1969.

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alimentar do tavy e dispoe do rendimento monetirio da venda do cafe. De qualquer modo, a coloniza<;ao teria provocado nas sociedades tradicionais onde se fez sentir a sua ac<;ao e que nao estavam preparadas para a mudaw;:a, o desequilibrio entre o homem e o seu espa<;o: esta inadequa<;ao hoje urn dos factores das dificuldades para encontrar urn novo equilibria.

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9.

Historicidade do espa-;o geografico

Se, como acreditamos te-lo mostrado, existe uma correspondencia necessaria entre a sociedade e o espa<;o, ambos evoluem necessariamente seguindo uma diacronia paralela. A hist6ria come<;a no momenta em que o homem adquire a possibilidade de se libertar da ordem imposta pela natureza, e com ela come~a tambem a organiza~ao do espa<;o geogr:ifico. As sociedades sem hist6ria viveram em espa<;os ecol6gicos. Maurice Godelier (1) lembra que os Indios Pes-Negros da America do Norte viviam em simbiose com os rebanhos de bizontes que seguiam nas suas desloca~oes estacionais: permaneciam agrupados em tribos para praticarem a ca~a de verao, mas, chegado o inverno, dividiam-se em famflias ca<;:ando por sua conta os animais que a raridade da pastagem obrigava a a separar-se. Ainda hoje, na Nova Guine no golfo da Papuasia, as sociedades obtem a sua subsistencia pela recolecs:ao, ca~a e pesca. Os povoamentos naturais de palmeiras sagu e diversas especies florestais fornecem-lhes a alimentat;ao essencial, os materiais

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necessaries construs;ao das cubatas e confecc;ao das roupas e utensflios. Com a realizac;:ao dos projectos concebidos para escapar a ordem natural das coisas, as sociedades empenham-se na hist6ria e na construc;ao do espac;o. A partir de entao, sociedades e espac;os sao arrastados numa mesma corrente cuja fors;a e direcs;ao variam com o decurso dos seculos. A hist6ria conduz o jogo: ÂŤCompreendida como processo de desenvolvimento das sociedades humanas, aperfeic;oa os espac;os, transforma-os e atribui-lhes, em mementos diferentes, uma utilizac;ao, func;oes e valores fortemente diversificadosÂť (1). Nao somente criou os espac;:os, mas estabelece entre eles relac;oes de interdependencia feitas de domfnio e de subordinac;ao. Assim, a hist6ria projecta-se no espac;o, reflecte actua<;:oes sucessivas: o espac;o apresenta portanto, a sua historicidade e torna-se uma dimensao da hist6ria. A cada gerac;ao humana corresponde uma gera~ao espacial e seria interessante tornar a esctever a hist6ria, reconstituindo a cadeia das transformac;oes sofridas pela geografia. Ver-se-ia que uma organizac;ao do espac;o desaparece lentamente, resiste mesmo enquanto outra ocupa o seu lugar. E por isso que, num dado momenta da evolu<;:ao, a sincronia dum espac;o pode apresentar uma composic;ao poligenica. Tais sao, por exemplo as paisagens da Baixa Provenc;a, feitas de componentes residuais de aldeias alcandoradas, cujos terra<;:os dispostos em andares ao longo das encostas das colinas, delimitadas em parcelas por renques de amoreiras. Tudo isto, sao testemunhos duma outra epoca, meio arruinadas, invadidas par vegeta<;ao selvagem, desfeitas pela acc;ao do tempo. Anacr6( 1)

1 ( )

L' Anthropologie: science des socihes primitives?, op. cit., p. 192.

Jean BoucHET e Dominique LEGRAIN, Le littoral: nouvel eujeu socio-economique, Prospectives, PUF, n. o 2, Janeiro, 1974, p. 7.

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81 6


nico em rela<;ao a epoca das grandes autoestradas saturadas por um trafego cada vez mais rapido, indiferentes no seu tra<;ado ao meio onde se inserem, resultantes de um insolente modernismo. Anacr6nico, mas, em vias de ressurgimento desde a abertura da era do turismo e das residencias secundarias que reanimam a vida e recuperam as ruinas. Talvez seja nas cidades que melhor se constata esta sucessao no tempo, constituindo autenticos documentos de arquivo: a arquitectura dos edificios, ruas, lojas, a atmosfera, a composi<;ao da popula~ao. A justaposi<;ao dos bairros faz passar o observador atento da !dade Media ate aos nossos dias e anuncia-lhe, muitas vezes, o futuro. Alias, um4 brusca descontinuidade no espa~o, denuncia uma lacuna no tempo; tal e o caso da Ilha de Reuniao onde se justapoem, sem transi<;ao, a paisagem a<;ucareira da era colonial feita de campos de cana do a<;ucar, engenhos, aldeias de palho<;as formadas por pequenos troncos e a paisagem urbana onde os poderes publicos fizeram surgir grandes im6veis e torres para habita<;ao. Contudo, o espa<;o geografico apresenta o peso das estruturas, resistindo a evolu<;ao e as modifica<;oes propostas pela hist6ria. As mentalidades que suscita e os investimentos que exigem travam as iniciativas e as inova~oes. Ja referimos a recusa dos viticultores laguedocianos a abandonar uma produ<;ao que dificilmente se escoa no mercado da Comunidade Econ6mica Europeia, dai as dificuldades nas rela<;oes da Fran<;a com os seus parceiros. Do mesmo modo a vinha abandonada pela coloniza~ao resiste, apesar da sua inadequa~ao a sociedade argelina e aos problemas que a exporta~ao da produyao poe a politica externa do pais. Identica resistencia se verifica nas estruturas espaciais nalgumas democracias populares, especialmente na Pol6nia onde 85% da superficie agricola util est:l na posse de proprieta-

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rios individuais que se mantern, muitas vezes, fieis as velhas praticas. A colectiviza~ao das terras e a moderniza<;ao das tecnicas que constituem o objectivo do socialismo sao ai postas em cheque. Tambem o espa~o industrial tern frequentemente dificuldades em seguir a corrente da hist6ria. Na Gra-Bretanha (1), as regioes da primeira gera<;ao industrial, Yorkshire, North-West, East-Middlands sao votadas a actividades hoje em declinio, nao estando envolvidas no movimento de reestrutura'fao industrial e de renova<;ao urbana. Contudo, a hist6ria deve ter em conta o peso do espa'fO geografico, pois e na constru~ao desse espa<;o que sempre se prepara o futuro. Tale, sem duvida, o objectivo perseguido pelo planeamento. A execu<;ao actual do complexo industrial de Fos que sera ligada a regiao do Ruhr atraves de vias navegaveis e o equipamento tudstico da costa languedociana reflectem urn ordenamento do territ6rio de que nao podemos antever a sua amplidao, mas que conduzirao necessariamente a urn desenvolvimento socio-econ6mico e ate mesmo politico, num futuro mais ou menos proximo. Do mesmo modo, esti ern curso e com todo o vigor, a reorganiza~ao do espa<;o em evolu'fao exigido pelo funcionamento da Comunidade Econ6mica Europeia, com a introdu'faO de novas rela~oes de for<;a entre os Estados participantes, tendo sido ja apresentados varios tipos de modelos. Hist6ria e geografia apresentam uma evolu<;ao sequente, pais uma precede ou segue a outra. Mas e bern evidente que da hist6ria que vern a maior parte das vezes o impulso, de maneira que a geografia e levada a procurar na hist6ria as suas explica~oes. Fazendo isto, ela trai a sua especificidade: o seu objectivo nao e

e

( 1)

Jean-Claude PERRIN, /e developpernent regional, PUF, 1974, p. 133.

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remontar as causas originais mas consiste em explicar como os elementos herdados do passado se combinam para constituir a realidade actual. A sua problematica e organizacional. E tambem prospectiva na medida em que, a sincronia ja estudada mostra que o espas:o de hoje contem em si o espas:o de amanha. Estamos longe do objectivo que, segundo Henri Lefebvre (1) eperseguido pela geografia dentre as ciencias humanas e afirmava: <<Todos os especialistas, escreve ele, cingem-se a nomenclatura e a classificas:ao daquilo que se encontra «dentro» do espas:o. Constatar, descrever, classiftcar os objectos que ocupam o espas:o, isto sera em suma, a actividade positiva «desta ou daquela especialidade e dizemos ser geografia ... ». Seria nada compreender do que e considerado geogriftco, ver no espas:o somente urn suporte da acs:ao humana, enquanto que na verdade o espas:o e uma constrw;ao da sociedade, cuja produs:ao nao e s6 uma manifestac;:ao mas a sua propria realizas:ao. Existe com efeito uma dialectica espac;:o-sociedade; os homens criam o espas:o e, nesta obra de criac;:ao, organizam-se em sociedade.

(1)

84

La production de I' espace, <<Anthropos», 1974, p. 128.


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