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Jornal daUnicamp Ilustração: Fernanda Gutiyama/Arte final: Luis Paulo Silva

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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 - ANO XXVI - Nº 525 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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CORREIOS

FECHAMENTO AUTORIZADO PODE SER ABERTO PELA ECT

O peso da cor nas disparidades da saúde Estela Maria Garcia Pinto da Cunha Novos fluxos reavivam a xenofobia? Rosana Baeninger

Imagem de satélite captada pelo prof. Alberto Jakob através do software ArcGIS –V.10 (ESRI) | Imagem: sxc.hu

O advento da família multifacetada Elisabete Bilac, Gláucia Marcondes, Joice Vieira e Maria Coleta Oliveira

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Imigrantes e a perspectiva histórica Maria Silvia Beozzo Bassanezi A pioneira e a ‘curva da vida’ Elza Berquó

Velhos dogmas da migração caem por terra José Marcos Pinto da Cunha

Natureza cobra a fatura da dívida social Roberto Luiz do Carmo Violência epidêmica atinge mais jovens Tirza Aidar Uma trincheira contra o obscurantismo Regina Maria Barbosa Geoprocessamento traduz informações Alberto Augusto Eichman Jakob

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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 SILVIO ANUNCIAÇÃO silviojp@reitoria.unicamp.br

Discriminação mapeada Abordagens étnicas e raciais revelam que negros são menos assistidos pelo sistema de saúde

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esquisas conduzidas nos últimos 25 anos pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp apontam que a discriminação racial presente na sociedade determina diferentes padrões de atendimento e tratamento de saúde para a população negra no país. Cenários referentes a nascimentos prematuros, mortalidade infantil, adulta e materna, morbidade, entre outros, apresentam altas disparidades quando relacionados à raça e cor. “Existe uma posição de desvantagem da população negra com relação à população branca justificada por uma condição social inferior, mas não explicada toda e somente por isso. Tem um componente de discriminação racial também”, sustenta a socióloga, demógrafa e professora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, coordenadora do Nepo. “Apesar do histórico de vulnerabilidade social em que viveram e vivem os negros, desde a época da escravatura, estudos mostram que mesmo controlando variáveis socioeconômicas, como renda e educação, existe, na saúde, um diferencial quando os comparamos aos brancos. Há um efeito racial, sim”, enfatiza a estudiosa, responsável por linhas de pesquisas e investigações inéditas nesta área. Pioneiro no país na abordagem étnica e racial na demografia, o Nepo vem subsidiando nos últimos 25 anos a implementação de programas e políticas públicas para reverter este cenário, que se comprova com números oficiais do Ministério da Saúde (MS) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O risco de morte por desnutrição é, por exemplo, 90% maior entre crianças negras do que entre brancas (MS, 2005). E a chance de morrer por tuberculose, entre adultos, é 70% maior nesta mesma comparação. Ainda de acordo com as estatísticas, o índice de mulheres que passam por mais de seis consultas no pré-natal é de 62% entre mães de nascidos vivos brancos e de apenas 37% entre mães de nascidos vivos negros. As seis consultas de pré-natal são a recomendação mínima da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ademais, a mortalidade de crianças negras até 5 anos de vida é de 36 por mil, diminuindo para 28 por mil ao se tratar de crianças brancas (IBGE, 2006). Tais dados – analisados, comparados e explicitados pelos pesquisadores do Núcleo – têm alertado movimentos sociais e o governo para a formulação e execução de políticas públicas e programas cujo objetivo principal é a equidade de raça e cor da população no sistema de saúde do país. “Começamos, entre 1985 e 1986, um projeto de demografia pioneiro no país sobre a dinâmica da população negra. Nele, foram pesquisadas a mortalidade infantil, a nupcialidade e a fecundidade da população negra, sempre comparando com a população branca. E aí começam a ser observadas diferenças de comportamento demográfico. A estimativa de mortalidade infantil começa, por exemplo, a provocar uma discussão junto com o movimento negro, que passa a reivindicar a

Fotos: Antonio Scarpinetti

traz como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais para as condições de saúde dos negros no país. A Política, aprovada em 2006 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), é uma resposta do governo federal às desigualdades em saúde da população negra. “Esta é a política pública que tem que ser cumprida. Ela enumera os objetivos e estratégias em todo o sistema de saúde para se chegar a uma igualdade racial”, acentua. A demógrafa também cita a criação, em 2003, pelo governo federal, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) como outro importante marco para os avanços da equidade racial no país. “A Seppir passa a atuar de modo transversal em todas as esferas do governo. Sua criação representa uma conquista muito importante do movimento negro”, evidencia. Apesar dos avanços, Estela da Cunha reconhece que o desafio ainda é grande, sobretudo em uma sociedade na qual a desigualdade racial sempre foi silenciosa e não declarada: “O primeiro fator para superamos essas desigualdades é o reconhecimento do racismo”, conclui. “E, no campo da saúde, a implementação plena das políticas específicas. O Sistema Único de Saúde [SUS] deve continuar com sua política universal, mas também tem de estar atento às especificidades da população negra”, acrescenta. Várias doenças e agravos prevalentes na população negra merecem abordagem específica na saúde, de acordo com a pesquisadora. Entre as geneticamente determinadas estão a anemia falciforme e a deficiência de glucose-6fosfato desidrogenase (G6PD). Há também as adquiridas em condições desfavoráveis e de tratamento dificultado, entre as quais a desnutrição, tuberculose, hipertensão arterial, diabetes melito e abortos sépticos. A Política Nacional já reconhece que o SUS deve oferecer tratamento diferenciado à população negra para tais doenças e agravos.

TRANSIÇÃO

Paciente é atendida em hospital de Campinas: dados do Nepo que mostram disparidades vêm subsidiando ações de governos e movimentos sociais A professora Estela Pinto da Cunha: “É preciso reconhecer o racismo”

introdução do quesito raça/cor nos bancos de informações de saúde”, lembra a demógrafa e doutora em saúde coletiva, que atua desde 1985 na Unicamp. A apresentação e o peso destes primeiros dados levaram o Nepo a ser requerido nacionalmente, contextualiza Estela da Cunha, que integra desde 2004, ao lado da demógrafa Elza Berquó, o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, do Ministério da Saúde. A partir desta linha de pesquisa, os movimentos sociais organizados começam a discutir com os estudiosos do Núcleo as

melhores formas de coleta e análise das informações com o recorte étnico-racial. “Eles acompanham este processo junto com a academia. Formam-se, então, comitês nacionais, estaduais e municipais de saúde da população negra, da qual o Nepo passa a fazer parte. Nós também apoiamos uma demanda por uma política nacional subsidiando o processo com evidências de iniquidade e racismo no tratamento da população negra no sistema de saúde”, evoca Estela da Cunha. A socióloga refere-se à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que

A transição demográfica pela qual o Brasil vem passando, com a queda na taxa de fecundidade feminina, também se mantém com diferenciais raciais entre brancos e negros, como demonstra o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil de 2009-2010, produzido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a colaboração de pesquisadores do Nepo. O relatório cobre o período de 1986 a 2008. Em 1986, a Taxa de Fecundidade Total (TFT) das mulheres brancas era 34% inferior à das pretas e pardas. O TFT caiu para 29% em 1993 e 25% em 2008. “Verifica-se uma tendência de aproximação, mas, ao mesmo tempo, se mantém certo diferencial”, analisa Estela da Cunha. De acordo com ela, dentre os possíveis condicionantes para a manutenção deste diferencial estão as desigualdades no acesso aos serviços de saúde da mulher, o acesso a contraceptivos e a capacidade de negociação da mulher negra com relação ao uso destes métodos com seus parceiros.

Pesquisas e capacitação desencadeiam efeito multiplicador Em 1996, o Nepo conduziu projeto de pesquisa de caráter multicêntrico sobre morbimortalidade feminina. O projeto foi realizado por centros de pesquisas de várias regiões do país e produziu efeito multiplicador na pesquisa científica brasileira, conforme Estela da Cunha. “Estabelecemos intercâmbios com centros de pesquisa ou equipes de pesquisadores nas diversas

unidades da Federação com o objetivo de capacitar recursos humanos para estudos sobre a saúde da mulher. Foi uma experiência muito rica, com um efeito multiplicador bastante efetivo”, relata. Também nesta linha, o Núcleo realizou, em 2008, o primeiro Curso de Metodologia de Pesquisa em Saúde da População Negra, em parceria com a Secretaria de Estado da

Saúde de São Paulo. O objetivo foi capacitar trabalhadores do SUS e integrantes de movimentos sociais de modo a estimular o desenvolvimento de pesquisa empírica nesta área. “O curso também foi pioneiro, embora não tenha tido um impacto nacional como projeto de saúde reprodutiva. Foi uma experiência inovadora porque instrumentalizava com técnicas metodológicas os

profissionais para melhorar a cobertura e qualidade da coleta e aprofundar a investigação sobre a saúde da população negra”, explicou. O Nepo ainda desenvolveu dois módulos de Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher, estudo que foi coordenado por Elza Berquó no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

As fronteiras da xenofobia

Para docente, sociedade brasileira precisa se preparar para receber os novos fluxos migratórios

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om a entrada do Brasil na rota das migrações internacionais e com a reconfiguração dos fluxos migratórios internos, a sociedade brasileira precisará aprender a conviver com essa “nova população”, que pode ser transitória ou não. A avaliação é da professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, Rosana Baeninger. De acordo com ela, parte dos brasileiros ainda tem uma visão distorcida acerca dos processos migratórios. “Com frequência, essa visão, que tem um forte viés ideológico, tende a reavivar antigos preconceitos e xenofobias, segundo os quais os imigrantes é que seriam os responsáveis pela presença de problemas sociais, como o aumento da pobreza e da violência em uma dada localidade”, adverte. A fronteira entre a população necessária e a população excedente, conforme a especialista, é muito tênue. “A sociedade local precisa dessa mão de obra extra para suprir as atividades produtivas. Entretanto, se as administrações municipais não estiverem preparadas para receber os fluxos migratórios internos e internacionais, é possível que ocorram problemas. De um lado, esse novo contingente traz impactos para setores como saúde, educação, transporte e moradia. De outro lado, por serem migrações com destino urbano, são mais visíveis – estão na vida cotidiana – e trarão, certamente, o estranhamento; serão ‘essa gente que vem de fora’, o ‘diferente’, o ‘outro’. Assim, se não houver um trabalho para que a sociedade receptora entenda a importância dessa migração, a visão negativa pode ser reafirmada”, reforça Rosana Baeninger. A docente da Unicamp lembra que outro ponto importante em relação ao acolhimento dos imigrantes internacionais está vinculado à legislação. Embora cada fluxo migratório tenha a sua particularidade, as normas legais precisam abarcar todas as situações. “Nós da academia temos participado de discussões sobre esse tema. Nosso objetivo tem sido o de mostrar aos gestores públicos evidências que contribuam para a formulação de leis e políticas públicas voltadas ao atendimento dos migrantes”, revela. Conforme Rosana Baeninger, os primeiros anos do século XXI mudaram completamente o entendimento que os estudiosos tinham a respeito tanto da migração interna quanto da internacional. “Do ponto de vista da migração interna, por mais que São Paulo continue recebendo um grande volume de pessoas de outras regiões, o Estado já não tem mais a capacidade de retenção que tinha até meados dos anos 90”, afirma. Atualmente, prossegue a professora do IFCH, São Paulo é o local de onde mais saem pessoas para alimentar o fluxo migratório interno, com intenso fluxo de migração de retorno. O Estado recebe perto de 1 milhão de migrantes por ano, mas envia em torno de 1,2 milhão para outros pontos do país. A Região Metropolitana, de forma muito particular, experimenta uma rotatividade migratória. “Até o final dos anos 90, nós explicávamos as condicionantes da migração interna por meio da desconcentração econômica. Ou seja, Paraná, Minas Gerais e Nordeste passaram a receber novos investimentos, o que promoveu um redirecionamento dos fluxos. A partir do início do século XXI, porém, ocorreu uma mudança fundamental. Embora a migração histórica ainda seja verificada, numa espécie de complementaridade entre Nordeste e Sudeste, ela agora está inserida num processo de reestruturação produtiva. Assim, além da desconcentração econômica, ocorre também a implantação de empreendimentos, via capital internacional, diretamente no Nordeste, que acaba absorvendo parte da mão de obra que viria para São Paulo, notadamente aquela de menor qualificação”, detalha. Nos dias atuais, continua a especialista, tem se configurado um novo corredor de migração no Brasil, com os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, tendo o Distrito Federal como a principal metrópole de serviços. É para lá que estão se dirigindo contingentes que partem do Maranhão e Piauí, em busca de trabalho tanto nas lavouras de soja quanto nas atividades ligadas ao

Foto: Antonio Scarpinetti

serviço. “Isso não quer dizer, vale ressaltar, que São Paulo tenha deixado de ser o grande dinamizador dos fluxos de longa distância no país. Se analisarmos São Paulo separadamente, vamos constatar que há de fato uma nova face da migração, vinculada à questão da reestruturação produtiva. O Estado passou a conviver tanto com as migrações internas quanto com as internacionais. É na metrópole paulistana que vão se instalar, a partir do final dos anos 80, os fluxos de migração boliviana e asiática, justamente como parte da circulação do capital. Esse fenômeno também passa a ser verificado em outras metrópoles, como Buenos Aires e Montevidéu, apenas para ficar nos nossos vizinhos”, explica Rosana Baeninger. A migração de bolivianos e asiáticos para São Paulo, observa a docente da Unicamp, tem uma diferença fundamental em relação ao fenômeno registrado no final do século XIX e início do século XX, quando as primeiras levas de estrangeiros chegaram ao Brasil. Na oportunidade, boa parte dessa nova população veio para trabalhar nas fazendas de café, substituindo a força de trabalho escrava. Agora, os estrangeiros têm como destinos as áreas urbanas. “Dessa forma, mesmo que os volumes sejam menores do que em períodos anteriores, esses imigrantes são muito mais visíveis, como já mencionei. Tomando São Paulo mais uma vez como exemplo, o fluxo recente de bolivianos, peruanos e paraguaios já está se consolidando na Região Metropolitana. Esses estrangeiros chegam aqui para trabalhar em nichos muitos característicos, como o da confecção”. Os asiáticos, principalmente coreanos e chineses, têm se instalado em São Paulo nos últimos anos para trabalhar, como empreendedores, nos ramos de confecção e comércio, respectivamente. Por causa do já mencionado processo de reestruturação produtiva, pontua Rosana Baeninger, esses imigrantes começam a se espalhar por um corredor constituído por outros municípios. Assim, uma parte tem se instalado no Litoral e outra, na região de Campinas, Limeira e Piracicaba. Um exemplo claro da chegada desses estrangeiros é a presença deles em lojas que vendem miudezas, instaladas nas áreas centrais das cidades. Em Campinas, por exemplo, os asiáticos dominam os pontos de venda dos chamados produtos R$ 1,99. “Essa migração internacional vai conviver com a migração interna nesses locais, visto que muitos nordestinos ainda se diri-

Lojas de miudezas instaladas na região central de Campinas: cidade está na rota de migração dos asiáticos

A professora Rosana Baeninger, do IFCH: “Se as administrações municipais não estiverem preparadas para receber os fluxos migratórios internos e internacionais, é possível que ocorram problemas”

gem ao interior paulista para trabalhar na colheita da cana e da laranja ou em restaurantes, como garçons”, diz a professora.

REFUGIADOS

Em termos de perspectivas, a docente da Unicamp chama a atenção para o surgimento de um novo fluxo de migrantes internacionais, este composto por refugiados. Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, são os dois principais polos receptores de africanos. A capital paulista também tem acolhido latino-americanos, particularmente colombianos. Ademais, no contexto da crise humanitária, várias empresas têm se dirigido até o Acre, onde vão convocar haitianos para trabalhar na construção civil, na lavoura e na indústria de calçado, esta última em Franca. “Estamos retomando os processos migratórios internacionais no Estado de São Paulo como um todo. E por que os haitianos estão vindo para cá? Mais uma vez, há a questão da reestruturação produtiva, mas há também o redesenho da migração interna. Os nordestinos continuam chegando ao Estado, mas em menor volume e para ficar menos tempo. Parte dessa mão de obra está sendo suprida justamente pelos haitianos”, pormenoriza Rosana Baeninger. Estas e outras questões relacionadas à migração estão sendo objeto de estudos tanto na Unicamp quanto no âmbito do Observatório das Migrações em São Paulo, que constitui um projeto temático financia-

do pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenada por Rosana, a pesquisa reúne pesquisadores de diversas universidades do Estado (Unesp, UFScar, Unifesp, Anhembi-Morumbi) e tem como objetivo resgatar a trajetória das migrações internas e internacionais em território paulista, bem como a suas implicações passadas, contemporâneas e futuras para a formação social paulista no período que compreende o final do século XIX até a primeira década do século 21 (1880-2010), avançando em anos subsequentes. Entre outros docentes/pesquisadores, participam do projeto: Cláudio Salvatore Dedecca, Maria Silvia Casagrande Beozzo Bassanezi, Oswaldo Mário Serra Truzzi, Sênia Maria Bastos, Maria do Rosário Rolfsen Salles, Odair da Cruz Paiva, Paulo Eduardo Teixeira, Álvaro de Oliveira D´Antona, Fernando Antonio Lourenço, Lili Kawamura, Lilia Teresinha Montali, Maria Fátima Chaves e Marta Maria do Amaral Azevedo. “Contamos com 16 pesquisadores e 25 bolsistas de pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento, que desenvolvem 16 estudos temáticos. Embora o projeto esteja somente no seu terceiro ano de atividade, nós já publicamos 27 artigos em revistas nacionais e internacionais, participamos de cerca de 100 congressos e publicamos dois livros”, relaciona a docente da Unicamp.


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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 ISABEL GARDENAL bel@unicamp.br

A reinvenção da família Mulher no mercado, queda da fecundidade e maior expectativa de vida mudam universo doméstico

A

s investigações mais recentes de demógrafos da linha de pesquisa Família, Gênero e População da Unicamp apontam que, na contramão do que se prega, a família brasileira não está em crise. Mantém-se viva e mais heterogênea do que num passado recente. A memória que as gerações mais velhas guardam de suas experiências familiares certamente não correspondem às realidades contemporâneas, sustenta a demógrafa Maria Coleta Oliveira, coordenadora dessa linha do Núcleo de Estudos da População (Nepo), da qual participam pesquisadores, docentes, pós-doutorandos e alunos de doutorado e mestrado. A demógrafa é categórica em enfatizar que não se pode mais falar em família brasileira no singular. Segundo ela, há hoje um amplo espaço de reinvenção e uma boa parte dessas mudanças pode ser atribuída à condição da mulher. A sua crescente participação em um mercado de trabalho consolidado no país abre espaço para novas tensões no mundo doméstico. “São tensões que têm a ver com as definições das atribuições de gênero de homens e mulheres”, diz Maria Coleta, que chama a atenção para o fato de a dimensão de gênero estar presente desde o início dos trabalhos do grupo. Essa visão é compartilhada pela demógrafa Elisabete Bilac, para quem as mudanças da condição feminina questionam o modelo provedor – a mãe em casa, o pai no trabalho –, embora atualmente as mulheres sofram com uma dupla jornada de trabalho. Processos demográficos fazem parte das mudanças nos arranjos domésticos. Dois deles são especialmente importantes: a queda vertiginosa da taxa de fecundidade e o aumento da expectativa de vida. Ambos os processos tornam imprescindível refletir sobre as relações de gênero e geração, resume Elisabete Bilac. No Brasil, a fecundidade feminina passou da média de 6,3 filhos por mulher em 1960 para 1,86 em 2010, com impacto óbvio no tamanho das famílias e na descendência de sucessivas gerações, assevera Maria Coleta. Ao mesmo tempo, o envelhecimento porque passa a população brasileira e o aumento da sobrevida alteram o desenho, a configuração e a qualidade das relações familiares, concordam as pesquisadoras. Ter poucos filhos e uma vida mais longa significa que a mulher viverá mais tempo como mãe de filhos adultos do que as suas próprias mães viveram. Por outro lado, os filhos pequenos de famílias pequenas terão uma infância completamente diferente em termos de sociabilidade. O seu mundo será povoado por personalidades adultas – pai, mãe, avós e professora – e poucos parentes e contemporâneos da mesma geração. Observa-se inclusive atualmente uma tendência de crescimento que se reflete na frequência de casais sem filhos nas classes médias e altas, os dink (ou dinc), abreviação do inglês “double income, no children” (ou no kids), traduzida como “renda dupla e ausência de crianças”, destaca Elisabete Bilac. As relações de conjugalidade também já não são as mesmas, segundo as pesquisas. Em boa parte dos países latino-americanos, entre os quais o Brasil, a união consensual (informal) é uma dimensão histórica recorrente da vida familiar. Há pouco, o acesso ao casamento era privilégio de camadas sociais com recursos econômicos e sociais. As uniões consensuais, ao contrário, eram associadas às camadas populares que não tinham acesso a cartórios ou não dispunham de recursos para uma cerimônia matrimonial. Por influência da Igreja, até o Censo de 1950 não se coletavam dados sobre a união consensual. A informação referia-se ao estado civil e não ao estado conjugal. As pessoas que viviam nessa condição não eram consideradas como unidas. Um homem anteriormente casado, vivendo com outra mulher, solteira ou desquitada, também não era considerado como vivendo em união. “Por consequência, o censo estava repleto de mulheres solteiras com filhos”, ilustra Elisabete Bilac.

Fotos: Antoninho Perri

Para a demógrafa Maria Coleta Oliveira, não dá mais para falar da família brasileira no singular Elisabete Bilac, Gláucia Marcondes, Maria Coleta Oliveira e Joice Vieira: novas configurações

Isso foi alterado já no Censo de 1960, quando as uniões consensuais passaram a ser levadas em conta. E a cada década elas vêm aumentando e se disseminando por todas as classes sociais, a priori entre os jovens, deixando de estar associada exclusivamente à pobreza. O entendimento dessas mudanças na conjugalidade, explica a demógrafa Gláucia Marcondes, tem sido prejudicado pela falta de bases de dados adequados à avaliação de tendências e transformações de um ponto de vista longitudinal. Pesquisas qualitativas são utilizadas como uma tentativa de sanar parcialmente essas lacunas.

OS HOMENS

A pesquisa “Homens: esses desconhecidos”, coordenada pela demógrafa Maria Coleta, trouxe os homens para o mundo das relações domésticas. Com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a pesquisa é um exemplo das alternativas possíveis para o entendimento das mudanças de gênero e geração no campo de estudos de população. O estudo, de natureza qualitativa, foi realizado com 154 homens e mulheres com idade entre 24 e 64 anos, provenientes de camadas médias paulistanas, recuperando suas trajetórias familiares, os contextos de suas relações afetivo-sexuais e as vivências de paternidade, próprias e a de seus parceiros. O projeto sinalizou que os homens das camadas médias passam por momentos de experimentação de novas soluções para o cotidiano de suas relações de companheiros e de pais. Homens das gerações mais jovens revelam a expectativa de que suas mulheres contribuam para o sustento da família e de seu padrão de vida, achado consistente com a tendência detectada mais recentemente de consolidação de um padrão de dupla renda nas famílias. A pesquisa também mostrou existirem tensões entre as ideias de igualdade entre homens e mulheres, tanto no mundo do trabalho quanto no mundo da casa, e as práticas de gênero ao longo do curso de vida das famílias. Em oposição aos primeiros anos da vida em comum, onde se observa um maior compartilhamento das tarefas domésticas, quando nasce o primeiro filho nota-se um retorno a comportamentos mais convencionais. Nesse caso, as mulheres ficam mais tempo com os bebês, passando a se ocupar mais

da vida doméstica, enquanto os homens refugiam-se em seu papel de provedores. Para isso, contribuem com uma socialização masculina que os fazem se sentir despreparados para as tarefas de cuidado e concepções de gênero que naturalizam a capacidade feminina de ser mãe. Os resultados do estudo deixam clara a inexistência de soluções mágicas para os conflitos entre as demandas de cuidado e aspirações profissionais e de geração de renda que incidem sobre as mulheres, tema sobre o qual atualmente se debruçam estudiosos das famílias, independentemente de suas especialidades, destaca Maria Coleta. Elisabete Bilac ressalta que, ao lado desse homem que se torna um pai tradicional, emergem outros padrões, como o do pai que teve uma filha de uma relação eventual e ganhou sua guarda na justiça. Ele criou o bebê e controlou rigorosamente as visitas da mãe. “A reinvenção da família envolve a reinvenção da paternidade, que passa também por várias transformações, assim como a sua negação. Há homens que não querem ser pais. O que devemos entender é que a paternidade não está mais ligada de modo irreversível à virilidade masculina”, garante a demógrafa.

TORNAR-SE ADULTO Outra linha de investigação do mesmo grupo do Nepo aborda a transição para a vida adulta. Esse processo abarca diversos eventos marcantes da trajetória de vida dos indivíduos, como a saída da escola, entrada no mercado de trabalho, saída da casa dos pais e formação de família. Os resultados de uma dessas pesquisas, que traça uma comparação entre os censos de 1970 e 2000, indicaram um padrão duplo de entrada na vida adulta. Jovens de baixa renda, definidos na pesquisa como os 20% mais pobres, têm um tempo de juventude inferior àqueles da camada de alta renda, os 20% mais ricos. Na investigação, ficou notório que particularmente as jovens de baixa renda assumem responsabilidades próprias da vida adulta cerca de sete anos antes do que um jovem de alta renda, relata a demógrafa Joice Vieira, autora do estudo. A interrupção dos estudos, a urgência em conquistar um trabalho fixo que atenda às suas necessidades de sobrevivência e a formação de família com filhos marcam o curso de vida dos jovens de baixa renda ainda no final da adolescência e princípios dos 20 anos. Jovens das camadas de alta renda tendem a adiar essas preocupações e estender o tem-

po de escolarização, pontua a demógrafa, dedicando sua juventude a diferentes formas de experimentação e a outras vivências antes de assumir maiores responsabilidades.

NOVOS DADOS

Alguns dos pontos mais aguardados pelos pesquisadores com relação aos dados completos do Censo 2010, recém-divulgados, são as informações sobre os casais de mesmo sexo, a chefia compartilhada do domicílio e a coresidência com enteados. Isso representa uma inovação para os estudos de famílias, pois o novo censo permitirá ter uma primeira radiografia de quantos são e como vivem casais em uniões homoafetivas; assim como a indicação da chefia compartilhada “possibilitará saber a quantidade de domicílios cujo gerenciamento é exercido de forma mais simétrica e menos autoritária”, acentua Gláucia Marcondes. Sobre a presença de enteados no domicílio – ou seja, de filhos que são fruto de uma união anterior de um dos cônjuges –, até então eles eram incluídos em uma única categoria com os filhos do casal, sendo impossível distingui-los. Não se conseguia, em razão disso, avaliar a importância das chamadas famílias recompostas na população brasileira. A expectativa de que famílias desse tipo fariam cada vez mais parte dos arranjos domésticos fez com que, pela primeira vez no Brasil, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) incluísse a distinção entre filhos e enteados. As estimativas com base nessas informações mostraram que as famílias que trazem filhos de uniões anteriores representavam 15,4% do total de famílias brasileiras em 2006. Joice Vieira chama à atenção para o fato de o peso das famílias recompostas no Brasil atual ser comparável àquele verificado em outros países na região do Mercosul, como a Argentina, por exemplo. No entanto, ressalta que “a fecundidade brasileira está hoje em um nível mais baixo do que a fecundidade argentina ou de qualquer outro país do Mercosul. Quanto à complexidade dos arranjos familiares, a heterogeneidade das formas de família já é uma constante em toda a região”, pondera. A importância dos estudos de família, conjugalidade e gênero não se restringem à ampliação do conhecimento sobre a sociedade brasileira. Como realça Elisabete Bilac, a contribuição deste campo de estudo consiste em considerar a diversidade das organizações familiares, tomando-se o cuidado para que as políticas públicas não as engessem em um modelo idealizado. “Afinal, todas as conformações familiares merecem respeito.”


Campinas, 7 a 13 de maio de 2012

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PAULO CÉSAR NASCIMENTO pcncom@bol.com.br

No itinerário dos antepassados Estudos de estruturas e dinâmicas populacionais do passado ajudam a compreender o presente

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Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL)/IFCH

Fotos: Antoninho Perri

os cerca de cinco milhões de estrangeiros que aportaram no Brasil entre as últimas décadas do século 19 e o início dos anos 1970, mais da metade (2,8 milhões) entrou no Estado de São Paulo. A expansão da cafeicultura e o fim da escravidão, combinados com a necessidade de arregimentação de força de trabalho livre para a lavoura cafeeira, à época em franca expansão, impulsionaram a imigração no território paulista. Italianos, portugueses e espanhóis, representavam cerca de ¾ do vasto contingente estrangeiro no Estado, acompanhados, em menor número, de alemães, japoneses, austríacos e outros estrangeiros. Embora esse período de grande impacto imigratório seja fonte de inesgotáveis estudos sociais, antropológicos e econômicos, raras são as pesquisas que olham para esse fenômeno pela lente da demografia histórica – gênero responsável por estudos de estruturas e dinâmicas populacionais em uma perspectiva histórica, com o propósito de reunir elementos capazes de permitir análises acerca de transformações que nelas ocorreram ao longo do tempo. É por isso que, nesse campo, ganha grande importância os trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp. Investigações fundamentais sobre a imigração internacional no Estado de São Paulo, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, viabilizaram a realização de um amplo e inédito mapeamento do cenário populacional paulista a partir da proibição do tráfico negreiro e do começo do fim da escravidão, em 1850. Coordenadas pela historiadora Maria Silvia C. Beozzo Bassanezi, as pesquisas focam a evolução, a distribuição espacial e as características da imigração internacional no Estado, seu impacto na estrutura e dinâmica demográfica da população paulista, e na trajetória demográfica dos municípios ao longo de um século. Focam também o impacto do processo migratório na dinâmica demográfica interna do grupo e da família imigrante e as redes sociais estabelecidas na terra de adoção.

Grupo de imigrantes italianos em hospedaria no início do século XX: investigações resultaram em mapeamento inédito do cenário populacional paulista A historiadora Maria Silvia C. Beozzo Bassanezi: imigração em larga escala teve muito reflexos nas características demográficas de SP

A IMIGRAÇÃO

De acordo com ela, os dados sobre a imigração estrangeira e sobre a distribuição espacial dos imigrantes – garimpados em um longo e exaustivo levantamento de fontes manuscritas e impressas – definem um panorama muito expressivo de uma mudança demográfica, que foi também mudança social, cultural, econômica e política, cujos reflexos ecoaram por décadas no território bandeirante. A imigração em larga escala (fruto da forte política imigratória do governo brasileiro e, principalmente, paulista, que incluía subsídios à viagem e alojamento dos imigrantes) impactou de forma decisiva nas características demográficas do Estado de São Paulo. A predominância de homens adultos entre os imigrantes, o alto índice de população em idade produtiva e reprodutiva e uma ponderável parcela de imigrantes fazendo parte de unidades familiares, influenciaram o tamanho das populações nativas e modificaram as taxas de nupcialidade, natalidade e mortalidade do Estado de São Paulo. Por outro lado, o processo imigratório como um todo, ao selecionar e direcionar os imigrantes para diferentes contextos regionais, acabou por diferenciar a dinâmica demográfica interna do grupo que emigrou do que permaneceu na terra de origem. O grande latifúndio cafeeiro do interior paulista era o destino prioritário da massa estrangeira, mas o processo imigratório não modificou apenas o perfil demográfico interiorano do Estado, mas também e muito o da capital.

IMPACTOS DISTINTOS

Maria Silvia analisou as influências imigratórias na população paulista particularmente de três localidades que acolheram um expressivo volume de estrangeiros – a capital e as cidades de Santos e Ribeirão Preto – e constatou que o impacto da imigração variou conforme o perfil dos grupos imigrantes recebidos e o contexto socioeconômico e as condições sanitárias dos municípios. Esses municípios divergiam entre si não só quanto ao volume da população imigrante recebida, mas também no tocante à composição dessa população se-

gundo a nacionalidade, sexo, idade e domicílio rural e urbano Em Santos (segundo maior pólo de concentração de não brasileiros, depois da capital, e onde predominavam os portugueses), a precariedade das condições sanitárias impacta fortemente na mortalidade entre os estrangeiros e seus descendentes, empregados em atividades portuárias. A nupcialidade também é influenciada pela expressiva maioria de homens em comparação ao sexo feminino. Em São Paulo, as acomodações inadequadas dos cortiços onde viviam muitos imigrantes colaboravam para a disseminação de epidemias, da tuberculose e elevado número de óbitos, o que não ocorria com a mesma frequência na zona rural, onde os imigrantes viviam menos aglomerados e podiam dispor de alimentação. Mesmo assim, não conseguiram ficar imunes à febre amarela que assolou especialmente as cidades interioranas, como Ribeirão Preto. “Percebe-se que o impacto na dinâmica demográfica dessa imigração é distinto em razão de seu volume, de suas características e do próprio contexto local”, aponta a pesquisadora. Conforme destaca, esses aspectos fizeram com que a experiência imigratória em São Paulo assumisse, em alguns casos, características muito peculiares em relação à manifestação do fenômeno no resto do país. Exemplo é o colonato, típico regime de trabalho que imperou nas fazendas cafeeiras paulistas e que difere dos núcleos coloniais então existentes no sul do país, ilustra Maria Silvia.

DADOS COMPARTILHADOS

Os dados resgatados a respeito da evolução da presença estrangeira em território paulista foram organizados em uma publicação pioneira coordenada por Maria Silvia. Trata-se do Atlas da imigração internacional em São Paulo 1850-1950, publicado em parceria pela Editora Unesp e a Fapesp. Contendo informações demográficas e socioeconômicas sobre a população estrangeira

Capas de livros que compõem a trilogia: fonte para pesquisadores

no período, a obra focaliza a epopéia em que se transformou a trajetória de legiões de estrangeiros dentro do Estado ao longo do centenário coberto pelos estudos. Além de coordenadora, a pesquisadora da Unicamp assina o trabalho em conjunto com os também historiadores Ana Silvia Volpi Scott, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e Carlos de Almeida Prado Bacellar, da USP, e com o cientista social Oswaldo Mário Serra Truzzi, da Universidade Federal de São Carlos. O atlas teve o mérito de disponibilizar para a comunidade acadêmica e ao público em geral, em um único volume, informações até então dispersas em diferentes fontes e arquivos. A riqueza de dados é apresentada junto com fotos, transcrições de documentos da época, gráficos e mapas temáticos que contribuem para a melhor percepção da inserção dos imigrantes no território paulista e até de seu acesso à propriedade de terras agrícolas. A evolução da entrada dos imigrantes no Brasil e no Estado de São Paulo no período não foi linear, deixando entrever quatro momentos mais longos e de maior intensidade, separados por momentos mais curtos, de declínio abrupto. O primeiro, marcado pelo fim do trabalho escravo e pela entrada maciça de imigrantes, sobretudo italianos, para atender a expansão da cafeicultura, findou por volta de 1902, quando a Itália passou a dificultar a emigração subsidiada ao Brasil. No segundo momento, o fluxo imigratório começou a se recuperar, mas em seguida é interrompido devido, principalmente, à Primeira Guerra Mundial, mas também por causa da gripe espanhola e da geada que, em 1918, dizimou cafezais paulistas e colaborou para aprofundar a crise da cafeicultura desencadeada nos anos finais do século 19.

O terceiro, de menor impacto no ingresso de imigrantes se comparado aos momentos anteriores, foi assinalado pela recuperação da lavoura cafeeira e pelo desenvolvimento de outros setores da economia no pós-Primeira Guerra. O término da política de subsídios por parte do governo paulista em 1927, a crise de superprodução de café e as restrições impostas à imigração pelo governo brasileiro nos anos 1930, com intensa campanha de nacionalização dos imigrantes e seus descendentes, contribuíram para reduzir de maneira significativa a entrada da força de trabalho estrangeira no país. O pós-Segunda Guerra Mundial aparece como o quarto momento, quando a cafeicultura deixou de ter importância e, em conseqüência, a imigração para essa lavoura e para trabalhos braçais diminui sua proporção em favor dos operários, dos técnicos industriais e dos quadros intermediários necessários à expansão do setor fabril, evidenciando o papel preponderante da indústria na atração de imigrantes. Classificado entre os dez finalistas ao Prêmio Jabuti, na época de sua publicação, em 2008, na categoria Ciências Humanas, o atlas integra uma trilogia da qual fazem parte duas outras obras complementares. A primeira é o Roteiro de fontes sobre a imigração em São Paulo 1850-1950, que relaciona as amplas possibilidades de pesquisa dos principais arquivos do Estado. Foram selecionados o Arquivo do Estado de São Paulo, o Memorial do Imigrante, a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (FSeade), o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp. A segunda obra complementar é o Repertório de legislação brasileira e paulista referente à imigração. O livro, produzido com a colaboração de Marina Gouvêa, nasceu da constatação de que a legislação vinculada ao tema não se encontrava sistematizada e não estava facilmente disponível aos pesquisadores, comenta Maria Silvia. Além dessas, a área de Demografia Histórica no Nepo também tem se dedicado a organizar e sistematizar, em bancos de dados informatizados, uma série de informações sobre imigração internacional no Estado de São Paulo, extraídas de fontes de caráter quantitativo (censos e estatísticas diversas) e qualitativo (relatos de época), alguns já disponibilizados aos pesquisadores em forma de CD Rom. Atualmente, a pesquisadora do Nepo, entre outras que também abarcam a população nativa, debruça-se em investigações sobre a morbi-mortalidade entre a população imigrante. A expectativa é que os novos achados continuem a contribuir para a compreensão cada vez mais apurada do secular movimento demográfico que configurou até os dias atuais a pluralidade sociocultural paulistana.


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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

A curva de sobreviventes

Elza Berquó relembra a sua trajetória e fala sobre o nascimento do Nepo, núcleo criado por ela e que completa 30 anos este mês

E

lza Berquó, pioneira da demografia no país, criadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) e integrante do grupo fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), foi a ilustre convidada para ministrar aula magna aos ingressantes do curso de pós-graduação em Demografia da Unicamp, que está comemorando 20 anos e mais de 80 demógrafos formados em 15 turmas de doutorado e 10 de mestrado. A professora discorreu sobre os “Cenários da fecundidade no Brasil”, na manhã de 10 de abril, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Antes de comentar a primeira tabela, mostrando a curva da queda de fecundidade entre as mulheres brasileiras nos últimos 70 anos – de 6,3 filhos em 1940, passando a 4,5 no final da década de 70 e descendo a 1,86 em 2010 –, Elza Berquó transmitiu sua primeira lição aos novos alunos. “Foi ouvindo Mozart, na Sala São Paulo, no último sábado, que me veio a inspiração: essa curva é vida! Refere-se

O PERCURSO

Meu percurso foi a matemática, a estatística, a bioestatística e a demografia. Por quê? Em primeiro lugar, porque a matemática é uma “hard science”, baseada em certezas: isso não me satisfazia plenamente. Na estatística, modelos determinísticos são substituídos por modelos probabilísticos, os quais são mais compatíveis com o mundo real: na estatística, eu me dei bem. Mas como estava desde muito jovem na Faculdade de Saúde Pública da USP, comecei a me interessar pela bioestatística, ou seja, a aplicação da estatística aos fenômenos da vida. Eu percebia que, mesmo no ensino, me fazia falta a visão demográfica, trabalhar com estatísticas vitais e tudo o mais era pouco. Então, em 1965, solicitei à Organização Pan-Americana de Saúde uma consultoria para montar um programa de pesquisa e ensino em demografia na Faculdade de Saúde Pública. E a OPS enviou ao Brasil a ilustre demógrafa Irene Tauber, que passou um mês na Faculdade nos ajudando a pensar e preparar o programa de um centro de estudos de população. Dada a interdisciplinaridade da demografia, só oferecida em nível de pós-graduação, o novo centro deveria contar com uma equipe multidisciplinar formada por sociólogos, antropólogos, médicos, economistas, estatísticos, dentre outros. Aprovada a proposta, a OPS ofereceu cinco bolsas para pós-graduação e especialização em demografia no exterior, além de recursos para pesquisa. No convênio com a Faculdade de Saúde Pública, a OPS cobriria os recursos necessários para os primeiros cinco anos de funcionamento do novo centro, os quais passariam a ser, daí por diante, da responsabilidade da própria faculdade. Nessas condições, é criado, em 1966, o Centro de Estudos em Dinâmica Populacional – Cedip. Neide Patarra (socióloga) e Jair Lício Ferreira Santos (estatístico) se encaminham para a Universidade de Chicago. A Universidade de Michigan recebe João Yunes (médico) e Paul Singer (economista) dirige-se para a Universidade de Princeton. Cândido Procópio Ferreira de Camargo, de notório saber, viaja não para fazer cursos, mas para visitar centros de demografia em diferentes países do mundo mais desenvolvido. De volta ao Brasil, a equipe dá início à Pesquisa Nacional de Reprodução Humana, financiada pela OPS, marco importante na mudança dos paradigmas na área dos estudos de população.

O AI-5

E O

CEBRAP

Estávamos começando a discutir as bases desta pesquisa, quando em 1969, pelo Ato Institucional número 5, fui aposentada compulsoriamente na faculdade. Comigo saiu Paul Singer, também aposentado. Os outros membros da equipe permaneceram.

a mulheres que sobreviveram à reprodução, é uma curva de sobreviventes. Ela nos conta histórias de esperanças, expectativas e desejos bem-sucedidos de ser mãe. Ela nos conta, também, histórias de gravidezes indesejadas, que por falta de informações e/ou acesso a meios para evitá-las ou para interrompê-las, levaram mulheres a gerar filhos. Ela não registra, mas pressupõe um contraponto marcado por milhares de mulheres que não sobreviveram à luta para se tornarem mães ou para evitar a maternidade. Não cabe dúvida de que foram as mulheres mais pobres e mais desassistidas, as que pagaram o maior preço nesse processo”. Dentre tantas ocupações, Elza Berquó é membro do Conselho Técnico do IBGE e do Conselho Consultivo do Censo Demográfico 2010, da Ordem Nacional do Mérito Científico na Classe Grã-Cruz, da Academia Brasileira de Ciências na área de Ciências Humanas. A professora Tirza Aidar, pesquisadora do Nepo incumbida de fazer a apresentação da palestrante, ainda estava na metade do currículo

Paul Singer e eu fomos para o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado sob a liderança do sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O Cebrap reuniu intelectuais de peso como Candido Procópio Ferreira de Camargo, José Arthur Giannotti, Juarez Brandão Lopes, Lucio Kowarick e Francisco de Oliveira. E, mesmo no Cebrap, continuamos a conduzir esta grande pesquisa com os colegas que ficaram no Cedip, com resultados que nortearam novas investigações no campo da demografia. No momento da aposentadoria compulsória, vários centros do exterior enviaram telegramas dizendo que tinham um lugar para mim. Mas não me via fora do Brasil, queria acompanhar de perto tudo o que ia acontecendo no país. Aquele período no Cebrap foi altamente produtivo na área de população, viajei bastante para outros países e participei de inúmeros congressos, seminários e reuniões. Quando veio a anistia, recebi dois convites, um da Faculdade de Saúde Pública e outro do Instituto de Matemática e Estatística da USP. Fiquei numa grande dúvida: o coração queria me levar para a Saúde Pública (onde comecei minhas atividades de ensino e pesquisa) e a razão queria me levar para a Matemática e Estatística (onde o conhecimento tinha avançado muito). Ouvi muita gente, até que me fechei em casa por 72 horas para tomar a decisão – e o coração venceu. Informei minha decisão ao diretor da Faculdade de Saúde Pública, Oswaldo Paulo Forattini, que disse faltar apenas uma formalidade: submeter meu nome à congregação. Quando foi apresentada a possibilidade da minha reintegração, 50% dos membros da congregação votaram a favor e a outra metade, contra – achavam que eu ainda era uma comunista muito perigosa. Forattini deu o voto de minerva a meu favor. Agradeci, mas respondi que diante do resultado, eu não poderia voltar: “Por que hoje em dia tenho uma vida muito intensa, com reuniões no exterior, cursos pra cá, pesquisas pra lá, e toda vez que precisar me ausentar do país vou depender da anuência dessa congregação”. Como já havia comunicado minha decisão ao diretor do Instituto de Matemática, resolvi continuar no Cebrap.

A

CRIAÇÃO DO

quando Berquó sinalizou para que parasse – sem ser atendida, sob a justificativa: “Desculpe, professora, mas é importante os estudantes saberem”. Se o currículo é tão extenso e expressivo, Elza Berquó é igualmente enaltecida como figura humana. “Ela está sempre jogando as pessoas para cima, dando uma injeção de vida e vitalidade, muito generosa e prestativa, atenta aos problemas de cada um. Ao Nepo, trouxe o trabalho colaborativo, um clima de trabalho onde não existe competitividade, abrindo caminho para os mais jovens, sempre com linhas de pesquisa pioneiras, à frente no tempo. E rigorosa em seu compromisso político e social”, depõe Estela Cunha, companheira desde os primeiros anos de Nepo. A generosidade da demógrafa ficou demonstrada depois da aula magna e da sessão de perguntas, quando ela ainda se dispôs a conceder uma demorada entrevista ao Jornal da Unicamp, relembrando a sua trajetória. Na sequência, Elza Berquó, em primeira pessoa.

de de reunir, numa instituição única, uma equipe multidisciplinar de alto nível com longas experiências individuais e trajetórias profissionais, tanto no que se refere à produção de conhecimentos quanto à formação de quadros na área de população. Trouxemos para o Nepo alguns colegas do antigo Cedip e pudemos contar com a colaboração de Daniel Hogan [1942-2010] e Aníbal Faundes, ambos da Unicamp. Logo de início desenvolvemos um grande projeto guarda-chuva, financiado pela Finep, sobre Transformações Socioeconômicas e Dinâmica Demográfica no Brasil – como se vê pelo título, bastante amplo. E demos continuidade à Pesquisa Nacional sobre Reprodução Humana, pois ela cabia dentro desta nova perspectiva. O projeto contemplou ainda questões como a migratória, de mortalidade, fecundidade, família, enfim, todos os temas que eram de interesse da demografia. Deste projeto, que durou de 1983 a 88, saíram as primeiras teses de mestrado, não ainda na demografia – programa de pós-graduação que só começou dez anos mais tarde – mas na sociologia, antropologia, etc. O tempo foi passando, o Nepo sempre muito bem avaliado dentro e fora da Unicamp, e estamos comemorando nossos 30 anos.

A

COR DO

BRASIL

A não inclusão da informação sobre autodeclaração da cor no Censo Demográfico de

1970, realizado durante o regime militar, sob a alegação de racismo, e a divulgação, pelo mesmo regime, dos resultados do Censo de 1960 (que continha informações sobre o quesito cor) somente em 1978, contribuíram para um longo silêncio sobre a situação da população negra no país. O confronto das informações de 1960 e de 1980 foi revelador da situação de vulnerabilidade social e econômica desse segmento populacional. O compromisso com estudos da demografia do negro no Brasil foi assumido pelo Nepo desde sua fundação. Neste sentido, deveria contar com uma equipe voltada para os estudos étnicos e raciais da população. Foi nesta época que convidamos a pesquisadora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, a Mayra, hoje coordenadora do Nepo. Recémpós-graduada no Celade (Centro LatinoAmericano e Caribenho de Demografia), do Chile, e muito recomendada por seus orientadores, ela veio colaborar especialmente com estudos sobre mortalidade e saúde da população negra. Os primeiros resultados das análises pioneiras sobre fecundidade (a meu critério), nupcialidade (a cargo de Alicia Bercovich) e de mortalidade (por Estela Cunha) da população negra foram publicados nos Textos Nepo nº 9, de 1986. Até hoje, o Nepo mantém como uma de suas linhas de pesquisa “Demografia e Etnias”, que inclui também a demografia da população indígena.

MEMÓRIA Fotos: Antoninho Perri

NEPO

Foi quando o reitor da Unicamp, José Aristodemo Pinotti, sabendo que eu não voltaria para a USP, me fez um convite: “Tenho um projeto de criar núcleos multidisciplinares, para fugir um pouco do esquema mais ortodoxo de departamentos e institutos. Quero criar núcleos que sejam multi e interdisciplinares e que dialoguem em vários campos. Quero saber se quer vir para me ajudar a criar um núcleo de população”. Isso em 1982. Claro que aceitei. Seria uma oportunida-

A pesquisadora Maria Isabel Baltar da Rocha (19472008), que coordenou o Programa de Saúde Reprodutiva e Sexualidade, durante entrevista ao JU em 2005: pioneirismo

À esquerda na imagem, vis onde funciona o Nepo: pesquis Núcleo a maior referência em


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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 Foto: Antonio Scarpinetti

NAS DUAS PONTAS

Nos últimos anos venho pesquisando a reprodução na juventude e a reprodução depois dos 30 anos, utilizando dados da PNDS 2006 [Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, da Mulher e da Criança], do Ministério da Saúde, coordenada pelo Cebrap e que contou com colaboração do Nepo. Com referência às jovens de até 20 anos, o estudo abre possibilidades para a melhor compreensão do comportamento sexual e reprodutivo desse segmento populacional. Já a postergação do início da vida reprodutiva é um fenômeno que vem sendo registrado, nas últimas décadas, nos países mais desenvolvidos. A literatura aponta como um importante determinante deste adiamento na reprodução, o investimento em educação que as mulheres precisam fazer para competir no mercado de trabalho. No Brasil, este fenômeno também já está presente e nossos resultados confirmam as motivações encontradas por outros autores. Em nosso meio, este adiamento está mais acentuado entre as mulheres com maior escolarização e das classes A e B. A pesquisa mostrou também a preocupação de algumas mulheres com a dificuldade de engravidar após os 30 anos. A infertilidade e o adiamento da reprodução podem justificar o aumento no país da demanda por reprodução assistida.

OUVINDO

Elza Berquó durante a comemoração dos 20 anos do curso de pós-graduação em Demografia da Unicamp: “As mulheres mais pobres e mais desassistidas pagaram o maior preço”

SEXUALIDADE

E SAÚDE REPRODUTIVA

Novamente inovando, o Nepo criou em 1992, com apoio da Fundação Ford, a área de

Saúde Reprodutiva. Antes da doação, a Fundação enviou ao Brasil o antropólogo Richard Parker, como consultor, para visitar centros, núcleos e departamentos a fim de encontrar uma situação

NEPO, 30

sta área dos dois prédios sas inovadoras fizeram do demografia no país

Foto: Antonio Scarpinetti

Daniel Hogan (1942-2010), um dos fundadores do Nepo, durante entrevista ao JU em 2007: professor teve papel fundamental na consolidação dos estudos demográficos no Brasil

propícia ao desenvolvimento da pesquisa e para oferecer cursos visando à formação de quadros nesta nova área. Iniciava-se assim o Programa de Saúde Reprodutiva e Sexualidade, que durante doze anos buscou novos caminhos, na confluência das ciências da saúde com as ciências humanas, para demarcar a área da saúde reprodutiva e da sexualidade como direitos de cidadania. Para tanto, o programa considerou parcerias, estabeleceu e estreitou contatos institucionais e buscou inspiração na militância da sociedade civil organizada. Além da preparação e reciclagem de recursos humanos nesse novo campo temático, o programa desenvolveu inúmeros projetos de investigação, estimulou a capacitação em pesquisa e motivou estudos multicêntricos com a colaboração de ex-participantes. Essa experiência pioneira só foi possível graças ao esforço coletivo de uma equipe na qual se destacou Maria Isabel Baltar da Rocha [1947-2008], que teve ao seu cargo a coordenação do programa. Ao final desse período com a saudosa Bel, publicamos “Construindo Novos Caminhos” para registrar os resultados alcançados. Ainda com o apoio da Fundação Ford, teve início no Nepo o Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, coordenado por Regina Maria Barbosa. Foi criado em 1996, em parceria também com o Instituto de Medicina Social da UERJ, o Instituto de Saúde Coletiva/UFBA, a Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e o Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

OS JOVENS

Dados recentes de pesquisa na área da reprodução, bem como sobre comportamento sexual e percepções sobre HIV/Aids, vem mostrando que no país é ainda marcante a vulnerabilidade dos jovens, seja por falta de acesso a informações e atendimentos, seja por certa reserva dos jovens frente à forma como são conduzidas ações educativas de prevenção, dificultando a aderência das informações ao comportamento. O cenário brasileiro na área da educação é regido nos últimos anos pela Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBD-1996), que introduziu inovações como os temas transversais no currículo escolar, tendo a Orientação Sexual como parte deste repertório. Por sua vez, os Ministérios da Saúde e da Educação assinaram, em 2000, portaria interministerial constituindo a Câmara Intersetorial de Educação em Saúde na Escola, com os objetivos de promover o protagonismo da escola como espaço de produção de saúde e de transformar metodologias e técnicas pedagógicas tradicionais. Alinhada a estes princípios e compromissos, a iniciativa Escolas Promotoras da Saúde, com o aval da OPAS, considera as interfaces do espaço escolar com a sociedade “fomentando o desenvolvimento humano saudável, e relações humanas construtivas e hegemônicas e que promovam aptidões e atitudes positivas para a saúde”. Em nível global, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2010, considerou a educação sexual integral como direito humano e recomendou aos Estados e comunidade internacional a eliminação de barreiras legislativas e constitucionais para: assegurar uma educação sexual integral sem discriminação; assegurar formação docente de qualidade e especializada para esta questão; zelar pela inclusão da educação integral a partir do ensino fundamental; e promover políticas públicas que assegurem este direito humano. No plano de estudos nacionais sobre Educação em Sexualidade nas Escolas, importantes iniciativas e contribuições ao campo revelam que a existência de legislação não significa a efetiva implementação nas escolas dos programas de educação em sexualidade, e que nas esferas públicas há sinais de desarticulação, fragmentação e/ ou duplicação de ações. Assinalam também que os conteúdos curriculares nem sempre cumprem o princípio de oferecer uma educação em sexualidade: científica, democrática, pluralista e livre de estereótipos e preconceitos. Indicam ainda que são raras as abordagens usadas na Educação em Sexualidade adequadas e ajustadas às novas mídias na área da comunicação, tão apreciadas e protagonizadas pelos jovens. As linguagens usadas nem sempre conseguem penetrar o universo cheio de significados dos jovens. Em suma, nem sempre os jovens são vistos como sujeitos de sua sexualidade. Essas considerações motivaram meu interesse em desenvolver o projeto “Dar voz aos jovens – Contribuição à Educação em Sexualidade”, do qual me ocupo no momento.

AO

FIM DA ENTREVISTA

Até certo ponto, aquela congregação ter votado contra a minha volta [à Faculdade de Saúde Pública] foi uma grande sorte, que me deu a oportunidade de fundar o Nepo. Tudo, na verdade, tem um contraponto, não acha?


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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 MARIA TERESA MANFREDO Especial para o JU

O pêndulo da vulnerabilidade Conceito de mobilidade espacial da população põe em xeque antigos dogmas sobre migração

C

ompreender as características e tendências de como a população se movimenta no espaço, assim como analisar as causas e consequências da segregação urbana, são os principais objetivos dos estudos do professor José Marcos Pinto da Cunha, pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. O docente, que é coordenador da linha de pesquisa Redistribuição Espacial da População e Urbanização, explica que os processos investigados por ele nunca são simples. “Diversos e complexos são os fatores subjacentes aos deslocamentos populacionais de uma área a outra”, aponta. “No passado, particularmente nos países em desenvolvimento, como era o caso do Brasil, quando a migração de mais longa distância era a que ditava o compasso do fenômeno, talvez fosse mais fácil pensá-la a partir de categorias mais fechadas como origem/destino, urbano/rural, industrial/não industrial etc. Hoje, a questão se coloca de forma mais complexa.”, afirma. Por isso mesmo, o pesquisador prefere falar em “mobilidade espacial da população” do que usar diretamente o termo migração. Mobilidade espacial é um fenômeno que pode envolver não apenas a migração, considerada como mudança de lugar de residência, mas também os deslocamentos regulares, dos quais os mais tratados pelos demógrafos são os movimentos pendulares. Trata-se de deslocamentos invariavelmente diários, por razões de trabalho ou estudo, cruzando os limites geográficos de duas unidades espaciais, em percurso de ida e volta. Segundo José Marcos, tornou-se fundamental ter uma visão mais ampla desse processo – passo importante para se compreender melhor as características, condicionantes e consequências reais da dinâmica da população nos seus vários contextos socioespaciais. “Nascer, morrer e migrar são três pilares a partir dos quais se modificam o tamanho, estrutura e distribuição da população. Contrariamente ao que ocorre com as duas primeiras variáveis-chave da demografia, a definição de migração abre enormes pontos para discussão”, enfatiza José Marcos. Segundo o pesquisador, a migração, que é parte constitutiva do pensar demográfico, deve ser encarada a partir de duas perspectivas: por um lado, como fenômeno demográfico, e por outro, como processo social. José Marcos destaca que uma característica tem balizado todas essas definições e coloca novamente uma grande dificuldade para estabelecer a noção de migração, em particular na atualidade: a mudança de residência. É cada vez mais difícil definir o que seria uma mudança permanente ou não de domicílio, o que colocaria em xeque definições já estabelecidas do que seja migrar. Por meio do ponto de vista que encara a migração também como um processo social, além de fenômeno demográfico, José Marcos destaca o conceito de “espaço de vida”, considerado como a porção na qual o indivíduo realiza todas suas atividades. Um caso emblemático dessa discussão seria a migração (ou mobilidade residencial) que ocorre dentro das regiões metropolitanas, denominada por José Marcos como intrametropolitana. Para o demógrafo, este fenômeno não apenas interfere no crescimento e na forma das grandes aglomerações urbanas do país, como também reflete, em muitos sentidos, a redistribuição da população no espaço metropolitano. Assim, embora implique em mudança de residência – mesmo que de forma não definitiva –, a mobilidade intrametropolitana não necessariamente resulta em mudanças no espaço de vida e, portanto, não constituiria migração. Ademais, o pesquisador lembra que um dos tipos de deslocamento espacial mais comum hoje em dia, a mobilidade pendular, seria uma das faces mais visíveis deste processo: muda-se de lugar, mas não se perde o vínculo pré-existente com outro território. “Neste sentido, pensar de maneira mais geral na mobilidade espacial da população talvez fosse o mais adequado para nos desprendermos tanto de certos pressupostos e

Fotos: Antoninho Perri

Contraste na mesma região de Campinas: para José Marcos Pinto da Cunha, a infraestrutura de um bairro e o acesso que as pessoas têm aos serviços locais são dimensões que interferem na situação de pobreza

O professor José Marcos Pinto da Cunha: “É preciso vislumbrar novas formas de compreender a dinâmica demográfica”

visões ultrapassadas que nos acompanharam até pouco tempo, quanto para vislumbrar novos conceitos, novas relações entre estes movimentos populacionais e, mais que isso, novas formas de compreender a dinâmica demográfica de nosso país e mais especificamente de nossas cidades e aglomerações urbanas”, destaca. Assim, se no passado a complexidade e a diversidade das formas de movimento da população no espaço eram ofuscadas pelas grandes tendências da migração no Brasil, sobretudo a rural-urbana, hoje elas se manifestam com toda força, não apenas reproduzindo alguns aspectos já presentes nas décadas anteriores, mas também apresentando novas características, fenômenos, condicionantes e consequências.

POBREZA MULTIFACETADA

José Marcos defende que a diversidade e a complexidade de movimentos da população no espaço exigem novos esforços teóricos e metodológicos, a ampliação das fontes e tipos de dados coletados, bem como a utilização cada vez mais criativa das informações existentes. Nesse contexto, uma de suas recentes conclusões é a de que não é verdade que a cidade é democrática e igualitária. Também não é verdade que haja apenas o recorte econômico para classificar a diferenciação social

ou o que seja a pobreza ou riqueza. O demógrafo explica que há uma clivagem socioespacial muito forte que marca nossa sociedade, sendo que essa demarcação influencia diretamente as situações de pobreza e seu enfrentamento. Outro ponto destacado por José Marcos em seus estudos recentes é o de pensar na pobreza como algo mais multifacetado do que a visão simplista de que pobre é a pessoa que tem ou não recursos financeiros – insuficiência de renda, no caso. “Pessoas que ganham a mesma faixa de renda, estando em lugares diferentes na metrópole, vão responder de maneiras diferentes para os riscos sociais e econômicos”, afirma. “As oportunidades das metrópoles estão influenciadas pelo lugar onde as pessoas moram. O espaço realmente importa dentro da análise demográfica”. Na opinião do pesquisador, a problemática das aglomerações urbanas não se esgota apenas pela consideração do aumento de tamanho e concentração demográfica, mas pelos novos limites e possibilidades que criam para o enfrentamento dos desafios cotidianos dos cidadãos. Sob esta visão, pobreza seria mais do que ter ou não ter dinheiro no bolso, já que existem outros elementos por trás dessa noção. A pobreza, na opinião do pesquisador, seria multidimensional. Mais do que insuficiên-

cia de renda, há outros elementos que precisam ser levados em conta. A infraestrutura de um bairro e o acesso que as pessoas têm aos serviços locais, por exemplo, são dimensões que interferem na situação de pobreza. “Podemos encontrar pessoas na mesma faixa de renda e motivadas por uma ‘geografia de oportunidades’, que estarão em situações totalmente diferentes uma da outra; gente com mais acesso, mais próxima de serviços mais eficientes, qualitativamente melhores, vai responder de maneira diferente aos problemas da escassez de renda”, destaca o professor. Pensando na forma de acesso aos serviços, por exemplo, seus estudos recentes procuraram incorporar novas dimensões, entre os quais: dados sobre o entorno do domicílio, sobre as ruas do bairro e sobre acessibilidade e qualidade do acesso a determinados serviços como água, lixo, transporte, saúde, educação etc. Todas essas conclusões são frutos de um projeto de pesquisa coordenado por José Marcos sobre urbanização, migração e suas consequências sociais e ambientais, no contexto do interior do Estado de São Paulo. O Projeto Dinâmica Intrametropolitana e Vulnerabilidade Sociodemográfica nas Metrópoles do Interior Paulista: Campinas e Santos – apoiado pela Fapesp e CNPq e que agregou entre 2003 e 2009 mais de 30 participantes, entre professores do Nepo e alunos de graduação e pós-graduação de vários programas da Unicamp – encontrou, nos estudos sobre vulnerabilidade social, um caminho para captar as dimensões sociais e demográficas da realidade metropolitana. De acordo com a abordagem deste projeto, a capacidade dos indivíduos ou dos grupos domésticos de responder aos riscos sociais, econômicos e ambientais contemporâneos seria mediada não só pela posição que ocupam na estrutura social como também por uma série de condicionantes que incluem velhos e novos padrões de ocupação do território metropolitano. A escolha desse conceito como eixo teórico deveu-se ao fato de que, ao contrário do enfoque da pobreza, a ideia de vulnerabilidade permite trabalhar não apenas com as necessidades das pessoas mais carentes, mas também com os recursos e potenciais de que elas dispõem para enfrentar os riscos impostos pelas privações. Assim, permite considerar outras dimensões fundamentais para captar distinções entre grupos com os mesmos níveis salariais ou de consumo.


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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 MARIA ALICE DA CRUZ halice@unicamp.br

A conta da natureza

Linhas de pesquisas analisam as relações entre população, ambiente e mudanças climáticas

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ventos naturais extremos, como a chuva que vitimou várias pessoas entre março e abril deste ano, em Teresópolis (RJ), mesmo após a tragédia que atingiu a região serrana fluminense no ano passado, exigem novos olhares para os estudos da dinâmica populacional. As transformações que se apresentam nos últimos anos, incluindo atividades econômicas e mudanças climáticas, sugerem inovações nas pesquisas sobre população e ambiente, inserindo novos componentes importantes para compreender essa relação. Há 15 anos, o professor e demógrafo Daniel Hogan, falecido em abril de 2010, sugeria a inserção das mudanças ambientais globais como forma de tornar mais eficientes os resultados de pesquisas sobre dinâmica demográfica. Seus passos nessa linha de pesquisa, iniciados há 30 anos com a fundação do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp, continuam a ser seguidos por 20 estudiosos do grupo População e Ambiente do núcleo, de acordo com o sociólogo e doutor em demografia Roberto Luiz do Carmo, um dos coordenadores do grupo, ao lado do professor Alvaro de Oliveira D’Antona. Além das discussões sobre mudanças climáticas e suas relações com a dinâmica social e demográfica, existe uma série de outros aspectos da relação entre população e ambiente em estudo, como por exemplo, os processos de mudança no uso e ocupação da terra em várias partes do país, o processo de urbanização e suas decorrências, a redistribuição espacial da população e sua conexão com os processos ambientais. Entre outros resultados, os estudos mostram como as mudanças climáticas rebatem na dinâmica populacional. Conforme Carmo, as transformações têm impacto em aspectos relacionados com a própria estruturação da cidade, como, por exemplo, a ocupação pela população de áreas mais vulneráveis. “Esses eventos extremos de chuva, como este último em Teresópolis, representam um conjunto de riscos relacionados às mudanças climáticas que afetará um grupo populacional que já era vulnerável, por uma série de razões sociais, entre as quais a habitação em áreas ambientalmente mais frágeis, expostas a inundações e alagamentos”, adverte Carmo. De acordo com o demógrafo, com o crescimento urbano não planejado e dirigido pelo capital imobiliário, as pessoas em piores condições econômicas acabaram ocupando áreas de maior suscetibilidade a alagamentos e inundações, alguns dos principais riscos a ser potencializados pelas mudanças climáticas. Antes dessa potencialização, os riscos tinham um significativo impacto sobre a vida das populações que habitam áreas frágeis, segundo Carmo. “Foi esse o espaço que restou para esta população ocupar”, acentua. Conforme o pesquisador, a leitura que se faz hoje é de que existe uma dívida social em relação a esse processo de urbanização ocorrido no Brasil. “Uma dívida social que a cada ano apresenta sua conta, em forma de vida de pessoas e precisamos começar a pagar como sociedade”, questiona. A urbanização, um dos dois maiores fenômenos demográficos ocorridos na segunda metade do século 20 no país, tem recebido atenção especial do grupo. O segundo, conforme Carmo, é queda da taxa de fecundidade, que provocou um processo de transição demográfica, mas não garantiu avanços no que diz respeito à sustentabilidade. As desigualdades sociais permanecem, fazendo as vítimas da má distribuição de bens naturais e dos riscos ambientais que foram socialmente construídos ao longo da história do país, segundo o professor. “O número de famílias que vivem em situação de vulnerabilidade ainda é expressivo”, acentua. A transição demográfica faz com que os demógrafos lancem um olhar diferenciado para a dinâmica populacional no Brasil, apesar de todo o movimento em torno da chegada aos 7 bilhões de habitantes no mundo. “Se olharmos para a escala mundial, colocaríamos um peso muito grande na questão dos números absolutos de volume de população, mas se analisarmos um processo recente de população brasileira, veremos que nas últimas três décadas houve um processo tão grande de queda da fecundidade, que começamos a ver o momento que a população vai parar de crescer no Brasil. Mas até que ponto essa questão da diminui-

Foto: Pablo Jacob/ Agência O Globo

Foto: Antonio Scarpinetti

O professor Roberto Luiz do Carmo: urbanização desenfreada gerou dívida social Escombros de casas destruídas pelos temporais que atingiram Teresópolis e outras cidades da região serrana fluminense em 2011: eventos naturais extremos exigem novas abordagens

constituídas em um mundo que passa por grandes transformações, pelo acesso à tecnologia, pela nova cobertura de serviços públicos, pela queda de fecundidade, trazem uma situação de conforto para uma parte significativa da população, entretanto, as questões se colocam aos demógrafos em termos geracionais. “O que nossa geração vai deixar para a de nossos filhos? Um mundo arrasado em que eles terão dificuldade para sobreviver? Nossa discussão vem nesse sentido, nossa geração vive momento de afluência e riqueza que nunca existiu em outro momento da história. Ao mesmo tempo, isso traz uma grande responsabilidade, pois precisamos pensar no que deixar para o futuro.” Para ele, as pessoas que estão num determinado nível social em que se pode desfrutar de tudo o que a tecnologia e os recursos econômicos podem oferecer precisam olhar para o lado, pois há uma parcela da população que não tem acesso.

TRABALHOS RECENTES

ção de crescimento efetivamente vai significar uma diminuição da desigualdade social? Não houve transformação muito grande em termos de diminuição das desigualdades sociais”, acrescenta. Na avaliação de Carmo, o grupo avançou muito no conceito de vulnerabilidade durante um longo período, pensando nele, num primeiro momento, como o reverso da moeda da sustentabilidade. “Começamos a pensar, principalmente, no âmbito desses projetos que temos sobre mudanças climáticas, em termos de adaptação de resiliência. Como os grupos sociais vão se adaptar a esse novo contexto e como é possível pensar essa organização diante desses riscos que poderão ser cada vez maiores”, reflete. Carmo recorda que, há 20 anos, quando membros do grupo iniciaram as pesquisas sobre a utilização da água e o impacto na dinâmica populacional, a questão não era estudada. Dados mais recentes de pesquisa desenvolvida no Nepo mostram o impacto da expansão do cultivo da soja em larga escala na modificação da paisagem e na nova dinâmica ambiental do Cerrado. O trabalho mostra que a demanda grande por água pode levar a processo muito intenso de uso e até a um conflito pelo uso do recurso num contexto onde existe característica ambiental bastante frágil. A expansão agrícola, segundo ele, demanda uma quantidade maior de água. No Cerrado, principalmente, onde essa atividade se expandiu, a produção é calcada no aumento do uso da irrigação e no uso intensivo de produtos agroquímicos, tendo impacto na qualidade da água. Os impactos em termos de qualidade podem vir a ter impacto em termos de quantidade, no futuro, segundo o pesquisador. Ele enfatiza que todo processo de expansão das atividades econômi-

cas no Cerrado são fundamentais hoje para o país, pois uma parcela significativa da balança comercial brasileira vem da exportação desses produtos, que são primários, mas os impactos precisam ser avaliados. Em um trabalho dedicado às questões demográficas e hídricas em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas, Santos e no Recife, os pesquisadores observaram que a expansão metropolitana brasileira foi acompanhada de problemas como o aumento da demanda por água e a degradação de recursos hídricos. Essas mudanças refletiram-se no surgimento de significativos grupos populacionais com condições de vida precárias, segundo Carmo. Ele acentua que ao longo dos últimos dez anos houve uma evolução muito importante em termos de aumento da cobertura dos serviços de água, coleta de esgoto no país como um todo, entretanto, em localidades onde não há legislação de recursos hídricos implementada a situação continua difícil em termos de serviços básicos de saneamento para grande parte da população. “Em muitos casos, o que vemos é melhoria da coleta do esgoto, mas com despejo diretamente nos cursos de água. As grandes cidades, entre as quais Recife, ainda enfrentarão uma série de aspectos envolvidos com essa questão da água.” Ele acrescenta que a região metropolitana de São Paulo, por estar situada na parte mais alta da bacia, não tem muita água disponível, em relação à demanda existente. Por conta disso, a capital paulista capta água do sistema Cantareira, que é da Bacia do Piracicaba. Segundo Carmo, há uma competição por água entre Campinas e São Paulo, e isso certamente se refletirá em 2014, quando a renovação da outorga será discutida. As novas formas de organização social

A dissertação “Mineração e dinâmica populacional”, de autoria de Vinicius Correa, orientado por Carmo, mostra o impacto da atividade de mineração na dimensão populacional da Serra Pelada. Para o orientador, o trabalho mostra que a mineração deixou um legado de população masculina que impacta até hoje a demografia da região. “É preciso pensar nos impactos populacionais que esses processos deixam em termos de longo prazo”, pontua. Outra linha desenvolvida dentro do grupo, em parceria com a Prefeitura de Campinas, mostra o impacto da dengue na organização populacional. Os resultados revelam que, por um lado, ao longo da década de 2000, houve duas situações bem diferenciadas: a primeira mostra uma incidência maior da doença numa população com menor acesso aos serviços de água; a segunda, um grupo populacional com todos os recursos econômicos, mas preocupado em manter vasos e plantas nos quais os mosquitos se reproduzem. “Para cada um dos casos é preciso realizar uma política pública diferente. Por um lado, aumento do oferecimento de água tratada, para que as pessoas não tenham que estocar. Por outro lado, uma política massiva de informação e de ação direta para mudança de cultura em relação à manutenção das áreas urbanas, sejam elas privadas ou públicas”, opina Carmo. Um trabalho de iniciação científica realizado em Altamira (PA), premiado no Congresso de Iniciação Científica de 2011 da Unicamp, mostra elementos importantes para a compreensão da dificuldade de se combater a dengue no Brasil. Segundo Carmo, os resultados mostram que a doença envolve desde questões da urbanização até características da mobilidade espacial da população. “É um resultado interessante em termos de aplicabilidade de políticas públicas, porque a dengue sintetiza toda a complexidade da relação entre população e ambiente com todos os meandros”, justifica o orientador.


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Campinas, 7 a 13 de maio de 2012 PATRICIA LAURETTI patricia.lauretti@reitoria.unicamp.br

A geração perdida Homicídios e trânsito são os maiores responsáveis por morte de jovens entre 15 e 24 anos no país

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Foto: Augusto de Paiva/Imagem extraída do livro “Fotografia e Cidadania”

Execução de mãe e filho em crime que chocou Campinas na década de 1990: violência epidêmica

Foto: Antoninho Perri

s anos 1990 foram marcados pela explosão da violência nas grandes cidades do Brasil. Os números de homicídios em algumas regiões foram comparados aos registrados em países com histórico de guerra civil ou com altos índices de criminalidade à época, entre os quais Porto Rico e Colômbia. Morria-se muito pelas chamadas “causas externas”, que se contrapõem às demais que levam o indivíduo a adoecer e morrer, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesta guerra sem nome próprio, foram aproximadamente 400 mil pessoas mortas em uma década no país. Morria-se muito em razão da violência e, pior, morria-se muito jovem. Na faixa entre 15 e 24 anos, o número de homicídios para cada cem mil habitantes saltou de 35,2 para 52,1 ao longo dos anos 1990. Em meados desta década, a pesquisadora Tirza Aidar, com formação em estatística, ingressou no doutorado em Demografia, interessada em estudar as interfaces entre a saúde, a população e a mortalidade. Uma das indagações de Aidar era como a população estava morrendo e de que maneira as mudanças sociais e demográficas impactavam no perfil da mortalidade entre as crianças, os jovens, os adultos e os idosos. Foi quando deparou com as altas taxas de mortalidade de jovens por causas violentas, objeto de extenso trabalho de investigação que continua até hoje e que envolve especialmente a Região Metropolitana de Campinas, (RMC). De lá para cá, Tirza constatou que após a explosão de homicídios, na mesma região, houve uma queda na década seguinte, até 2010, e uma reaproximação dos patamares de antes de 1990, muito embora no restante do país se verifique ainda o aumento de homicídios. Pesquisa coordenada por Tirza, revela, por exemplo, que no Paraná algumas cidades como Cascavel e Foz do Iguaçu vivem agora situação semelhante à registrada na RMC nos anos 1990 em relação aos homicídios. No Brasil como um todo, houve um acréscimo de 14,5% no número de mortes por homicídios no País, que passou de 45 mil em 2000, para 52 mil em 2010. Por outro lado, os registros mais recentes da RMC revelam que, se uma parcela dos jovens tem conseguido “escapar” dos homicídios, outra, não menos significativa, tem morrido sobre duas, ou quatro rodas. Desde o doutorado, Tirza, que hoje é pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) Unicamp e também coordenadora do curso de pós-graduação em Demografia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), se preocupa com as relações entre as questões de desigualdade, vulnerabilidade social e mortalidade. O trabalho envolve alunos da graduação, pós-graduação e pesquisadores do Nepo e de outras instituições, entre as quais a Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados) e Universidade Nacional de Córdoba. A RMC, com seus 19 municípios e mais de 2,6 milhões de habitantes, foi constituída como unidade regional somente em 2000. Porém, desde a década de 1970 seus problemas de moradia, desemprego e empobrecimento da população vêm se agravando em razão do avanço na posição de pólo econômico. A exemplo do verificado no país, os jovens pagaram o alto preço do desenvolvimento: entre 1991 e 2000, a variação da taxa de mortalidade por homicídios entre 15 e 24 anos foi de impressionantes 174%, passando de 56,9 para 156,3 mortes para cada 100 mil. Uma constatação curiosa de um dos estudos realizados pela equipe coordenada por Tirza: a avaliação dos dados socioeconômicos e demográficos do Censo 2000 (IBGE), do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM-Datasus), do Ministério da Saúde, e do Banco de Óbitos de Campinas (Secretaria Municipal de Saúde) contrariou o senso comum quando se trata de associar diretamente desigualdade social, pobreza e violência urbana. Para a RMC, os municípios com maior desigualdade não eram necessariamente os mais violentos no início dos anos 2000. No período investigado, os números

variaram de algo em torno de 100, (em 1980) 300 (em 1990) a 900 homicídios (em 2000). Na virada do milênio, os municípios com as maiores taxas dessa modalidade de crime por habitantes eram Hortolândia, Sumaré, Campinas e Monte Mor, sendo os dois primeiros aqueles que apresentavam, na época, os menores índices de desigualdade socioeconômica, mas os piores indicadores relativos à pobreza e oportunidade educacional para os jovens. “É importante ressaltar que tais problemas sociais devem ser tratados em sua complexidade, considerando o dinamismo e sinergia entre os municípios e dos diversos setores das políticas públicas, seja no âmbito municipal, regional, estadual ou federal”, afirma Tirza. A demógrafa adverte que pesam nesta relação as escalas utilizadas nas análises, se comparando municípios dentro de uma mesma região, ou bairros dentro de um mesmo município, ou ainda comparações entre regiões de um mesmo país, ou entre países. “Desigualdade social já denota, antes de mais nada, uma sociedade violenta em vários aspectos”, ressalta. “Nos contextos de marcada desigualdade em termos econômicos e materiais, e em relação ao acesso à moradia, aos cuidados à saúde, à educação de qualidade, circulação e lazer, somados à facilidade da instalação e consolidação de redes de criminalidade ligadas ao narcotráfico e distribuição de armas de fogo, são criadas condições para o crescimento da violência urbana que vitimiza principalmente os homens jovens, negros, e residentes em áreas mais segregadas, espacial e socialmente”, enfatiza a docente. Os espaços urbanos nos quais a população mais sofre com perdas fatais são aqueles com concentração de população de baixa renda, adultos com menor escolaridade, e jovens com menor chance de frequentar uma escola de qualidade.

A professora Tirza Aidar: “Desigualdade social já denota uma sociedade violenta em vários aspectos”

TRÂNSITO

A primeira década deste século foi marcada pela reversão da tendência de mortes violentas causadas por armas no estado de São Paulo e na região de Campinas. No Estado, houve redução de 58%, de acordo com o Datasus. Foram 15.591 registros em 2000 para 6.557 em 2009. Na RMC, em 2010, ocorreram cerca de 400 homicídios, 14,2 para cada 100 mil habitantes (70% das vítimas são homens entre 15 e 44 anos). As maiores taxas foram observadas em Monte Mor (56,5 por 100 mil habitantes), Santo Antônio da Posse (24,4 para cada 100 mil habitantes), seguidas de Sumaré, Cosmópolis, Santa Bárbara d’Oeste e Paulínia, estas com cerca de 20 homicídios para cada 100 mil moradores. “Alguns fatores contribuíram para esta diminuição, entre os quais a ampliação da cobertura do sistema escolar com mais jovens matriculados, e também um maior investimento em segurança pública. Mas ainda há muito que melhorar”, afirma. Este refluxo no número de homicídios, cujo pico deu-se nos 1990, teve, no entanto, uma contrapartida: o aumento de mortes no trânsito em São Paulo e no restante do país. Eis os números: no Estado, de 5.975 em 2000 para 7.331 em 2009 (aumento de 23%) e, no país, de 29.645 para 42.043 (elevação de 30%). Motivo para acender a luz de alerta e dar continuidade aos estudos demográficos. Não por acaso, a atualização dos dados também tem o foco nos jovens, por serem eles também as maiores vítimas. Da mesma forma que os homicídios, os acidentes fatais atingem jovens – agora motociclistas – que vivem em regiões menos favorecidas e que utilizam o veículo para trabalhar. Um estudo realizado pela orientanda Ana Carolina Bertho, por exemplo, que incorpora dados de boletins de ocorrência dos

acidentes de trânsito com vítimas fatais e não fatais no município de Campinas, revela os mesmos diferenciais quanto à vitimização de jovens motociclistas e pedestres menores de 14 anos e adultos com 60 anos ou mais. Segundo a pesquisa, aqueles que residem nas áreas com maior concentração de carências de infraestrutura urbana, apresentam índices de vitimização de 1,5 a 2,5 vezes maiores que o observado entre a população residente nas melhores áreas do município, como nas regiões centrais e de bairros como o Taquaral, por exemplo. Na defesa de um olhar mais apurado para a condição de vulnerabilidade do jovem brasileiro, a pesquisadora alerta para um equívoco gerado por análises estreitas sobre os indicadores de saúde, que invariavelmente colocam maior foco nos problemas relacionados à saúde infantil ou da população com 60 ou 65 anos ou mais. “Por um lado, porque a mortalidade infantil é muito sensível a ações pontuais, como vacinação, saneamento e cobertura do sistema básico de saúde em suas ações preventivas e enfrentamento dos problemas de baixa complexidade e, no outro extremo, por conta do contínuo aumento do contingente e da longevidade da população idosa, uma das consequências da transição demográfica”. Para Tirza, o erro está em manter uma estrutura que avança somente no controle da mortalidade infantil e saúde dos idosos, sem prestar a atenção devida e urgente aos jovens e jovens adultos. “Estes são os sobreviventes da primeira infância muitas vezes em condições precárias, que irão continuar acumulando experiências e exposições a riscos, ou situações de proteção, responsáveis diretamente às possibilidades de enfrentamento das condições adversas que encontrarão na maturidade” complementa. Estudos mais recentes, que aguardam o censo de 2010 para atualizações, mostram que, na Região Metropolitana de Campinas, os diferenciais da mortalidade são ainda muito significativos entre os jovens, quando comparados às crianças e idosos. São os jovens residentes nos espaços urbanos mais precários que apresentam os piores indicadores quanto à saúde reprodutiva e à vitimização frente à violência urbana, seja no trânsito seja nas vivências cotidianas.


Campinas, 7 a 13 de maio de 2012

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MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

O saber concebe a práxis Pesquisas na área de Sexualidade e Saúde Reprodutiva geraram programas e políticas públicas

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Foto: Antonio Scarpinetti

entre os estudos desenvolvidos ao longo dos últimos 30 anos pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, os vinculados à área de Sexualidade e Saúde Reprodutiva proporcionaram diversos avanços tanto em relação ao conhecimento acumulado sobre as temáticas, quanto no que se refere à formação de recursos humanos qualificados. Graças às investigações conduzidas e aos pesquisadores formados pelo programa, o Brasil teve a oportunidade de adotar ações e formular políticas públicas mais consistentes, bem como ampliar as discussões em torno dos direitos à saúde, direitos sexuais e direitos reprodutivos. Na entrevista que segue, a médica Regina Maria Barbosa, ex-coordenadora e atual pesquisadora do Núcleo, fala sobre as atividades realizadas ao longo das últimas três décadas e traça um breve panorama de como andam as discussões acerca da sexualidade e da saúde reprodutiva no país. Na opinião da especialista, a partir da década de 1990 houve uma progressão das forças conservadoras, o que tem dificultado o debate sobre temas fundamentais, entre os quais o do aborto seguro. “No Brasil, estamos patinando nesse terreno”, considera.

reprodutivos sem pensar nas políticas de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez. Com isso, uma série de pesquisas começou a acontecer aqui no Nepo.

A pesquisadora Regina Maria Barbosa: “O Nepo se constituiu num lócus de produção inovadora de temas ligados à população e à saúde reprodutiva” Foto: Antoninho Perri

Jornal da Unicamp – Em que contexto foi criada a área de Sexualidade e Saúde Reprodutiva do Nepo? Regina Barbosa – A área de Sexualidade e Saúde Reprodutiva tem 30 anos de atividades. Ela nasceu juntamente com o Nepo, marcando um diálogo inovador da demografia com o campo das ciências biomédicas. E nasceu em função de uma discussão que era – e continua sendo – fundamental para o país. Naquela época, tínhamos um grande debate acerca das políticas natalistas e controlistas, ou seja, uma crítica à visão de que era necessário estabelecer metas demográficas, quer seja para aumentar ou para diminuir o número de filhos que as mulheres deveriam ter. Tínhamos também certa ausência do Estado em torno de questões relacionadas ao planejamento familiar, que hoje chamamos de planejamento reprodutivo. Assim, com o decorrer dos anos, o Nepo se constituiu num lócus de produção inovadora de temas ligados à população e à saúde reprodutiva. A pioneira nesses estudos foi a professora Elza Berquó. Nossas pesquisas procuraram, desde o início, questionar a ideia de que a explosão demográfica estaria ligada à pobreza, ou seja, de que as mulheres pobres teriam fecundidade exacerbada. O Nepo sempre foi um local de questionamento dessas posturas. As pesquisas dessa área cobrem temas como: sexualidade, saúde e políticas públicas; cuidado e atenção à saúde reprodutiva e à prevenção de DST/HIV; comportamento, práticas sexuais e reprodutivas e saúde mental; planejamento da fecundidade, práticas conceptivas e anticonceptivas; reprodução na juventude; envelhecimento e reprodução; aborto; novas tecnologias reprodutivas; masculinidades, saúde e reprodução; direitos sexuais e direitos reprodutivos e barreiras para sua implementação. JU – E como essa área foi estruturada? Regina Barbosa – A área de Sexualidade e Saúde Reprodutiva do Nepo estruturouse em torno de duas vertentes: produção do conhecimento e formação de recursos humanos. Na vertente da formação de recursos humanos, implementou-se, com o apoio da Fundação Ford, o Programa de Estudos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva, coordenado pela professora Elza Berquó , em colaboração inicialmente com Margareth Arilha – atual pesquisadora do Nepo – e posteriormente com Maria Isabel Baltar da Rocha, pesquisadora já falecida e que contribuiu enormemente com o desenvolvimento institucional. Esse programa, constituído por módulos temáticos, trazia para o Nepo profissionais de vanguarda, de diversas perspectivas disciplinares, especialistas nas áreas de ciên-

cias humanas e ciências médicas. Este era o debate central que se estabelecia através do curso, mostrando a complexidade do campo da sexualidade e da saúde reprodutiva, e de sua mútua interação. O programa procurava qualificar o trabalho de gestores, profissionais de saúde, operadores do direito, jornalistas, parlamentares, pesquisadores da área de saúde e gênero, além de ativistas. A seleção dos 30 participantes previa também a distribuição geográfica destes, assim como a participação, ainda que limitada, de alunos estrangeiros. Naquele período, na segunda metade dos anos 1990, uma discussão iniciada na década anterior tomava fôlego no Brasil. As grandes premissas que relacionavam pobreza e explosão demográfica foram colocadas por terra. Assim, foi inaugurado um novo modo de se pensar a relação entre população e desenvolvimento, por intermédio da questão dos direitos humanos. Questões como a vivência da sexualidade e o direito de se ter ou não ter filhos e o papel das relações de gênero nas práticas sexuais e reprodutivas ocupavam um lugar de centralidade nos debates. Nesse contexto, o Nepo teve papel fundamental, visto que contribuiu para qualificar a prática e o discurso de pessoas que estavam trabalhando na ponta, nas políticas públicas, bem como os jovens pesquisadores. Foram 12 anos de programa, que formou pessoas que hoje em dia ocupam lugares estratégicos tanto na academia como nas instâncias públicas. JU – E em relação à formação de recursos humanos qualificados para a pesquisa? Regina Barbosa – O outro programa fundamental, também apoiado pela Fundação Ford, esteve voltado à formação principalmente de pesquisadores. O Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva se estendeu por 13 anos. Ele esteve voltado à produção de conhecimento científico qualificado. Na década de 1990, uma avaliação feita

junto à Fundação Ford, que financiou os dois programas, concluiu que era preciso investir na formação de pessoas, para que elas pudessem oferecer subsídios à formulação de políticas públicas, programas de saúde e de pesquisas que pensassem a nova realidade brasileira. Assim, durante 13 anos, um consórcio formado pelo Instituto de Saúde de São Paulo, ligado à Secretaria de Estado da Saúde, o Nepo, a Fiocruz, o Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro e o Instituto de Saúde Coletiva da Bahia inaugurou uma nova metodologia de formação de pesquisadores. Foi formatado um curso que realizava, durante três semanas, atividades intensivas, de forma alternada, em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Os alunos desenvolviam projetos de pesquisa, que depois passavam por uma avaliação. Aqueles que eram aprovados recebiam financiamento para o desenvolvimento do projeto, sob a supervisão de pesquisadores experientes. A capacitação incluía a etapa de divulgação desses resultados, o que culminou na publicação de dois livros e dois números especiais da Revista Cadernos de Saúde Pública. Foram formados por volta de 200 pesquisadores nesse período. Uma característica importante desse programa é que ele promoveu a integração disciplinar e temática entre saúde reprodutiva e sexualidade, temas que até então eram pensados de forma apartada. JU – A senhora trouxe para o Nepo um tema importante, dentro da questão da sexualidade e da saúde reprodutiva, que é a epidemia de Aids... Regina Barbosa – Exatamente. Em 1990, ficou claro que a epidemia de Aids não acometia somente aos então chamados grupos de risco. Ficou evidenciado que as mulheres não eram imunes à doença, pois estavam sendo atingidas de maneira muito rápida. Dessa forma, eu passei a desenvolver uma linha de pesquisa que tentava aproximar a sexualidade da prevenção das DSTs e da prevenção da gravidez. Do meu ponto de vista, não dava para pensar a questão dos direitos

JU – Por exemplo? Regina Barbosa – A primeira grande pesquisa nesse sentido esteve relacionada à busca de novas tecnologias justamente para a prevenção da gravidez e da Aids, como é o caso do preservativo feminino. O estudo abordou a questão da introdução da camisinha feminina nos serviços de saúde do Brasil. Foi uma pesquisa de ponta para a época. Trabalhamos em vários contextos urbanos, em centros como Porto Alegre, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia. Nós investigamos como o método estava sendo utilizado por mulheres em cada um desses contextos. O estudo concluiu, naquele momento, que a tecnologia se mostrava promissora e passível de ser utilizada pelas mulheres usuárias do SUS. JU – E como está o uso desse método nos dias atuais? Regina Barbosa – O método foi incorporado parcialmente, mas depois ocorreu uma descontinuidade no fornecimento da camisinha feminina pelo SUS. Recentemente, o Ministério da Saúde fez uma compra de 40 milhões de unidades. A ideia é que o método seja reintroduzido na rede básica. Como o preservativo feminino é mais caro, percebemos que são necessárias diretrizes mais claras sobre quais populações podem usufruir da melhor forma desse método. Hoje em dia, existe consenso de que ele seja reintroduzido nos serviços especializados em DST-Aids e nos serviços voltados às vítimas de violência sexual e que novas formas mais criativas sejam utilizadas para sua distribuição junto à população usuária do SUS. JU – Retornando à questão das pesquisas desenvolvidas na área de Sexualidade e Saúde Reprodutiva, como elas contribuíram para subsidiar a implantação de políticas públicas? Regina Barbosa – Como exemplo, um dos temas centrais na produção cientifica da área foi a investigação em torno da prevalência do uso de cesarianas em associação com a demanda por esterilização feminina, assim como a avalição das políticas públicas voltadas para a adolescência, no campo da saúde sexual e reprodutiva. As pesquisas em torno do uso distorcido de contraceptivos no Brasil contribuíram enormemente para que fossem implementadas políticas de saúde para as mulheres que garantissem a informação e o acesso a um amplo leque de métodos contraceptivos, assim como a promoção de políticas de redução da cesariana no país. Mais recentemente, a investigação que fizemos em torno da camisinha feminina é um belo exemplo de como uma pesquisa científica pode subsidiar políticas públicas. No momento em que o Ministério da Saúde está comprando 40 milhões de unidades do preservativo feminino, a Pasta, em parceria com o UNFPA [Fundo de População das Nações Unidas], novamente solicitou ao Nepo a produção de dados que pudessem orientar a retomada do programa de distribuição do método. Mas não é somente em relação a políticas públicas que os estudos se revestem de importância. A produção do conhecimento incide também sobre as ações da sociedade civil. Fizemos um estudo com apoio do CNPq sobre as práticas de saúde de mulheres que fazem sexo com mulheres. O trabalho resultou na produção de informações inéditas no Brasil, que por sua vez deu origem a um dossiê publicado pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Esse material se tornou base para uma série de reivindicações no plano da identidade sexual e da saúde das mulheres lésbicas. Leia a íntegra da entrevista em www.unicamp.br/unicamp/ju/525/o-saber-concebe-praxis


12 Jornal daUnicamp Campinas, 7 a 13 de maio de 2012

T E C N O D A D O S

CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

O geoprocessamento utiliza o mundialmente conhecido Sistema de Informação Geográfica (SIG), que constitui um ferramental de que pesquisadores e estudiosos se valem para analisar dados. Esse sistema evoluiu simultaneamente com o poder de processamento dos computadores. Antes desse avanço tecnológico, os dados referentes às populações de determinada região eram representados separadamente em mapas desenhados em papel transparente cuja superposição permitia leitura conjunta em uma mesa de luz. A informática possibilitou reunir, organizar e gerenciar essas informações, facilitando suas análises e a exportação ou a impressão de forma a disponibilizá-las para estudiosos. O pesquisador Alberto Augusto Eichman Jakob é responsável pela linha de geoprocessamento do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. Estatístico, com mestrado em engenharia agrícola e doutorado em demografia, ele tem particular experiência em distribuição espacial de população, geoprocessamento e estatísticas espaciais. Atualmente é membro do Conselho Técnico Científico e do Conselho Superior do Nepo e professor colaborador do Programa de PósGraduação em Demografia da Unicamp. O geoprocessamento perpassa todas as áreas de pesquisa do Nepo e por isso tem caráter transversal. Permite que uma ideia adquira consistência prática, auxilia na coleta de informações e contribui para a tradução dos seus significados. Esta circunstância leva o pesquisador a participar em geral de projetos conjuntos de diversas áreas temáticas do Núcleo. Atualmente, ele está trabalhando mais especificamente em um Projeto Universal do CNPq cujo tema é a “Migração internacional da fronteira norte do Brasil: mobilidade espacial, segregação e vulnerabilidade”. Iniciado no final de 2010, o estudo se encerra no final deste ano. Nesse projeto ele utilizará os dados do Censo de 2010, recém-divulgados pelo IBGE, o que lhe permitirá abarcar o período de 2000 a 2010. Anteriormente, ele se dedicara ao período 1995/2000, utilizando o Censo de 2000. Jakob explica que utiliza o geoprocessamento no estudo dos fluxos que chegam à região Norte: “Com base nas tabelas do IBGE, que mostram quantos migrantes chegaram à região, posso determinar para quais municípios eles se direcionam preferencialmente, caracterizando os perfis dos egressos dos diferentes países e o que os diferenciam em relação aos habitantes das regiões em que mais se concentram. Consigo prever inclusive o local preferencial de destino das várias origens. Caso haja interesse em detalhes mais específicos, por exemplo, sobre os colombianos, basta pegar o município onde eles se concentram e centrar o estudo nesse contingente. Consegue-se assim determinar os setores censitários [delimitação intramunicipal utilizada pelo IBGE] mais ocupados por esses migrantes, suas condições socioeconômicas, mais especificamente o que fazem, como moram, etc. O geoprocessamento permite tudo isso”. A maior contribuição do geoprocessamento nessa área é a de ter aberto a possibilidade de localização bem específica dos migrantes, ao nível de bairros e até de setores censitários (menores que os bairros). A localização dos setores com maior concentração de migrantes possibilita o estudo de segregação socioespacial e permite determinar as características desses setores e de suas populações e o que os diferencia dos demais no município. A migração na região Norte revelou-se mais curta em termos de deslocamentos e por isso predomina em torno das fronteiras dos países limítrofes. Com base nos grupos migratórios mais significativos que atingem a região – provenientes de Peru, Colômbia, Bolívia e Paraguai – o pesquisador determina as principais características socioeconômicas dos migrantes desses países, como renda, escolaridade, ocupação, entre outras. Comparando-as com as dos residentes e considerando o volume de migrantes, estabelece o possível impacto local. A análise permite dimensionar as consequências resultantes dessas migrações, possibilitando que as administrações municipais localizem problemas e adotem iniciativas que contribuam para a melhoria da qualidade de vida dos migrantes e do município. Para o pesquisador, se o espaço é importante nas análises, então o geoprocessamento é a ferramenta adequada. “Com sua utilização, por exemplo, é possível comparar os fluxos migratórios através de algumas variáveis e verificar que tipos de trabalho os migrantes procuram. Os dados do IBGE indicam a situação no momento do censo. O quadro comparativo se completa com a utilização dos censos dos países envolvidos e dados coletados por outros centros de estudos”.

MIGRAÇÃO AMAZÔNICA

Em trabalho apresentado no VII Encontro Nacional sobre Migrações, realizado em Curitiba em outubro de 2011, Alberto Jakob faz um resumo dos estudos que já desenvolveu sobre “A migração internacional na Amazônia brasileira”. O trabalho deu ênfase aos migrantes provenientes de países que fazem fronteira com a Amazônia, como Peru, Bolívia, Colômbia e ainda o Paraguai, que, embora não fronteiriço, encontra-se muito próximo. Ao analisar esses migrantes, o autor compara idade, nível de escolaridade e de renda, sexo e ocupação no destino, assim como o período em que chegaram ao país. Mostra também a suas localizações, distinguindo os residentes em municípios ao longo da fronteira, em grandes cidades e capitais de estado. Para o estudo, que abarca o período de 1995/2000, utilizou dados do Censo Demográfico de 2000 atualizados pela Contagem Populacional de 2007. Mesmo considerando a proximidade do censo de 2010, o autor justifica a discussão mais detalhada dos dados referentes à migração internacional na Amazônia Legal brasileira – constituída fundamentalmente pelos estados da região Norte, Mato Grosso e Maranhão – por considerar pouco estudados os dados desse período e local. Com base nesse trabalho, o pesquisador identifica três situações distintas em termos de entrada dos imigrantes internacionais nos estados que compõem a Amazônia Legal brasileira. A primeira acontece nas áreas de fronteira internacional, em que a circulação de pessoas é regulada por um conjunto de regras específicas. É o caso principalmente de bolivianos e, em menor escala, de peruanos e colombianos. A segunda caracterizase pela busca de centros urbanos maiores, como as capitais estaduais e alguns polos regionais. É o que acontece, mais pronunciadamente, com peruanos e colombianos. A terceira envolve a busca por áreas de ocupação de territórios fronteiriços, que existia ainda na década de 1990. Neste grupo, encaixam-se principalmente os paraguaios. Em relação aos aspectos socioeconômicos, ele destaca os peruanos, cujos chefes de família têm renda média mensal superior a 20 salários mínimos (25%), e entre os quais aparece importante concentração de ocupação por “conta própria”. Entretanto, em termos de ocupação, a maior parte dos chefes imigrantes dos quatro grupos de nacionalidade estudadas encontrava-se na situação de “emprego sem carteira de trabalho assinada”, o que configura uma inserção precária no mercado de trabalho. Jakob entende que a melhoria das condições de comunicação e transportes com os países vizinhos pode vir a ser determinante no aumento da mobilidade populacional com os países próximos, processo que se vaticina com desdobramentos significativos para a região.

NOVO PROJETO

Durante essas pesquisas, Jakob se deu conta da escassez de trabalhos relacionados à migração na Região Norte do País, particularmente em relação aos últimos anos. Embora estudos mais recentes apontem queda na imigração estrangeira no Brasil até o ano 2000, dados posteriores parecem indicar mudanças nesta situação. Neste contexto, ganha importância a migração recente dos países fronteiriços à região Norte. Um estudo da mobilidade populacional nas áreas de fronteira permite conhecer mais detalhadamente esse processo migratório que vem ganhando força mais recentemente. Com base em análises realizadas sobre regiões de estudo previamente selecionadas podem-se inferir os padrões de comportamento dos migrantes e brasileiros e também as características dos locais de que saem e em que chegam. O pesquisador considera essa análise fundamental para subsidiar políticas públicas específicas que atendam às necessidades destes migrantes e permitam criar condições que facilitem sua inte-

gração na sociedade brasileira. Estas constatações o levaram a trabalhar desde o final de 2010 em um projeto Universal do CNPq, com o intuito de fechar um levantamento da situação entre 2000 e 2010. O projeto em questão tem como objetivo o estudo da mobilidade espacial recente da população na fronteira norte do País, seja através das migrações internas ou internacionais, seja através da mobilidade populacional diária, assim considerados os deslocamentos realizados através das fronteiras por necessidade de trabalho. Nesses casos, os deslocamentos são realizados pelos trabalhadores principalmente por meio de ônibus ou táxis-lotações que vão de determinadas cidades ou até mesmo de capitais estaduais como Boa Vista (Roraima) à Venezuela e até para a Guiana. O estudo envolve ainda a definição do perfil socioeconômico dos migrantes em todos esses tipos de deslocamentos e as condições e qualidades de vida atuais. O que chamou particularmente a atenção do pesquisador é a vinda dos haitianos. Os dados de 2009 mostram que eram até então pouquíssimos. Daí para o frente, o crescimento desse fluxo se mostrou exponencial, gerando problemas para os migrantes e para as cidades que os recebem. O estudo, conclui Alberto Jakob, persegue o entendimento maior sobre as pessoas que estão chegando à região Norte, o delineamento de algumas de suas características socioeconômicas principais e a determinação do tipo de impacto que podem produzir nos municípios de destino. Teoricamente, a pesquisa pode criar demandas para projetos sobre questões específicas. Na prática, a expectativa é a de que forneça subsídios para orientar, ajudar e incentivar a implementação de políticas públicas nos municípios brasileiros envolvidos.

Foto: Antoninho Perri

O pesquisador Alberto Augusto Eichman Jakob: geoprocessamento organiza, detalha e traduz informações oriundas de censos demográficos


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