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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014 - ANO XXVIII - Nº 592 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
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CORREIOS
FECHAMENTO AUTORIZADO PODE SER ABERTO PELA ECT Ilustração: Lygia Eluf
REFLEXOS DO GOLPE DOR MEMÓRIA DESMANCHE
Armando Boito * Dermeval Saviani * Eduardo Fagnani * José Alves de Freitas Neto * Lygia Eluf * Marcelo Ridenti * Márcio Seligmann-Silva * Margareth Rago * Maria Lygia Quartim de Moraes * Nelson Aguilar * Ricardo Antunes * Silvana Rubino
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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
COMISSÃO DA VERDADE
Passado a limpo
Fotos: Siarq/Unicamp
CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
om a pedra fundamental de seu campus lançada pelo primeiro presidente da ditadura, marechal Humberto Castelo Branco, e tendo como primeiro reitor Zeferino Vaz, ex-interventor do regime militar da Universidade de Brasília (UnB), a Unicamp tem uma “situação peculiar” entre as universidades públicas brasileiras, disse ao Jornal da Unicamp a presidente da Comissão da Verdade instalada pela Universidade, professora Maria Lygia Quartim de Moraes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). “Por um lado, houve sim perseguições e a interferência dos órgãos de repressão no campus, e é verdade que o Zeferino era um homem comprometido com a ditadura. Aliás, dificilmente uma universidade pública no Brasil poderia ter um reitor que não fosse do gosto dos militares”, disse ela. “Mas, ao mesmo tempo, a Unicamp foi uma universidade de acolhimento de perseguidos políticos”. A Comissão da Verdade e Memória “Octavio Ianni” foi instalada em outubro do ano passado, e tem um programa de trabalho que prevê pesquisas em arquivos, bibliotecas, troca de informações com outras comissões de verdade e tomada de depoimentos. “A comissão tem a vantagem de contar com professores que são uma espécie de memória viva da Unicamp”, disse Maria Lygia. “O professor Wilson Cano (IE) e o professor Yaro Burian Júnior (FEEC) têm sido não só fonte de informações do passado, como mantiveram contato com algumas pessoas atingidas. A professora Ângela Maria Carneiro (IFCH) estudou na Unicamp e é testemunha, por exemplo, da invasão de 1981”. Naquele ano, quando Paulo Maluf era governador de São Paulo, a Unicamp sofreu intervenção – oito professores foram exonerados de cargos de direção e 14 funcionários, demitidos, por meio de portaria assinada pelo então reitor Plínio Alves de Moraes. A ação provocou uma forte reação não só na comunidade acadêmica, mas também entre a população de Campinas e na imprensa nacional. Assembleias estudantis tomaram conta da Universidade e uma passeata de três mil pessoas foi às ruas centrais da cidade.Pressionados, os interventores acabaram renunciando aos cargos e a maior parte dos diretores originais foi reintegrada, por meio de liminares judiciais. O educador Paulo Freire foi escolhido reitor na consulta à comunidade, mas a eleição oficial recaiu sobre José Aristodemo Pinotti, nome acolhido pelo governador Maluf. Pinotti tomou posse, em abril de 1982, sob vaias dos estudantes, e uma semana depois tornou oficialmente sem efeito o ato original de Moraes que iniciara a intervenção. Também membro da comissão, a doutoranda em sociologia Danielle Tega (IFCH) coordena os trabalhos de pesquisa em arquivos e entrevistas, com o apoio de estagiários. O conteúdo pesquisado abarca os nomes de alunos e professores da Unicamp que foram atingidos pela repressão, tanto no histórico congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de Ibiúna, de 1968, onde cerca de mil estudantes foram presos, como também na década de 70; tenta reconstituir as redes de relações formadas no contexto da Unicamp do período, tanto em partidos como em entidades estudantis; e busca refazer a história dos estudantes expulsos do ITA que vieram parar na Unicamp, em 1976. Em seu livro O Mandarim, em que narra a história das primeiras décadas da universidade, o jornalista Eustáquio Gomes escreve: “Numa tarde de setembro de 1976, dois agentes do Dops entraram no campus com mandado de prisão contra os alunos Clóvis Goldemberg, Marcelo Moreira Ganzarolli, Osvair Vidal Trevisan, Sérgio Salazar e Waldir Luiz Ribeiro Gallo (...) Os cinco estudantes tinham sido expulsos do ITA um ano antes por encabeçarem um movimento contra o processo de militarização da escola. Na época foram presos, torturados e depois soltos, mas nos três anos seguintes tiveram de responder a um tortuoso inquérito policial militar. Após a expulsão, todas as escolas de engenharia procuradas por eles rejeitaram seus pedidos de transferência, exceto a Unicamp”. O livro de Eustáquio é uma das fontes utilizadas pela Comissão. “Quando falamos a verdade e da memória também estamos falando de um processo de produção de uma outra história que ficou reprimida pela ‘verdade oficial’ dos vencedores”, explica a presidente da Comissão da Verdade. “Um dos mais importantes objetivos da Comissão é o da transmissão dessa história, de seus personagens e dos ideais pelos quais lutaram. E das circunstâncias que levaram tantos jovens a pegarem em armas para
Manifestação contra a intervenção na Unicamp, em 1981, no Ciclo Básico: medida gerou onda de protestos na Universidade
JUVENTUDE
Castelo Branco assina ata na cerimônia de lançamento da pedra fundamental da Unicamp, em 1996: Zeferino Vaz (à direita do presidente), mesmo próximo dos militares, acolhia perseguidos políticos
resistir à ditadura”. As principais vítimas da ditadura na Universidade parecem ter sido professores e estudantes, disse Maria Lygia, reconhecendo que faltam dados sobre a repressão sentida pelos funcionários. “Esse é um tema que não podemos deixar de pesquisar”, reconhece. “Nossa preocupação é uma ‘produção da verdade’ que comporta vários pontos de vistas e, principalmente, que nos permita entender melhor os mecanismos ocultos da repressão política militar e seus agentes, civis e militares”, disse ela. “Nesse sentido, nossa Comissão fez um convênio com a Comissão da Verdade Rubens Paiva da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e participamos de um grande coletivo de comissões universitárias de todo o país, o que tem permitido o compartilhamento de informações importantíssimas”. Um dado surgido desse compartilhamento, destacado por Maria Lygia, é o da estrutura de funcionamento do SNI – o serviço de espionagem do governo federal durante o regime militar – e de seus órgãos subordinados. “Eu não tinha ideia da capilaridade do sistema de informações, que era também um órgão de coerção e obtenção de dados”, disse ela. “Outra consequência importante desse coletivo de comissões é que fechamos uma pauta em comum, evitando marcar eventos na mesma época e prestigiando os eventos de todos. Nessa pauta comum,
um momento importante será o Tribunal Tiradentes, que foi organizado pela PUC-SP”. Realizado em 18 de março, no Teatro da Universidade Católica (TUCA), o tribunal, uma iniciativa da Comissão da Verdade da PUC de São Paulo, fez o julgamento da Lei de Anistia de 1979, que vem sendo invocada para garantir a impunidade de agentes da repressão. Maria Lygia descreve da seguinte forma a ação da repressão dentro da Universidade, no regime militar: “A ditadura usava tanto das vias institucionais como do terrorismo de Estado. O objetivo era semear medo e comprovar o poder do aparato repressivo. A ditadura tinha seu sistema de informações em todas as instituições públicas, especialmente aquelas que reuniam os subversivos potenciais. E os estudantes eram os primeiros da lista”. O processo era semelhante em outras áreas da sociedade: “A Comissão Nacional está levantando os detalhes das trocas de informações entre a Fiesp e o Dops, sobre os potenciais inimigos do regime entre os trabalhadores. Muita gente perdeu o emprego por conta disso”. A pesquisadora reconhece que ainda há sobras da ditadura – “entulho autoritário” – nas normas internas da Unicamp. “O levantamento do entulho já começou bem antes dos trabalhos da Comissão, e está sendo realizado pela atual administração”.
“O interessante é que a juventude de hoje – essa que tem a idade que minha geração tinha por ocasião do golpe – revela-se muito interessada nesse passado e com maior empatia com os resistentes de ontem”, disse Maria Lygia. “Uma prova disso nós tivemos no processo de seleção para estagiários. A possibilidade de contratarmos quatro alunos como estagiários por tempo parcial concretizou-se no final do ano, e divulgamos pela Universidade a existência de um processo de seleção. Achei que em um dia entrevistaria os 10 ou 15 que apareceram e aí, para nosso completo espanto, a inscrição chegou a 130”. O passo seguinte, explicou a professora, foi reunir todos os candidatos num anfiteatro e explicando o porque da Comissão e das pesquisas que seriam feitas, especialmente no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da própria Unicamp. Estabelecido em 1974, a partir do acervo pessoal do pensador anarquista Edgard Leuenroth, o arquivo preserva documentos sobre a história do trabalho e da industrialização, do movimento operário, da esquerda, dos partidos políticos, da cultura e dos intelectuais, da questão agrária, dos direitos humanos, da imprensa, da opinião pública, dos movimentos sociais e da repressão política sob a ditadura militar. “Foi bom ver como muitos desses jovens estavam interessados pelo tema e se propuseram a ajudar mesmo que sem bolsa. Assim, fomos reunindo um grupo de alunos e estagiários. E a Unicamp conta com o AEL, onde estão guardados arquivos fundamentais. Aí já começava o processo de transmissão e de compromisso dos alunos, de maneira que o golpe seja chamado de golpe e não de ‘revolução’; que o Estado assuma que foi terrorista nos anos da ditadura; e o significado e consequências de uma ditadura que realizou o que chamamos de modernização conservadora”. Foto: Antoninho Perri
A professora Maria Lygia Quartim de Moraes, presidente da Comissão da Verdade: “A ditadura tinha seu sistema de informações em todas as instituições públicas”
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador-Geral Alvaro Penteado Crósta Pró-reitora de Desenvolvimento Universitário Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários João Frederico da Costa Azevedo Meyer Pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore Pró-reitora de Pós-Graduação Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano Pró-reitor de Graduação Luís Alberto Magna Chefe de Gabinete Paulo Cesar Montagner
Especial GOLPE 50 ANOS
Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Correspondência e sugestões Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Site http://www.unicamp.br/ju e-mail leitorju@reitoria.unicamp.br. Twitter http://twitter.com/jornaldaunicamp Coordenação e edição Álvaro Kassab Edição de arte Luis Paulo Silva Textos Carlos Orsi, Luis Sugimoto, Manuel Alves Filho Chefia de reportagem Raquel do Carmo Santos Fotos Antoninho Perri, Antonio Scarpinetti Ilustração da capa Lygia Eluf (docente do Instituto de Artes da Unicamp) Pesquisa Maria Cristina Pinke de Souza, Maria Dutra de Lima, Marilza Aparecida da Silva (Arquivo Edgard Leuenroth-AEL-Unicamp), Antonio Scarpinetti Editoração André da Silva Vieira, Luis Paulo Silva Agradecimento Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp) Impressão Triunfal Gráfica e Editora: (018) 3322-5775 Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju
CONJUNTURA
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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
Desigualdade predatória Foto: Antonio Scarpinetti
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Fundo Voz da Unidade
LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br
O maior pecado do regime militar foi interromper o processo de construção de um país mais civilizado. Nós nos transformamos numa sociedade de massas sem passar pelos estágios prévios da educação – educação entendida aqui em seu sentido amplo”, opina o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “O Brasil vivia seus primeiros vinte anos de democracia e havia um clima favorável para o desenvolvimento das forças políticas comprometidas com a construção da nação. O país estava se industrializando e lidando com as reformas de base: agrária, tributária e educacional, entre outras. Era a primeira vez que se tinha uma perspectiva de desenvolvimento com equidade, sob o espírito do nacionalismo. Este processo foi interrompido com o golpe”, reafirma. Eduardo Fagnani, que é também pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), recorda que houve um crescimento econômico nos anos 60 e 70 por conta de uma conjuntura econômica internacional favorável, mas que trouxe uma concentração de renda enorme e de natureza política. “Uma medida imediatamente posterior ao golpe foi a intervenção nos sindicatos, eliminando qualquer possibilidade de pressão popular e deixando claro que nesse campo não haveria negociações. Esta repressão se intensificou a partir do AI-5 em 68. Impôs-se o chamado arrocho salarial, em que o governo aumentava os salários sempre abaixo da inflação, ano após ano, e a consequência desta redução sistemática do poder de compra dos trabalhadores foi a elevada concentração de renda. No final do regime militar, o Brasil era o terceiro país mais desigual do mundo”. Do ponto de vista econômico, o economista aponta o encilhamento financeiro, a elevada dívida interna e externa (que chegou a mais de US$ 120 bilhões em 1984) e a ameaça de hiperinflação como alguns dos legados da ditadura que causaram transtornos de toda ordem por mais de duas décadas. “A vulnerabilidade do balanço de pagamentos, que culminou com o colapso cambial em 1982, levou o país ao Fundo Monetário Internacional, que impôs um ajuste ortodoxo e recessivo. A crise dos anos 80 combinou desaceleração da taxa de investimento, estagnação, vulnerabilidade externa, crise fiscal e aumento das pressões inflacionárias. O Estado Nacional Desenvolvimentista – que cumpriu tarefas cruciais frente à industrialização ocorrida desde os anos de 1930 – esgotou-se nesta quadra. Colocado no epicentro da crise, o Estado perdeu o comando da política macroeconômica e da iniciativa do crescimento.” O pesquisador do Cesit acrescenta que o país, que deveria capturar recursos externos para financiar seu desenvolvimento, teve que remeter dinheiro para fora por mais de uma década. Assim, a infraestrutura econômica e social deixou de receber investimentos e entrou em colapso, abrindo espaços para as privatizações – um dos núcleos da agenda liberal que passou a ser dominante nos anos 90. “As reformas feitas pelo regime militar preservaram o status quo social, pois não havendo um ambiente democrático para discutir tais medidas, acabou-se arbitrando em favor do capital. Um exemplo concreto é a reforma tributária promovida em 64 e 67, que em última instância isenta o capital de pagar impostos. Ao invés de tributar diretamente sobre o lucro, a renda e o patrimônio, tributa-se sobre o consumo, ou seja: quem passou a pagar mais impostos foram os mais pobres, estrutura que em linhas gerais vigora até hoje.” Quanto à reforma agrária, um dos temas centrais do movimento social nos anos 50 e início dos 60, foi simplesmente interditada, o que na visão de Fagnani está na raiz da migração extraordinária do campo para a cidade. “Para que se tenha uma ideia, em 1950, 70% da população
Camponeses caminham em fazenda na Paraíba, no início da década de 80: questão agrária foi interditada pelos militares O professor Eduardo Fagnani: “O maior pecado do regime foi interromper o processo de construção de um país”
brasileira estavam no campo e 30% nas cidades; em 1980, eram 70% nas cidades e 30% no campo. O país fez esta transição demográfica em 30 anos, quando nos países desenvolvidos ela levou 100 anos. E por que foi tão mais lento nestes países? Porque todos eles promoveram a reforma agrária como forma de conter as pessoas na zona rural.” Esta migração em massa, como observa o professor do IE, deu origem a metrópoles desorganizadas – e posteriormente às regiões metropolitanas, com suas periferias e o caos urbano atual. “Houve um crescimento acentuado das cidades em curtíssimo espaço de tempo, e sem que o Estado tivesse capacidade ou se prestasse a investir na infraestrutura urbana. Não vimos, por exemplo, uma política de saneamento básico; a política habitacional beneficiou somente as camadas de renda alta, visto que o governo militar passou a financiar a indústria da construção civil sem nunca se interessar em construir casas para pobres; tivemos uma política de transporte público, é verdade, mas devido aos quebra-quebras de trens por parte da população em 1974.” Ainda em meados dos 70, o pesquisador focaliza mais uma questão que considera gravíssima: a desnutrição da população, com boa parte das crianças fora do peso adequado. “Tínhamos uma saúde privatizada, que privilegiava os setores empresariais e só atendia a quem estava no mercado de trabalho, enquanto pessoas morriam de doenças evitáveis com vacinas. A política educacional, por sua vez, levou a uma expansão quantitativa do ensino, mas sem qualidade: mais da metade das crianças repetia o primeiro ano do primeiro grau, repetência que contribuía para o abandono da escola e suas intercorrências. Combinando tudo isso com a interdição da reforma agrária, deu no que deu: na concentração de renda, caráter mais excludente das políticas adotadas no período.”
Foto: Reprodução / Arquivo
Na opinião de Eduardo Fagnani, não há dúvida de que o golpe militar representou um atraso irreparável para o Brasil, que iniciava um projeto de desenvolvimento identificado com a questão nacional, a necessidade de redução das desigualdades sociais, melhor distribuição de renda, implantação da reforma agrária e garantia dos direitos cidadãos. “Tudo isso foi interrompido e ficamos andando para trás por duas décadas. Se aquela agenda fosse seguida, teríamos uma nação muito melhor e uma sociedade mais civilizada. O que se fez foi condenar quatro gerações à ignorância – e ignorância não só em termos de educação, mas incluindo envolvimento político. O maior pecado do regime foi interromper o processo de construção de um país.”
Promulgação da Constituição em outubro de 1988: acerto de contas com a ditadura
ACERTO DE CONTAS O professor da Unicamp vê a Constituição de 1988 como fruto de um movimento que pretendeu acertar as contas com a ditadura militar, depois de ter percorrido um difícil caminho. “As bandeiras tremulavam em torno de todas as medidas que dessem uma resposta ao que ficou reprimido durante 20 anos: reforma agrária, direito de greve, direitos trabalhistas, redução da jornada de trabalho, seguro para o grave desemprego no final do regime. E ainda: educação universal, gratuita e laica, bem como um sistema de saúde público e igualmente universal, que não fosse privado, para poucas pessoas.” Fagnani lamenta, entretanto, que a mobilização das forças políticas contra a ditadura tenha resultado em uma transição democrática através de um pacto conservador. “A não aprovação da emenda das diretas em 83 selou uma derrota destas forças políticas, visto que seria necessário fazer uma eleição conforme as regras dos militares. Houve então o pacto entre o PMDB e uma dissidência do PDS, formando-se a Frente Liberal, em que a morte de Tancredo Neves representou somente um fato adicional, pois quem governaria o Brasil e se tornaria personagem da transição seria José Sarney, ex-presidente da Arena.” Se o governo Sarney seria contemporizador num primeiro momento, o pesquisador recorda que no meio do mandato, a partir das eleições de 87, remontou-se a tradicional composição de forças que apoiou a ditadura. “Nossa transição, portanto, foi um pacto conservador, que trouxe limites aos anseios por mudanças. Em seguida, nos anos 90, aderimos ao neoliberalismo, com uma agenda que novamente se opunha à Constituição de 88, tanto do ponto vista econômico quanto social. E mergulhamos num longo processo para se tentar enterrar os princípios pelos quais a sociedade lutou nos 70 e nos 80.” Sobre o governo do Partido dos Trabalhadores, Fagnani recorda a difícil travessia nos três primeiros anos de Lula, visto que na atual etapa da concorrência capitalista, no contexto da globalização, buscar mudanças em favor do desenvolvimento nacional tem sido complicado devido à correlação de forças desfavorável. “Especialmente no ano de 2002, período eleitoral, viu-se uma tentativa de chantagem do mercado internacional pela continuidade da ordem econômica estabelecida nos 90. Uma tentativa de inflexão na política econômica viria a partir de 2006, no sentido de retomar o crescimento, frente à agenda que durante 25 anos pregou o ajuste fiscal, os cortes nos investimentos, a reforma do Estado, a privatização. Mesmo dentro destas limitações mais gerais, a recuperação do crescimento foi de alguma forma possível, o que explica o progresso social recente no Brasil, com melhor distribuição de renda e outros indicadores afins. Ainda é muito pouco diante do nosso passado e os desafios futuros são enormes, mas o que se fez foi importante.”
VOLTA A CELSO FURTADO Ao comentar as perspectivas para o país, Eduardo Fagnani considera que uma série de reformas de base colocadas por Celso Furtado, na década de 60, ainda são atuais e importantes. “A despeito dos avanços no período recente, a grande marca da sociedade brasileira ainda é a desigualdade social, que é percebida de várias formas, sendo a mais evidente a desigualdade de renda. Se o Brasil era o terceiro país mais desigual na época da ditadura e na década de 90, hoje avançou para 15º, mas continua com sérias dificuldades.” O professor aponta como uma das heranças do regime militar a desigualdade no mercado de trabalho, com informalidade e rotatividade elevadas e empregados concentrados nos setores de baixo valor agregado, como de serviços e de construção civil. “Temos também a desigualdade fiscal, com uma estrutura de impostos extremamente injusta e que em grande medida ainda repousa nas reformas de 64 e 67. E, ainda, profundas desigualdades no acesso a serviços públicos: saúde, educação, saneamento, habitação, transporte público. Os desafios que se colocam são estes.” Fagnani acredita que a desigualdade social é o pano de fundo das atuais manifestações de rua que estamos vivenciando e aconselha aos partidos políticos que, em ano eleitoral, se esforcem para interpretar estas vozes. “Em minha opinião, a sociedade brasileira deve retomar os debates sobre as reformas de base ocorridos em 62 e 63, enfrentando de fato o nosso subdesenvolvimento. Guardadas as proporções, após 50 anos, esse debate ainda é atual. Mas o que temos visto é que as pressões do mercado são predominantes – pressões que vão em direção oposta ao combate à desigualdade social, uma herança do passado brasileiro como um todo e especialmente do período da ditadura, quando se deu esta urbanização desorganizada e predatória.”
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MEMÓRIA
Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
A vocação
para a amnésia Foto: Divulgação
CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
Brasil vive uma “cultura de amnésia” em relação aos crimes da ditadura civil-militar que governou o país de 1964 a 1985, o que põe os brasileiros numa situação excepcional em relação aos demais países da América Latina que passaram por regimes autoritários no mesmo período, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador Márcio Seligmann-Silva, docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade. “O Brasil, na paisagem da memória pósditadura na América Latina, é um país sui-generis”. “Se você entra em qualquer país do Cone Sul, mesmo no Peru, até em países da América Central que tiveram ditadura, vê-se uma preocupação social muito grande com esse período. Existe uma grande literatura de cunho ficcional, de cunho testemunhal, e há também muitos trabalhos de sociologia, reflexões filosóficas, ensaísticas. Qualquer livraria de Buenos Aires tem uma seção grande sobre ditadura, por exemplo. Uma coisa impensável aqui no Brasil”, declarou Seligmann, cuja pesquisa lida com a questão da memória social de períodos políticos marcados por falta de liberdade e violência, explorando a literatura de cunho testemunhal, a produção artística e a construção de memoriais voltados para essas épocas. No Brasil existe uma produção significativa de testemunhos, romances e filmes sobre o período ditatorial, explicou o pesquisador, mas esses trabalhos não ganham repercussão na sociedade. “Os filmes são feitos, os romances e testemunhos são publicados, normalmente por pequenas editoras, e não emplacam, porque o que predomina na mídia é esse discurso de vamos virar a página”, disse ele. “Mas é uma página que nem foi escrita, na verdade. Uma página, basicamente, em branco”. Essa excepcionalidade brasileira, acredita Seligmann, explica-se, em parte, pela forma como foi feita a transição para democracia no país. “A gente sabe que aconteceu uma transição que foi controlada pelos militares e pelos políticos ligados à ditadura”, disse ele. “Tanto que o nosso primeiro presidente civil era o [atual senador José] Sarney, que havia sido presidente do partido que dava sustentação à ditadura, o Sarney que até hoje tem uma importância fundamental no nosso jogo político, com o apoio do PT. E o [atual deputado federal Paulo] Maluf também, é figura intocável: houve até aquela cena do Lula indo pedir a bênção dele para a candidatura do [atual prefeito de São Paulo Fernando] Haddad, uma coisa que correu mundo”.
VIOLÊNCIA SOCIAL Além da particularidade histórica da transição e da conveniência política do momento atual – “nem mesmo com a Dilma, que foi vítima, torturada, presa, o governo enfrenta essa questão de direitos humanos, porque depende desses políticos” – Seligmann aponta uma tendência da sociedade brasileira de ignorar a violência em sua história. “A gente não tem, na sociedade, uma vontade de elaborar esse passado”, aponta ele. “A sociedade não está nem aí. Como não está nem aí com o que aconteceu com os escravos durante os séculos de governo colonial e no Império, não quer saber o que aconteceu com os nossos operários, com os nossos imigrantes nordestinos. A gente tem uma tradição de não elaborar a violência social em nosso país”. Fotos: Antonio Scarpinetti
O pesquisador Márcio Seligmann-Silva: “O que predomina na mídia é esse discurso de vamos virar a página”
Cena de “O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias”, dirigido por Cao Hamburguer: para Seligmann, cultura da memória ainda precisa ser criada no país
Seligmann lembra, ainda, que “a tortura ainda é uma coisa que se repete no Brasil todos os dias”. “Porque existe uma impunidade, respaldada pelos nossos políticos e pela nossa sociedade de um modo geral. E essa cultura, agora, do linchamento”, lembra. O pesquisador aponta que existe uma violência social muito grande no Brasil, que também é cultural e simbólica. “Ela se reproduz nos nossos jornais, tanto em papel quanto na televisão, onde não existe um espaço realmente para se recordar a nossa história de violência”. Ele diz que uma das consequências dessa opção pelo esquecimento é a “privatização da luta pela justiça, pela memória e pela verdade no Brasil”. De acordo com Seligmann, a luta é privatizada porque, em vez de se constituir numa política de Estado, fica a cargo dos parentes das vítimas. “São os familiares que conseguiram pôr nome nas ruas, são os familiares que conseguiram aprovar algumas leis que têm a ver com essa questão da memória”, explica ele. Trata-se, ainda, de uma luta que desperta reações negativas: “Quando esses parentes começam a falar muito, começam a aparecer, vem o discurso: ‘Você é ressentido, você está preso ao passado...’ Não se dá o passo de se incorporar essa luta como parte do movimento de direitos humanos, que deveria fazer parte de nossa sociedade como um todo. Isso fica relegado aos sobreviventes e familiares”. “O capítulo da ditadura civil-militar é mais um capítulo de uma história de violência que não é recordada”, disse ele. “A Comissão da Verdade que foi criada agora, e que está fazendo um trabalho muito importante, surgiu por conta de uma pressão internacional. O Brasil quer fazer parte do Conselho de Segurança da ONU, quer ter uma voz política internacional. Então não pode ser o único país que teve uma ditadura terrível e não criou uma Comissão da Verdade, que não levou a cabo julgamentos, o que realmente não está sendo feito e não sei se algum dia será feito. Existe na verdade uma tendência ao esquecimento.”
“É interessante que temos muitos jornalistas que vão escrever romances, há essa necessidade de passar do registro do jornalismo para o registro do romance, na tentativa de simbolizar esse passado”, pondera Seligmann. “É um romance que conta a história de Soledad Barrett, que foi uma guerrilheira paraguaia que acabou se exilando no Brasil, atuou na luta contra a ditadura e acabou presa e assassinada. E ele conta essa história a partir do romance”. O pesquisador nota que o livro de Mota “é um romance que se desmonta como romance”. “No meio, ele se transforma numa espécie de relato jornalístico. Começa a citar notícias da época, citar documentos oficiais para comprovar esse fato bárbaro que foi o massacre que aconteceu em Recife em 1973, quando Soledad foi assassinada. O romance vira realmente reportagem. E eu acho que esse sucumbir do gênero romance mostra a incapacidade da nossa sociedade, é algo simbólico, alegórico da nossa incapacidade de elaborar, também pelos romances, pela literatura, esse passado. A gente acaba tendo que se apegar ao documento. Tem que
provar, como se tivesse que comprovar mais uma vez. Parece que a nossa sociedade não está convencida de que aquilo tudo aconteceu”. “Essa é uma característica da literatura que tenta elaborar questões muito violentas”, afirma ele. “Quando há quase um tabu dessa memória, como no Brasil, é como se o autor se visse solicitado todo o tempo a provar que é verdade. E o discurso da verdade, a chave da verdade, na nossa sociedade ainda passa mais pelo jornalismo que pela literatura. A gente tende a acreditar mais no jornal do que no romance”. O pesquisador também elogia o romance “K”, do também jornalista Bernardo Kucinski, que perdeu uma irmã, Ana, durante a repressão. “O livro ‘K’ também é muito interessante, do ponto de vista da elaboração do passado da ditadura brasileira. Talvez seja um dos livros mais sofisticados que a gente tem. Ele se coloca no lugar do pai, em busca da filha desaparecida. O pai era um professor de iídiche, um poeta, imigrante judeu da Polônia, que nem sabia que a filha dele estava envolvida politicamente”. A obra também trata da memória do pai, que havia lutado contra uma ditadura na Polônia, na década de 30. “Talvez seja um livro sofisticado demais, também, para o público brasileiro”.
CINEMA E MEMORIAIS No Brasil, diz o pesquisador, já foram realizados cerca de 30 filmes sobre a ditadura. “Mas, novamente: são filmes que são vistos por poucos, não são filmes que se transformam em filmes importantes nacionalmente. O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, do Cao Hamburguer, por exemplo, é um filme muito bonito, muito bem feito, mas que não entra no caldo de cultura da memória que falta ainda ser criado no Brasil”. Seilgmann cita ainda a questão dos nomes de ruas e os monumentos erigidos em memória dos anos da ditadura. “Temos pouquíssimos memoriais. É interessante que os memoriais no Brasil, voltados para as classes subalternas, estão esquecidos, depredados ou em periferias de pouca visibilidade. Bernardo Kucinski até faz uma ironia quanto a isso, já que a irmã dele tem uma rua que a homenageia, mas é num fim do mundo, ninguém vai lá”. “O maior monumento que há no Brasil em homenagem a algum personagem do período da ditadura é ao Castelo Branco, lá em Fortaleza, um monumento enorme, de uma quadra”, diz o pesquisador. “Então, os estrangeiros vêm ao Brasil e se espantam: ‘Nossa, vocês homenageiam seus ditadores. Que coisa mais doida!’ ” Foto: Reprodução
O jornalista e escritor Antonio Callado, autor de “Quarup”, um dos grandes romances sobre a ditadura
LITERATURA Seligmann lembra que existiram, ainda durante a ditadura, escritores e artistas que faziam uma arte “extremamente engajada”. “O Antonio Callado, grande jornalista e grande romancista, mantém em seus últimos romances um diálogo com a ditadura, e são também uma denúncia do que estava acontecendo. Paulo Francis, jornalista e escritor, também escreveu, nos anos 70, nessa linha de romance que é testemunho e denúncia. E tem livros mais sofisticados, como o do Renato Tapajós, cineasta que escreveu um livro publicado em 1977 que se chama Em Câmera Lenta, um dos romances mais interessantes sobre a ditadura escritos durante a ditadura. Ele escreveu na prisão”. “Agora, é um romance não tem repercussão nenhuma, só especialista o conhece”, aponta o pesquisador. “É um excelente romance. Conta essa história dos guerrilheiros encurralados na cidade que não podiam mais sair de casa porque seriam assassinados, depois da ação de raptar o embaixador americano”. Da produção mais recente, ele destaca Soledad no Recife, lançado em 2009, de Uraniano Mota, jornalista.
O cineasta Renato Tapajós, que escreveu na prisão o romance “Em Câmera Lenta”, obra publicada em 1977
EDUCAÇÃO
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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
Na cartilha
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Coleção Brasil Nunca Mais
do mercado
Manifestantes são fotografados e identificados por agentes da repressão em protesto ocorrido em 1968, em São Paulo, contra os acordos MEC-Usaid
CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
regime implantado pelo golpe civil-militar de1964 produziu uma democratização do acesso à educação no Brasil, mas dentro de uma lógica de vinculação da educação pública aos interesses do mercado e de estímulo e favorecimento à privatização do ensino, afirma o pesquisador Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e coordenador-geral do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Essa opção da ditadura acabou gerando uma situação na qual os professores da rede pública de educação básica são formados, majoritariamente, em instituições superiores de qualidade duvidosa, o que agrava o processo de desqualificação da escola pública, disse. “Antes do advento da ditadura civil-militar, a oferta de ensino superior era maciçamente pública. Hoje 75% das vagas são preenchidas pelas instituições privadas, na sua maioria de caráter não universitário e de duvidosa qualidade, em contraposição às instituições públicas, na sua maioria constituída por universidades, que cobrem apenas 25% das vagas. Em consequência, no nível superior a qualidade está do lado da educação pública”, lembrou, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “Com isso, a educação básica pública fica refém do ensino superior privado mercantilizado, sem possibilidade de resolver seus problemas de qualidade”. Esse processo, diz Saviani, gera um “cruzamento perverso entre as redes públicas e privadas”. “Os membros das camadas populares têm acesso a um ensino público básico de qualidade insatisfatória, o que faz com que, se quiserem ter acesso ao ensino superior, tenham de pagar por um ensino privado também de baixo nível. Em contrapartida, os membros das elites podem pagar por um bom ensino básico privado, o que lhes permite ocupar as reduzidas vagas das universidades públicas de boa qualidade”.
REFORMA Em artigo publicado nos Cadernos Cedes em 2008, intitulado “O Legado Educacional do Regime Militar”, Saviani retraça a história da reforma educacional implantada pelo regime, começando pela Constituição de 1967, que eliminava a exigência de um gasto mínimo com educação – restabelecido em 1969, mas apenas na esfera municipal –, passando pela Lei da Reforma Universitária de 1968, pelo decreto de regulamentação dessa lei, de 1969, e pela lei de 1971 que, como resume o artigo, “unificou o antigo primário com o antigo ginásio, criando o curso de 1º grau de oito anos e instituiu a profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau, visando atender à formação de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho”.
O fim da vinculação orçamentária obrigatória em nível estadual e federal trouxe uma queda no investimento em educação, enquanto que a unificação de primário e ginásio ajudou a ampliar o acesso ao ensino. “A fusão do antigo primário com o antigo ginásio, criando o ensino de primeiro grau, foi um passo importante para a ‘democratização’, ao eliminar a barreira do exame de admissão ao ginásio, elevando a escolaridade obrigatória de quatro para oito anos”, disse o pesquisador. Nos primeiros anos da ditadura houve uma grande ampliação do acesso à educação, principalmente ao ensino superior, como relata o artigo de 2008: “Entre 1964 e 1973, enquanto o ensino primário cresceu 70,3%; o ginasial, 332%; o colegial, 391%; o ensino superior foi muito além, tendo crescido no mesmo período 744,7%”. O texto destaca ainda que “entre 1968 e 1976, o número de instituições públicas de ensino superior passou de 129 para 222, enquanto as instituições privadas saltaram de 243 para 663”. Esse aumento da participação privada, escreve o autor, “foi possível pelo incentivo governamental, assumido deliberadamente como política educacional”. “Os grupos privados atuantes no ensino foram beneficiados, desde o Império, pelas ideias positivistas e liberais, que representavam o campo progressista e pela Igreja Católica, que representava o campo tradicional, conservador”, explicou Saviani. “Parece paradoxal que positivistas e liberais tenham reforçado os interesses privados aliados à Igreja, mas isso ocorreu tendo em vista a defesa, pelos positivistas, da completa desoficialização do ensino sob o argumento da liberdade das profissões e a posição dos liberais que, em nome do princípio de que o Estado não tem doutrina, chegavam a advogar o seu afastamento do âmbito educativo. Nesse contexto foi se constituindo um forte grupo privado de pressão que, em defesa de seus interesses, interferiu na formulação das medidas de política educacional, como se pode documentar nas Constituintes de 1934, 1946 e 1988, assim como na elaboração das leis de educação e na composição dos conselhos de educação”. O pesquisador lembra que o golpe de 1964 “teve forte apoio nesses grupos, mesmo porque se orientou pelos valores da iniciativa privada e pelos mecanismos de mercado. Assim, faz todo o sentido a opção por realizar a expansão por meio do incentivo à iniciativa privada”. A reforma trazida pela ditadura transformou as universidades, que deixaram de ser organizadas em termos de cursos e passaram a se estruturar em departamentos – assim, em vez de, por exemplo, cada curso da área de humanidades ter seu próprio professor de filosofia, instituía-se um departamento de filosofia responsável por servir a diversos cursos. Com essa reorganização vieram o sistema de créditos-aula e da oferta semestral de disciplinas. “Tanto a departamentalização como a matrícula por disciplina e o regime de créditos tinham por principal objetivo a
redução de custos. Assim, pela departamentalização, evitava-se a existência de vários professores de uma mesma disciplina, assim como a possibilidade de que uma mesma disciplina fosse ministrada em turmas diferentes, em separado, provocando a necessidade de sua repetição por um mesmo professor ou por diferentes docentes”, escreve o pesquisador. O espírito da reforma havia sido explicitado, de acordo com Saviani, no fórum “A Educação que Nos Convém”, realizado em 1968. O artigo cita, entre os principais pontos da política educacional defendida no Fórum, os seguintes: “ênfase nos elementos dispostos pela ‘teoria do capital humano’; na educação como formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros da ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio de formar, mediante habilitações profissionais, a mão de obra técnica requerida pelo mercado de trabalho; na diversificação do ensino superior, introduzindo-se cursos de curta duração voltados para o atendimento da demanda de profissionais qualificados.”
RESULTADOS Com a expansão da educação promovida pela ditadura, houve uma percepção de queda de qualidade do sistema. “Enquanto a educação se restringe às elites, ela mantém certo padrão de qualidade. Na medida em que a oferta se estende, abrangendo as massas populares, tende a ocorrer uma compressão da qualidade”, Foto: Antonio Scarpinetti
por motivos que vão da dificuldade de operar um sistema de massa à falta de recursos para atender ao novo patamar de demanda. “No entanto, do ponto de vista das camadas populares não houve queda, mas aumento da qualidade. Isso porque, para quem não tinha acesso a escola alguma, o acesso à escola elementar permitindo-lhe aprender, ainda que minimamente, a ler, escrever e contar significa um importante aumento qualitativo de sua formação. E isso vale também para os graus de ensino ulteriores ao antigo primário”. Com o “cruzamento perverso entre as redes públicas e privadas” gerado pela expansão da educação básica via setor público e do ensino superior via rede privada, “o argumento difundido que sustenta a baixa qualidade da educação pública tecendo loas ao ensino privado resulta frágil”, diz Saviani. “A baixa qualidade da educação básica pública é reforçada pela baixa qualidade das instituições privadas de ensino superior, pela via da formação precária dos professores que atuam nas escolas públicas. Eis a razão pela qual tenho defendido, nas discussões sobre o projeto de Plano Nacional de Educação, a criação de uma rede pública de formação de professores ancorada nas universidades públicas. Sem isso não será possível atingir a meta, constantemente proclamada, de elevação da qualidade do ensino nas escolas públicas de educação básica”. “Inegavelmente, o regime militar teve sua parcela de responsabilidade nesse processo de desqualificação do ensino público ao orientar a política educacional pelo princípio da obtenção do máximo de resultados com o mínimo de dispêndio”, afirmou o pesquisador.
ALTERNATIVAS Saviani está lançando um livro intitulado Sistema Nacional de Educação e Plano Nacional de Educação: significado, controvérsias e perspectivas, no qual articula uma visão alternativa à educação voltada para o mercado adotada pela ditadura e que teve continuidade nos anos pós-redemocratização. “É preciso operar um giro da formação, na direção de uma cultura de base científica que articule, de forma unificada, num complexo compreensivo, as ciências humano-naturais que estão modificando profundamente as formas de vida, passando-as pelo crivo da reflexão filosófica e da expressão artística e literária”, diz ele. “É este o desafio que o sistema nacional de educação terá de enfrentar. Somente assim será possível, além de qualificar para o trabalho, promover igualmente o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania”. Dermeval Saviani: “O regime militar teve sua parcela de responsabilidade nesse processo de desqualificação do ensino público”
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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
Os paradoxos da massificação CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
ditadura instaurada no Brasil a partir de 1964 viveu uma relação ambígua com a cultura e os intelectuais: se por um lado estimulou o desenvolvimento de uma indústria cultural brasileira, por outro reprimiu e perseguiu artistas, censurou conteúdos. “Artistas e intelectuais que se insurgiram abertamente contra a ditadura foram punidos com censura, prisão, tortura, exílio e até a morte; mas, paradoxalmente, o regime também soube dar lugar a muitos oposicionistas dos meios intelectualizados”, escreve o professor Marcelo Ridenti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, no artigo “Caleidoscópio da cultura brasileira: 1964-2000”. “Em paralelo à censura e à repressão política, a partir dos anos 1970, evidenciou-se um esforço modernizador que já se esboçava desde a década anterior, nas áreas de comunicação e cultura, com a atuação direta do Estado ou o incentivo público ao desenvolvimento capitalista privado”. Ridenti está lançando a edição revista e atualizada de seu livro Em busca do povo brasileiro, artistas da revolução, do CPC à era da TV (ed. Unesp, 2014), e é coorganizador, com Daniel Aarão Reis e Rodrigo Patto Sá Motta, do livro A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do golpe de 1964 (Zahar, 2014). Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o pesquisador explicou que “a indústria cultural brasileira é impensável sem o tempo da ditadura. Porque ela foi basicamente sedimentada ali, com a generalização da economia de mercado, a ampliação do público consumidor, a mentalidade empresarial, além das instâncias que legitimam a própria atividade artística”, disse. E acrescentou: “A profissionalização dos artistas, em grande parte, vem do desenvolvimento da indústria cultural durante o período de modernização conservadora da sociedade brasileira” promo-
vida pelo regime de 1964. Essa “modernização conservadora” dava-se no contexto da crescente urbanização do país, que já vinha ocorrendo desde antes do golpe. “Havia um projeto maior, com o qual os militares estavam comprometidos, de modernização da sociedade, inclusive no aspecto cultural, educacional, uma modernização também das artes, no sentido de adequá-las ao mercado, de possibilitar a construção de carreiras e de um público consumidor para as artes” no Brasil, disse o pesquisador. “A Globo e outras redes de televisão surgiram com programações em âmbito nacional, estimuladas pela criação do Ministério das Comunicações, da Embratel e de outros investimentos governamentais em telecomunicações”, escreve Ridenti no artigo “Caleidoscópio”. “Ganharam destaque várias instituições estatais de incentivo à cultura, como a Embrafilme, a Funarte, o Serviço Nacional de Teatro, o Instituto Nacional do Livro e o Conselho Federal de Cultura. A iniciativa privada também cresceu com o apoio do Estado. Estabeleceuse uma indústria cultural televisiva, fonográfica, editorial, publicitária”. Para que toda a empreitada pudesse funcionar, no entanto, era preciso mão de obra: artistas e intelectuais. “E essa mão de obra qualificada era muitas vezes de pessoas que compartilhavam de uma certa utopia revolucionária, em que se misturavam influências da revolução cubana, da resistência dos vietnamitas contra a invasão americana”, disse Ridenti ao JU. “Não dava para fazer um projeto de modernização sem mobilizar as pessoas mais capacitadas, e muitas delas tinham ideias de esquerda”.
AMBIGUIDADE Com o regime comprometido em desenvolver a cultura como negócio, era preciso que houvesse lucro para os empresários atrelados ao sistema. “Para isso, é preciso ter também um mercado consumidor de produtos culturais: pessoas que têm minimamente acesso às leFoto: Arquivo
Chico Buarque é cercado por fãs em São Paulo, na década de 60: popularidade e alvo da censura
tras, ao mundo da cultura, ou a aparelhos de televisão e a rádio, jornais, revistas, então é preciso pensar o universo do público consumidor”, explicou o pesquisador. “Isso se fez, no Brasil, com o aumento do nível de escolaridade da população, apesar da baixa qualidade média do ensino. Então há um processo ambíguo, que existe até hoje: de um lado envolve a democratização e, de outro, a massificação”. O pesquisador lembra que, ao mesmo tempo em que há uma democratização do acesso à cultura – “e estou tomando aí no sentido positivo, de que mais gente se escolariza, se alfabetiza, chega a níveis maiores de educação, e que portanto o acesso à cultura se abre”, disse ele – ocorre uma massificação: “Uma padronização dos gostos, da criação de nichos de mercado para os vários setores de consumo cultural que vão surgindo na sociedade, dentro de uma lógica de produção cultural em série, para atender necessidades de mercado”. De acordo com ele, a esquerda brasileira demorou a fazer a crítica da massificação, e muitos de seus membros embarcaram no processo, visto como parte do movimento histórico de desenvolvimento das forças produtivas. “No Partido Comunista, por exemplo, predominava essa tradição do desenvolvimento das forças produtivas, então havia uma aposta de desenvolver a economia e a sociedade brasileira, inclusive no aspecto cultural. O que envolvia o empenho dos comunistas na construção do cinema, do rádio e da televisão como indústrias que faziam parte do desenvolvimento mais geral do país”. Nesse ponto, ao menos, parecia haver uma interseção de agendas entre o governo autoritário e a esquerda: “tomem-se de um lado os nacionalistas de esquerda que vinham da tradição varguista e os adeptos do desenvolvimentismo nacionalista do PCB; e, de outro lado, os generais. Eles eram bem diferentes”, disse Ridenti. “Mas todos tinham, em comum, esse ponto de que era necessário desenvolver o país com forte participação do Estado”. A crítica ao desenvolvimento cultural por meio da massificação só viria a ser feita mais tarde, a partir dos anos 70, mesmo assim por setores restritos dos meios artísticos e intelectuais. “Aparecia muito forte essa indiferenciação entre participar de um processo de democratização e da massificação da cultura. Ou seja, o avanço da indústria do cinema era tido por si só como positivo. Aumentar o mercado para a música brasileira era uma coisa positiva em si mesma”.
CENSURA No artigo “Caleidoscópio”, o pesquisador lembra que o período entre a derrubada de João Goulart, em março de 64, e a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, foi marcado por uma “superpolitização da cultura”, que estava no Cinema Novo, nos teatros de Arena, Oficina e Opinião, na música popular brasileira, em romances como Quarup, de Antonio
ARTE E CULTURA Foto: Antoninho Perri
O professor Marcelo Ridenti: “A indústria cultural brasileira é impensável sem o tempo da ditadura”
Callado. “Muitos buscaram participar da vida política inserindo-se em manifestações artísticas contestadoras, ainda toleradas com relativa liberdade de expressão até o AI-5”, escreveu o autor. “Havia militantes e simpatizantes de esquerda nos meios intelectuais e artísticos, que sofreram repressão comparativamente menor que os trabalhadores, graças a seu prestígio social e a sua origem de classe média, na maior parte apoiadora do golpe de 64”. Ridenti cita o crítico Roberto Schwarz, que chegou a falar em uma “relativa hegemonia cultural de esquerda”, nesse tempo. Tudo isso mudou, no entanto, com o Ato Institucional. Até o AI-5, a censura baseava-se em leis que já existiam antes da ditadura, e que visavam muito mais aspectos morais que políticos. “A censura de 64 a 68 existiu, mas foi relativamente moderada. Por certo era mais exacerbada que antes do golpe. Agora, depois do AI-5, a coisa ficou muito pior”, disse ele. “A partir do fim de 68 a censura baixou mais pesada, interrompendo esse florescimento cultural, que continuou pelas frestas, depois”. O pesquisador destaca que o regime não era contra as artes: ele censurava, seletivamente, alguns produtos culturais. “Então, o Chico Buarque não ficou proibido de cantar, embora muitas das canções dele tenham sido proibidas. Aliás, ele continuou a fazer muito sucesso. Era tudo muito ambíguo”. Ridenti lembra que a chamada música brega também foi censurada, “e fala-se pouco disso”. Havia uma extensa organização burocrática para fazer a censura: documentos oficiais mostram que, em 1978, havia 45 técnicos de censura, além de 36 servidores administrativos. A Censura Federal examinou quase 22 mil peças de teatro durante a ditadura, das quais cerca de 700 foram proibidas na íntegra. Foram censurados 430 livros, 92 deles de autores nacionais, sendo 15 livros de não-ficção, 11 peças teatrais publicadas em livro, além de dezenas de textos literários, na maioria eróticos ou pornográficos. Ridenti diz que muitos artistas mantinham uma relação ambígua com o regime, às vezes adotando uma postura de colaboração e, às vezes, de crítica. Até a dupla Don e Ravel, autora de canções patrióticas abraçadas pela ditadura, chegou a ser censurada. E mesmo artistas supostamente “alienados”, como os da Jovem Guarda, eram tocados pelo momento que o Brasil vivia. “Roberto Carlos e Erasmo Carlos eram pouco politizados, foram até elogiados pelo regime. No entanto, se prestarmos atenção em algumas letras de suas músicas, veremos que expressavam algo mais amplo que acontecia na sociedade”, cita o pesquisador. “Por exemplo: a canção ‘Sentado à Beira do Caminho’, de 1969, diz: ‘Preciso acabar logo com isto/Preciso lembrar que eu existo’, é o cara sentado à margem dos acontecimentos, vendo os caminhões passando, assustado em meio ao turbilhão da modernidade imposta em moldes autoritários pelos donos do poder”. Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Coleção João Apolinário
Dina Sfat e Lima Duarte contracenam em “Arena Conta Zumbi”, na década de 60, em São Paulo: período foi marcado pela “superpolitização” da cultura
FEMINISMO
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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
Mulheres na
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Coleção Brasil Nunca Mais
linha de frente Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Fundo Voz da Unidade
LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br
professora Margareth Rago acaba de lançar um livro baseado em depoimentos de feministas históricas envolvidas na luta contra o regime militar e que contribuíram para abrir novos espaços para as mulheres na vida política, pública e cultural do país. Mas ficou um tanto surpresa quando questionada sobre o “pós-feminismo”, com a repórter deixando subentender que aquele movimento teria se esgotado. “Eu entendo o feminismo como uma grande força transformadora, um movimento extremamente crítico do presente, tanto na academia em termos de produção do conhecimento, como no campo social forçando políticas públicas”, afirma a docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “Acho importante ressaltar as ações positivas que o movimento continua promovendo no Brasil.” De qualquer forma, para chegar aos dias de hoje Margareth Rago não se furta a refazer um histórico desde a década de 1960, época em que as brasileiras viviam sob o forte impacto do feminismo americano, da contracultura e da revolução sexual. “Obviamente, muitas mudanças estavam acontecendo, mas pela minha própria experiência na época de estudante da USP, ainda não se falava em feminismo no país, mesmo que tivéssemos atitudes feministas com críticas imensas às condições que a sociedade impunha contra as mulheres.” A historiadora lembra que o feminismo viria a ser assumido como linguagem política e bandeira de luta a partir de 1975, período em que muitas militantes vitimadas pela violência do regime saíam das prisões, e decepcionadas com o machismo que experimentaram no interior das próprias organizações e partidos políticos. “Neste mesmo período retornavam as militantes exiladas que tiveram contato com o feminismo nos Estados Unidos e sobretudo na França, onde grande número delas se abrigou. São estas mulheres intelectualizadas que vão se aglutinar e encontrar jovens nas universidades que começavam a discutir e a assumir o feminismo.” Segundo a professora do Departamento de História, inicialmente o movimento parte de mulheres brancas e de classe média, mas se expande e se fortalece com rapidez. “Em meados dos 70 surge uma imprensa femi-nista, com duas publicações: em 75 o Brasil Mulher e em 76 o Nós Mulheres, jornais escritos por mulheres para mulheres. E, como elas são de esquerda, o feminismo no Brasil se caracteriza por ter nascido no contexto de luta contra a ditadura, com forte viés marxista. A maior expansão do movimento acontece na década de 80, período da redemocratização, impulsionado mais por questões sociais como a pobreza e a falta de creches e de emprego para as mulheres da periferia, e menos por questões que seriam priorizadas posteriormente, como da violência e do direito ao aborto.”
Acima, estudantes durante protesto na USP, em São Paulo, na década de 60; ao lado, manifestação de mulheres a favor do aborto legal, na década de 80, também na capital paulista
FENÔMENO NOVO
Foto: Antonio Scarpinetti
HISTÓRIA MASCULINA No livro A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade (publicado pela Editora da Unicamp e destacado pelo Jornal da Unicamp na edição 554), Margareth Rago pretende
feminista e o feminismo foram caminhando e crescendo em paralelo, até se juntarem no final dos 70, então incorporando bandeiras como as do corpo, do assédio sexual e da violência contra a mulher”. Margareth Rago atenta que muitas feministas hoje na faixa dos 60 e 70 anos de idade continuaram empenhadas no acerto de contas com o passado ditatorial, a exemplo das personagens do seu livro: as ex-presas políticas Criméia Schmidt de Almeida e Maria Amélia de Almeida Teles; a filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara; a líder do Movimento Autônomo das Prostitutas e fundadora da Daspu Gabriela Silva Leite, falecida recentemente; a socióloga feminista e professora da Unicamp Maria Lygia Quartim de Moraes; a antropóloga e historiadora Norma Telles; e a escritora e historiadora Tania Navarro Swain. “É uma luta que não acabou, uma página que vai demorar a ser virada.” O pressuposto de que ter nascido em meio à luta contra a ditadura politizou e fortaleceu o movimento feminista brasileiro, com um discurso crítico e de esquerda, é endossado pela pesquisadora. “No entanto, é difícil compará-lo com o feminismo americano, que transformou profundamente aquela sociedade, na qual convivi por um ano. Não há um programa de televisão que não debata as questões das mulheres. A Universidade de Columbia oferece um serviço de aborto para as alunas, enquanto as nossas tomam Cytotec para provocar hemorragia e serem atendidas no hospital; contraditoriamente, lá existem grupos do tipo Ku Klux Klan atacando médicos que fazem abortos. Mas é uma sociedade de muitas conquistas.”
A professora Margareth Rago: “É uma luta que não acabou, uma página que vai demorar a ser virada”
preencher o vazio na literatura em relação a memórias e testemunhos de mulheres atuantes em episódios da ditadura e da contracultura. “Um aspecto importante a observar é que a história da ditadura militar é uma história masculina: os livros trazem os homens como protagonistas e eventualmente tratam das mulheres, mas não enquanto mulheres. A escassez de autobiografias femininas se deve em parte à educação cristã, segundo a qual a mulher deve ser abnegada, dar lugar aos homens e pensar que sua vida não tem tanta importância. Uma cultura em que falar dela mesma soa a narcisismo, o que não é verdade, pois autobiografias nem sempre são autoelogios – podem ser denúncias, acertos de contas, há inúmeros motivos para escrever sobre a própria vida.” Na opinião da docente da Unicamp, um livro que se destaca sobre a militância feminina na luta contra o regime e pela redemocratização foi escrito por uma cubana residente nos Estados Unidos, a professora Sonia Alvarez, ainda não traduzido para o português: Engendering democracy in Brazil, em que o “engendrando” do título remete também a gênero. “Sonia Alvarez chama a atenção para um segundo aspecto relevante: que mesmo antes de o feminismo surgir como movimento organizado no Brasil, existia um movimento de mulheres ligado à Igreja na luta contra a carestia e por melhorias como no transporte. Este movimento não
A historiadora ressalta que a sociedade brasileira também se transformou nas últimas décadas e agora temos um fenômeno novo protagonizado por jovens que não se veem como herdeiras do movimento feminista. “Elas não possuem essa consciência histórica. São as filhas para as quais a independência pessoal ou a perda da virgindade não representam mais problemas. Apenas com o tempo vai caindo a ficha de que não estão em berço esplêndido do nada, o que as leva a buscar conhecer um pouco mais a história relativamente recente do país. O mesmo aconteceu conosco, que fomos descobrindo que as coisas do presente têm história graças a pessoas como Maria Lacerda de Moura, Emma Goldman e inúmeras outras. O feminismo permitiu também este encontro com o passado, a releitura da história e a transformação da memória coletiva.” Contudo, Margareth Rago se diverte com as propostas bem humoradas das militantes de hoje, como a Marcha das Vadias – movimento internacional surgido no Canadá, em que o uso de trajes provocantes, como blusinhas transparentes e lingeries, serve para protestar contra a crença machista de que as mulheres é que provocam o estupro por causa do seu comportamento. “É realmente engraçado ver essas meninas bonitas de diferentes camadas sociais se chamando de vadias, assim como as integrantes da banda Pussy Riot [presas por entoar uma ‘oração punk’ contra o presidente Vladimir Putin dentro da principal catedral de Moscou]. É um protesto lúdico, com toda uma performance corporal, que eu considero muito positivo e que aplaudo.”
A história da vida privada Diante da questão colocada pela repórter sobre o pós-feminismo, sugerindo que o movimento feminista perdeu sua força, a professora Margareth Rago afirma que acontece justamente o contrário. Argumenta que a TV Globo, por exemplo, nunca abordou com tanta frequência a questão da violência contra as mulheres, contribuindo para alimentar o debate junto à população. “A violência sempre aconteceu, mas não era assunto em que se tocasse, por pertencer ao domínio da vida privada. Penso que uma das maiores conquistas do feminismo foi ter rompido com a ideia de que apenas o que é público deve ser noticiado e historicizado; de que história é a história da vida pública, e não do privado.” A historiadora acrescenta que este rompimento, que fez emergir questões como aborto, assédio sexual e violência de gênero para a esfera pública é um exemplo da força crítica e transformadora do movimento feminista. “Quando Dilma Rousseff foi eleita, o debate era se ela seria contra ou a favor do aborto; vinte anos antes, Luiza Erundina mal conseguia go-
vernar São Paulo, por ser mulher, de esquerda, solteira e nordestina. O que pretendo destacar é que, se o feminismo começa como um movimento pela derrubada do regime militar, em seguida a sua crítica vai muito além, contra o autoritarismo cotidiano, como a ditadura do corpo, entre muitas outras questões.” É nesta direção que a docente do IFCH coloca o trabalho de uma feminista radical, Eleonora Menicucci de Oliveira, atual ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) da Presidência da República. “Ela possui um pouco o perfil de Dilma, ficou presa por três anos e foi submetida a torturas, aderindo depois ao feminismo. A sua secretaria tem promovido ações bem interessantes e acaba de convidar outra ‘feminista histórica’, Amelinha Telles, para produzir um diagnóstico junto a mulheres de populações ribeirinhas, no âmbito do Fórum de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta.” Segundo Margareth Rago, como o acesso a estas populações só é possível por transporte fluvial, a SPM estabeleceu uma parceria com a Caixa Econômica Fe-
deral, que possui cinco embarcações para levar até elas a Bolsa Família e outros serviços bancários. “Amelinha Teles participou da equipe que durante 20 dias, a partir de 20 de janeiro último, visitou nove municípios da região do Marajó para o diagnóstico das mulheres em relação à violência de gênero, contatando prefeituras e sindicatos de trabalhadores rurais (geralmente presididos por mulheres). A equipe deu orientações sobre a lei Maria da Penha e incorporou membros do Tribunal de Justiça para dar celeridade a processos.” A importância deste levantamento, conforme observa a professora, é que enquanto nas cidades já existem várias formas de luta, o campo e a floresta ainda são uma zona livre onde se faz o que quer contra as mulheres. “Em janeiro tivemos o caso do prefeito acusado de 70 estupros [Adail Pinheiro, de Coari (AM)]. Estupros na família são constantes, por pais e padrastos. Nessas regiões muito pobres, a Bolsa Família é apropriada pelos homens que se casam por interesse com as mulheres, que por sua vez têm filhos para garantir o benefício – sendo delas 99% da titularidade, a bolsa poderia ser uma forma de empodera-
mento, o que não ocorre. E, quando procuradas pela equipe para discutir a violência doméstica, elas simplesmente fogem com medo de apanhar no dia seguinte, como relatou Amelinha Teles.” Margareth Rago explica que este programa da SPM está articulado com a Marcha das Margaridas, que reúne 80 mil mulheres e reivindica do governo Dilma políticas públicas para as mulheres ribeirinhas focadas no trabalho, na terra, na educação e na violência de gênero. Também participa deste movimento a Via Campesina, organização internacional de camponesas. “Ainda para mostrar que tem muita coisa acontecendo no âmbito das lutas feministas, em agosto deste ano o Brasil vai participar de um grande encontro na Índia, o Women’s Worlds, que em 2017 será realizado na Universidade Federal de Santa Catarina. A UFSC tem uma reitora feminista, assim como a vice-reitora, e também promove um importante encontro bianual, o Fazendo Gênero, para cerca de 5 mil pessoas; no Women’s Worlds pretende-se chegar a 20 mil participantes.”
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TRABALHO
Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
Da noite às trevas
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Fundo Voz da Unidade
MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br
golpe de 64 provocou impactos de diversas ordens no sindicalismo brasileiro. Foi um momento de ruptura de um projeto nacional-reformista que estava sendo gestado desde 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, e que ganhou densidade nos anos 60, com João Goulart. No instante em que o país avançava para a execução de reformas com alguma profundidade, os militares criaram o mito do comunismo, que nada mais foi que uma enorme falsificação da história. Com a intervenção militar, apoiada por amplos setores da burguesia, mais a simpatia das classes médias conservadoras, os sindicatos passaram a ser controlados pelo Ministério do Trabalho, por meio de interventores. As tentativas de resistência foram brutalmente reprimidas. Foi um período no qual o sindicalismo mergulhou nas trevas. O relato, em tom eloquente, é do sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Na entrevista que segue, ele analisa, a pedido do Jornal da Unicamp, as consequências do regime de exceção para o movimento sindical do país.
Helicóptero do Exército sobrevoa assembleia histórica de metalúrgicos do ABC, ocorrida em 1979 no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo
Nos anos 60, conforme o docente, praticava-se no Brasil uma tentativa de sindicalismo autônomo, ainda que este mantivesse um razoável grau de dependência do Estado. Antunes lembra que a estrutura sindical brasileira foi criada por Getúlio Vargas, que buscava travar o surgimento de um sindicalismo independente, principalmente aquele de matiz socialista ligado ao PCB. “Getúlio agiu duramente contra esse modelo sindical. Isso não significava, porém, que os sindicatos se deixassem controlar totalmente. Havia um movimento de mão dupla. O Estado exercia um dado controle sobre a classe trabalhadora e esta, por intermédio dos sindicatos, pressionava o Estado”, afirma. Naquele momento, diz o professor do IFCH, a estratégia que o movimento sindical de esquerda encontrou para defender seu ideário foi ingressar na estrutura sindical, com o propósito de transformá-la. Assim, quando os governos apresentavam certa flexibilidade, as duas partes se sentavam e conversavam. Quando a posição era intransigente, como no governo Dutra, as autoridades normalmente reprimiam as entidades sindicais e as colocavam na ilegalidade. “Esse ciclo de lutas, que atingiu o apogeu em 64, estava no centro de uma disputa que vinha desde os anos 30. Havia um projeto de caráter nacional-reformista, que tinha o apoio de setores burgueses e a simpatia de setores populares, e outro que propugnava a internacionalização da economia brasileira, capitaneado pela UDN e pelos liberais, o que vale dizer pela direita”, sustenta o sociólogo.
PRESSÃO DOS EUA Esse embate, segundo Antunes, teve desfecho com o golpe. O docente observa que havia naquele momento uma pressão por parte dos Estados Unidos para desestabilizar o governo de João Goulart, que era visto como reformista. “O curioso é que em 64 o Brasil não estava na iminência de uma revolução socialista. Nem mesmo o PCB a defendia. O partido reivindicava, isso sim, um governo democrático e popular. As Ligas Camponesas, por seu turno, exigiam reforma agrária. A despeito disso, o golpe foi dado, com claro significado contrarrevolucionário. O resultado foi que os militares não apenas recuperaram, mas também aprimoraram e intensificaram a estrutura sindical coibidora e repressora criada por Vargas. Foi quando o sindicalismo brasileiro mergulhou numa longa noite”. A partir de então os sindicatos passaram a ser controlados pelo Ministério do Trabalho. Houve algumas tentativas de resistência, como as greves de Contagem e Osasco em1968, que foram brutalmente reprimidas. “Foi quando o sindicalismo saiu da noite e mergulhou nas trevas. O período compreendido entre 68 e 74 foi tenebroso. Os sindicatos e a esquerda foram devastados e a resistência armada, massacrada”, define o professor do IFCH. Somente em meados da década de 70, continua, é que começou a se esboçar no país uma nova variante sindical, que não era nem a trabalhista e nem a comunista pré-64 e nem tampouco a identificada com a extrema esquerda de 68. Era, na classificação do docente, um novo sindicalismo. “Era um movimento menos político, que encontrou a sua maior expressão na figura do líder metalúrgico Luiz Inácio da Silva, o Lula, que na ocasião se dizia um ‘apolítico’. Lula e outros sindicalistas, como Jacó Bittar e Olívio Dutra, diziam: não dá mais, temos que quebrar a lei do arrocho salarial. O aspecto interessante desse posicionamento é que, mesmo que esses sindicalistas não tivessem essa percepção, a ideia de quebrar o arrocho era fundamental, pois ela significava romper também com a política econômica da ditadura que intensificava a superexploração do trabalho”.
Foto: Antoninho Perri
A “triste ironia” desse fato, nas palavras de Antunes, é que essas lideranças diziam que queriam promover esse rompimento sem o uso da política. “Todos sabemos que, mais tarde, Lula viria a se transformar na expressão acabada do político tradicional”, sentencia. Num dado momento, destaca o sociólogo, esse “novo sindicalismo” começou a perceber que precisava, sim, criar um instrumento político para representá-lo, visto que nem o PCB e nem os trabalhistas cumpriam mais esse papel. Seus líderes, com Lula à frente, desejavam criar um novo partido, uma variante com algumas similitudes com o Partido Trabalhista da Inglaterra. “Em 1980, eles criaram algo original, que foi o PT, composto por diversas tendências e por uma massa de trabalhadores assalariados do mundo urbano e rural. Três anos depois foi fundada a CUT, algo espetacular à época, uma vez que o Brasil jamais tinha tido uma central sindical com vida longa, dado que todas foram duramente reprimidas. A partir daí, a luta sindical foi finalmente retomada”. As greves realizadas no ABC paulista, no final de 1979 e início de 1980, no entender de Antunes, exerceram um efeito demonstrativo para o país. Depois delas, outras mobilizações de massa foram registradas. Em 1985, surgiu o movimento pelas Diretas, que saiu derrotado. “A década de 80 foi muito importante para o Brasil. Na sequência desses acontecimentos nasceu um novo proletariado e ocorreu uma expansão do funcionalismo público. Isso contribuiu para que a classe trabalhadora mudasse a sua forma de ser e ganhasse uma nova morfologia. Essas mudanças seguiram seu curso até 1989, quando a direita conquistou o poder com a vitória de Fernando Collor sobre Lula nas eleições presidenciais. Antes disso, porém, tivemos a Constituinte de 88, que foi limitada, mas serviu para mobilizar
O sociólogo Ricardo Antunes, professor do IFCH: “Os militares não apenas recuperaram, mas também aprimoraram e intensificaram a estrutura sindical coibidora e repressora”
o país. Foram registrados avanços, embora as classes dominantes tenham criado uma zona pantanosa, que foi o Centrão. O fato curioso é que tudo isso ocorreu antes da chegada do neoliberalismo ao Brasil, ainda que ele já existisse na Europa”, situa o sociólogo. Retornando ao episódio das eleições presidenciais de 89, Antunes afirma que o processo eleitoral foi vital, pois dividiu o país ao meio. “Eram dois projetos. Foi dificílimo para as classes dominantes encontrar alguém que pudesse vir a derrotar Lula. De repente, apareceu um Bonaparte tropical e descompensando, que era li-
gado a um grupo empresarial e político que concebia a politica como saque. Foi quando a Rede Globo, que na prática sempre atuou como um grande partido político nacional, decidiu jogar todas as suas fichas em Collor. O que se seguiu foi aquela cena forjada relacionada ao sequestro do empresário Abílio Diniz, na qual os sequestradores foram apresentados vestindo camisetas do PT. Também tivemos a famigerada edição do debate entre Collor e Lula, na qual a emissora mostrou os melhores momentos do primeiro e os piores do segundo. O resto dessa história todos nós sabemos como terminou”, encerra o docente do IFCH.
CONE SUL
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A repressão sem fronteiras CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
geração de militares latino-americanos responsável pela série de golpes de Estado que submergiu o Cone Sul – Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile – nas ditaduras surgidas entre os anos 60 e 70 do século passado tinha uma ideologia comum, e seus membros já estavam articulados entre si antes mesmo de chegarem ao poder, disse ao Jornal da Unicamp o professor José Alves de Freitas Neto, chefe do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisador de História da América Latina, na linha de pesquisa Política, Memória e Cidades. “Eles já estavam unidos antes dos golpes. Houve uma geração de militares que foram formados nos Estados Unidos. Então, a doutrina de segurança nacional, que vai aparecer no Brasil, na Argentina, no Chile, não emerge do nada, emerge por conta dessas aproximações já conhecidas nesses países, mesmo tendo que superar desconfianças e desavenças internas anteriores”, explicou Freitas Neto. O contexto dessa aproximação era o da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, e se dava “para evitar riscos de golpes de esquerda, de um golpe socialista”, disse ele. O pesquisador lembra que, na época em que se instauraram as ditaduras militares – a primeira, a do general Alfredo Stroessner, no Paraguai, começando em 1954, e a última, a argentina, a partir de 1976 –, os países do Cone Sul passavam por importantes transformações sociais: a urbanização crescente provocava tensões, migrações, o fortalecimento de sindicatos e o surgimento de novas demandas políticas, nem sempre bem aceitas pela elite existente e vistas, por alguns setores, sob o prisma da Revolução Cubana de 1959, encarada como esperança por alguns e ameaça por outros. “Isso é um contexto que passa pela modernização das economias, num processo que envolvia a relação com o capital externo, com a questão do financiamento. E, do ponto de vista dos Estados Unidos, como grande potência e líder desse processo mundial dentro da Guerra Fria, tem a ver com o objetivo de manter o continente inteiro sem a influência do ideário comunista”, disse Freitas Neto. “É esse discurso que, de alguma forma, é comum a todos esses países dentro do contexto dos anos 60. Então, aquilo que era uma série de rivalidades, em períodos anteriores, as disputas entre Brasil e Argentina, Brasil, Argentina e Chile, passou a ser trabalhado num contexto de cooperação, que foi, de alguma forma, articulado e encabeçado pelos Estados Unidos”, explicou o pesquisador. “Não creio que a América Latina estivesse a um passo de tornar-se comunista”, disse ele. “Porém, esse discurso foi utilizado. O que podemos perceber é que, por uma questão de preparação dos militares, a escalada autoritária que temos dentro da década de 60, dos anos 70, começa bem antes. Se a gente olha para a história do Brasil, particularmente, os militares sempre tiveram uma atuação muito presente”.
OPERAÇÃO CONDOR “Aqui no Brasil, estamos muito atrelados a pensar o fenômeno da nossa ditadura militar, esquecendo-nos de que ela não foi um episódio único e de que o Brasil, por ser o maior território, com um grande aparato militar, também influenciou e estimulou o que houve em outros países”, contou o pesquisador, falando da cooperação e da articulação entre os militares golpistas dos vários países. Freitas Neto cita, como exemplo, a revelação de documentos que mostram que os militares brasileiros já tinham estudos sobre como auxiliar na deposição do presidente chileno Salvador Allende, derrubado por um golpe militar em 1973. “Tradicionalmente, estamos acostumados a pensar o Brasil como um país que não se envolve nas questões diplomáticas, que não se envolve nas questões internas dos países vizinhos. Isso é uma falácia extraordinária”, afirmou. “A memória da sociedade brasileira em relação às questões da política externa é sempre de uma certa distância, cada país resolve o seu caminho. E na ditadura militar ficou ainda mais visível que não é
Foto: Antonio Scarpinetti
assim. Houve uma ingerência muito grande, seja por recursos, seja por apoio, seja, especialmente, por essa questão da logística e da troca de informações entre os regimes ditatoriais”. “A Operação Condor foi uma aliança de caráter militar que previa a troca de informações e uma liberdade para atuação dos aparatos repressivos de cada país nos demais”, definiu ele. “Militares brasileiros poderiam entrar no território de Uruguai e Argentina, e vice-versa, só para dar um exemplo. Então, você tem a criação de uma rede de informações dentro do Cone do Sul, sobre quais as ameaças, ou quais as pessoas que seriam potencialmente perigosas para os regimes”. Na questão da captura ou desaparecimento de “subversivos” de um dos países por agentes da repressão de outro, o historiador nota que “existia uma certa condescendência em relação aos regimes vizinhos”. “Ou seja: estamos todos do mesmo lado em relação a um inimigo comum. E esse inimigo comum, os comunistas ou qualquer ameaça nessa ordem, estão dentro do nosso território”.
REDEMOCRATIZAÇÃO Assim como os militares e os agentes da repressão, as vítimas das ditaduras também se articularam em redes internacionais, o que ajudou a trazer a democracia de volta ao Cone Sul, disse o pesquisador. “Existia uma lógica de acolhimento entre as vítimas que eram perseguidas, e isso também circulou entre os países. Havia uma lógica de solidariedade internacional entre latino-americanos. Tanto que, por exemplo, os primeiros grupos em relação à solidariedade aos desaparecidos na Argentina emerge aqui em São Paulo”, lembrou Freitas Neto. “Quando você tem uma pauta pela anistia no Brasil, em 1979, a Argentina está em plena repressão. Há temporalidades diferentes e as pessoas percebem que há um esgotamento desses regimes que já começava a se fazer visível”, disse ele. “Se, por um lado, as forças repressoras têm uma articulação, também houve a articulação entre as vítimas da repressão estatal”. “Outro dado importante também tem a ver com a pressão dos exilados que passaram pela Europa e pelos EUA. Tem uma atuação importantíssima do presidente Carter”, lembrou Freitas Neto, em referência a Jimmy Carter, presidente dos EUA de 1977 a 1981 e ganhador do Nobel da Paz de 2002. “A sociedade norte-americana, ou as universidades que receberam exilados da América Latina, criaram comitês para que os Estados Unidos alterassem suas regras de apoio internacional. E é nesse sentido que ocorre a visita do presidente Carter aqui, quando ele fala publicamente em tortura e cobra esclarecimentos”. Os Estados Unidos ajudaram a instaurar as ditaduras do Cone Sul, disse o historiador, mas também tiveram um papel em sua remoção. “Os Estados Unidos são uma democracia, na qual o governo sofre pressões internas. É um dado importante dessa articulação internacional pela redemocratização”. Outra instituição normalmente citada como apoiadora dos golpes na América Latina, mas que também deu guarida à articulação internacional de vítimas e opositores das ditaduras foi, de acordo com Freitas Neto, a Igreja Católica. “É o mesmo caso dos Estados Unidos: se a Igreja ajudou o golpe, com as marchas religiosas, colocando 500 mil pessoas na marcha da família, depois veio uma reavaliação que tem a ver com a teologia da libertação, um fenômeno latino-americano, e outros discursos mais à esquerda. Ao mesmo tempo em que continuava a ter bispos delatores, que estavam atuando junto ao poder político, tinha outros que acolhiam os perseguidos”.
MERCOSUL Para o historiador, tanto a aproximação dos aparatos burocráticos e diplomáticos dos Estados do Cone Sul, por conta da colaboração entre as ditaduras, quanto as redes internacionais de solidariedade entre perseguidos e opositores dos regimes ajudaram a pavimentar o caminho político para o Mercosul. “As duas coisas funcionaram: as ditaduras, de alguma forma, aproximaram essas diplomacias e os serviços de inteligência, e por outro lado, havia as redes de solidariedade que fizeram com que pudéssemos tentar
O professor José Alves de Freitas Neto, do IFCH: “O Brasil também influenciou e estimulou o que houve em outros países” pensar minimamente um conjunto para a América do Sul”. Lembrando a experiência da União Europeia, que começou a dar seus primeiros passos após a 2ª Guerra Mundial, e das ditaduras do Cone Sul, Freitas Neto disse que “sociedades que passaram por experiências traumáticas mais ou menos comuns podem olhar para seu passado e podem olhar para seu futuro, e pensar que elas podem ser mais fortes conjuntamente na vigilância de direitos, em projetos comuns de desenvolvimento e cooperação”. “Não é pouca coisa estabelecer que uma das cláusulas do Mercosul é ser uma democracia. Claro que isso gera às vezes debates histéricos, mas não é pouca coisa em sociedades com tradições autoritárias e quebras de ordem institucional frequentes”, disse.
MEMÓRIA O Brasil, no entanto, fica atrás dos demais países do Cone Sul na questão da memória da ditadura. “A Comissão da Verdade brasileira é temporã”, disse ele, lembrando que Chile e Argentina já fizeram seus acertos de contas com o passado. “E é certo que o Brasil não teve uma cooperação, o Brasil não foi nenhum pouco parceiro das Comissões da Verdade do Chile e do Uruguai, nem da Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas da Argentina.” Ele critica o fato de a Comissão da Verdade brasileira não ter historiadores em sua composição, mas considera seu trabalho “fundamental”: “Não tem como olhar para a frente sem conhecer ou ter um mínimo de clareza sobre os procedimentos e atuações que aconteceram aqui. E, nesse sentido, é central falar de uma ditadura civil-militar. Esse é um esforço que a universidade está criando, de chamar de uma ditadura civil-militar, porque a simples nomenclatura de ditadura militar exclui a sociedade civil, como se ela não tivesse sido, no mínimo, conivente. Não foram só os militares que atuaram, só os militares que reprimiram. Houve financiamento de empresas, atuação da imprensa favorável ao regime e delatores em diferentes níveis. Ao mesmo tempo, se inserimos os civis, não significa isentar as responsabilidades e o protagonismo dos militares, pois sem as armas, não haveria a ditadura tal como, dramaticamente, a sociedade brasileira conheceu”. Fotos: Reprodução
Figueiredo com Stroessner (acima) e Videla (abaixo): integração
O ditador Augusto Pinochet: Chile acertou as contas com o passado
Cartaz lembra desaparecidos políticos da América Latina: repressão conjunta
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MEMÓRIA
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Tombamento pelos tombados CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
tombamento do prédio do DOI-Codi em São Paulo, em janeiro deste ano, marcou um ponto de virada na história da preservação do patrimônio histórico brasileiro: pela primeira vez, um prédio era tombado não por seu valor estético ou arquitetônico, mas pela memória dos eventos que ocorreram nele, disse ao Jornal da Unicamp a pesquisadora Silvana Rubino, coordenadora de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade e autora do parecer que concluiu pelo tombamento. “No caso do DOI-Codi, o edifício não é bonito. O edifício não é atraente. É uma delegacia! Um caixotão, uma construção meramente funcional no pior sentido do termo. O lugar não tem atratividade nenhuma. Junte-se a isso o que a aconteceu ali foi um conjunto de episódios de mais triste lembrança. Argumentei que era isto que importava: não as características físicas do lugar, mas o que aconteceu ali, e o que aconteceu ali é terrível, mas a sociedade tem o direito de ter um lugar para lembrar”, disse ela. O DOI-Codi, sigla de Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna foi um dos mais violentos órgãos de repressão instituídos pela ditadura instaurada no Brasil em 1964. O DOI-Codi paulista, localizado num edifício do bairro paulistano do Paraíso, onde atualmente funciona uma delegacia de polícia, foi palco de sessões de tortura e de homicídios. Foi no DOI-Codi de São Paulo que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado, em 1975. “É bom dizer que fiz o parecer a partir de uma pesquisa do corpo técnico do Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado], com destaque para a excelente pesquisa da historiadora Deborah Neves. Recebi um dossiê de 400 páginas, então eu tinha material para estudar o tema. E aí a gente toca na questão do que alguns pesquisadores chamam de memória difícil. A memória difícil, dolorida, também é uma memória social. A gente não precisa só se lembrar de onde D. João VI tomava banho de mar”, disse a pesquisadora.
FERIDA O processo de tombamento sofreu oposição e gerou debate, contou Silvana. “Apareceu gente, de famílias de vítimas, dizendo que eles queriam seguir em frente e esquecer isso. Mas, ao mesmo tempo apareceram tantos outros filhos de vítimas dizendo que eles queriam esse lugar. Acho que a gente tem de respeitar os dois lados. Acho que o familiar de uma vítima tem o direito de querer esquecer. A dor é dele. Ele que sabe o que fazer com essa dor”, ponderou. “Mas creio que a sociedade tem o direito de poder lembrar. E é importante para as gerações mais novas, também. Porque meus alunos têm 20 anos. O golpe tem 50. Eles já nasceram com o país democratizado. E parece que isso veio um pouco de graça”. Ela relata que, muitas vezes, alunos jovens falam que o Brasil de hoje não vive uma democracia. “Bom, a democracia brasileira tem uma série de defeitos, e precisa ser aperfeiçoada”, reconhece a pesquisadora. “Mas eu digo: se você pode chegar numa sala de aula de uma universidade pública e dizer bem alto, ‘Isto não é uma democracia’, é porque é. Se não fosse, você não poderia dizer. Eles não têm a experiência do medo. Eles não têm a experiência do terror. E não quero que eles tenham a experiência do terror. Mas deve existir um lugar onde eles possam se dar a saber o que foi essa experiência”. Foto: Antonio Scarpinetti
“Acho que o dia em que o DOI-Codi foi tombado foi um dia que marcou a história na política de patrimônio no Brasil, porque foi o dia em que o patrimônio parou de simplesmente olhar a beleza, a ‘coisa finda e a coisa linda’, mas passou a olhar também para a ferida”. “Porque está na hora de a sociedade enfrentar essa ferida da ditadura”, enfatizou ela. “Porque temos ainda famílias de pessoas que não têm uma sepultura onde levar uma vela para o seu pai, o seu avô. Acho muito importante que o Estado admita: nós matamos essas pessoas. O Estado diga: nós matamos Rubens Paiva, e tantos outros. Nós. Não é que ele morreu. Não é que o elemento caiu do viaduto, como consta de alguns autos que tive oportunidade de pesquisar: ‘aí o elemento caiu do viaduto’. Elemento? Que elemento? Não é o elemento, ele é um sujeito, tem um nome, e não caiu do viaduto. Então, está na hora, é preciso nomear essa história, até para seguirmos em frente”.
NOME DE RUA A despeito da demora do Brasil em reconhecer seus espaços físicos de “memória difícil” como tal – Silvana lembra que mesmo o prédio do Dops, também em São Paulo, só foi tombado por suas características arquitetônicas, e não pelo fato de lá ter funcionado um órgão de repressão que serviu a duas ditaduras, a de Getúlio Vargas e a do regime de 64 – a pesquisadora diz que “há um certo mito de dizer que o Brasil não tem memória”. “Talvez o Brasil não tenha a memória que alguns esperavam que o Brasil tivesse”, pondera. “Porque nós temos no Brasil, é claro, situações absurdas, como Rodovia Castelo Branco, Viaduto Costa e Silva, que são, de certa maneira, celebrações, no espaço físico, da ditadura. Mas o Chile tem Avenida 11 de Setembro [dia do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende], a Argentina tem monumentos aos ditadores, a Espanha tem monumento ao Franco”, lembra. Para a pesquisadora, “é interessante ver que, em diversos países, você tem um jogo de forças. Porque esse processo de monumentalização e patrimonialização faz parte do diálogo das diversas forças da sociedade”. Nesse sentido, Silvana acredita que fazem sentido as reivindicações para que se mudem os nomes de ruas e logradouros que homenageiam figuras da ditadura. “Faz sentido, como demanda política. Sempre vai ter alguém que vai dizer, ‘eu não escolhi viver numa rua chamada Marighella’. Certo, mas eu também não escolhi passar num viaduto chamado Costa e Silva. A sorte é que, no Brasil, os logradouros acabam tendo nomes populares. O Costa e Silva, por exemplo, virou ‘Minhocão’”. A ditadura ainda é muito recente na história do Brasil, disse. “Ela ainda não foi enfrentada, e enfrentar pode ser importante para podermos dar um passo à frente. Então é importante, como reivindicação, mesmo que não seja atendida, que se diga, por exemplo, que a Avenida Roberto Marinho, se é para homenagear um jornalista, seria melhor que se chamasse Vladimir Herzog”.
MEMÓRIA DIFÍCIL Em termos do patrimônio preservado, ela disse que poderia haver uma mudança no olhar lançado sobre as edificações históricas, a fim de pôr em relevo a memória difícil da história brasileira. “Se você for para Minas Gerais, tem toda uma tipologia de prédio que chama Casa de Câmara e de Cadeia. Ouro Preto diversas cidades ‘históricas’ têm Casa de Câmara e de Cadeia”, explicou. “E são todas tombadas, mas mais porque é arquitetura colonial, não é tombado pelo significado repressivo. E é claro que uma cadeia de uma cidade colonial que tinha escravos, deve ter diversas passagens de difícil memória”. A pesquisadora prossegue: “E isso vale para uma série de edifícios, como as igrejas da Bahia, barrocas, belíssimas, tombadas como arquitetura, como belas-artes, o que está correto. Não há nada de errado nisso. Elas são isso”, reconhece. “Mas são também toda a vida social que aconteceu lá dentro, e dentro de uma igreja baiana pode ter acontecido, aconteceu certamente, episódios de memória difícil”. Silvana defende a construção, na área de patrimônio, de “um olhar diferente”. “Talvez fazer outras perguntas, perguntas diferentes para os edifícios. Resgatar a história difícil de diversos monumentos que já foram tombados”.
FUTURO DO DOI-CODI
A professora Silvana Rubino: “Está na hora de a sociedade enfrentar essa ferida da ditadura”
Foto: Reprodução
Silvana espera que o prédio do DOI-Codi, agora que foi tombado, se converta num memorial, mas antes disso é precioso retirar a delegacia de polícia que funciona lá. “Mesmo porque, se esta é uma sociedade democrática, não dá para você ter uma delegacia de uma polícia que, espera-se, serve ao cidadão, funcionando num lugar de tortura, de repressão”. Uma vez resolvida a questão da delegacia, deve ser feito um trabalho para converter o prédio num centro de memória e consciência. “Temos
O assassinato de Vladimir Herzog, em 1975, em cela do DOI-Codi paulista,revelou os métodos do aparato repressivo da ditadura Foto: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp)/Coleção Brasil Nunca Mais
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Opositores do regime fichados pelos órgãos de repressão: 1) Antonio Nogueira da Silva Filho; 2) Antonio Raymundo de Lucena; 3) militante não identificado; 4) Arno Preis; 5) Carlos de Figueiredo de Sá; 6 e 7) Carlos Marighella; 8) José Raimundo da Costa; e 9) Carlos Lamarca; tortura era prática corriqueira
exemplos interessantes no mundo. No Chile há um museu que chama museu da memória e dos direitos humanos, que é basicamente um museu de mídia. Tem tomadas interessantíssimas, da imprensa do mundo inteiro, por exemplo, do momento em que o Allende caiu, e filmes que foram censurados na época”. “E há campos de concentração que hoje são abertos à visitação pública”, disse ela. “São sítios de memória, lugares de consciência, como se fala. Porque nem sempre é uma questão de lembrar. Uma criança não vai lembrar, mas ela pode tomar consciência do que aconteceu”. “A memória social é construída, não é dada”, lembra ela. “E mesmo quando se preserva algo, há que se construir uma narrativa ali. Por exemplo, Ouro Preto: Tiradentes e Aleijadinho não estão ali, à espreita. É a cidade inteira que, por meio de seus monumentos, suas placas, no que se escreve, vem reiterando a Inconfidência e a exuberância da arte barroca. É uma cidade pautada por Tiradentes e Aleijadinho. Com os monumentos da ditadura, precisa acontecer a mesma coisa: é preciso construir, socialmente, uma série de narrativas que expressem os diversos sentidos desses lugares”.
O GOLPE
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Os civis vestiram
a farda?
Foto: Arquivo Agência Estado
MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br
ecentemente, tanto o meio acadêmico quanto a imprensa têm utilizado a expressão “golpe civilmilitar” para designar o episódio que instaurou a ditadura no Brasil a partir de 1964. O objetivo é esclarecer que a iniciativa foi protagonizada pelos integrantes das Forças Armadas, mas contou com o apoio de diversos segmentos da sociedade, sendo que vários civis ocuparam cargos de destaque nos governos que se sucederam ao longo do período de exceção. A terminologia é contestada pelo professor Armando Boito Jr, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Segundo ele, o esforço de esclarecimento é positivo, mas a solução encontrada é equivocada. “Se quisermos destacar o fato de que não foram apenas os militares os responsáveis pelo que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988, devemos dizer que a ditadura militar brasileira foi a ditadura da grande burguesia e do imperialismo. Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico”, provoca. Na entrevista que segue, Boito fornece mais detalhes sobre esta sua análise. Jornal da Unicamp – Recentemente, tem circulado no meio acadêmico e na imprensa a expressão “ditadura civil-militar” para caracterizar o regime vigente no período 1964-1985. Fala-se também em golpe civil-militar. O senhor concorda com essa terminologia? Armando Boito Jr. - Eu não concordo com essa terminologia. Ela foi inicialmente utilizada pelas forças que executaram o golpe de Estado de 1964. Os documentos do governo Castello Branco falavam em “Revolução civil-militar”. O objetivo era legitimar a ditadura militar, ocultando que era o Alto Comando das Forças Armadas que tinha assumido o controle do Estado brasileiro. Portanto, essa denominação tem uma tradição de direita, conservadora. Mais recentemente, tal terminologia foi retomada por intelectuais progressistas. A intenção, agora, é outra. Querem denunciar que a ditadura foi apoiada por civis, e que não se tratou de um regime imposto pelas Forças Armadas contra a vontade da sociedade no seu conjunto. A intenção é crítica, progressista, mas a solução encontrada é equivocada e não atinge o objetivo pretendido.
Militares vigiam a rua onde morava João Goulart, no Rio de Janeiro, dias depois do golpe Foto: Antonio Scarpinetti
JU – Por que não atinge? Boito - Tal denominação comete pelo menos dois erros. O golpe de 1964 foi um golpe militar. É verdade que tivemos a participação importante de civis no movimento golpista e nos governos militares. Por exemplo, o Ministério da Fazenda, que era um órgão de grande importância, sempre foi ocupado por civis. Porém, o fundamental é o seguinte: o golpe foi organizado e executado pela cúpula das Forças Armadas e, durante todo o período da ditadura militar, sempre foi o Alto Comando das Forças Armadas que designou o chefe do Executivo Federal – o “presidente”. As Forças Armadas passaram a tutelar o conjunto das instituições do Estado brasileiro. Sim, houve apoio “civil” ao golpe. Os grandes empresários e o imperialismo financiaram a propaganda contra o governo João Goulart e parte da classe média manifestou-se na “Marcha da família com Deus pela liberdade”. Observe-se de passagem, contudo, que na então capital da República, essa marcha ocorreu apenas após o golpe de Estado. Essas manifestações foram a base social do golpe, não a sua direção. Não foi um partido político que derrubou o presidente João Goulart. Não foi a UDN que chegou ao poder. Essa é uma situação muito diferente daquela que verificamos nas ditaduras fascistas nas quais é um partido político organizado que assume o poder governamental e implanta a ditadura, como ocorreu na Alemanha e na Itália. É uma situação diferente também, e por outras razões, daquela que conhecemos com a ditadura do Estado Novo no Brasil. Em 1964, foi o general Mourão Filho que desceu de Minas Gerais com suas tropas, recebeu adesões de outras regiões militares e o presidente Goulart foi deposto. Ademais, o termo civil é vago, genérico, não tem, no caso, nenhum valor conceitual. O apoio ao golpe na sociedade não reuniu, ao contrário do que pode sugerir o termo “ditadura civil-militar”, o conjunto dos “civis” e nem a maioria deles. A maioria dos “civis” era contra
O professor Armando Boito Jr.: “Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico”
o golpe, foi vítima dele. Quando escrevemos ditadura militar, estamos nos referindo à instituição militar. Essa instituição funcionou, sim, no seu conjunto, sob comando unificado em defesa da ditadura. As dissidências, que ressurgiam periodicamente, eram eliminadas. Já quando escrevemos civil, estamos nos referindo ao conjunto da sociedade, e esta estava profundamente dividida diante do golpe. A maioria da classe operária, dos camponeses, parte da classe média e uma parte minoritária da burguesia sustentava, criticamente ou não, o governo Goulart e se posicionava contra o golpe de Estado. Uma vez vitorioso o golpe, passaram a fazer oposição à ditadura. JU - Se uma parte da sociedade, ainda que minoritária, apoiou o golpe e apoiava ou participava da ditadura, não é estranho usar apenas o adjetivo militar para qualificar o regime? Boito - Não, não é. Para compreender isso de maneira mais aprofundada temos de trabalhar com a distinção conceitual entre forma de Estado e bloco no poder. Vejamos a questão da forma de Estado. Ditadura militar é a denominação para a forma de Estado e para o regime político – a ditadura é uma forma de Estado e o fato de ela ser militar indica o essencial do regime
político então vigente – que foram instalados no Brasil em 1964. Essa forma de Estado caracterizou-se, como já indiquei, pelo controle do Alto Comando das Forças Armadas sobre o Estado brasileiro. O Executivo federal era o centro do poder de Estado e ele foi militarizado. Eram os militares que indicavam o “presidente” de turno. O congresso apenas referendava. A eleição indireta não tinha competitividade nenhuma. Quando a denominada “eleição indireta”, que não era eleição coisa nenhuma, deixou de ser meramente homologatória da decisão do Alto Comando das Forças Armadas, o que ocorreu por ocasião da eleição indireta de Tancredo Neves em 1984, esse fato evidenciou que a ditadura militar encontrava-se em crise. Além de controlar o Executivo Federal, as Forças Armadas estenderam seu controle às mais diversas instituições do Estado. As Forças Armadas agiam à revelia do Congresso: fecharam-no mais de uma vez, cassavam deputados eleitos, suprimiam e criavam partidos políticos etc. Controlavam, também, os governos estaduais: depuseram vários governadores eleitos, nomearam interventores militares em diversos Estados etc. A Constituição da ditadura, elaborada e aprovada em 1967, foi produzida sob a tutela das Forças Armadas. O Congresso Nacional, que se encontrava fechado pelos militares, foi chamado às pressas apenas para homologar a Constituição. O Judiciário estava sob controle militar. Guiava-se pela Constituição outorgada pelos militares. Os juízes de tribunais superiores que incomodassem os militares eram destituídos. As grandes empresas estatais eram, no mais das vezes, presididas por militares e tinham muitos militares nas suas diretorias e conselhos; os militares controlavam também a polícia política e as instituições que exerciam a censura sobre os meios de comunicação. Esse papel das Forças Armadas transcende a importância que, normalmente, as Forças Armadas adquirem em toda e qualquer ditadura. Como a ditadura é instaurada em momentos de crise que exigem, para a manutenção da ordem capitalista, maior atividade dos aparelhos repressivos, as Forças Armadas ganham, normalmente, importância em regimes ditatoriais. Mas no Brasil de 1964-1988, bem como nos demais países do Cone Sul à mesma época, o papel das Forças Armadas foi muito além dessa situação comum a todas as ditaduras. Naquela época, os movimentos populares e democráticos entoavam o coro “Vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”. Estavam corretos: no conceito, na métrica e na rima. JU – Os militares detiveram de fato o poder nesse período? Boito - Não exatamente. Os militares controlavam o processo de tomada de decisões, como ocorre
em toda ditadura militar. Porém, o conteúdo dessas decisões beneficiava alguns setores sociais em detrimento de outros. Aqui tocamos na questão da função social dessa forma de Estado que foi a ditadura militar. Devemos utilizar o conceito de bloco no poder ao qual me referi acima. Esse conceito refere-se, não à organização institucional do Estado, não às regras explícitas ou implícitas do jogo político e tampouco aos agentes – os militares, neste caso – que tomam as decisões fundamentais. O bloco no poder designa a relação das diferentes classes sociais e setores sociais com o conteúdo das medidas de política econômica, de política social e de política externa do Estado. Tal conceito designa, em resumo, as classes e frações que detêm o poder, isto é, as classes e frações de classe cujos interesses são priorizados pela política de Estado. No que tange ao bloco no poder, a ditadura militar não representou, de modo algum, o “poder dos militares”. As Forças Armadas agiram como representantes, fundamentalmente, dos interesses da grande burguesia e do imperialismo. É certo que os militares lograram obter algumas vantagens – melhoria salarial, mais autoridade em diferentes esferas sociais. Contudo, não foram eles os que mais ganharam com a ditadura militar. Quem mais ganhou foram as grandes empresas nacionais e internacionais, principalmente estas últimas. O governo João Goulart era um governo apoiado no movimento popular e que contemplava também a média empresa nacional, procurando impor limites ao capital estrangeiro. O fluxo de capitais para o exterior era regulamentado, o mercado interno era priorizado, havia barreiras de diversos tipos. Quem mais lucrou com a derrubada desse governo e com o milagre econômico da ditadura militar foram as grandes empresas, principalmente as estrangeiras, que cresceram em ritmo acelerado. JU – Essa distinção entre forma de Estado e bloco de poder é, então, fundamental para compreender a característica do regime? Boito - A distinção conceitual entre forma de Estado e bloco no poder é fundamental. No que se refere à forma de Estado, temos uma ditadura militar; no que respeita ao bloco no poder, temos o poder da grande burguesia. É certo que os burgueses são “civis”, mas o problema é que eles usufruíam do poder de Estado em detrimento da grande maioria da população que também era composta de “civis”. Logo, o termo civil só introduz confusão. Se quisermos destacar o fato de que não foram apenas os militares os responsáveis pelo que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988, devemos dizer que a ditadura militar brasileira foi a ditadura da grande burguesia e do imperialismo. Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico.
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Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014
ARTES PLÁSTICAS
As tintas da diáspora CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br
Era tudo terrível, sem amanhã”. Assim o pesquisador e crítico de arte Nelson Aguilar, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, define o clima que tomou conta da cena brasileira de artes plásticas após o golpe de 1964. “Houve uma diáspora. Quebrou-se o ambiente altamente promissor elaborado pela cultura livre acompanhada por governos democráticos”. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Aguilar fala sobre os principais nomes do período, e sobre a agitação cultural provocada e vivida tanto pelos que partiram para o exílio como pelos que ficaram para enfrentar os anos de chumbo. Jornal da Unicamp – Fala-se muito na resistência ou na denúncia do golpe em setores como a música popular e o jornalismo, mas pouco sobre as artes plásticas/visuais. Por quê? Nelson Aguilar – Por desconhecimento. A história da arte dos anos 60 no Brasil é pouco conhecida, mesmo por diretores de museus de arte moderna ou contemporânea. Teríamos que aproveitar o fato de que existem alguns remanescentes para elucidar o que foi realizado. As energias agora estão canalizadas em Hélio Oiticica, Lygia Clark ou Mira Schendel por razões mercadológicas, ignorando-se que o trio se revelou em razão de outros artistas, do diálogo fecundo entre eles e a cultura oficial ou marginal. JU – Quem são esses outros artistas? Aguilar – Nos anos 60 há artistas determinantes, que tomam outros rumos nas décadas seguintes, mas que devem ser estudados e levados em conta. Vem à memória o escultor italiano Efizio Putzolu, que elaborava peças visionárias, sempre brancas, criaturas em hibernação, flores impossíveis, uma parafernália que lembra um pouco o escocês Edoardo Paolozzi. Não se distinguia arte de política. A arte, quando perturbava, era imediatamente aceita por artistas mais politizados, como Waldemar Cordeiro. O que Marcello Nitsche produzia tinha repercussão. Seus objetos faziam crítica da vida urbana e, ao mesmo tempo, se valiam da paixão pelo automobilismo, pela velocidade. Era capaz de produzir cenários instigantes. Por falar em cenário, é impossível deixar de fora Flávio Império, o Helio Eichbauer do Rei da Vela, a sinergia entre Wladimir Pereira Cardoso e Vitor Garcia para deflagrar O Balcão, de Jean Genet, produzido por Ruth Escobar. JU – Como as artes interagiam entre si? Aguilar – As diversas artes se imbricavam. Uma obra de Sérgio Ferro, desse momento, tinha muito a ver com a transposição do lixo ambiental para o suporte bidimensional, embora tudo tivesse mais propensão a sair da tela do que de entrar nela. A arte gritava. Quando Cordeiro enviou ao Salão Nacional de Brasília, em 1967, uma flâmula branca escrito em letras vermelhas CANALHA, emulava algo das manchetes incisivas do Notícias Populares. Essa peça foi imediatamente censurada, pois atingia em cheio o alvo, os parlamentares comprometidos com a nova ordem. Cordeiro, gramsciano impenitente, sabia da importância da forma para transmutar hábitos. Um fato que escapa às atualidades: muitos conhecem a bandeira de Oiticica, onde estão gravadas as legendas Seja marginal seja herói. A arte final pertence a Cláudio Tozzi, que interpretou a proposta enviada por Hélio e criou a mancha tão vizinha às do teste de Rorschach que caracterizam a produção de Cláudio naqueles anos. Um vidro de tinta lançado no lençol monocromático explode em imagens, meio borrão, meio criatura. As bandeiras foram produzidas na casa de Flávio Motta, professor e crítico de arte de gênio, artista plástico. Flávio, que participou das origens do Masp, como o Satã de Baudelaire, ficou quieto, sonhando no inferno, até a figuração voltar, graças à pop-art. Aí saiu de si e assombrou os costumes.
lery a organizar a mostra de Hélio em 1969. Ele desembarcou de um cargueiro, chegou a Londres com parca ajuda de custo do Itamaraty. O novo diretor da Whitechapel, Mark Glazebrook, percebe que o brasileiro não tinha onde passar a noite e lhe oferece alojamento por alguns dias. Hélio residiu três meses na casa de Mark.
Fotos: Antonio Scarpinetti
Com a emissão do AI-5, que impeliu Caetano e Gil ao exílio, a cena cultural londrina se transforma num porto pirata em meio à época do endurecimento do regime militar. E havia os que ficaram. Esses tiveram a dupla carga de viver no Brasil e produzir. O exemplo mais elevado do que os russos chamam de exílio interior é dado por Mira Schendel, que prosseguiu como Klee, na Suíça durante o nazismo, exemplo de probidade artística. JU – O ano de 1969 parece ter sido especialmente dramático, com a censura militar à Pré-Bienal de Paris, no Rio, e o boicote em massa dos artistas brasileiros à 10ª Bienal de São Paulo. Houve outros momentos de choque, ou este foi o mais representativo, no contexto das artes? Aguilar – Era tudo terrível, sem amanhã. Artista era preso. Um pintor, depois de ter passado pelo cárcere, estando na rua e ouvindo sirene de polícia, se punha a correr. Mário Schenberg, a personalidade mais iluminada do período, foi preso. Sem Mário, a vida artística do período ficava inexoravelmente mutilada. Sua casa era um lugar aberto a todos os que gostavam de arte, fossem artistas, críticos, colecionadores, visitantes de fora. Era alguém com cultura filosófica imensa, aberto à arte e à teoria da arte chinesa. Recebia artistas em formação – os verdadeiros sempre estão em vias de se formar –, jovens, e era capaz de discernir um caminho ainda não consciente ao pesquisador. Admitia todos, ingênuos como Raimundo de Oliveira ou Waldomiro de Deus, com linguagem bem feminina, como Erika Steinberger, ou porosos à cultura afro-brasileira, como Niobe Xandó. De outro lado, Pietro Maria Bardi, no Masp, garantia, a partir de sua postura altiva, sobretudo para autoridades políticas que queriam promover suas prioridades artísticas, o lugar para a arte sem adjetivos. Walter Zanini que dirigia o MAC-USP acolhia gaviões e passarinhos sem estabelecer primazias. JU – Quais os principais artistas do período? Aguilar – Todos já mencionados. Gostaria de frisar que arte sempre fez parte de minha vizinhança, uma vez que o irmão, o artista plástico José Roberto Aguilar, exerce o ofício com muita garra, desde os anos 60. O pior que pode ocorrer é alguém discorrendo sobre arte sem nunca ter participado da criação artística, ainda que como compagnon du route. Sem essa cumplicidade, não se ingressa em nenhum ateliê, descamba-se na objetividade vazia. Os artistas do período? Antonio Dias, Antonio Manuel, Rubens Gerchman, Wesley Duke Lee, José Resende, Carlos Fajardo, Carmela Gross, Artur Barrio, Tomoshigue Kusuno, para mencionar os com quem mantive contato. Mas para abranger o todo se torna necessário mencionar críticos como Walter Zanini, Theon Spanudis, além dos já citados; galeristas generosos como Franco Terranova, da Petite Galerie do Rio; Emy Bonfim, da Atrium; e Anna Maria Fiocca, da Domus, em São Paulo. Interessante notar que o escritor José Agrippino de Paula, autor de Lugar Público e Panamérica, era um grande apreciador de artes plásticas e suas opiniões valorizadas pelo meio.
Nelson Aguilar: “O AI-5 fez um esparramo. Quem não tinha muita intimidade consigo, interioridade, partia para o exterior”
JU – Como o golpe e a relação dos artistas com ele, afetou os rumos da arte brasileira? Há reflexos de 1964 visíveis no que se produz hoje? Aguilar – Claro que o regime militar afetou a vida artística. Houve uma diáspora. Quebrou-se o ambiente altamente promissor elaborado pela cultura livre acompanhada por governos democráticos. O concretismo é fruto da vontade de autonomia. Sem ele, não haveria Lygia Clark e Pape, Oiticica, Mira, toda a arte subsequente. Essa força vinha do que subtendia a construção de Brasília, com todo o messianismo implicado. Meu irmão prestou vestibular de economia e ingressou na USP, impelido pelo exemplo de Celso Furtado, logo em seguida foi admitido na Bienal e nunca mais pisou na escola da rua Doutor Vila Nova. O ambiente artístico rastejou por mais de 20 anos para recuperar uma pequena faísca do grande fogo de antes do golpe. Evidente que no entremeio a arte cumpriu o papel de abrir fendas nos anos de chumbo, mas a socialização que existia minguou. Quando Jean Genet esteve no Brasil, em 1970, atraiu muitos visitantes célebres, entre os quais Fernando Henrique Cardoso e amigos. Um deles tentou a cumplicidade com Genet dizendo: “Nós também vivemos numa prisão”. O ex-presidiário, que estava aqui sob o pretexto de conferir a montagem do O Balcão e com o intuito central de encontrar Lamarca ou Marighella, lhe baixa a crista: “Escute, minha prisão não foi uma metáfora!” Tudo acontecia em meio à passagem do grupo Living Theater, que acabou expulso do país [o grupo de teatro americano foi expulso do Brasil em 1971, por meio de decreto assinado pelo presidente Médici]. Conto isso para mostrar a complexidade do momento. JU – Todos os artistas se engajaram contra o regime? Aguilar – Independentemente da politização ou próximos ao sistema, havia artistas intensos como João Parisi Filho que percebeu a plasticidade do submundo, marcando O Bandido da Luz Vermelha, de Rogerio Sganzerla. Uma vez, fui coletar assinatura para um dos tantos abaixo-assinados da época contra não-sei-o-quê no ateliê de Wesley Duke Lee, que se recusou a assinar porque o papel estava sujo! Wesley não se incomodava de se alinhar à direita, embora a arte e a maneira de viver contradissessem a opção todo o tempo. Conviveu em Roma com Cy Twombly, ambos completamente duros. Como vê, não dá para colocar tudo no mesmo saco, colar etiqueta e ditar regras.
JU – De que modo o golpe afetou a produção brasileira da época? Houve uma mudança perceptível de preferências temáticas após a queda do governo Jango, ou o AI-5? Aguilar – O AI-5 fez um esparramo. Quem não tinha muita intimidade consigo, interioridade, partia para o exterior. Londres virou Babilônia. A arte contemporânea brasileira já havia sido contemplada pela galeria Signals entre 1964 e 1966, expondo Sérgio Camargo, Lygia Clark, Mira Schendel e se preparava para mostrar Oiticica, quando fechou. Um dos organizadores da Signals convenceu o pessoal da Whitechapel Art Gal-
Obra de Hélio Oiticica