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O REI DAS MARCHINHAS VAI PASSAR O CARNAVAL EM
Casa
João Roberto Kelly, autor das maiores marchinhas do carnaval tá com hit novo e fala sobre a história e carreira
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Pode parecer estranho, mas o Rei das marchinhas de carnaval vai passar a folia em casa. Aos 84 anos de idade, o maestro João Roberto Kelly, autor de algumas das maiores marchinhas carnavalescas que nós conhecemos, se recupera de uma queda em que machucou o braço. Ainda assim muito gentilmente atendeu à reportagem de A TRIBUNA e com seu característico bom humor disse que estava apenas “Contundido. Como no futebol, né.”
Sua história no carnaval é incrível. Quem é que nunca ouviu a “Cabeleira do Zezé” , “Maria Sapatão”, “Mulata bossa nova” ou a “Dança do bore bore”?
Desde cedo João Roberto Kelly lidou com a música: Aos onze anos, começou a aprender piano com a mãe e com a avó. Mais tarde, estudou música e piano com a professora Zélia Lima Furtado no Conservatório Brasileiro de Música. Em 1957, seu pai, o escritor e jornalista Celso Octávio do Prado Kelly o apresentou ao cronista Leon Eliachar e Geysa Boscoli que o convidaram a musicar a revista “Sputnik no Morro”, de autoria de ambos. A peça estreou no Teatro Jardel no Rio de Janeiro, naquele mesmo ano.
Teve além das marchinhas, músicas em outros estilos gravadas por Elza Soares e Elizete Cardoso, duas das maiores artistas de todos os tempos.
Mas no mesmo ano em que musicava o programa Times Square, na TV Rio, surgiu o primeiro de seus grandes sucessos. Jorge Goulart gravou de sua autoria, em parceria com Roberto Faissal, “Cabeleira do Zezé” . Zezé era um garçom cabeludo de um bar na Avenida Princesa Isabel, em Copacabana e que fazia sucesso com a mulherada. Muito diferente do sentido dado hoje, em que até a palavra “transviado” mudou de sentido.
‘Transviado é o sujeito transgressor, um cara rebelde. Penso nisso e lembro do Carlos Imperial, que era nesse estilo e sempre cercado de mulatas”.
A palavra “bicha”, usada pelas pessoas na hora de cantar a marchinha, não veio de Kelly.
“Digo sempre: essa bicha não é minha (risos). Não sei quem foi que inventou de acrescentar isso na letra, sem minha autorização. Fico muito chateado. É algo que me aborrece”
Em 1981, quando o apresentador Chacrinha telefonou para pedir uma música sobre “mulheres lésbicas”, nas palavras do próprio, o compositor recuou. “Poxa, acho melhor não fazer essa”, respondeu, de pronto. Depois de tanta insistência, surgiu “Maria Sapatão”. Foi uma das músicas mais executadas do Carnaval de 1981. Mesmo com o nome controverso, em 2011 ela foi eleita a 9ª melhor Marchinha de Carnaval de todos os tempos pela revista VEJA.
E quem aos olhos de hoje, julga as músicas pelo seu teor politicamente incorreto, Kelly considera as críticas injustas.
“Nunca houve ideia ou intenção de ofender ninguém. Ainda que se tenha sim, um duplo sentido, era no sentido que de fato, deve ser visto o carnaval: como uma grande brincadeira, uma grande festa do faz de conta”
Mas ele vê isso como algo vindo de uma minoria de pessoas. Para ele, a grande parte do povo entende que o espírito é leve.
“O povo sabe que é uma brincadeira. As pessoas brincam e se divertem até hoje com as marchinhas, isso que me deixa feliz. Acompanhei todas as mudanças de comportamento e de liberação sexual ao longo de tantos carnavais. Minhas músicas são crônicas de tudo isso, coisas que eu não tive medo de falar — frisa ele. — Na época em que essas letras foram feitas, a cabeça era outra. Isso era tido como uma grande brincadeira. E é isso que penso hoje. O carnaval é isto: homem se veste de mulher; mulher se veste de homem; outra pessoa se fantasia de super-homem... É um “faz de conta”! Ninguém estava preocupado em achar que o “índio quer apito” era uma ofensa (em 1961, quando a marchinha foi lançada). Ninguém canta com a intenção de ofender alguém. Aliás, nenhuma de minhas marchinhas foi feita com essa intenção.”
Outro grande sucesso em parceria com o comunicador, que foi seu grande amigo, foi “Bota a camisinha, bota meu amor. Hoje tá chovendo, não vai fazer calor”, popularíssima marchinha até hoje.
Mesmo com temas tão controversos, garante que nunca foi censurado pela ditadura militar.
“A ditadura implicava, enchia muito o meu saco, mas nunca me censurou”, garante Kelly.
Foi na TV Rio que ele produziu e apresentou o programa “Musikelly”, exibido todas as quintas-feiras, às 20h30. Com uma hora de duração, o musical de João Roberto Kelly recebia os grandes nomes da nossa música e promovia concursos que se tornaram famosos e referências na época.
O sucesso o levou no ano seguinte para a TV Globo, onde apresentou o programa “Tonelux” e uma nova versão do seu já consagrado “Musikelly”.
Kelly voltou à TV Rio no início da década de 1970 para apresentar o “Rio dá Samba”, que ficou 12 anos no ar. Entre as décadas de 1970 e 1980, percorreu mais de cem localidades do Rio de Janeiro com o espetáculo Rio dá samba - Kelly e mulatas, e viajou por todo o Brasil e exterior, além de ter seu programa de televisão.
Foi para a TV Tupi, em 1980, para fazer o programa “Conversa de Botequim” e ainda passou pela extinta TV Corcovado; pela TV Educativa do Rio de Janeiro, a TVE, e pelo canal 30 da NET.
Outra grande história é quando trouxe para o Rio de Janeiro, quando foi presidente da Riotur, o Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, depois de fazer um passeio de carro pela orla carioca com o inglês Bernie Ecclestone, então dirigente máximo do esporte no mundo. “Quando chegamos ao autódromo o Bernie estava encantado com o Rio de Janeiro”, contou Kelly. “Quem é que não fica, né?”
O pianista, compositor, apresentador e produtor musical como grande admirador do carnaval percebe a folia hoje como uma grande forma de fugir dos problemas do cotidiano no país: “O carnaval cresceu muito. Mas apesar disso, a energia é a mesma, a alegria é a mesma de trinta, quarenta anos atrás. E tem que ser, afinal a realidade é muito dura.”, relembrou Kelly que ainda lembrou com saudade dos bons tempos do Cordão do Bola Preta, um dos blocos mais tradicionais do Rio.
“A coisa que mais me deu emoção no carnaval foi ver o Cordão do
A Nova Marchinha De Jo O Roberto Kelly
Eu sou gay O mundo é meu Você não é? Azar o seu!
Eu sou gay O mundo é meu Você não é? Azar o seu!
Eu sou fantasia Alegria sem igual Se não fossem os gays não existia o carnaval
Bola Preta cantando as minhas músicas. Foi muito especial”, lembrou com muito carinho o maestro.
Hoje, João Roberto Kelly continua ativo. Vive em Copacabana e produziu recentemente uma marchinha em homenagem a população LGBTQIA+.
“Os gays são os grandes trabalhadores do carnaval. Acho que eles merecem um elogio, uma homenagem. E sem piada!” diz Kelly.
Composta em parceria com o produtor Lucio Mariano — e gravada por Carlinhos Madame —, “Eu sou gay” embalará, neste ano, o desfile do bloco Confraria do Peru Sadio, com cortejo marcado para a segunda-feira de carnaval, em Copacabana
“Essa é uma música importante para mim. Não sou gay. Tive até fama de pegador no passado (risos). Mas sempre fui muito amigo de travestis e “musiquei” o primeiro show de travestis no Brasil, o espetáculo “Les girls” (na década de 1960), que lançou Rogéria, Divina Valéria, Jane Di Castro, Cláudia Celeste e outras mais... — rememora. — Sempre me perguntam se tive caso com elas. Não tive. Se quisesse ter, teria, sim.”
Kelly até iria sair no bloco, mas a contusão não deixou.
“Eu ia sair no bloco do Peru sadio, mas a contusão não deixou. Fica para o ano que vem (risos). Vou ter que me contentar com o desfile na televisão, com o meu querido Milton Cunha.”