Nova Guanabara

Page 1

Nova Guanabara



Nova Guanabara

Axelle DĂŠchelette



I. Rio de Janeiro, 2015. No meio do caminho entre a Copa e as Olimpíadas, surgiram 50 mil hectares de poeira e entulho privados de significado; uma nãocidade: está em obra. Quis me aproximar dela, entrar naquilo que deixou, por um tempo de ser rua, bairro, vida. O urbano absolvido, as ruas destripadas. Quis entender a Guanabara ausente, o quintal colonial escondido. Através do andar fui ao encontro do Porto Maravilha em gestação. À deriva me adentrei sem direção à procura dos monumentos efêmeros, presos em uma duração indefinida e segurados entre o a baía e os morros. A cidade nasceu aqui entre os quatro conventos construídos pelos portugueses ao chegar: Santo Antônio, São Bento, Conceição e o Castelo, que hoje é um triste prédio de estacionamento. Tem também o morro da Providência, a primeira favela, e a Praça Mauá onde desembarcaram os escravos. O berço do Rio, se não for mesmo do Brasil. Colada ao mar, a primeira cidade se expandiu pela costa até a Quinta da Boa Vista e depois em direção a Botafogo. Vieram as grandes obras, a famosa Passos, e a modernidade. Prédios cresceram em todos os sentidos. Mas do outro lado das torres de vidro o Porto se conservou. Subsistiu a velha cidade, a primeira Guanabara que está hoje renascendo. Fui visitar esse espaço antes dele se transformar e presenciar esse intermediário entre o passado e o futuro. Hoje, o passeio na área é um tempo fora do tempo, em desfase do presente. As obras são essas ruinas ao revés, descritas por Robert Smithson em

5


1967 andando ao longo do rio de Passaic, reparando nos monumentos da zona industrial. “Os prédios não caem em ruina depois que eles são construídos, mas emergem em ruina antes de serem construídos”. O Porto concentra agora monumentos travados em um presente esticado. Testemunham do bairro anterior e obsoleto, mas também do futuro ainda incerto. The last monument was a sand box or a model desert. Under the dead light of the Passaic afternoon the desert became a map of infinite disintegration and forgetfulness. This monument of minute particles blazed under a bleakly glowing sun, and suggested a sullen dissolution of entire continents, the drying up of oceans – no longer were there green forests and high mountains – all that existed were millions of grains of sand, a vast deposit of bones and stones pulverized into dust. Every grain of sand was a dead metaphor that equaled timelessness, and to decipher such metaphors would take one through the false mirror of eternity. This sand box somehow doubled as an open grave – a grave that children cheerfully play in. *

* Roberth Smithson, A Tour of the Monuments of Passaic, New Jersey, Artforum, December 1967

A obra não pertence a uma época específica, e nem a um espaço delimitado. Está em suspensão em relação à cidade por ser passageira; está determinada a não permanecer e assim, a não ser lembrada, identificada ou localizada. Sua posição: Porto, é uma ficção afirmada pelo mapa e as sinalizações; “obras no Porto”. Estando nelas se desvanece o bairro; o espaço-tempo é reduzido à obra em si, à poeira, ao entulho. O que foi – e serão – ruas e avenidas são agora uma paisagem flutuante, desvinculada da cidade. A


deriva me inseriu na paisagem das ruinas ao revés do novo Porto em formação, materializando as dimensões reais do território sob as linhas do mapa uniforme. Achei o que as legendas não indicam: os monumentos efêmeros, bloques de concreto, pilhas de tubulações, canos vazando. Ruas abertas, calçadas em construção, paisagem desfeita. Ao mesmo tempo que os passos inventam a nãocidade em obras, o deslocamento do corpo estende as fronteiras traçando linhas do Centro ao Porto, como pontes entre a cidade e seu inconsciente. Lá está sendo testado o futuro sem percebermos. Na margem vazia da Guanabara um bairro novo está nascendo da poeira, um espaço entre hoje e amanhã, o Rio existente e aquele em por vir. Vivenciei a fronteira entre a cidade experimentada e a cidade fictícia, me colocando no equilíbrio de onde posso estar. Me incluí na paisagem das margens, aquela dos vazios e dos viciados; do entulho e dos pedreiros. Foi um desafio aos limites da cidade segura, contradizendo as categorias antes delas mesmas se transformar quando o Porto Maravilha nascer.

7


8


9


10


Rotas no Porto 23 out - 29 nov 2015

11


12


13


14


15


16


17


18


19


20


II. Peguei o metrô, depois a bike. Ponto de partida: Praça Mauá. Foram cinco viagens de exploração das obras, dos Cais ao Santo Cristo, descobrindo um outro bairro. Fui traçando um novo mapa, fechando rotas, unindo pontos antes isolados um dos outros e me familiarizei com um espaço que não conhecia, desconstruindo o medo. Comecei as derivas com cautela, seguindo à intuição mais primitiva do homem. Atenta aos indícios de perigo. Mas aos poucos incorporei as referências que estruturam o bairro e suas ruas: a obra surreal dos Cais, o acampamento de cracudos, as gráficas, a boca de fumo e o teleférico. Três ruas: a Sacadura, Pedro Ernesto e Gamboa. E vários monumentos esparsos, estatuas do efêmero: buracos, areia, entulhos diversos. Meus caminhos preencheram o mapa abstrato do Porto e revelaram seu conteúdo, como se fosse um filme negativo.Mas a obra deformou a linguagem da rua carioca e foi preciso mergulhar no bairro para perceber os novos códigos. O teleférico me propulsou no Porto verdadeiro, onde a Guanabara toma conta do horizonte; as gruas, a Linha Vermelha, a Ponte. E entre o mar e a favela descobri a vista caótica da Vila Olímpica, a maior das obras. Mas cheguei depois da hora: uma enorme estrutura de concerto já substitui o que tinha antes. Agora é impossível conceber o que existia. Ruas e 21 casas? Terrenos vazios? Ou galpões ocupados?


22


Impresso no Rio de Janeiro Dezembro 2015

23



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.