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BABEL POÉTICA Nº 4 | agosto/setembro 2011
Ministério da Cultura
BABEL Poética
Ano I, n.º 4 – agosto/setembro de 2011 Copyright © dos editores e dos autores BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais. MINISTÉRIO DA CULTURA Ana de Hollanda | Ministra Secretaria de Políticas Culturais Sérgio Duarte Mamberti | Secretário ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSA João Maurício de Araújo Pinho | Presidente REDE DE REVISTAS PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO Sergio Cohn e Elisa Ventura | Coordenadores Tatiana Louzada | Produtora Luana Villutis | Coordenadora de rede Filipe Gonçalves e Elisa Ramone | Assistentes de Produção REVISTA BABEL POÉTICA | babelpoetica.wordpress.com Ademir Demarchi | Editor | ademirdemarchi@uol.com.br | Santos/SP Amir Brito Cadôr | Projeto Gráfico e Edição Gráfica | amir_brito@yahoo.com.br | Belo Horizonte/MG Daniela Maura | Assistente de Edição Gráfica | danimaurasan@gmail.com | Belo Horizonte/MG Paulo de Toledo | Revisão | paulodtoledo@uol.com.br | Santos/SP CONSELHO EDITORIAL Ademir Assunção (SP), Cláudio Portella (CE), Jorge Luiz Antonio (SP), José George Cândido Rolim (CE), Lúcia Rosa (SP), Makely Ka (MG), Marcelo Chagas (SP), Márcio-André (RJ), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Mauro Faccioni Filho (PR/SC), Nilson Oliveira (PA), Paulo de Toledo (SP), Ricardo Corona (PR), Ronald Augusto (RS), Silvana Guimarães (MG) e Susana Scramim (PR/SC) Colaboradores desta edição Adelaide do Julinho (MG); Alberto Martins (SP); Alberto Pucheu (RJ); Ana Guadalupe (PR/SP); Ana Peluso (SP); André Luiz Pinto (RJ); Artur Gomes (RJ); Carlos Vogt (SP); Casé Lontra Marques (RJ/ES); Cláudio Daniel (SP); Cristiano Moreira (SC); Daniela Maura (SP/MG); Denise Freitas (RS/SC); Dennis Radünz (SC); Edimilson de Almeida Pereira (MG); Eduardo Jorge (CE/MG); Eduardo Lacerda (RS/SP); Enzo Potel (SC); Estrela Leminski (PR/SP); Fabio Weintraub (SP); Fabrício Corsaletti (SP); Fabrício Marques (MG); Fernando Koproski (PR); Flávio Viegas Amoreira (SP); Francisco dos Santos (MS/SP); Joana Corona (PR); José Geraldo Neres (SP); Mario Alex Rosa (MG); Mauro Faccioni Filho (PR/SC); Miguel Sanches Neto (PR); Paulo Franchetti (SP); Pipol (SP); Raquel Stolf (SC); Renato Rezende (RJ); Reynaldo Damazio (SP); Ricardo Aleixo (MG); Ricardo Corona (PR); Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR); Ricardo Silvestrin (RS); Rodrigo de Souza Leão (RJ); Rodrigo Madeira (PR); Ronald Augusto (RS); Rudinei Borges (PA/SP); Sabrina Bandeira Lopes (PR); Silas Correa Leite (SP); Victor Del Franco (SP); Vinicius Lima (PR). Imagens Ana Paula Garcia, Julia Campos e Nina Aragón p. 2 (detalhe) Marcelo Sahea “ego” p. 5 www.sahea.net/ Luise Weiss p. 8 e 20 Luciana Bertareli p. 11 http://lucianabertarelli.blogspot.com/ Patricia Franca série “A questão longínqua”, instalação [fotografias, desenho e pintura] p. 27 e 59 http://www.eba.ufmg.br/patriciafranca)” p. 50 Letícia Weiduschadt série “Sobre a distância entre mim e você” p. 35 e 36 Daniela Maura p. 48 Mario Alex Rosa AR, objeto que pertence a série “A régua da memória ou a regra da memória” p. 65
Capa Amir Brito Cadôr, sobre fotografia de Silvana Leal Poema-logotipo (editorial): Paulo de Toledo Fotografias e vinhetas: Daniela Maura Gestão do Projeto Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência www.projetocamara.org.br Rua Caminho dos Barreiros n.º 491 – Beira Mar CEP 11040-020 São Vicente –SP Agradecimentos Expressamos nosso reconhecimento a todos os que têm colaborado para a concretização deste projeto, em especial aos autores que nos autorizaram a publicação de imagens e textos. Impressão e Distribuição Programa Cultura e Pensamento/MinC Tiragem 10 mil exemplares - Distribuição Gratuita – Venda Proibida Correspondência Ademir Demarchi / BABEL Poética Rua Espírito Santo, 55, apto. 36 CEP 11075-390 - Campo Grande - SANTOS – SP
Esta publicação foi selecionada entre os projetos que se inscreveram no Programa Cultura e Pensamento – Seleção Pública e Distribuição de Revistas Culturais. Foram escolhidos quatro projetos, e desta forma contemplamos quatro revistas culturais bimestrais cujas tiragens, somadas, chegam a 240 mil exemplares. O objetivo desta iniciativa é estimular a criação de publicações culturais permanentes, e de alcance nacional – não apenas em sua distribuição, mas também em seu conteúdo. Ao patrocinar este projeto, a Petrobras reafirma, uma vez mais, seu profundo e sólido compromisso com as artes e a cultura em nosso país – confirmando, ao mesmo tempo, seu decisivo papel de maior patrocinadora cultural do Brasil. Desde a sua criação, há pouco mais de meio século, a Petrobras mantém uma trajetória de crescente importância para o país. Foi decisiva no aprimoramento da nossa indústria pesada, no desenvolvimento de tecnologia de ponta para prospecção, exploração e produção de petróleo em águas ultra-profundas, no esforço para alcançar a auto-suficiência. Maior empresa brasileira e uma das líderes no setor em todo o mundo, a cada passo dado, a cada desafio superado, a Petrobras não fez mais do que reafirmar seu compromisso primordial, que é o de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Patrocinar as artes e a cultura, através de um programa sólido e transparente, é parte desse compromisso.
CULTURA E PENSAMENTO é um programa nacional de estímulo à reflexão e à crítica cultural. Desde sua primeira edição em 2005, seleciona e apoia projetos de debates presenciais e publicações. O objetivo do programa é dar suporte institucional e financeiro a iniciativas que fortaleçam a esfera pública e proponham questões e alternativas para as dinâmicas culturais do país. Em 2009, o Programa abriu a terceira edição dos editais para financiamento de debates e de periódicos impressos de alcance nacional. Os editais são abertos a propostas de intelectuais, pensadores da cultura, artistas, instituições e grupos culturais, pesquisadores, organizações da sociedade civil e outros agentes, visando à promoção do diálogo sobre temas da agenda contemporânea. O projeto de revistas do Programa Cultura e Pensamento busca ofertar gratuitamente conteúdos de elevada qualidade a um público amplo e diversificado de leitores, através de uma rede de circulação formada por 200 pontos de distribuição em todo território nacional, entre eles instituições culturais, universidades e pontos de cultura. Ao longo dos 24 meses o projeto prevê o lançamento de 20 títulos, cada um com 6 edições bimestrais, totalizando a circulação gratuita de 1.200.000 exemplares de revistas com discussões sobre arte e cultura, oriundas de diversos estados do país. A rede abrangerá mais de 200 colaboradores editoriais de cinco regiões e 19 estados brasileiros. A edição 2009-2010 do Edital de Revistas do PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO tem patrocínio da Petrobras e é realizada pela Associação dos Amigos da Casa de Rui Barbosa. Este projeto foi contemplado pela seleção pública de revistas culturais do programa CULTURA E PENSAMENTO 2009/2010
EDITORIAL
E
sta quarta edição de Babel Poética, de uma série de 6 planejadas, tem como tema norteador para seleção dos textos a ideia de um “eu” poético presente nos poemas. Desse modo, vai-se dum “eu” poético egocentrado, que não se ocupa com essa questão, típico de muito do que se faz na poesia contemporânea, a outros em que ela é problemática, ecoando Rimbaud e reflexão. A esses somam-se poemas em que esse “eu” não se espelha apenas em si mesmo, mas também em “outros”, ou no “outro”, colocando o escritor em confronto social na medida em que esse “eu” existe porque há um “outro”. E é esse “outro”, como um ponto do teatro, que dá o mote para o poema se fazer, rompendo a esquizofrenia egótica e se abrindo para a complexidade das relações sociais, expondo um país obscuro, cuja miséria começa em casa e continua nas ruas, e no qual se pode ter no “outro” não apenas o diverso, mas o adversário, como uma cobra pronta para picar. Essa escolha editorial é motivada como desdobramento dos temas das edições 1 (como se pensa o país), 2 (como se pensa o local em que se vive) e 3 (fronteiras), todas orientadas pelo tema que se sobrepõe a elas, “Poesia na Era Lula”, continuando a proposta de mapeamento da poesia nacional, com presenças regionais de todos os pontos do país, nos mais variados registros.
Assim, se num poeta o egocentrismo se confunde com loucura e ojeriza ao outro, noutro poeta ele é a afirmação do combate de que a vida só faz sentido se for consumida com poesia, ou ainda com determinação sobre a vida prosaica para que, com a poesia, sejam deixadas marcas que perdurem. O utopismo de um tropeça na ironia do outro: não há nada mais contra que se rebelar, a não ser contra si próprio... justamente esse que não é levado a sério por si mesmo, ou que em outra época teve que se travestir de fraque. O eu poético se confronta com metáforas: com míopes, cegos, prostitutas e cafetões, com jogador de futebol, lutador de boxe, com artistas e escritores suicidas, negros, pobres destituídos de membros e que cagam nas ruas — ele é um dublê de si mesmo, torto e estragado, ou até mesmo aquele em que falta a mão, perfeito diante daquele que deseja ser a perna que falta numa mendiga. Mas pode ser apenas — e isso é tudo e o suficiente — um lírico que se satisfaz com falar de amor. Contida — em metáforas como “vontades que nascem de um ouriço” — ou derramada, “a poesia é o fausto de uma farra”: a experiência poética sugere que os que escrevem nascem “talhados para a madeira ou para o trato dos metais” mas, sendo a “vida sem propósito” seu próprio nome, só podem se contentar, com fascínio, com as palavras.
Mauro Faccioni Filho (PR/SC)
ser o dublê de si ser o duplo do só dublar o ser em si estar onde está só cereal dublê do pó duplo dublê de mim
Rodrigo de Souza Leão (RJ)
CERTEZA SEM NUVENS E ESTRELAS nunca saio de mim por isso sou só tenho uma camada de pó tomo remédios coloridos escuto com três ouvidos e vejo com um olho só agora me olha e me diz se estou certo
COMPULSÃO lavo as mãos toda vez que toco alguém e não me toco depois de ter tocado quando o lixeiro vem faço o máximo para que não exista nenhum toque entre nós
se sou mesmo este céu deserto
quando o carteiro vem com o vírus dele
MYSELF
tomo cuidado para não haver qualquer contato
quantas imagens distorcidas pode ver o louco quantos monstros como aquele que tinha cabelo nas costas barba por fazer carregando um canivete pra furar um revólver pra atirar e milhões de coisas dentro do bolso interno inclusive um pequeno espelho pelo qual me olho percebendo estarem grandes os fiapos das narinas
detesto que me toquem e que falem tocando detesto cumprimento de mão com mão quando cumprimento qualquer um logo lavo as mãos vejo sujeira em todo lugar menos em minha mente o lugar mais sujo do mundo
[nasceu no Rio de Janeiro-RJ em 4/11/1965 e morreu em 2/7/2009; poemas publicados no e-book Cataclisma, na revista www.germinaliteratura.com.br]
Ronald Augusto (RS)
EM RESPOSTA A UMA SOLICITAÇÃO QUE LHE FIZERAM que deus em sua teia viúva a tenha aquela época clara em que cabra seco carne branca de peixe convertia a duras penas etíope em mussum músculos música tirando proveito da cena circundante enquanto revirava algo como o monturo da metáfora o kitsch da função poética da linguagem e para não entrar em atrito com o que regrava a letra homens de letras rascunhavam seus poemas nodosos reservando em alguns instantes dessas obras abertas (alavancas armadas da impureza rarefeita) um lugar legal ao corso negro uma fossa de onde negros após entrados saíam asperamente apetrechados assim sendo eu por exemplo concordante com o que à época vigia viria a público como aquele negro urubu de fraque uma negra cabelo adelgaçado a fogo (apara do estupro escravagista) por sua vez sem réstia de dúvida consistiria um destaque libação libidinosa a escorrer sobre toda a audiência ovacionando sem pudores de pé a entrada da mulata carnuda adoração odorante mas aos poucos outros vieram erupções em solo estéril
los porcinos y tarados protectores de las letras (um cubano assim os apedrejava) representavam os estudos culturais e o movimento geral das elites desalienadas nossa poesia então foi nomeada emergente eu de minha parte posso testemunhar que conheci apenas dois poetas emergentes: arnaut e sordello entretanto nenhum deles é negro e ambos para todo o sempre agitarão suas almas opacas na montanha do purgatório mas estes episódios remotos sub produtos de língua e literatura e de época enfim mortas já não nos sacode o interesse tudo pode ser re-sumido agora num singelo verbete que a mim francamente não me pesa ficar sem redigi-lo
[nasceu em Rio Grande-RS e vive em Porto Alegre-RS; mais em: www.poesia-pau.blogspot.com]
Ricardo Corona (PR)
SETE VIDAS PARA O POETA a poesia não cabe numa vida. fernando pessoa — fingidor de outras personas — disse: uma vida inteira cabe num poema de oito versos. se uma vida não basta para apenas um poema quantas vidas se desdobram numa obra?
das sete vidas separei quatro. torrei três rapidamente. refazendo as contas : das quatro ainda me resta uma
nas minhas contas sete dariam (com sobras ) igual ao gato.
que fazer com essa vida?
das sete, economizo três para serem traídas, vendidas, doadas
vento encanado? morte matada? amor mal curado?
( pra alguma revolução pra algum teste que nos salve dessa peste ) não, melhor quatro. quem ainda duvida que este vate não queira queimar seu último volt ? bang ! essa ficha quero gastar logo de saída. para o status cu e demais confrarias do louco lucro, nenhuma vida,
bang? não. um suicida não se repete jamais.
tanto faz fiquem com ela desde que me dêem licença depois de morrer quatro vezes das minhas sete vidas tenho ainda três pela frente e essas não vendo não dou não troco não empresto serão consumidas com poesia
nenhuma vida para os $angue$$uga$ meu ócio para os homens de negócio [nasceu em Pato Branco-PR e vive em Curitiba-PR; mais em: http://blogdocorona.blogspot.com/]
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Ricardo Silvestrin (RS)
EU E O JUMENTO
O MENOS VENDIDO
além de dor e sofrimento o que faz a minha vida diferente da vida do jumento tudo um dia vai virar esquecimento só fica o que fiz de humano o que não sofre e sua como o bicho o que não rasga e murcha como a planta o que não se esfarela como a rocha o que não morre como o homem e o sol no horizonte o que não cai no buraco negro como essa galáxia que estava aqui agora há pouco
Custa muito pra se fazer um poeta. Palavra por palavra, fonema por fonema Às vezes passa um século e nenhum fica pronto. Enquanto isso, quem paga as contas, vai ao supermercado, compra sapato pras crianças? Ler seu poema não custa nada. Um poeta se faz com sacrifício. É uma afronta à relação custo-benefício. *** o mosquito grita qualquer coisa no meu ouvido podia ser um aviso algo importante ele insistiu várias vezes gritou o mais que pôde tapei até a cabeça *** vou me rebelar – mas contra quem? na poesia concreta já desceram a casseta os modernistas, nem pensar, são a lista do vestibular é moda desfazer os marginais como se os poetas estivessem nas colunas sociais vou me rebelar contra mim tome isso, tome aquilo, Ricardo Silvestrin!
[nasceu e vive em Porto Alegre-RS]
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Estrela Leminski (PR/SP)
POESIA, 18 SECULINHOS
Para Makely Ka
Especialista em línguas, atendo a ambos os sexos. Faço oral, marginal ou o que a imaginação mandar. Sem rima cobro mais caro. Atendo em domicílio, em local próprio, ou no meio do caminho, se tiver uma pedra. Topo poetas menores, mas peço sigilo. Garantia da sua completa satisfação ou suas palavras de volta.
Meus poemas histéricos não aceitam o não Eu obsessiva finjo que não quero Eu tento ser sincera mas eles continuam fazendo mistério Tentamos de tudo Terapia em grupo Concretismo Monastério Eu não aguento mas nem com reza braba meus poemas me levam a sério
[nasceu em Curitiba-PR e vive em Santos-SP; mais em: http://leminiskata.blogspot.com/]
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Ana Guadalupe (PR/SP)
20051002 se prometi que seria mulher serena, serafina li no dicionário uma palavra sábia sentei e lhe mostrei minha ________ me esfregou como uma lâmpada (genial?, porém solitária) :sou um selo, uma santa auto-explicativos: faço legendas novas em folha para buffalo ‘66. não consigo articular uma boa variedade de palavrões: sempre uso merda. talvez porque não tive juventude. ou esta ainda não chegou. busco objetos-de-desejo-cultural como se isso me salvasse da mediocridade. raciocínio inverso: ser medíocre requer muita sinceridade. minha geração vive (d)essa crise, acho. sofro de titanismo e provavelmente não tentarei mais ser a porta-voz da “geração”. há anos não recebo cartas par avion e há anos não participo do clube da barbie. estive filosofando sobre a ditadura da libertinagem, entre outras. pensei em roberto freire e os negócios “tesudos”. devo concluir minha busca em breve. confesso ter fios de cabelo muito grossos e algumas piadas internas, entre eu e minhas células.
20051108 20 anos, esta-é-minha-vida que me perdoe a pretensão, sugerindo e adorando brilho algum que não se escreve, repito, não se escreve, não se ri ou proclama, é mais secreto: não me acostumei a demonstrar alegria tristeza creio que tenha praticado muito bem e com freqüência, um mimo, um talento, uma inclinação temperamento colérico, não me lembro porém isso não explica nada, só diverte penso em guardar lápis, guardanapos escrever tudo e todos que vi, invisível o orgulho de desastres e desventuras mas aquilo passa, penso que envelheci seco o rosto não sei, vago no entanto, continuo vulnerável maxilar pequeno, pés horrorosos língua de carne entre os dentes me perdoe se quando vem com sorrisos, docinhos, desculpas me mantenho severa e (f)rígida disfarço qualquer tremor e certeza pareço estourar as bexigas hoje, todavia, voltei a ler rayuela voltei a cumprimentar suas axilas por instantes, aposte, explodi de alegria
[nasceu em Londrina-PR e vive em São Paulo-SP; mais em: http://welcomehomeroxy.blogspot.com/]
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Cristiano Moreira (SC)
O OURIÇO
O CALAFATE MÍOPE
Nascera de um ouriço suas vontades, por isso difícil conviver com seus desejos, causavam-lhe dores em todo o corpo; não podia caminhar, erguer os braços para orar e solicitar auxílio às divindades, mesmo porque não sabia a que entidades recorrer, nem mesmo podia desfrutar do prazer das ereções; estas eram inigualáveis em sofrimento: mordeduras de agulhas no tecido cavernoso. Sua morada, seu corpo rejeitara-lhe qualquer possibilidade de emancipação e gozo.
Eu, calafate míope, calafate háptico toco as imagens antes do fim, tenho um dedo acoplado às pupilas e papoulas dançando no porão.
Pensou que se alguém o atirasse ao mar (mergulho sem sombra, a respiração profunda e almejada) poderia enfim saborear léguas maravilhosas cujas transformações derivam de esquecimentos e, ao menos a sensação torpe e falsa da alegria teria o sabor; acostumar-se-ia com os prazeres efêmeros do movimento sem destino ou propósito. Rolaria pelo cemitério marinho até desbastar os espinhos e quem sabe tornar-se uma estrela ou simples seixo. Sair caminhando pela areia de alguma praia em neblina onde ninguém saberia seu passado de criatura execrável.
Os fantasmas da madeira fulguram meu olho fraco, golpeiam forte o ferro, figura uma revoada de pássaros. Faíscas bailam na palma da mão. Não chegam aos olhos, cansam antes. Ao meu lado, fulvo, surge um pássaro do oco da tábua. Mau agouro. Fico coberto de penas: escurece.
[nasceu em Itajaí-SC e vive em Navegantes-SC; mais em: http://www.poetasnosingular.com.br]
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Paulo Franchetti (SP)
Fui talhado para a madeira ou para o trato dos metais. Por isso estes dedos grossos e a palma larga destas mãos quadradas. Mas não segui o veio redentor, nem propus ao metal a sua cor correta. Não colhi a pasta bruta, não a modelei, não bati o ferro até a forma útil, nem o manejei no gesto que costura a vida e a morte das sementes. Há pouco, distraiu-me o avião que se movia sobre as linhas amarelas, no ritmo da música de bordo. Meu pai antes de mim, meu avô antes de meu pai. E uma lista de nomes sem rosto que se afogam no
UM PULHA de espadim, bonzo eramá, Primaz da confraria do Bangu, Espinhento tal qual um babaçu Azulado como um baiacuará, Se finge provençal, nascendo cá: Mudando o sobrenome o gabiru Quis borrar o natal caaguaçu E o pátio onde dançou o canimá. Mas mais manco é na ideia que no nome: Publica verso, em tudo mete a mão, Franguinha que se toma por ebome, Soldado que se julga capitão: Por timbre tem somente o codinome E a fama de budista bobalhão!
esquecimento. Todos oficiaram os ritos básicos da vida. Apenas eu, com o que me deram, contentei-me com palavras. Agora, sem outro peso nas mãos, envelheço sendo ainda o que está sempre chegando e olhando à volta, sem rumo, para o lugar estranho.
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[nasceu em Matão-SP e vive em Campinas-SP; mais em: http://www.unicamp.br/~franchet/]
Joana Corona (PR)
rito de iniciação
olfato
você não pode se apaixonar, dizia a colega anciã, com quem irá dividir o ponto na esquina com a muricy e faz programa no hotel que a iniciante faria, uma espelunca chamada love, com letreiro de neón rosa-piscante. é a maior furada. mas tem de aprender a controlar raiva nojo e medo. nem deixar que te encostem o pau em lugar algum sem camisinha. também não deixa te levarem pra longe, porque você nunca sabe o que podem fazer contigo. ih, já me estraçalharam que você nem imagina, bateram muito, porrada sem dó e pontapé sem porquê, não tinha ninguém pra me ajudar, ainda me largaram na estrada toda fodida, onde passei a noite caída, até conseguir andar, já com sol. a novata arregalava mais seus olhos estourados, esbugalhados de pavor profundo. mudice entredentes. nem se mexia nem mal piscava. a anciã saiu para um programa e ela, com sua coragem esvaziada, sumiu. não foi nessa noite sua estreia.
entraram no quarto, era um apê no tijucas, da cafetina. são dez que atendem ali. o quarto é gozo só, passa uma e outra e limpeza dia sim dia não. cheiro fica insuportável que só sentindo para saber da ânsia, misturado ao calor abafado que cozinha. verão de arder a alma, ô inferno. de derrubar o corpo em vagareza. de amolecer a fala. anima, vai gata, quero tua cara feliz enquanto eu gozo. quero pensar que você tá gozando, ao menos finge. não consigo, hoje tô caída. goza logo e cai fora. o homem fedia à ferrugem e a cu, uma mistura inusitada. tem pele que cheira assim, pensou, repele e não precisa nem suar. ou se emporcalhar. trancar a respiração o quanto der, até passar mal. estava branca igual lençol, não o amarelo encardido por baixo deles, rançoso de gozos de diferentes pessoas. cheiro de gente quando é ruim é pior que lixo.
[nasceu em Pato Branco-PR e vive em Curitiba-PR; mais em: http://joanacorona.wordpress.com]
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Edimilson de Almeida Pereira (MG)
ILUSTRAÇÃO SEM BALAFONG
SALIVA
Viver agonia ao telefone reduz um homem à medula.
A intuição escaravelho estira cordas no sangue.
Tira-lhe humor e fervor como se filma uma blusa.
Muitos atravessando leram Hart Crane. Eu,
Não resta que lhe salve postal de um cataclisma.
se carece, reviso textos onde a fúria submerge.
Uma página ao acaso em que estivera uma moeda.
Se disse - não danço não era ler me esquece.
Um crime sem a vítima para a polícia perfeito.
Era pressentir sob lago as ilusões rascantes.
Um cinzeiro sobre tapete e a vida que se fumara.
As que fazem a língua rebelde por ofício.
Uma névoa sob encomenda a esse sumir desejado.
A intuição escaravelho estira-se no sangue.
Um pai vindo de longe com sua mala de pássaros.
Um eu à deriva move a si como sempre.
Uma senhora sua imagem de margaridas em decalque.
O que lá disse eu digo - em outra forma dança.
Um rádio-táxi na porta ao tempo que se quisera. Viver agonia ao telefone mata um homem aos poucos. Só resta que lhe salve a mãe rezando por hábito. Uma carta, enfim uma, em meio ao jornal diário.
[nasceu e vive em Juiz de Fora-MG; mais em: http://www.palavrarte.com/equipe/equipe_eapereira.htm]
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Ana Peluso (SP)
MORTE COMO HÉLIO OITICICA entre a cama e a parede há espaço suficiente para se entregar às eternas garras da vida na carne entre a cama e a parede há quatro dias sem fim quatro noites afins e o quarto inteiro - um jardim de rosas embaladas em filó no quarto de Hélio Oiticica há uma espremeção que mata a gente um pouco aos poucos um pouco devagar
como a vida é sacana e como é duro amar ..........................o bicho e suas cabeças todas as sete vezes .................setenta que elas surgirem rugindo esse desalinho espremido gemido quase mudo mas em fúria toda essa rachadura do limite a dinamite que explode tudo isso tenho montado no quarto de Hélio Oiticica onde eu durmo
há um não sei quê de sem caminho um retrato sozinho na mente e um monte de lembranças
[nasceu e vive em São Paulo-SP; mais em: http://anapeluso.tumblr.com/]
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Fabrício Marques (MG)
FOTOGRAFIAS
CRUZEIRO 2X1 ATLÉTICO
‘tá vendo este aqui, mais ao centro?
pensava em minha filha na doce luz da manhã
Sou eu E este mais à direita, com o pé na fórmica prateada? Também sou eu Este aqui na corda bamba desequilibrista do trapézio ao trampolim Senhor Por Um Triz Este pixel entre as frestas Este grão à margem do mundo Nos interstícios Sou eu No mar alto Voltando a nado Num dilúvio Que não aconteceu Proteu plebeu acreditando distraído que o outro é um eu
no que a bola bateu na trave perdi a chance do empate já nos descontos a torcida não entende tanta coisa que acontece no lance do relance de um átimo de segundo
NA NOITE IMENSA Na noite imensa, esquina da Osório com Duque Estrada – dois generais – esbarrei no Cego. Entre mansas desculpas, afagos, guirlandas, ais, Peremptório disse: Olha por onde andas
[nasceu em Manhuaçu-MG e vive em Belo HorizonteMG; contato: marques.fabricio@gmail.com]
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Flávio Viegas Amoreira (SP)
POEMA PUTA POEMA
[excerto de poema psicografado de Genet sobre visita a Colette, encontrado no túmulo de Allan Kardec no Pére Lachaise]
“sinais da fresta / as manchas de gosma lanternas sob acortinados salgueiros ao pé da telharia tiros fuzil / latidos / espelho o papel consumido por um tinteiro de prata solilóquio com as paredes pedras de alvenaria nacarada lama de sapatos / rastros de solitude fumaça sarrenta escárnio entre os ponteiros as retas sobressaem ao ziguezagueio o alvo muda de aparador badulaques de Colette fora do lugar uma puta ancestral estende os braços indefinidamente imita o gozo reescreve o script ‘não posso senhorita: a vagina dá-me nojo só é esse o ponto...’ quando cessa o expediente das redes e veleiros a brisa normanda repousa contraluz dissipando ais... escrita parcelar corpúsculos é foda parnasiana tudo igual ao mesmo nefelibata
todo encontra em casa uma ilha sempinterno a filha d’Odisseu reclusa o pente de Afrodite guarda espojos que a mente sensitiva se existida causa a mão do postigo acode do Sol contorno indefinido ventania o peito estira das platibandas é o Bósforo da alma o cu estreito dessemelhando as coisas encarnadas que suspiro arrefecido exangue a carranca dum feto ocluso desnatura a bárbara cona ao ventre atendo movimento metalógica guarida o Porto étimo sonido do abjeto gozoso a lembrança não airada duma casa esparramada sobre as ondas os olhos se enredam verdejante Douro da minha fala o rio atlântico da linga enrabando a foz do rabo ali disposto a imagem maquilada atônita não aspiro pó nem arcos de triunfo nem que seja santa a buceta ‘perdão senhorita: o ponto é que ela a vagina não mo apetece por bem tuas ancas escorro as ancas guardando recôndito luxo`.
[nasceu e vive em Santos-SP; contato: flavioamoreira@uol.com.br]
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Mauro Faccioni Filho (PR/SC)
todo acabado
acreditando que o que foi não foi
todo torto todo ruim todo estragado
mas sei que bem no fundo bem no íntimo
mas eu vou pela calçada sob o vento
e o que vem sou eu e será meu
ombros para trás cabelos levantados
depois das mulheres que amei e que esqueci
lançando olhares como se fossem fogos
bem no meio deste meu caminho vazio
o mundo é meu – e meus passos de ouro
do meu gesto louco balançando em falso
arrebentam as pedras do luar
do filho que gerei e que não vi
camisa solta peito empinado sou um ás
seu filho todo fraco todo ruim todo acabado
minha mãe me despacha ao telefone
sou eu este seu filho pobre e ruim
meu pai me despreza ao me olhar
e mesmo assim vou cavalgando
todo ruim todo torto todo a berrar
imensos uivos sob lágrimas e solfejos
que distribuo – pois sou um rei
meio de lado meio mancando
[nasceu em Maringá-PR e vive em Florianópolis-SC]
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Fabrício Corsaletti (SP)
ÔNIBUS
COMO TENHO VIVIDO
bela e malvestida o menino de cinco anos deita a cabeça na sua coxa direita e dorme ela não dá um sorriso uma lágrima razoável olha friamente através da janela e eu sinto uma piedade imensa por essa mulher, que confundo com amor um dia ela também já foi – à maneira dessas meninas bonitas e alegres que não me interessam – uma devoradora de céus
de noite tenho pesadelos de manhã escrevo depois trabalho oito horas ia dizer seguidas mas não é verdade existe a pausa para o almoço existem outras pausas também – a pausa das caminhadas a pausa de fazer a barba a pausa do álcool a pausa do sexo a pausa da música a pausa do amor a pausa das férias a pausa do fim de semana alguns falam na pausa da morte mas não assino embaixo – de noite tenho pesadelos e de manhã escrevo depois trabalho oito horas com pausa para o almoço
[nasceu em Santo Anastácio-SP e vive em São Paulo-SP]
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Francisco dos Santos (MS/SP)
A árvore no sonho Dentro dele as coisas que entram pelo olho misturam-se às coisas amorfas. Sua mãe vem em sua direção e nunca acaba de chegar. Retira da árvore um filhote gordo, branco, contempla-o em sua desgraça de pássaro, depois volta-o às ramas rendadas de escamas. Sua mãe vem em sua direção e nunca acaba de chegar. Ela tem dois rostos e se debate. Entre as ramas uma cobra se move lentamente, como ferrugem, como olhos carcomidos. Sai de sua boca um navio, todos os mastros quebrados.
sobre o país o monstro
a Maria da Paz Ribeiro Dantas — devorados erguemos com escoras a pele em declives — uma linha passou por nós, obliqua então surgimos do outro lado sem geometria, sem flor, sem espelho Era uma vez num país de árvores dois heróis O primeiro nãonascido da flornão, de um O cuspido; malicioso, mulherengo, meio mau-caráter, etc., etc.. Todos conhecem sua história. O segundo de uma idade física nascido, habilíssimo, adorado pelo povo polvo... Ora, vejam, um trocadilho, essa forma rudimentar de humor ainda tão cara a nós povo povo; mas não se distraiam com essa rameira que pisca e ri para vocês, a ironia — ah, a ironia, a ironia, a ironia, dizem que ando doente de ironia, que corrompo pessoas com meu dom — mas não se distraiam também com isso, vão trocar nossos heróis e não será por um herói ideal qual o grande Boon, idiota o bastante para enfrentar um urso com uma faca. Não, não precisam confiar em mim, aliás é bom que não confiem mesmo, olhem por entre essas letras e vislumbrem — eis que surge o bólido veloz.
[nasceu em Nova Andradina-MS e vive em Bauru-SP; contato@franciscodossantos.com.br]
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Eduardo Lacerda (RS/SP)
Faquir
Limites
Quando eu decidir Por ser um faquir,
A placa Não Aplaca.
quero na cama um único prego embaixo de mim.
Pode pisar, cheirar, roubar: – A grama, o grama, a grana.
E em cima todo o resto me encarando e dizendo que eu não presto.
Em outros tempos Teu avô proibiu o beijo, Teu pai proibiu o sexo. E eu que não fui teu avô, beijei-te. E eu que não fui teu pai, sexuei-te. E neste tempo que não há mais nada a proibir, Transgredir o quê? O limite: – O limite é sempre você.
[nasceu em Porto Alegre-RS e vive em São Paulo-SP; mais em: www.editorapatua.com.br]
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Eduardo Jorge (CE/MG)
a partir de uma luz de tungstênio acesa durante um dia cinza-escuro
Não consigo encontrar Eduardo em casa Hélio Oiticica o arrastado dos pés bambos, do som da preguiça ao tacanho jogo de escadas dos anos vinte em vários lances e outro aceno, até logo. uma despedida de sempre, no novo jogo desvio: a boca de dois leões amarelo embotado - uma plântula desperta o pensamento possível embrião e olhar sério de outro rumo, que desce ao aroma de talco, vindo da conversa com a senhora fotografada, antes: hoje de um dia cinza-escuro, balançando as qualidades do nulo e do passeio em busca de ar, fluídos de água sobre os passos rápidos de freira sem guarda-chuva como continuar o pensamento do broto equilibrando desequilibrando o corpo em direção à catedral, cruzar o amontoado de pombos e indeciso entre a direita e a esquerda, sempre. um táxi rumo à festa na loteria, disse a senhora. agora a situação de hazard - à espreita de coincidências a vida e, de repente o passo acelera, há uma firmeza áspera na resposta, [momento entre as ligações dos carbonos do seu corpo e o traçado da hidra fêmea sobre o centauro, croqui depois do cinza-escuro espalhado em estrelas, setembro depois de 1978] dobra a esquerda sagital. notícias tem deles por outros desvios. PS: Diga ao Eduardo que eu escrevi para ele duas cartas .......e ele não me respondeu ainda, [...]. ...............................................................Lygia Clark
[nasceu em Fortaleza-CE e vive em Belo Horizonte-MG]
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Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR)
autores: que coman pan festivo, y tomen vino
para alexandre frança
um que estava construindo. um que tinha sido assaltado. um que mostrou o contracheque. um que tinha um filho de seis anos. um que saiu pra fumar um cigarro. um que só está dormindo quatro horas por dia. um que ficou no gancho um dia porque deixou entrar um funcionário pela porta da frente. um que sabe o número de praças de curitiba e quantos metros quadrados verdes tem a cidade por habitante e passa aperto com os turistas estrangeiros então bolou uma colagem em seis idiomas a partir dos folders. alguns que usavam boné. muitos que entenderam rapidamente o conceito de proletariado. mas que não se acham escravos. um que preferia deus a darwin. um que não entendia nada. um que completava todas as frases. um que pegou carona. um que só ia até o campo comprido. um da fazenda rio grande. um conhecido por xuxa. um gozado pelo cabeção. um que ficou muito feliz. um que disse que sempre há uma segunda chance. um que fazia a linha tamandaré-cabral. um que pegou um livro velho, na casa da mãe. um que precisou sair mais cedo. um que deixou tudo pra próxima vez. um que só ia na cola dos outros. um que vinha sempre cumprimentar e era antitabagista. um que pegou um vale pra janta. um que deu uma carona. um que disse pra pegar o inter 2. um que estava aprendendo a dirigir. um que devia ter trazido o filho pra ajudar no desenho. um que conseguiu construir uma casinha. um que tinha um fusquinha. um que sabia dos faraós. um que só lamentava que o paraná clube ó, e fazia o gesto de “se fodeu”. um que tinha sido despedido, mas veio fazer a prova assim mesmo. um que era com certeza muito magro. um que perguntou sobre pressão atmosférica, que gosta muito de pescar. um que ofereceu um cafezinho. um outro que ofereceu outro cafezinho. eu je suis un intrus: beberia tb.
[nasceu em Governador Valadares-MG e vive em Curitiba-PR]
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Raquel Stolf (SC)
A NÁDEGA Após lavar toda a louça, uma grande e pesada felicidade a esbofeteia. Larga a esponja sem detergente no canto da pia. Estende o pano úmido sobre a louça fria. O dia respira. A cortina pendura um pouco de preguiça. Pensa subitamente na possibilidade de retirar uma de suas nádegas. Um compartimento de borracha será encaixado ao lado da outra nádega. Lá guardará coisas macias, papéis e uma pequena calculadora. Poderá encher a nádega de água em dias de muito calor, ou de areia ou terra em dias tensos. O precioso compartimento será seu solitário segredo. A possibilidade de subtrair uma parcela de seu corpo é o começo de um desejo de contabilizar perdas. Nesse sentido, poderá escolher passar os dias e as noites com ou sem sua nádega inflável. O compartimento de borracha poderá ser desinfetado e lavado facilmente, sendo ajustado em seu corpo como uma bolha portátil.
[nasceu em Indaial-SC e vive em Florianópolis-SC, mais em: http://www.poetasnosingular.com.br/ ]
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Dennis Radünz (SC)
BETUME DA JUDEIA a minha origem mineral, feixe de palha, embebida em óleos leves, inflama-se - Osíris, por quem as tochas na cidade egípcia: acesa: na entranha a figura de óleo e de água, transmigra nas formas da virgem Maria: a romaria na rua abrasa-me a íris ainda em Santa Catarina, Petrolândia: Sexta Santa: um Vice-prefeito viu pedras que esfumam ou nublam-se em chapas de ferro e em brasa, em círios, névoa, nimbo: tremor no interior dos tímpanos: o aroma úmido de bússolas e uns helicópteros na costeira, em buscas de corpos e origens: ou almas, sísmicas, onde as histórias geológicas se misturam no refino do fóssil de todos os dias. diz-me um da Economia: milênios se consomem, de Uruk ao Iraque, e ele, consumidor se consumindo, consome-se na leitura dos astros: Varuna, por exemplo, é recente no Sistema de lucros e desastres: bálsamo da terra: betume: bréia: alcatrão: azeite: asfalto: óleo mineral: óleo de rocha: óleo da terra: resina: lama: pissasfalto: óleo de São Quirino: de Sêneca: de Medéia: piche de Trinidad: pez de Barbados: múmia: nafta: malta: óleo de Rangum: nafta da Pérsia: betume da Judéia. a minha origem, animal, afunda em poços além do nado ou das sondas mais hidrogênio que algas, ondas de rádio nas ondas - homem de vento, extraio sol de onde não tenho
[nasceu em Blumenau-SC e vive em Florianópolis-SC; mais em: http://www.poetasnosingular.com.br]
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Rodrigo Madeira (PR)
POR FAVOR, IRMÃO sábado brutal. no vento o perfume de pneu queimado. desviando da poça de sangue baço (incapaz de refletir a lua ou contar a história do homem que a verteu), as pessoas tentando mais uma vez chegar em casa, mais uma vez tentando esquecer o caminho de casa, e um cara me para na rua e pergunta (depois das 21:00, há sempre um louco atrás de um cigarro): – como eu chego lá, irmão? pera aí, deixa eu vê... faz assim:
segue reto duas quadras até o outdoor da unimed, beleza? daí vira à direita e caminha mais 2 quadras, na esquina você vai vê um mendigo (o sem cobertor, bebendo pinga de garrafa plástica), quebre à esquerda e depois, duas quadras depois, onde fica um traveco (o loiro, de minissaia preta de couro falso), de novo à esquerda. daí você vai até o segundo farol, não o do malabar de 10 anos de idade, o segundo, o segundo, onde faz ponto uma puta e um traficante... não tem erro, irmão, logo em frente cê vai vê: IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA
[nasceu em Foz do Iguaçu-PR e vive em Curitiba-PR; mais em: http://rodrigo-madeira.blogspot.com/]
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Vinicius Lima (PR)
NIGREDO (fragmento) acordo sobre a montanha com o pênis do sol tocando minha boca eu que abandonei a civilização e seus feitos eu que ergo minha voz contra todos os monumentos humanos arremesso meus ossos nas sombras e canto no idioma dos sapos os segredos dos enforcados
[nasceu e vive em Londrina-PR; poema do livro Nigredo, Editora El Borracho Livros Artesanais, 2009]
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Alberto Martins (SP)
POVO ERRANTE
O LADRÃO E A MOÇA
na esquina do farol o menino me empurra duas balas por um real. Dou a nota mas digo para guardar as balas. Ele insiste – pega a bala, doutor – quer completar a transação. O sinal continua fechado. Pergunto seu nome. Móisés. Aquele mesmo diante de quem um dia se abriu o mar vermelho
a beleza – dizia Genet – é uma ferida que nos atinge sem como nem por quê estilhaço bala perdida que interrompe a frase no meio do u e do e – de tocaia sob a ponte no viaduto na esquina do metrô eu espero: um dia ela há de
[nasceu em Santos-SP e vive em São Paulo-SP]
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Victor Del Franco (SP)
CARNE VIVA
A DANTESCA VIA
ponho o dedo na ferida não para estancar o sangue mas escavá-la até o osso.
no escuro da selva e sem direção: avante norte norte norte quem é tua bússola? quem em tua vigília? avante avante avante acaso encontrarás a diretriz? norte norte norte percorrendo terras que nunca dantes avante avante avante mesmo que, para isso, nada encontres.
[nasceu e vive em São Paulo-SP; mais em: http://celuzlose.blogspot.com]
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Enzo Potel (SC)
COBRA CORAL
VITÓRIA-RÉGIA
A cobra coral não dá o bote. Facilmente reconhecida pelo seu colorido vivo, não apresenta comportamento de ataque. Suas presas ficam localizadas no fundo da mandíbula, por isso morde a caça e permanece agarrada a ela para inocular o veneno. Seu veneno é neurotóxico e de baixo peso molecular, espalhando-se de forma muita rápida pelo organismo. Pode matar uma pessoa adulta em poucas horas. A coral tem hábito noturno e vive sob folhas, pedras, extratos bancários, livros espíritas, vidros de perfume vazios e troncos em decomposição. Gosta de andar pela casa nua e de salto alto. Ao sentir-se acuada ou atacada, levanta o tom da voz a quadros clínicos de histeria. Recomenda-se o uso de botas, calça comprida, luvas de couro, manter a porta do quarto fechada, som ligado e fones no ouvido. Também evita-se colocar a mão em buracos, fendas, em seu italiano duvidoso e em sugestões para a melhoria de sua situação financeira. Dependendo da conversa em que é abordada, a coral sofre variações no habitat, como a falsaespírita (nome científico: Pisounomeucallum danesekardec). Seu alvo preferido são crianças que andam descalças, tatuagens e a si mesma quando vai à praia.
Deus me fez anfíbio No dia em que te conheci, E andar por sobre a Terra Já não é tão fácil. Eu preciso ser a chuva fina Que fica na tua folha, E mergulhar até a raiz De todas as tuas palavras. Eu queria ser essa correnteza Mansa E te levar pra longe. Mas eu não passo De um açude triste. AFEGANISTÃO Afeganistão significa “o resto das coisas”. O lugar em que Deus concentrou Tudo o que não coube nos outros Lugares do mundo. Já meu nome traduz-se “vida sem propósito”. Ser com alguns talentos inaproveitáveis, Metido, e que mata todos os próprios sonhos, Porque não tem coragem de se matar.
Sinto-me um peixe abissal Brincando com a luz do celular Nesse quarto escuro. Se tivesse o teu número, Seria um peixe voador.
[nasceu e vive em Itajaí-SC; mais em: http://www.pagina3.com.br/coluna/emergencia]
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Rudinei Borges (PA/SP)
Sim Sincretismo Sou asfalto: poroca: assalto: avenida: aço acre: sou carne sucumbida: pataxó: xavante: apiacá: saterê-mawé: filho de oxum, rainha das águas doces: sou Rimbaud: Kerouac: Caio Fernando Abreu: Josef K: Policarpo Quaresma: nasci em Macondo: descobri a escrita através do velho maquinista da Companhia Bananeiras. Já fiz reza pro vento, correnteza, igarapé. Deus me perdoe: já comi ovo de tracajá. Çairé. Çairé. Açaí. Taperebá. Força bruta da alma. Naná. Nagô. New Orleans. New York. New Jersey. São Luis do Tapajós, onde o menino brincava com o Saci-Pererê e Zé Teles desvendava seringueiras. Juruti. Almerim. Prainha. Monte Alegre. Santarém. Alenquer. Óbidos. Parintins. Todas as cidades às margens do Rio Amazonas, do Missipi, do Rio Ganges. Todas as rezadeiras da procissão de Sant’Ana. Todos os sinos do Círio de Nazaré. Auwê. Axé. Saravá. Saravá. Tacacá. Inhamundá. Anhagabaú. Praça da Sé. Cracolândia. Avenida Nazaré. Rua Cipriano Barata. Lago Lauricocha no sul do Peru. Acarajé. Acarajé. Cidade Nova Heliópolis. Alecrim. Gergelim. Marcel Marceau. Geração Beat. Tristes trópicos. Tropicália. Mangue Beat. The Velvet Underground. Candomblé. Candomblé. Hemisfério sul. Acabou Chorare. Sou filho de Rosalva, neto de Alzira, bisneto de Eva. Tamanduá. Tamanduá. Ibiracy. Fred Mercury. Padre Josimo Tavares. Chico Mendes. Irmã Adelaide. Irmã Doroth Stang. Chicão Xucuru. Santo Dias da Silva. Edson Luis. Totó. Pasolini. Sou filho de boto tucuxi. Araçá. Murici. Buriti. Tucuruvi. Jabaquara. Cobra sucuri. Jabuti. Central do Brasil. Queimados. Dendê. Dias Gomes. Flaubert. Tietê. Mandacaru. Munduruku. Pirarucu. Tucunaré. Alter do Chão. Ela ficava sentada na janela e sorria quando eu passava. Baixada Santista. Baixa da Égua. Baixio das Bestas. Transamazônica. Vicinal dos Doidos. Beirute. Cabul. Mirian Makeba. Cordilheira dos Andes. Goró. Moçoró. Moçoró. Numa praça de Cachoeira eu conversava com Dalcídio Jurandir. Clarão amazônico. Clarão amazônico. Minha oca. Meu chão. Encantaria. Vertigem das aves que voam sobre a várzea. Margem do meu peito aberto ao mundo. Itaituba. Pedra miúda. Pedra menina. Barro na porta das casas. Formiga saúva na folha das mangueiras. Manhã, rebento infindo. Manhã em minhas mãos de menino. Manhã, calidez do meu canto. Cantoria dos botecos. Cantoria das esquinas. Cantoria das capelinhas. 38
Porto Seguro. Brejo das Almas. Jacareacanga. Cripuri. Trairão. Aveiro. Altamira. Alto Rio Xingu. Xinguara. Carimbó. Carimbó. Catimbó. Macumba. Pajelança. Estação Carandiru. Estação Primeira de Mangueira. Estação Alto do Ipiranga. Marabá. Tapacurá. Jaçanã. Iraxeru. Bogotá. Istambul. Iracema. Capitu. Macabéa. Tieta. Dona Amélia. Maria Moura. Isaura. Emília. Minha mãe rezava na gruta escura onde nasceu o Menino Jesus. Minha mãe. Meus irmãos. Meu corpo. O meu corpo se dissipou no corpo de minha gente. O meu corpo e a cantoria do meu corpo. Corpo: barulho d’água, banzeiro, estrondo. Corpo vivo. Corpo morto. Garça morta na estrada. Árvore em chamas. Espírito de árvore que mora no meu corpo. Floresta sepultada. Minha gente entre cruzes e encruzilhadas: caminhões levam espectros e madeira na escuridão. Campo aberto para o nada. Campo triste sem cipó. Vazio do mundo. Matinta Perera. Matinta Pereira. MatiTaperê. Mat-Taperê. Matim-Taperê. Titinta-Pereira. Canoa no rio. Curumim na canoa. Curumim na rede. Manhã. Mañana. Aurora. Tardinha no cais. Vitória-régia. Marajó. Marajó. Mata virgem. Virgem das Graças. Virgem Aparecida. Padre Cícero. Dom Sebastião. Frei Damião. Antônio Conselheiro. Iemanjá. Rio Jurema e Teles Pires. Rio Cururu. Vila Raiol. Rio Cupari. Terra. Gente. Terra. Gente. Olhos de gente em barcos azuis. Pombagira. Zé Pilintra. Angola. Afoxé. Ijexá. Euá. Agogô. Mestre Thiago de Mello. Bacuri. Tipiti. Palmares. Lundu. Lundu. Luanda. Lua. Jaci. Jacarandá. São Benedito. Irene Preta. Iara. Mandioca. Sinhá. Guaraná. Tupã. Trapiche. Mestre Cupijó. Mestre Vereguete. Vem, morena. Vem de Canapijó. Vem mostrar pra gente como se dança um carimbó. Vem, mañana. Estrela Dalva. Céu misturado às águas. Tapajós. Tapajós. Ribanceira tênue. Folhas e folhas e folhas dormindo no chão do quintal. Gente luzindo dentro dos barcos. Rosto de minha gente. Lágrima de minha gente. Suor. Labor. Dor. Dor. Estilhaços de minha gente. Fragmento. Mestiçagem. Sincretismo. Caleidoscópio cingido de mãos e braços e pernas e olhos: corpo entregue ao vento. Fotografia amarelada de quando o menino contava as estrelas. Mulheres partidas. Homens partidos. Voz silenciosa dos cárceres. Voz silenciosa dos casarões. Voz silenciosa das palafitas. Rosário inefável dos pescadores. Rogai por nós todos os santos e pecadores. Putas desvalidas nas corruptelas. Porto de Belém. Mar, imensidão terrível. Silêncio. Reza: Que as árvores sejam para sempre a morada dos pirilampos.
[nasceu em Itaituba-PA e vive em São Paulo-SP; mais em: http://aruasetima.wordpress.com]
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Fabio Weintraub (SP)
OUTRO desejo enorme de não ser este portar outros gestos vestir noutro dedo o anel alheio de ter outra casa noutra cidade assinar cheques com outro nome outra letra desejo de outras sílabas outros beijos outra mão a afagar outros cabelos noutro espelho outra barba pontilhando o rosto o queixo sob outra luz outro cheiro noutro quarto sem cadeira sob o nó da forca sem o copo de veneno lá em cima do piano onde não pude ser alguém coisa que se fixa como idéia clara desejo de outro hotel outra bagagem e digitais rasuradas como quem lava as mãos e apaga o fogo de quem foi
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Franjinha sebosa se levanta do banco onde está e vem sentar-se ao meu lado no ônibus vazio Talvez seja secretária Talvez preencha boletos ou monitore as entregas dos motoboys Talvez lave a franja duas vezes por semana coma pizza em dias alternados tenha um gato e se masturbe quando a novela acaba Tão logo toma assento cerra os olhos, cabeceia Tenho medo de que babe perca o equilíbrio e desabe sobre a minha pessoa Dedos cruzados em posição de prece sua postura é bizarra Ela é devota de algo ou de alguém e seu sono conta pontos no placar sombrio de algum país aonde os versos não chegam
DO ALTO
VOLTE, POR FAVOR, VOLTE!
O melhor ponto de vista se obtém no helicóptero: ver a cidade do alto
Tendo fechado o motoqueiro que o outro xingou sem medo viu-se em péssimos lençóis quando o dito cujo emparelhou com o carro – ódio nos olhos
Da mesma forma as pessoas vistas de longe num relance Para entendê-las bastam caretas e a entonação variada de alguns “huns” e “iiiis”
“Vão brigar”, logo pensei e serei atingido por canivete ou tiro Meu rosto será desfigurado no hospital haverá filas
A neurose é uma perturbação que não compromete as funções essenciais da personalidade
Talvez fique cego talvez perca o emprego e me aposente por invalidez ou feiúra
Se numa conversa o sujeito leva mais de dez segundos mais de três frases pra definir algo desconfie:
Isso tudo num átimo: o cheiro de éter varando a fuligem
está carente ou mentindo
Devo estar louco “volte, por favor, volte!” O tempo exato de o vermelho passar a verde e a moto sumir na curva
[nasceu e vive em São Paulo-SP]
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Fernando Koproski (PR)
um dia talvez quando tinha 17 agora, tarde demais pra ser rimbaud tarde demais pra escrever tudo que senti e depois sumir. noites por certo de quando tinha 27 até que escrevi uma ou outra, mas para minha maior surpresa eu não morri com janis com jimi com jim.
quem irá me dizer enfim que não sou um poeta engajado socialmente? que sou um poeta avesso ao seu tempo? apenas porque não escrevi sobre os 111 mortos daquela prisão, os mortos do 11 de setembro, ou sobre os incontáveis mortos em qualquer lugar do mundo que você queira nesse instante? por fome, sede, desastre, dor, guerra, tédio, frio, calor, umidade ou humildade? porque sou poeta, eu apenas escrevo para todos e para nenhum. porque sou poeta, eu vejo que cabem 10000000000000000001 mortos dentro de um poema que fala de amor.
hoje tenho tantas tardes florescem florenças dentro de minha cabeça e mesmo tendo pétalas diante de pálpebras diante de pressas eu me sinto tão pobre. tarde demais pra ser rimbaud ou pra cometer suicídio um pouco cedo ainda pra pensar ser vinicius.
[nasceu e vive em Curitiba-PR; mais em: http://www.germinaliteratura.com.br]
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Silas Correa Leite (SP)
POEMA DO CEGO PULANDO AMARELINHA Para Alberto Frederico Correa Santos O cego pulando amarelinha Toma o anjo pela mão Você só vê o gesto táctil do cego, não Vê jamais o anjo na sua condução Em cada estágio de saltar sem pisar na linha. O cego pulando amarelinha Parece flutuar num balé E sonda-o a rua de Itararé inteirinha Perguntando o que nele enseja tanta fé Céu e inferno; o cego parece que adivinha O cego e a sua amarelinha Parece um milagre até Toma-o pela mão o anjo; o cego se aninha E pula e salta e vence e acerta o pé Talvez porque céu ou inferno só dentro da gente é.
[nasceu e mora em Itararé-SP; mais em: www.campodetrigocomcorvos.zip.net]
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Adelaide do Julinho (MG)
consciência ecológica
aurora
impossível fechar as pernas e matar a borboleta que voa voa voa entre elas
de quatro papaimamãe chupeta oh! que saudades que tenho da minha infância querida
floral um antúrio muito rijo pedindo abrigo em um vaso úmido: tempo de poda.
hipnose é sempre assim: ele põe o pinto pra fora eu fico fora de mim
mais em bashô o sapo salta perereca bate palmas aguaçal na mata
em riste
para jão filho a sua cabeça dura: valente-inclemente-entremetente: só pode com ela o meu hímen complacente
[nasceu e vive em Belo Horizonte-MG; mais em: www.escritorassuicidas.com.br]
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Reynaldo Damazio (SP)
METODOLOGIA
MATEMÁTICA DISCRETA
o sangue deságua no horizonte afogando o mito do eu esse que não tem valor que perambula entre cacos e cocôs distante de qualquer fatalidade deslocado de toda minúcia e carícia eu seco e sem cordas arame sem farpas mito transformado em método possivelmente um discurso do método variante do nada negação afirmativa como a radiografia o ectoplasma, buraco negro
Criar o personagem vesti-lo, divertir-se ele pode ser o outro (um clone clínico, diria o analista) habitante de alguma realidade paralela logo aqui nutri-lo de fantasias, melhor, taras até torná-lo interessante depois matá-lo exercício aritmético simples antes que subjugue a consciência do autor tão nebulosa quanto este sonho ou sua sombra
nenhum maluco salta duas vezes no mesmo abismo
[nasceu e vive em São Paulo-SP; mais em: www.weblivros.com.br]
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Daniela Maura (SP/MG)
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o que carrego dentro não tem nome não consigo sequer fixar dele uma forma sei que é homem, escuro, informe e pulsante não sei se sombra ou fosso sinto dentro migrando do peito ao estômago e às vezes fora me perseguindo como em tempestade pulsa como um corpo insano aprisionado em um casulo preto, de malha que cede a todo movimento constante como em uma luta com o espaço vazio outras vezes é tudo isso mas feito fumaça
Um buraco do tamanho de um punho em minha coxa Aberto como uma toca Procuro o osso que deveria estar ali, só há uma parede lisa, úmida e rosa guardando um ar frio Tento com minha mão larga preencher esse vazio Como se pudesse colher o vazio como uma flor e fechar a pele sem cicatrizes A boca desse buraco arranha minha mão Boca com pele bem acabada como enxoval bordado com renda e cabelos
3 uma máscara poço bem no fundo da máscara um espelho reflete um pequeno pedaço de gelatina de céu e nele não encontro os meus olhos nesse chão enterrei memórias guardadas em caixas de todas as formas cada uma em profundidade diferente sobre algumas nenhuma planta nasceu uma delas virou semente um grande pé de esquecimento em outra o caule pensou ser raiz as arestas de algumas caixas ferem o escuro estou à procura das caixas ao revolver toda a terra reconfiguro uma nova face a primeira face azul do céu
[nasceu em São José do Rio Preto-SP e vive em Belo Horizonte-MG; mais em: http://corpopensamento.blogspot.com]
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Mario Alex Rosa (MG)
MUDANÇA Deportei de mim a palavra rosa. Demoli do rosto a dor do morto. Descolei o papel em branco num escuro crânio. Desertei o passo, sombra do pássaro. Deixei a aurora, agora só resta uma hora. Desfiz para permanecer juntos o eclipse e o amanhecer.
UMA RUA Nessa rua comprida de remorsos Nessa rua estreita de silêncios Nessa rua de noite nua a lua só curva Nessa rua de pouca luz a sombra tua me tumultua Nessa rua em passos santos descubro os teus nos meus ateus Nessa rua tua contrário de mim auscultei Nessa rua para dentro da tua atravessei
[nasceu em São João Del Rey-MG e vive em Belo Horizonte-MG; mais em: www.germinaliteratura.com.br]
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Renato Rezende (RJ) A PERNA
O ESPELHO
Numa esquina perto da minha casa vive uma mendiga de perna amputada. Tenho vontade de beijar a perna que falta. Acariciar aquele pedaço de nada.
Vindo, no caminho, estão todas as coisas que percebo, tudo o que toco, sinto e vejo: frutos do meu próprio pensamento.
A mão dela está queimada e parece que foi costurada de volta ao braço. Com essa mão ela pede esmola. Hoje passei por lá e vi que a perna dela (a outra) estava bronzeada. Ela é loira, ela é moça, é a flor da perna amputada.
Delas, uma a uma, me despeço como num último, íntimo beijo. Em mim, a sombra de todos os vultos, lago límpido, espelho do céu e das nuvens que passam; do qual limpo as imagens que turvam o fundo, e que me unem ao mundo pelo desejo.
Me deu vontade de entrar em seu corpo (fragmentado) a meio metro da calçada.
Também eu desapareço
Entrar em seu corpo e ser ela, ser a perna que falta. Ser a falta da perna dela. Tive vontade de amar e ser nada.
SURJO
na superfície, sem deixar vestígios
DATA 2 Saí para almoçar e, ao passar entre dois carros estacionados no meio-fio, vi uma menina de rua, já para lá de adolescente, cagando. Estava agachada, de cócoras, com a calça abaixada. Quando me viu, abriu o maior sorriso, e disse, “meu banheiro é aqui mesmo, moço”, sem por um instante parar de fazer o que fazia. Dava para ver, por entre o vão formado por suas pernas, a massa de merda no asfalto. Eu, que costumo me indignar com os dejetos de cães nas ruas, não me ofendi, e não me senti diante de um ato estranho ou transgressor. Rolou até uma certa e indiscutível sensualidade, um inconfundível apelo erótico, e por um momento pensei em parar para admirar a cena completa, até o fim. Retribui o sorriso dos seus olhos brincalhões e continuei passando—apenas um pouco surpreso com a total naturalidade de tudo.
[nasceu em São Paulo-SP e vive no Rio de Janeiro-RJ; mais em: http://www.vaktranslations.com/]
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Artur Gomes (RJ)
BABY É CADELINHA
QUERO MUITO MAIS CARNAVALHA
devemos não ter pressa a lâmina acesa sob o esterco de vênus onde me perco mais me encontro menos de tudo o que não sei só fere mais quem menos sabe sabre de mim baioneta estética cortando os versos do teu descalabro
me encanta mais teus olhos que o plano piloto de brasília o palácio do planalto o alvorada me encanta mais as mãos da namorada que a bandeira do brasil o céu de anil a tropicalha
visto uma vaca triste como a tua cara estrela cão gatilho morro: a poesia é o salto de uma vara disse-me uma vez só quem não me disse ferve o olho do tigre enquanto plasma letal a veia no líquido do além cavalo máquina meu coração quando engatilho devemos não ter pressa a lâmina acesa sob os demônios de eros onde minto mais porque não verus fisto uma festa a mais que tua vera cadela pão meu filho forro:
quero muito mais a carnavalha do que a palavra açucarada quero a palavra sal do suor da carne bruta a flor de lótus do cio da fruta mesmo quando for somente espinhos me encanta os pés que a lata chuta por entender que a vida é luta e abrir novos caminhos me encanta mais na lama o lírio a flor do lácio os olhos da minha filha que o ouro dessas quadrilhas que habitam esses palácios
a poesia é o auto de uma fera devemos não ter pressa a lâmina acesa sob os panos quem incesta? perfume o odor final do melodrama sobras de mim papel e resma impressão letal dos meus dedos imprensados misto uma merda a mais que tua garra panela estrada grão socorro: a poesia é o fausto de uma farra
[nasceu em Campos dos Goytacazes-RJ e vive no Rio de Janeiro-RJ; mais em: http://blogdabocadoinferno.blogspot.com/]
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Sabrina Bandeira Lopes (PR)
NÃO SE RETÉM Perguntaram o nome de alguém, que disse: “Todos”. Tinha olheiras e um sorriso, cachos e peso, tão aguardado, sobre meu corpo. Duas pessoas em descanso Uma tinha um metro e cinqüenta Nunca chamada no diminutivo Sem dramas. Há suavidade a um certo momento do dia que não conseguimos reter, e eu nem tento É como querer sair correndo num pátio de cachorros desconhecidos Querer, e não evitar que o desejo chegue ao corpo adoentando o corpo que não quer ser mordido, e por isso não corre. Eu posso não me desculpar por ter sido o cão?, de alguém que não conheci mas senti profundamente (corria sem olhar as estacas) no que temos e, raramente, temos juntos. São afinal nossos lobos, não as nossas mães, que conhecem o gosto da nossa carne.
[nasceu e vive em Curitiba-PR; mais em: http://lopessabrina.blogspot.com/]
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Pipol (SP)
A porta abre, o balde cai. O cigarro explode no nariz. A língua fica roxa com o chiclete. Aparelhinho de choque no aperto de mão. Acho que ela me ama, mas estou desistindo.
A TV entrevista, na cadeia, um serial killer com bíblia portátil na mão. Termina a reportagem. A bíblia virou um radinho de pilha.
Como é bonito ver uma mulher chamando um táxi.
Bangue-bangue Em todos os países, a programação da TV é mesmo muito ruim.
O automóvel vem em sua direção, sem ninguém dirigindo.
Mas de vez em quando aparece uns caubóis para nos salvar. Eles salvavam o meu tio, Mesmo trabalhando para os estúdios.
Homem franzino, humilde, entra na igreja. Ele tem nas mãos um chapéu quase maior do que ele mesmo. Depois, já na calçada vai caminhando, ainda muito humilde. Mas o chapéu, na cabeça, não parece mais tão grande.
[vive em São Paulo-SP; mais em: www.cronopios.com.br]
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José Geraldo Neres (SP)
AQUI ESTOU desperta a cidade em passos embriagados faminta e cega no seu sexo uma borboleta de navalhas avança pelas paredes sua voz aguda a engravidar edifícios nas sombras dos homens mulheres crianças sua boca respira espelhos avança não conhece o silêncio avança a construir avenidas de perguntas ela me habita abre-me os olhos reconheço-me nas suas carnes sou o estranho a caminhar nos seus vapores sua voz avança em ruídos de sangue enxuga seus olhos no ventre de uma velha senhora elas se abraçam esculturas de jogo pernas misturam-se línguas recriam-se aqui estou cidade corpo faminto e cego seus passos embriagados se hospedam em minha boca
[nasceu em Garça-SP e vive em Diadema-SP; mais em: http://neres-outrossilencios.blogspot.com/]
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Alberto Pucheu (RJ)
A LUTA ANTES DA LUTA Você sabe, de nada adianta rezar no canto do ringue. Aquele que o sobe, sobe sozinho. As bravatas lançadas na hora da pesagem e o peso da multidão colado em sua carne, você sabe, lá em cima, só aumentarão seu abandono. Você sabe também o preço que terá de pagar se deixar que qualquer vagabundo desfigure sua fisionomia. Mas é isso que você quer? Não é isso que você quer. Aconteça o que acontecer, não jogarei a toalha, não é para isso que chegamos até aqui... Você ainda é muito novo para perder, e sua família, muito necessitada. Você sabe, você tem de deixar seu passado para trás, eu sei que você não quer voltar para as ruas, para o crime, para a cadeia... Portanto, quando subir lá em cima, eu lhe digo, não deixe que o adversário veja medo em sua face: se, ainda antes do primeiro soar do gongo, ele vislumbrar uma mínima expressão de temor em seu rosto, conhecerá o caminho mais rápido para encontrá-lo durante o combate. Mas você não terá nenhum instante de fraqueza nesse combate, você está preparado, eu sei que você está preparado, e você também sabe disso. Ninguém quer acordar amanhã num quarto de hospital... você quer acordar num quarto de hospital balbuciando palavras desconexas? Ein? Você quer acordar num quarto de hospital, com sua mulher chorando preocupada ao lado da cama? Não, você não quer isso pra você nem pra sua família, nem eu quero isso para o meu garoto de ouro. Por isso, treinamos duro, por isso, treinamos tanto. Então, vá lá em cima, já estão anunciando seu nome, suba para o quadrado, suba, já começaram a tocar a música, vá para o ringue e, no meio do entrevero, por entre as saraivadas de golpes, faça seu adversário sentir o peso do esquecimento carregando-o para longe do estádio, carregando-o para longe de todo e qualquer lugar.
[nasceu e vive no Rio de Janeiro-RJ; mais em: www.albertopucheu.com.br]
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Carlos Vogt (SP)
SINGULARIDADE
ILHA BRASIL
Todo homem tem ao menos um direito e uma esquerda menos eu que perdi minha mão em São Simão
Quando descoberto no atacado, o Brasil avulso já estava nu com diversidade. Vestidos pelo descobrimento, seus habitantes que aqui viviam, os que antes vieram, durante, depois e já mais os que nasceram desse intercurso rasgaram na avenida a fantasia da igualdade.
*** Caminha psicografado por Monteiro Lobato, psicografado pela mídia/imprensa psicografada pelo sertanejo – country: Brasil, plantando dá, não plantando, dão. ROTINA Sou um poeta descuidado, aceito a inspiração do acaso, leio o mistério como recado, em papel de pão ou em papel de vaso. Ando sozinho, mas vivo ligado nas muitas contas de que perco o prazo, sob suspeita de que para ser poupado o deve-haver deve avançar no atraso. Sou reincidente da monotonia de sempre perseguir a novidade apta a descobrir se não sabia a clara manhã que a claridade, em vez de anunciar um novo dia, repete a mesma luz pela cidade.
[nasceu em Sales Oliveira-SP e vive em Campinas-SP; mais em: http://www.cantografia.com.br]
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André Luiz Pinto (RJ)
A miséria começa em casa, com seus filhos, a lamúria cega mas certa de seu pai, o tiroteio marca os valentes o vento caudaloso nos adoça, é podre, talvez áspero, saber que alguém veio aqui; bato palmas, você não sabe o que escreve, pensa que a imaginação decifra a dor mas ela não decifra; você, que nem devia ter pensado, agora é assim: poetas sobem o morro, fazem suas pesquisas acham que a vida rude lhes inspira como nos cardápios escritos com giz, ou pombos que mastigam num despacho um pedaço de galinha (tudo é canibal faz parte da cultura, é matinal sangrar na latrina, enquanto do alto dos edifícios, ao som do baile quente, ainda se decide ao pé de uma fogueira o preço de uma vida).
Meu espelho-labirinto. Cravo os olhos para vê-la no mistério do quarto. Nenhum rato, silêncio. É no que se dobra em ruga ao se olhar o infinito que se dobra para eu vê-lo pois meu olhar embora selvagem, é ínfimo no infinito das pétalas que o contém, afinal, no convés do navio o que se olha é através do mar, através das borbulhas de sangue com o que já perdeu: metade de mim é o acaso das palavras que volta e meia pingam da mão analfabeta, de abusar da fama e se impor aos pais – Filho que à terra desce.
[nasceu e vive no Rio de Janeiro-RJ]
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Cláudio Daniel (SP)
NO OLHO DA AGULHA Tatuar silêncios como formigas. Afogar os relógios numa pálpebra. Vestir o grito com a pele do escaravelho. Torcer os músculos da face em perplexidade. Cruzar a via absurda das unhas, desorientado, obscuro, recurvado sobre as nádegas. Saber que toda flor é ridícula, e mesmo assim cultivar o minério, a dor, a surda epilepsia. Esquecer o próprio nome, e sovar a terra até a exaustão. (Fosse apenas uma canção de colheita, você diria amor e outras palavras fáceis.) Com o riso estúpido do camelo, viajar ao olho da agulha, labiríntico, insano, acreditando que toda história é um ácido. Depois cauterizar a ferida, aceitar o reflexo, o simulacro, lembrar-se da semente antes do pão. Tayata gate gate paragate parasamgate boddhi soha. 2002
[nasceu e vive em São Paulo-SP; mais em: http://cantarapeledelontra.blogspot.com/]
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Casé Lontra Marques (RJ/ES)
DO MEU SER DE SOBREVIVÊNCIA Carrego do meu ser de sobrevivência a poeira de perturbações cuja incidência sustenta as misérias que formam suas forças com minuciosa ferocidade, carrego do meu ser de concisão os escombros que restituem minhas mãos ao chão onde preparo — à volta de uma escrita talvez desmedida — as horas que extraem da aragem as fagulhas de fôlego cedidas às sendas distribuídas pelas feridas
[nasceu em Volta Redonda-RJ e vive em Vitória-ES; mais em: http://caselontramarques.blogspot.com/]
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Miguel Sanches Neto (PR)
PAÍS OBSCURO 1. Venho de um país obscuro, de uma infância repleta de muros. Meu pai foi leve lembrança que me marcou com sua ausência. E enquanto caminhava pelas ruas do tempo mais triste da ditadura ia perdendo meu país como quem deixa uma moeda cair, ia perdendo meu pai como quem de si mesmo se desfaz. Desfilei todos os 7 de setembro fazendo continência ao silêncio. Obedeci a professores vis e não tive como destruí-los. Sou o filho da ditadura e não ter sido rico me orgulha. 2. As lembranças me torturam, querem escalar os muros, roubar as frutas do futuro, gastar a pedra do presente mordendo o próprio dente, com raiva e ruidosamente.
Minha mãe costurava para as putas como quem limpa uma igreja e, humilde, diante do altar se ajoelha. Minha mãe costurava para as putas enquanto a gente crescia sob a ditadura. Não me lembro do cheiro das mulheres que freqüentavam nossa casa de madeira, mas me recordo das frestas pelas quais eu podia vê-las. Eram elas que exploravam políticos, fazendeiros, médicos, milicos, e depois repartiam com os pobres. Eu vivi um tempo destas sobras, - cão que afia as presas em ossos. Por isso não presto, minha filha, sou tarado, sou sujo, cresci no meio do lixo e o meu foi um tempo pútrido. Cresci sentindo o cheiro das putas, vesti os retalhos da luxúria, sentindo-me, na catequese, impuro com minhas roupas de monturo. 4. No meu país, as abóboras medravam no canto onde se jogava o lixo, e no fundo do quintal havia um chiqueiro onde criávamos um porco roliço com a lavagem da casa e com os restos dos vizinhos. Um desses porcos pouco civilizados um dia rompeu o cercado e estragou o belo jardim da casa em frente à minha.
3. Este foi todo o meu exemplo de rebeldia. Minha mãe costurava para as putas e com os retalhos da luxúria cosia minhas poucas roupas. Minha mãe comprava um único pão, repartindo-o entre quatro bocas. Que seria de nós sem a prostituição?
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5. Os porcos de casa me punham bichos nas patas e a coceira quente no pé era um convite para a raiva.
Hoje, olho meus dedos e não há sinal algum daqueles tempos, nenhuma cicatriz me devolve a lembrança dos dias pobres. Mas sou o mesmo, menino criado entre chiqueiros, numa casa velha de madeira que está intacta no tempo.
8. O meu país foi uma pátria morta que só sabia fechar as portas. O meu país não me deu conhecimento, na escola estudávamos silêncio. O meu país não soube soletrar meu afeto, me matou quando eu ainda era feto.
6. Minha vó lavava roupas para fora e sempre trazia alguma sobra. E a ditadura era uma sombra crescendo em todos nós.
O meu país não foi um país, foi um estado de sítio. E eu vivi em seu coração como quem morre no exílio. 9.
Vivíamos num tempo mítico, minha vó narrando feitiços, casos do século passado, de parentes com mau-olhado. E minha mãe recordando o bulício da infância num pequeno sítio, histórias da menina que tanto queria estudar português e outras geografias.
O padrasto trazia arroz-e-feijão, mas não me dava nenhum livro. O padrasto me ensinava a somar, mas não conversava comigo. O padrasto me ensinou a ser correto, a não mentir, não furtar e todo o resto,
E a gente ia crescendo no exílio, sem saber que ditadura também era isso
mas exigindo ser obedecido em tudo, reduzindo-nos a passivos súditos.
7.
E sem saber ao certo o sabor da fruta, plantou em nós sementes da ditadura.
Um dia apareceu um padrasto e nosso país foi alargado. Agora cabiam outras dores em nossa geografia pouca. Também não tinha discurso nosso padrasto rústico, confiando totalmente e apenas em seu poder de sobrevivência. A mãe parou de costurar para as putas e a vó não deixou rastros em sua fuga. Eu corria ainda pelas ruas brincando na lama e na chuva. Eu corria livre pelas ruas desafiando o código de posturas.
10. E a época mais crítica, estação de frutas cítricas, foi quando entramos na escola. Só havia duas matérias: silêncio e jogo de bola. Só havia duas posturas: submissão e indisciplina. Só havia dois destinos: pobreza ou crime. E muitos amigos tornaram-se bandidos, latoeiros, mendigos, 61
sem-terra, traficantes. A escola nos mastigou a todos e depois nos cuspiu no esgoto. Foi ela que nos fez escrotos, que nos ensinou o arroto. Tive que aprender a calar, sem discurso como meus pais. 11. Mas no fundo da escola havia um velho depósito. Apenas mais um lugar de castigo, onde o silêncio também era exigido. E um general de maneiras femininas sentava-se atrás da escrivaninha. E era ali que fazíamos a lição, decorando data, mapa, conjunção. E no meio de livros tantos pelas estantes éramos apenas comportados estudantes.
13. E havia um tio devidamente louco, analfabeto como todos os outros, que gostava de ler as gravuras dos jornais usados para embrulho. Passava horas com os velhos jornais como quem decifra o hebraico, tentando entender o que diziam aquelas pequenas manchas de tinta. Meu tio não sabia ler mas lia. Foi o grande exemplo para minha futura carreira de leitor esse tio analfabeto e louco. E meu tio lia jornais amarelados recusando-se a estar informado, queria apenas o divino gosto de desenterrar o que estava morto. É a ele que devo este vício de não me interessar pelas notícias, de buscar nos jornais apenas aquilo que pode ser perene.
12. 14. No armazém de meu padrasto, freqüentado por tudo quanto é parvo, eu ia aprendendo a miséria de um grande país de merda
Foi este exemplo que me conduziu à pequena biblioteca da escola.
em que as pessoas eram exploradas como se esgotam as terras.
Havia então um outro mundo atrás daquelas estantes todas? E, analfabeto que também era, fui decifrando aquelas letras,
Agricultores encardidos vendendo o último viço, mulheres enroladas em trapos e de rachados pés descalços comprando apenas o mínimo, banda de feijão e arroz quebradinho.
estrangeiro em minha própria língua, soletrando mal as suas belezas. E se de todas as lições da escola não me sobrou absolutamente nada, daquelas minhas sofridas horas ficou este fascínio pelas palavras.
Eu vi meninos com mãos calejadas de tanto escrever a vida na enxada, vi meninas com olhares baços soletrando a solidão dos matos. Foi no armazém de meu padrasto que conheci este país descalço. 62
[nasceu em Bela Vista do Paraíso-PR e vive em Ponta Grossa-PR; mais em: http://herdandoumabiblioteca.blogspot.com/]
Cândido Rolim (CE)
Ă boca pequena
[tirado do blogue http://signagem.blogspot.com/]
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Denise Freitas (RS/SC)
ES VAI
duas imagens abrasivas
assustava-se à disponibilidade da matéria
ainda mais no alto em toda contraparte e mesmo que de algum inesperado o fogo lhe adornava
lâmina onde ânimo não assenta veleidades expandir subserviência no dia cansado esvaíra-lhe o caminho era da pele anular sua volúpia sem vista inverte volteia dulce
ductilíssima
era contrário a bom disfarce ainda mais no altar de todo cotidiano portanto esses no mesmo esfumaço suporta quase firme apostasia prossegue abaixo e se desfaz
dissenso em farta medida
bastara livrar-se àquela sem vontade para entregar-se voluta
à exceção de cuidados estampo cada hipótese com que pinte ou preste destroço de geração em geração
vórtice encalço a toda sorte
de fato a tudo interesso no disfarce no entanto digesto insuspeito daquele sem predileção alguma a não ser o que de si simula gosto sem critério
[nasceu em Rio Grande-RS e vive em Itajaí-SC; mais em: http://www.sisifosemperdas.blogspot.com/]
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BABEL Poética
Ano I, n.º 4 – agosto/setembro de 2011 Copyright © dos editores e dos autores BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais. MINISTÉRIO DA CULTURA Ana de Hollanda | Ministra Secretaria de Políticas Culturais Sérgio Duarte Mamberti | Secretário ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSA João Maurício de Araújo Pinho | Presidente REDE DE REVISTAS PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO Sergio Cohn e Elisa Ventura | Coordenadores Tatiana Louzada | Produtora Luana Villutis | Coordenadora de rede Filipe Gonçalves e Elisa Ramone | Assistentes de Produção REVISTA BABEL POÉTICA | babelpoetica.wordpress.com Ademir Demarchi | Editor | ademirdemarchi@uol.com.br | Santos/SP Amir Brito Cadôr | Projeto Gráfico e Edição Gráfica | amir_brito@yahoo.com.br | Belo Horizonte/MG Daniela Maura | Assistente de Edição Gráfica | danimaurasan@gmail.com | Belo Horizonte/MG Paulo de Toledo | Revisão | paulodtoledo@uol.com.br | Santos/SP CONSELHO EDITORIAL Ademir Assunção (SP), Cláudio Portella (CE), Jorge Luiz Antonio (SP), José George Cândido Rolim (CE), Lúcia Rosa (SP), Makely Ka (MG), Marcelo Chagas (SP), Márcio-André (RJ), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Mauro Faccioni Filho (PR/SC), Nilson Oliveira (PA), Paulo de Toledo (SP), Ricardo Corona (PR), Ronald Augusto (RS), Silvana Guimarães (MG) e Susana Scramim (PR/SC) Colaboradores desta edição Adelaide do Julinho (MG); Alberto Martins (SP); Alberto Pucheu (RJ); Ana Guadalupe (PR/SP); Ana Peluso (SP); André Luiz Pinto (RJ); Artur Gomes (RJ); Carlos Vogt (SP); Casé Lontra Marques (RJ/ES); Cláudio Daniel (SP); Cristiano Moreira (SC); Daniela Maura (SP/MG); Denise Freitas (RS/SC); Dennis Radünz (SC); Edimilson de Almeida Pereira (MG); Eduardo Jorge (CE/MG); Eduardo Lacerda (RS/SP); Enzo Potel (SC); Estrela Leminski (PR/SP); Fabio Weintraub (SP); Fabrício Corsaletti (SP); Fabrício Marques (MG); Fernando Koproski (PR); Flávio Viegas Amoreira (SP); Francisco dos Santos (MS/SP); Joana Corona (PR); José Geraldo Neres (SP); Mario Alex Rosa (MG); Mauro Faccioni Filho (PR/SC); Miguel Sanches Neto (PR); Paulo Franchetti (SP); Pipol (SP); Raquel Stolf (SC); Renato Rezende (RJ); Reynaldo Damazio (SP); Ricardo Aleixo (MG); Ricardo Corona (PR); Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR); Ricardo Silvestrin (RS); Rodrigo de Souza Leão (RJ); Rodrigo Madeira (PR); Ronald Augusto (RS); Rudinei Borges (PA/SP); Sabrina Bandeira Lopes (PR); Silas Correa Leite (SP); Victor Del Franco (SP); Vinicius Lima (PR). Imagens Ana Paula Garcia, Julia Campos e Nina Aragón p. 2 (detalhe) Luise Weiss p. 8 e 20 Luciana Bertareli p. 11 http://lucianabertarelli.blogspot. com/ Patricia Franca série “A questão longínqua”, instalação [fotografias, desenho e pintura] p. 27 e 59 http://www.eba.ufmg.br/ patriciafranca)” p. 50 Letícia Weiduschadt série “Sobre a distância entre mim e você” p. 35 e 36 Daniela Maura p. 48 Mario Alex Rosa AR, objeto que pertence a série A régua da memória ou a regra da memória p. 65
Capa Amir Brito Cadôr, sobre fotografia de Silvana Leal Poema-logotipo (editorial): Paulo de Toledo Fotografias e vinhetas: Daniela Maura Gestão do Projeto Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência www.projetocamara.org.br Rua Caminho dos Barreiros n.º 491 – Beira Mar CEP 11040-020 São Vicente –SP Agradecimentos Expressamos nosso reconhecimento a todos os que têm colaborado para a concretização deste projeto, em especial aos autores que nos autorizaram a publicação de imagens e textos. Impressão e Distribuição Programa Cultura e Pensamento/MinC Tiragem 10 mil exemplares - Distribuição Gratuita – Venda Proibida Correspondência Ademir Demarchi / BABEL Poética Rua Espírito Santo, 55, apto. 36 CEP 11075-390 - Campo Grande - SANTOS – SP