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BABEL POÉTICA Nº 6 | agosto/setembro 2011

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BABEL Poética

Ano II, n.º 6 – agosto/setembro de 2011 Copyright © dos editores e dos autores BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais. MINISTÉRIO DA CULTURA Secretaria de Políticas Culturais Sérgio Duarte Mamberti | Secretário ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSA João Maurício de Araújo Pinho | Presidente REDE DE REVISTAS PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO Sergio Cohn e Elisa Ventura | Coordenadores Tatiana Louzada | Produtora Luana Villutis | Coordenadora de rede Filipe Gonçalves e Elisa Ramone | Assistentes de Produção REVISTA BABEL POÉTICA | babelpoetica.wordpress.com Ademir Demarchi | Editor | ademirdemarchi@uol.com.br | Santos/SP Amir Brito Cadôr | Projeto Gráfico e Edição Gráfica | amir_brito@yahoo.com.br | Belo Horizonte/MG Daniela Maura | Assistente de Edição Gráfica | danimaurasan@gmail.com | Belo Horizonte/MG Paulo de Toledo | Revisão | paulodtoledo@uol.com.br | Santos/SP CONSELHO EDITORIAL Ademir Assunção (SP), Cláudio Portella (CE), Jorge Luiz Antonio (SP), José George Cândido Rolim (CE), Lúcia Rosa (SP), Makely Ka (MG), Marcelo Chagas (SP), Márcio-André (RJ), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Mauro Faccioni Filho (PR/SC), Nilson Oliveira (PA), Paulo de Toledo (SP), Ricardo Corona (PR), Ronald Augusto (RS), Silvana Guimarães (MG) e Susana Scramim (PR/SC)

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Adriano Scandolara (PR); Adriano Wintter (RS); Alberto Pucheu (RJ); Angélica Freitas (RS); Cláudio Portella (CE); Dennis Radünz (SC); Fabiano Calixto (PE/SP); Francisco Amarilla (PR); Jorge Wolff (RS/SC); José Leite Netto (CE); Luis Dolhnikoff (SP/SC); Marcelo Chagas (SP); Mauricio Salles Vasconcelos (RJ/SP); Paloma Vidal (Buenos Aires/São Paulo-SP); Pedro Cesarino (SP); Poeta de Meia-Tigela (CE); Rául Antelo (Buenos Aires/ Florianópolis-SC); Ricardo Aleixo (MG); Ricardo Corona (PR); Ronald Augusto (RS); Susana Scramim (PE/SC); Valêncio Xavier (SP/PR); Waldo Motta (ES); Wilmar Silva (MG). Imagens Amir Brito p. 3 e 38, Daniela Maura p. 8; Rafael Neder p. 42; Cláudio Rocha do álbum Além da Letra p. 46 e 51. Marcelo Sahea Microfome p. 63. Para esta edição, foram utilizadas imagens produzidas por alunos da Ação de Formação Artística e Cultural - Arena da Cultura, do Laboratório I - Expressão Bidimensional, sob orientação de Daniela Maura: Bernardo Guimarães, Maria Elizabeth Pimentel Maluf, Vera Leão, Jairo Martins p. 12 e 15; Marcelo Dola, p. 21; Vera Leão p. 29 e 32; Lucas Repetto, p. 54; Lucimary Cruz Cândido de Amorim p. 56; Bruna Gabriela Ramos Dias p. 64.

Capa Amir Brito Cadôr, com tipos de madeira da Tipografia do Zé Gestão do Projeto Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência www.projetocamara.org.br Rua Caminho dos Barreiros n.º 491 – Beira Mar CEP 11040-020 São Vicente –SP Agradecimentos Expressamos nosso reconhecimento a todos os que têm colaborado para a concretização deste projeto, em especial aos autores que nos autorizaram a publicação de imagens e textos. Impressão e Distribuição Programa Cultura e Pensamento/MinC Tiragem 10 mil exemplares - Distribuição Gratuita – Venda Proibida Correspondência Ademir Demarchi / BABEL Poética Rua Espírito Santo, 55, apto. 36 CEP 11075-390 - Campo Grande - SANTOS – SP


Esta publicação foi selecionada entre os projetos que se inscreveram no Programa Cultura e Pensamento – Seleção Pública e Distribuição de Revistas Culturais. Foram escolhidos quatro projetos, e desta forma contemplamos quatro revistas culturais bimestrais cujas tiragens, somadas, chegam a 240 mil exemplares. O objetivo desta iniciativa é estimular a criação de publicações culturais permanentes, e de alcance nacional – não apenas em sua distribuição, mas também em seu conteúdo. Ao patrocinar este projeto, a Petrobras reafirma, uma vez mais, seu profundo e sólido compromisso com as artes e a cultura em nosso país – confirmando, ao mesmo tempo, seu decisivo papel de maior patrocinadora cultural do Brasil. Desde a sua criação, há pouco mais de meio século, a Petrobras mantém uma trajetória de crescente importância para o país. Foi decisiva no aprimoramento da nossa indústria pesada, no desenvolvimento de tecnologia de ponta para prospecção, exploração e produção de petróleo em águas ultra-profundas, no esforço para alcançar a auto-suficiência. Maior empresa brasileira e uma das líderes no setor em todo o mundo, a cada passo dado, a cada desafio superado, a Petrobras não fez mais do que reafirmar seu compromisso primordial, que é o de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Patrocinar as artes e a cultura, através de um programa sólido e transparente, é parte desse compromisso.

CULTURA E PENSAMENTO é um programa nacional de estímulo à reflexão e à crítica cultural. Desde sua primeira edição em 2005, seleciona e apoia projetos de debates presenciais e publicações. O objetivo do programa é dar suporte institucional e financeiro a iniciativas que fortaleçam a esfera pública e proponham questões e alternativas para as dinâmicas culturais do país. Em 2009, o Programa abriu a terceira edição dos editais para financiamento de debates e de periódicos impressos de alcance nacional. Os editais são abertos a propostas de intelectuais, pensadores da cultura, artistas, instituições e grupos culturais, pesquisadores, organizações da sociedade civil e outros agentes, visando à promoção do diálogo sobre temas da agenda contemporânea. O projeto de revistas do Programa Cultura e Pensamento busca ofertar gratuitamente conteúdos de elevada qualidade a um público amplo e diversificado de leitores, através de uma rede de circulação formada por 200 pontos de distribuição em todo território nacional, entre eles instituições culturais, universidades e pontos de cultura. Ao longo dos 24 meses o projeto prevê o lançamento de 20 títulos, cada um com 6 edições bimestrais, totalizando a circulação gratuita de 1.200.000 exemplares de revistas com discussões sobre arte e cultura, oriundas de diversos estados do país. A rede abrangerá mais de 200 colaboradores editoriais de cinco regiões e 19 estados brasileiros. A edição 2009-2010 do Edital de Revistas do PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO tem patrocínio da Petrobras e é realizada pela Associação dos Amigos da Casa de Rui Barbosa. Este projeto foi contemplado pela seleção pública de revistas culturais do programa CULTURA E PENSAMENTO 2009/2010




EDITORIAL

O projeto de 6 edições de Babel Poética de fazer um mapeamento da poesia contemporânea por temas encerra-se com esta edição. A seleção dos poemas foi feita sem preocupação estetizante, mas com critérios de vieses sociológico e histórico, sob a temática geral “Poesia na Era Lula”, como uma forma de ler o momento contemporâneo a partir da poesia, circunscrevendo essa época por sua importância histórica – de remarcado retorno do velho populismo, confirmado na eleição de Lula, e seus desdobramentos consubstanciados em discursos reivindicatórios ou de protesto e crítica – muito presentes nessa poesia. A primeira edição, assim, sob o lema “Poesia na Era Lula”, selecionou poemas orientando-se pela ideia de como os poetas veem ou escrevem sobre o país contemporâneo. Esse lema, orientando as demais edições, possibilitou outros desdobramentos. Assim, a edição 2, pensando o local, reuniu um conjunto de poemas buscando-se demonstrar o registro que os poetas fazem dos lugares onde nasceram, moram, transitam. A terceira edição, por sua vez, focou na questão das fronteiras, geográficas, linguísticas, sociais. Reuniu, assim, textos de poetas que efetivamente registram a vida nas margens do Brasil com os outros países e as tensões presentes, desdobrando-se também numa visada sobre as diluições das fronteiras linguísticas e a questão das fronteiras sociais. A quarta edição reuniu um conjunto de poemas sobre a questão de como os poetas pensam a si próprios e também em relação ao outro social, ressaltando-se a onipresença egótica do discurso poético em primeira pessoa na poesia contemporânea, procurando também contrastá-lo com esse outro que o conforma. A quinta edição, num desdobramento da anterior, reúne dois conjuntos de poemas focados no índio,

esse outro estranho na sociedade brasileira, nunca devidamente reconhecido como um cidadão com sua cultura e características próprias. O primeiro desses conjuntos é formado por poemas escritos por índios e o segundo por não-índios que escrevem sobre índios ou que exploram sua cultura para formar sua poética, sinalizando uma das linhas mais interessantes e inovadoras nas poéticas contemporâneas. Esta sexta edição, finalmente, agora aberta às reflexões estéticas, reúne um conjunto de textos solicitados a convidados participantes do projeto ou não, que refletem sobre os temas e conteúdos selecionados ou sobre a poesia contemporânea, vista a partir das edições e conforme o modo próprio de leitura de cada um, aos quais são acrescidos alguns poemas. Os poemas selecionados nas várias edições criam choques uns com os outros, que se repetem também nos textos opinativos, de forma que se expressa aqui a sociedade contemporânea através disso que se diz ser sua poesia, seus poetas e seus leitores e críticos. Por se tratar de um projeto aberto, como sempre se caracterizou nas edições de Babel, marcada pela bricolagem, a irregularidade de textos ou reflexões poderá ser notada, porém sobrepõe-se a isso o objetivo alcançado: a leitura está feita, as questões para a reflexão estão colocadas. Que tempo é este, que poemas são esses? Faz sentido a proposição de um tal projeto de leitura do contemporâneo pelo viés dos temas propostos, abdicando de um recorte mais incisivamente estético? Os textos opinativos expõem de modo eficiente as respostas a essas questões e às suas fraturas vindas desse risco de imersão aleatória no presente. Disso, conclui-se, a pergunta “que poesia?” continua em pauta, como um motocontínuo.


Raúl Antelo (Buenos Aires/Florianópolis-SC)

Pós-linguagem: em uma outra dimensão É bem verdade que Baudelaire definia a poesia como aquilo que há de mais real, isto é, como aquilo que só é cabalmente verdadeiro em uma outra dimensão, “dans un autre monde”. Os antropófagos diziam desconhecer o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental, e talvez seja por isso que Ricardo Domeneck vê, nessa dinâmica, a lógica punk-tropical ou dadá-banana. Mas se esse além-fronteiras foi avaliado, durante muito tempo, pelo viés exótico do Longínquo e do Estranho, já Lacan, no entanto, à maneira institucional do dadaísmo (que mudou as questões: arquivou o clássico o que é o belo? e passou a se perguntar o que é a arte?), abandonou também a pergunta essencialista (o que é a poesia?) e, em seu seminário sobre as psicoses, bem antes de Nelson Goodman, portanto, se questionou, afinal, quando há poesia? A resposta é clara: há poesia quando, como previra aliás Baudelaire, um texto nos introduz em um outro mundo; mas é preciso acrescentar também que esse novo mundo deve poder nos oferecer a presença de um ser ou de um vínculo fundamental com a linguagem que o torne nosso mundo. A “Invocação de Tupã” de Waldo Motta, o portunhol salbaje de Douglas Diegues... A poesia é essa criação que assume uma nova ordem de relação simbólica com o próprio mundo. A partir do romance gótico, no fim do século XVII, vai se firmando, na Europa, uma crescente separação entre poésie e goût (ou esprit); mas seria preciso aguardarmos até Marcel Duchamp para perceber que o gosto (o gout) é o esgoto (le gout c´est l´égout). Há aí um novo vínculo com a linguagem, em sintonia com o mau gosto reivindicado por Rimbaud, na “Alquimia do Verbo” de Uma temporada no inferno, quando o poeta declara seu amor pelas pinturas idiotas, estofos de portais, cenários, lonas de saltimbancos, tabuletas, estampas coloridas populares; a literatura fora de moda, o latim de igreja, os livros eróticos sem ortografia, os romances de nossas avós, contos de fadas, livrinhos infantis, óperas velhas, estribilhos piegas e ritmos ingênuos (“les peintures idiotes, dessus de portes, décors, toiles de saltimbanques, enseignes, enluminures populaires; la littérature démodée, latin d‘eglise, livres érotiques sans ortographe, romans de nos aieuls, contes de fées, petits livres de l ‘enfance, opéras vieux, refrains niais, rhythmes naïfs”), alguns dos quais, entretanto, como “latin d‘eglise, livres érotiques”, por exemplo, estão na base da estética heterológica de Georges Bataille quem, numa França esfomeada pela guerra, diria que a poesia é o contrário da poesia, uma vez que tendo o perecível como meta, muda-o em eterno (“la poésie qui subsiste, est toujours un contraire de la poésie, puisque, ayant le périssable pour fin, elle le change en eternel”). Daí Roberto Piva, Glauco Matoso... Michel Foucault, quem, nos anos 60, começaria sua reflexão sobre poesia e loucura, compartilhava essa percepção de Bataille e Lacan, uma vez que, a seu ver, a poesia do maior poeta alemão do século XIX, Hölderlin, está para


nós, precisamente, muito mais próxima da essência da poesia moderna e é isso mesmo que também lhe atraía no caso de Sade, Mallarmé, Raymond Roussel ou Artaud: o mundo disparatado da loucura, da contingência absoluta e gratuita, esse outro mundo que foi deixado de lado a partir do século XVII, esse mundo festivo da loucura irrompeu de repente na literatura. Em seu livro Raymond Roussel, Foucault é ainda mais preciso ao definir esse vazio como a súbita irrupção do inesperado (a morte), na linguagem de sempre, mas é também esse vazio o procedimento que faz as estrelas brilharem, que possibilita as constelações (Mallarmé, Benjamin) e permite, ainda, a sobrevivência dos vaga-lumes (Didi-Huberman). Vazio e brilho combinados definem assim a distância da poesia (“c’est ce vide soudain de la mort dans le langage de toujours, et aussitôt la naissance d’étoiles, qui définissent la distance de la poésie”), poesia que, como partilha absoluta da linguagem, restitui o idêntico a ele mesmo, como nos túmulos mallarmaicos, porém, em outro mundo ou, como diz ainda Foucault, “de l’autre côté de la mort”. E, nessa mesma vertente, em Diferença e repetição, Gilles Deleuze louva o procedimento de Roussel, construído a partir de palavras de duplo sentido ou homônimas, que elevam ao paroxismo a relação entre os objetos e a história, desdobrada duas vezes, fazendo com que a linguagem em eco — a poesia — inscreva o máximo de diferença na repetição, como fendendo a palavra ao meio e instalando, em seu puro centro, o mais absoluto vazio, como nas bugigangas espelhadas, espalhadas de Carlito Azevedo. Esse espaço, que é o das máscaras e da morte (não só Blanchot, mas mesmo Benjamin dizia que a obra é a máscara mortuária de sua gênese) nos mostra que, nesse sentido, a poesia, que seria o espaço onde tudo se repete e recomeça, não é mais, ao modo romântico, uma fala pura ou original, mas uma pós-linguagem (Deleuze chama-a un après-langage), uma vez que tudo já foi dito. Invertendo o esquema hierárquico idealista, a poesia torna-se, então, mero vestígio, traço, resíduo, a autêntica origem do espírito (o esprit). Não é que a realidade empírica e social esteja formulada de forma hermética; as formas históricas só crescem e se formulam graças a um sistema de inscrições sutis, de tal sorte que um indivíduo despossuído dessas marcas, dessa memória, mal poderia criar ou sequer dar um passo em firme. Recordemos que Bataille não nos falava, a respeito de Baudelaire, de uma poesia qualquer, mas da poesia que sobrevive (“la poésie qui subsiste”) e mesmo Artaud falava de um “materialismo do incorpóreo”, a partir do qual poderíamos pensar na poesia como uma autêntica icnologia, um saber dos rastros, dos indícios e das impressões. No entanto, se a poesia é icnologia, ela não é mímesis do mundo social existente, mas aisthesis (contato) desse e de outro mundo juntos. Vale, portanto, a observação de Novalis (fragmento 1339), a poesia é um uso voluntário, ativo e produtivo, de nossos órgãos, do nosso corpo, porém, com a ressalva fundamental de que aquilo que, em certa medida, foi de início involuntário, deve se tornar voluntário. Voltemos, enfim, a Lacan: a poesia, como pós-sintoma, como póslinguagem, é aquela criação que assume uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. [nasceu em Buenos Aires-Argentina e vive em Florianópolis-SC; é professor da UFSC]


Paloma Vidal (Buenos Aires/São Paulo-SP)

fora da máquina de lavar

ciudad juárez

sentada numa cadeira de plástico na área de serviço, com uma bata longa, florida, sem mangas, chinelos nos pés, ela observa a máquina de lavar que gira e faz rodar as roupas numa mistura de cores que a hipnotiza. sua mente passeia por tempos remotos. vem-lhe um pensamento: eles ni se falan, pero sus ropas se entrelaçan en la máquina de lavar. lembra-se dos netos quando eram pequenos, seus três netos, filhos de seu único filho. para estar com eles decidiu deixar sua casa, em montevidéu, e vir para o brasil; para vê-los crescer, acompanhar suas transformações e seus quereres, para ensinar-lhes a falar espanhol. pero nenhun deles aprendiô, diz em voz alta, dirigindose à máquina.

sentada em sua poltrona, está rendida pelo desânimo. deseja dormir o mais rápido possível. não tem coragem de conversar com ninguém. não sabe ou talvez tenha esquecido, ensimesmada como está, que el paso fica a poucos quilômetros de ciudad juárez. não lhe vem à lembrança, portanto, o vídeo que viu na ucla sobre as moças assassinadas nessa cidade na fronteira do méxico com os estados unidos. não sabe e não quer saber que a menina sentada a seu lado, grávida de quatro meses, saiu de lá à meia noite e meia e chegou a el paso às 2:15 da manhã e esperou, como ela, quase duas horas pelo ônibus que a levará de el paso a san antonio, onde uma tia a acolherá até que seu bebê venha ao mundo em solo americano e tenha direito, como ela também teve, porque sua mãe também fez essa viagem, a um green card.


avenida paulista

para T.L., A.K. e P.S.

a cidade não me protege, mas tudo bem. são eles que me servem de amparo. quando a gente sobe a ladeira que vai dar na paulista, a. se apóia no carrinho de f., enquanto eu aperto bem sua mão. às vezes, ele diz: “mãe, solta um pouco”. eu então o libero e ele anda sozinho até o sinal, que ele chama de “farol”

minhas amigas judias discordam de mim. torta de maçã com sorvete? não, combina mais com roquefort. nada de simetrias. nem medidas justas. nem boas maneiras. minhas amigas judias discordam de quase tudo: um belo dom; um amor às avessas. elas pressentem catástrofes que talvez nunca cheguem. ou talvez sim. são bruxas. dizem: “me sinto estranha”. não sei de onde elas vêm. imagino desertos, campos perdidos, casas cheias de bibelôs. minhas amigas judias não me levam a sério. não sei o que fazer com elas. não sei o que falar. então solto uma risada teatral e finjo entender.


sob as rodas ao atravessar a avenida tive que me desviar de um bicho morto. já não é fácil empreender essa travessia sem ajuda. quatro pistas devem ser transpostas em 30 segundos, como marcam os números verdes piscando à frente. um desvio significa mais um risco que eu não tinha não calculado. o animal era uma ratazana esmagada por algum automóvel. seu corpo ficou estampado no asfalto como se nunca tivesse existido. como uma gravura. é provável que ninguém sequer se dê o trabalho de tirá-lo dali, já que mais dia menos dia acabará se desintegrando sob as rodas. não consigo deixar de pensar que eu também posso eventualmente cometer um erro de cálculo e findar ali, no meio de um pensamento.

londres de bicicleta a primeira coisa que faz ao chegar é conseguir um mapa e localizar a rua snowsfield na cidade. é uma pequena rua que sai da weston st. e fica a cinco minutos da london bridge. depois compra uma bicicleta. logo aprende que a chuva pode ser uma boa companhia, mas a cidade lhe parece imensa, fora do alcance de suas pedaladas. sente que mesmo morando ali muitos anos, permanecerá indecifrável. que ele e ela serão sempre dois estrangeiros, bastante solitários, quase invisíveis ao olhar indiferente dos ingleses.

[nasceu em Buenos Aires-Argentina e vive em São Paulo-SP; mais em: http://www.escritosgeograficos.blogspot.com]


Ronald Augusto (RS)

POESIA E CRÍTICA CONTEMPORÂNEAS: ENDOGAMIA E TOLERÂNCIA O fato de nos depararmos com uma produção poética “ainda sendo feita”, um gesto, por assim dizer, “em tempo real”, fugaz e live, isto é, que não se estabeleceu, não justifica o silêncio, nem a esquiva crítica a contragosto a seu respeito. Em outras palavras, insiste-se na alegação de que devido à sua condição de fenômeno in progress, a poesia atual acabaria por impor um óbice à tarefa crítica, visto que, por definição, essa atividade teria a função de regular e julgar, calcada sobre certa estabilidade de valores, apenas aquele objeto cuja trajetória pudesse ser abarcada desde o ponto-zero do seu impulso, passando por suas correções de rota e chegando até o seu provável termo de repouso. Portanto, uma experiência tão fugidia, como essa que aqui se discute, talvez não permitisse a prospecção judicativa de seu conjunto. Por causa de sua base larga; sua radicalidade que atinge os antros da terra; suas ferramentas argênteas, a crítica se mostraria, supostamente, sem condições de perscrutar semelhante alvo em movimento, esse ser transitório. Vantajosa inadequação da crítica, às vezes tão fora do lugar! O mundo é leviano demais para a sua lerdeza magnânima. Mas, o crítico está (ou deveria se sentir) implicado nas imposturas e nos dilemas que denuncia e anuncia. Portanto, a poesia contemporânea, como fenômeno inconcluso, filha e protagonista de um presente contínuo, signagem manifestada dentro do “horizonte do provável” do nosso tempo, não estaria em situação de ser mapeada “cabalmente”, pois como coisa viva, algo de sua efemeridade escaparia pelas beiradas do escalpelo crítico consagrado. No entanto, há aí um problema de distorção, melhor, de superestimação. Parece estar-se exigindo, para o caso, uma crítica monumental, ou um olhar telescópico que, enquadrando o mais ínfimo e distante exemplar dessa poesia, capturasse num mesmo golpe o mundo e o tempo conhecidos que o envolvem. Mas, o fazer, o saber e o julgar inextrincáveis à atividade crítica, devem ser colocados numa perspectiva provisória, menor. Em outras palavras, crítica é leitura aplicada; uma forma de interpretação ou de abordagem. Isto nos faz supor que tal atividade também se relaciona ao possível, ao impermanente das limitações e das parcialidades do sujeito. Desta maneira, a leitura, ou a crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser, tal como ela, uma expressão em construção, ainda não canônica e não canonizada. Sequência de interpretações e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por assim dizer, “câmera-na-mão”, ou para usar outro lugar-comum, crítica mais como transpiração do que como inspiração. Leitura interessada, severa e experimental embrenhada na nervura do dissenso.

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Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica totalizadora que “de fato” venha a dizer, quem sabe um dia - pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós -, aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos) ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia perante a nossa recepção. Às vezes fala-se a propósito da poesia contemporânea em termos de que tratarse-ia de uma experiência capaz de provocar um estranhamento e um incômodo em determinadas zonas da audiência similares àqueles causados, por exemplo, pela arte contemporânea. Isto é um absurdo. A produção poética de agora-agora passa longe de qualquer gesto iconoclasta, não põe em cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à anti-arte. Por exemplo, mesmo uma tal “vertente” neobarroca, barroquizante ou sub-haroldiana, com laivos de hermetismo pó-de-arroz — coincidência de interesses de uns com a crença de outros —, assinalável aqui e ali pelo por seus comentaristas e praticantes, e que a consideram “o caminho mais consistente de pesquisa e experimentação em nossa poesia hoje”, não parece ter rendido até agora grande coisa, isto é, não fez ninguém “cagar duro”, diria, quem sabe, o poeta da lírica maldizente. Com efeito, dois ou três poemas do livro Big Bang (1974) de Severo Sarduy bastariam para dar uma lição nos cultivadores e nos escoliastas coloristas da modalidade, mostrando que de fato, neste caso, a arte-risco do barroco (em sentido forte) deve ser mais embaixo (ou em cima, a escolher) e não pode ficar à disposição da pródiga e xamânica perícia metaforizante de diluidores dedirróseos. Então, por que reivindicar para a produção contemporânea um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do “meu tio iauaretê”, na presunção de glosá-la eruditamente e de uma vez por todas? Desde a realidade insossa das manifestações poéticas atuais, talvez se possa arrancar uma resposta cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade e eficiência dessa mesma poesia por meio da chantagem cult de um metadiscurso que assomaria para “pôr as coisas em ordem”, problematizando uma farsa com outra. Portanto, qualquer discussão séria acerca da poesia contemporânea talvez devesse avançar sobre a questão do espaço de atuação que os seus envolvidos procuram conquistar com vistas a determinar, perante a audiência, as margens de sua relevância. Se é difícil reconhecer a existência de um espaço efetivo para a sua interlocução inteligente com as demais manifestações culturais, somos obrigados a admitir que debatemos a respeito de algo que não existe. De certa forma, poder-se-ia dizer até que a poesia contemporânea não existe porque, segundo alguns pensadores, o presente não existe. O presente precário da poesia contemporânea se dissipa, se desmancha num virar de páginas ou diante de uma simples resenha desfavorável a um dos seus exemplares. Nessas situações percebe-se uma reação histérica cuja explicação se acha num sistema de autoproteção, uma reserva de mercado branca (ou nem tanto), light, que procura preservar a poesia, já que, para todos os efeitos, o poeta “não se vende”. Os prosadores, ao menos, não inventam a sua relevância, delegam às editoras a prática dessa impostura. Os poetas, por sua vez, numa espécie de retranca

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mistificadora e endogâmica (reedição da sua sempiterna subalternidade junto à “república do poder”), alardeiam a excelência da própria produção tendo em vista a conquista de uma posição de influência dentro do sistema literário, ou o reconhecimento circunstante acompanhado das benesses de praxe, usando para tais fins os meios lícitos e ilícitos disponíveis. Toda essa competência poeticamente correta de que se ufanam é agenciada dentro dos estritos limites do contemporaneamente tolerável, onde “escolhas afetivas” são rebaixadas a essas formas edulcoradas e cínicas de comportamento próprias das “redes sociais”. Tudo é só curtição. Seus interesses e “afinidades eletivas” coincidem com suas crenças. No entanto, embora os veículos tradicionais (jornais, revistas, TV, rádio) persistam como reféns da baixeza insistindo numa recusa frontal a tudo que se aproxime de um lance de pensamento, a Internet, por outro lado, começa a dar sinais de vida inteligente e às vezes chega mesmo a nos enganar. Ou seja, a rede mundial/virtual, algumas vezes, finge ser o lugar por excelência de um saber/conhecimento que nós deveras há muito esperamos que cresça e apareça em algum âmbito. Mas, na verdade, ainda é um meio em vias de estabelecer-se. Tem muito dos defeitos e das virtudes dos outros meios que um dia talvez venha

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a substituir. Assim, à diferença dos veículos consagrados (que tentaram contar um pouco da história desses dois últimos séculos), a Internet parece encarnar a imagem desse nosso presente sem margens presunçosamente aparentado a um “pós-tudo”. E a poesia contemporânea se sente bastante à vontade no interior da fragmentação especular que marca esse recinto virtual. Agora, pretendo destacar alguns aspectos do estado de espírito dessa poesia. Figuras de sua verdade cambiante. Primeiro aspecto: a) os poetas de agoraagora, grosso modo, dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da tradição literária do ocidente; estar familiarizados com a voz dos mestres do modernismo; prestar atenção aos recursos da versificação quer seja livre, quer seja metrificada; e, por fim, simpatizar, naturalmente, com proposições das vanguardas de quatro décadas atrás. A sofisticação, no caso deles, beira o lugar-comum. Não praticam mais uma poesia ingênua, de coração, confessional. Todos têm uma consciência de linguagem de causar inveja (aos seus pares, naturalmente). A propósito disso, Heloisa Buarque de Hollanda publicou um estudo-antologia (26 Poetas Hoje) em que discute, entre outras, essa questão. Seu recorte tem um cunho multicultural. Mas a autora avança na contramão daqueles que denunciam na poesia contemporânea um pendor para a alienação, para a fuga da realidade, sintomas que, de acordo com esses críticos, seriam resultantes dessa opção pela extrema sofisticação. A autora não nega a existência desse traço requintado, algo emasculado, mas no recorte que nos apresenta, fica demonstrado que esses poetas não participam inteiramente de um estado de espírito neutro ou indiferente em relação ao que os cerca. Isto é, o requinte, a erudição intertextual não estão necessariamente em contradição com a consciência política e social e também histórica. Vejamos outro aspecto: b) a poesia atual se acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo. Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão “ecletismo retrô” para provocar ironicamente essa geração que lhe sucede. Com efeito, tudo agora parece possível depois das vanguardas históricas das décadas de 1950/60. A tolerância poeticamente correta permite desde o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu. É como se os poetas contemporâneos quisessem resgatar das zonas do limbo aqueles exemplares excluídos pelo afã talibanesco do alto modernismo. As vanguardas tão esclarecidas quanto totalitárias (porque indecorosamente utópicas) da virada do século 19 para o século 20, talvez tenham jogado fora o bebê junto com a água do banho. O poeta carioca Alexei Bueno, defende essa tese pós-moderna de revisão do legado. Ele reivindica toda uma tradição e um repertório deixados de lado pela parelha dicotômica novo-velho, suportada pelos diversos discursos do modernismo (que serve de escopo a eles, que os informa). O poeta-crítico repropõe os nomes de, por exemplo, Gonçalves Dias e Castro Alves. Há alguns anos, Alexei Bueno também chegou a publicar uma carta aberta criticando o que chamou de “uma apropriação midiática e totalitária do neoconcretismo” e dos seus epígonos, entre eles é mencionado o poeta Nelson Ascher. Não obstante o tom algo tresloucado e mesmo ofensivo – motivado talvez pela provinciana rivalidade Rio-São Paulo – o conteúdo da carta foi e é importante na medida em que mexe com um estado de coisas relativo a certa apologia acrítica em torno do valor e das consequências da poesia concreta – apologia que, se de fato existe, não condiz, em fim

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de contas, com o radicalismo desse movimento – e que, por tabela, denuncia na espinha do sistema literário esse constante risco de estagnação a que está sujeito. Um terceiro aspecto também interessante da poesia atual é o seguinte: c) nunca, como hoje, vimos os poetas tão entranhados nas regras de eficiência e competência exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer, se configura em representação especular, embora com suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que outra razão haveria para a grande presença de poetas dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra filiações consagradas e consagradoras. Alexei Bueno pergunta pelos poetas engenheiros; pelos poetas médicos; pelos poetas sem profissão; enfim, pelos poetas “à margem da margem”: onde estão eles? Isso parece coisa de outro tempo. Uma parcela significativa dos poetas vivos, isto é, nascidos no século passado, se formam ou se formarão no interior dos muros acadêmicos. Mestrandos e doutorandos em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o gênio monstruoso cuja originalidade sem começo nem fim ofusca a nossa compreensão. Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo vagabundo, de leitura de prazer e uma constante prática corpo a corpo com a linguagem. O poeta precisa distinguir, por exemplo, uma sextina de um soneto, identificar tanto nos traços fonológicos quanto nos grafológicos, insumos estéticos. Um poeta está sempre in progress. É neste sentido que uma formação burocratizante numa atividade equívoca como a poesia, termina sendo, ao fim e ao cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja útil apenas para ratificar a existência ou a importância do nosso “censor interno” (W. H. Auden dixit) numa situação que nos seja exigido um ato de julgamento. Jorge Luis Borges diz que “o poeta não condena nem absolve”. Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos quanto à informação nova, por discursos presunçosamente totalizadores? Esses questionamentos precisam ser feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o “literário” do mercado livreiro-editorial) não restem tão-só a serviço do “controle institucional da interpretação” (Frank Kermode dixit), representado pela universidade, pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem relacionados, pelos ocupantes de órgãos públicos e/ou privados ligados à cultura. Assim, dentro desse panorama pluralista, o quarto aspecto que identifico na atualidade da produção poética, diz respeito ao espaço para o exercício da experimentação: d) a bem da verdade, um espaço reconhecido um pouco a contragosto. Mas essa poesia experimental ou vanguardista, se assim pudéssemos nomeá-la, se mostra ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite da aporia. Ainda é interessante experimentar uma suspeita reflexiva com relação a uma ideia que, aqui e acolá, insiste em aparecer em alguns textos críticos. Trata-se da ideia que estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento a uma noção de vanguarda que busca conquistar territórios, acúmulo de feitos num “ensaio de totaliza-

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ções”. Movimento que visa a uma “etapa final” ou um éden. Vanguarda que se apresenta como “ponto de otimização da história”. Devir utópico calcado sobre linearidade progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda não corre o risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo na arena da “politicagem literária”, tudo isso faça algum sentido, pois aperfeiçoamento pressupõe a aceitação de exclusões e obsolescências cujo questionamento — a bem de “um mundo transformado”, digamos, para melhor —, é deixado de lado “por tempo indeterminado”. Prefiro imaginar um quadro de tensões de perspectivas, propostas de linguagem em confronto. Formas e poesias em “conjunções e disjunções” sincrônicas. Não existe progresso. O limbo experimentado pela poesia de Jorge de Lima (que considero um fato lamentável) pode ser revogado a qualquer momento. Outros aguardam o retorno triunfal ao nosso convívio da obra de Cassiano Ricardo. E se isso vier a acontecer, não significará, necessariamente, involução. A poesia se desdobra numa rede de conotações e o leitor-poeta se comporta como o administrador das intraduzibilidades e das eventuais reabilitações inerentes à tarefa da leitura criativa e desobediente. Com relação à dialética das consagrações e revisões alguns poetas-críticos de agora-agora buscam, através de textos e publicações, entronizar outros artistas e mestres, fazendo-os ocupar um lugar de proeminência e destituindo, por consequência, outros que com o passar dos anos começaram a representar, segundo seus simpatizantes, influência supostamente nociva para a formação do nosso repertório. Sou forçado

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a fazer essa consideração, pois, nos últimos anos, tenho notado aqui e ali (a percepção é empírica, sem nenhum método) manifestações cujo teor, grosso modo, é acusatório a propósito de uma tradição “muito cerebral” que seria, por assim dizer, predominante em nossa poesia e, por sua vez, imporia interdições às linguagens mais emocionadas, imagéticas e descomprimidas. Os “seguidores” da juvenília presente e os retardatários da beat generation e de uma escrita delirante e magmática vêm, nos últimos anos, chamando a atenção para a poesia de Roberto Piva como uma espécie de “solução para o problema”. Roberto Piva parece ter sido também a prefiguração de toda uma poesia que, hoje, se beneficia cada vez mais de aspectos exteriores ao próprio poema, o que, aliás, reflete uma espécie de preferência cultural contemporânea no que respeita ao gênero. Preferência que pretende farejar nas roupas de baixo da poesia, aspectos, por assim dizer, mais curiosos e existenciais. Com efeito, situações de significação antes secundária, tais como, se o poeta é dublê de xamã, se é gay, se é suicida, se representa a poesia afro-brasileira, se vive socado no pantanal, se é da periferia, se foi abusado na infância, se o uso de drogas o fez perambular pelas estradas tornando-o uma espécie de monge, se a iluminação súbita do haicai o converteu ao zen-budismo, enfim, todos esses elementos de catalogação que compareciam sempre após a vírgula, justificam e tornam pertinente a maior parte da poesia aceita hoje. Não basta procurar e reconhecer o bom poeta, tornou-se imperativo que ele(a) diga coisas contundentes desde o lugar de sua diferença social, sexual e antropológica. Em resposta à poesia “em greve”, isto é, negativa, daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século pós-utópico confina com um cinismo fashion e não tem compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda (e principalmente como movimento coletivo) deixa de ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito, perde força. Agora, não é senão uma possibilidade de performance dentro de um determinado repertório oferecido pela tradição. A este propósito caberia dizer uma ou duas palavras sobre o tema da “poesia em meios não impressos” que, hoje, parece fazer as vezes de uma vanguarda. Segundo as boas almas envolvidas direta ou indiretamente com a coisa, a poesia digital representa o último refúgio da experimentação na literatura contemporânea. A “arte-inicial” da poesia não-verbal e pós-tipográfica de algumas décadas atrás sucumbe frente à arte-final high-tech, finalista e financista das práticas poéticas de hoje. Os poetas de tal vertente fazem uso pesado da tecnologia digital. Os recursos computacionais, de simples ferramentas para a otimização e a realização de projetos editoriais, de uma hora para a outra passaram a lançar os dados disso que (com a permissão de Mallarmé) talvez se converta em nada ou quase em uma arte. Pode-se dizer que, para a preguiça vigente, esses recursos foram investidos de um poder criativo graças à sua capacidade de manipulação e deformação de fontes, imagens e sons retocados virtualmente por meio de distorções, animações, fusões e animações em 3D. Se, até há pouco, para fazer chover no piquenique dominical da poesia bastavam papel, cola e tesoura (ver, por exemplo, o poema “Organismo” de Décio Pignatari, publicado em 1960), agora sequer se imagina a fatura de um poema intersemiótico sem a parceria de computadores, celulares de última geração, câmeras digitais, enfim, desses videogames adultescentes onde o letrismo sem fundo dos caracteres luta consigo mesmo: ferramentas-mercadorias típicas de uma confiança ou de um en-

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tusiasmo, ao fim e ao cabo, naïf com relação aos poderes e avanços que marcam a ultramodernidade narcisista. Vírus da virtualândia. Joan Brossa (1919-1998), com seu sorriso esturricado à la Buster Keaton, dizia que a nossa não é uma época multimídia, mas “multimerda”. Mas, por fim, todos os dilemas, ou os vícios e virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que é o que concerne ao verso livre. Embora seja um exagero insistir em dizer que o “ciclo histórico do verso está encerrado”, parece ficar cada vez mais claro que o verso livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas — experimenta um momento de estagnação. Em artigo publicado recentemente, Paulo Franchetti estuda na versificação contemporânea a “crise de verso” ou “crise do verso” na linguagem de alguns poetas. De acordo com o crítico, tornou-se já prática consagrada a “quebra arbitrária da frase, sem que se perceba na quebra mais do que o desígnio de quebrar”. Há algum tempo, num artigo publicado em Sibila, onde avaliava a cena das revistas literárias, me referi a esses poetas que operam sobre o verso a partir tão-só do corte como “convencionais versemakers da fratura, da fragmentação”. Para Franchetti, uma parcela da poesia de hoje representa um “atestado de recusa do verso livre, ou de desconfiança nele como eficácia poética”. Enquanto isso, irmandades de poetas apuram suas ferramentas no aproveitamento acrítico desse verso fake resolvido na estabilidade de uma sempre e afetada elipse sintática. Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a “música sem-versista”: o poema como uma constelação suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram mudar o quadro. É como se as coisas atinentes ao verso e seus modais corressem num trilho à parte. Talvez isso se deva, em alguma medida, à precoce canonização do versilibrismo. O verso livre da fase áurea do modernismo representou uma possibilidade expressiva mais afim àquele momento histórico e ao que viria a seguir. O soneto, essa máquina parnasiana onde os poetas-medalhões se refestelavam com seu virtuosismo métrico, começara a emperrar. Em contrapartida, a defesa do verso não-metrificado, em alguns casos, foi tão dogmática quanto a dos que o repudiavam. A verdade é que o verso livre — mais como prática inercial do que como afirmação ou ensaio inventivo de um modelo conquistado — ainda tem muita coisa a ver com o verso metrificado que pretendeu substituir. Ou seja, embora pareça, o debate não se encerra aqui.

[nasceu em Rio Grande-RS e vive em Porto Alegre-RS; é diretor associado do website www.sibila.com.br; mais em: www.poesiacoisanenhuma.blogspot.com e www.poesia-pau.blogspot.com]

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Ricardo Aleixo (MG)

PAUPÉRIA REVISITADA Putas, como os deuses, vendem quando dão. Poetas, não. Policiais e pistoleiros vendem segurança (isto é, vingança ou proteção). Poetas se gabam do limbo, do veto do censor, do exílio, da vaia e do dinheiro não). Poesia é pão (para o espírito, se diz), mas atenção: o padeiro da esquina balofa vive do que faz; o mais fino poeta, não. Poetas dão de graça o ar de sua graça (e ainda troçam — na companhia das traças — de tal “nobre condição”). Pastores e padres vendem lotes no céu à prestação. Políticos compram & (se) vendem na primeira ocasião. Poetas (posto que vivem de brisa) fazem do No, thanks seu refrão.

rondó da ronda noturna q uanto + p obre + n egro q uanto + n egro + a lvo q uanto + a lvo + m orto q uanto + m orto + u m

[nasceu e vive em Belo Horizonte-MG; mais em: http://jaguadarte.blogspot.com.br/]

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Valêncio Xavier (SP/PR)

¿ E o que dizer dos homens que abrem cisternas dos homens que limpam cloacas podres e de seus cães que comem o escarro cuspido nas calçadas cães sem pêlos Homens tão pobres tão pretos tão feios pela seca lama na pele grudada lama preta fedida Homens de mulheres magras de seios murchos pele áspera Mulheres de sexo seco Homens de sexo murcho diferentes dos outros homens da pele branca limpa viajantes que podem mudar de rota em qualquer parte do caminho por eles mesmos traçado Que dizer desses homens que recebem dinheiro pouco para abrir cisternas e limpar cloacas dinheiro de determinado destino dinheiro de pagar contas dinheiro de faltar Diferentes dos outros homens do dinheiro que sobra do dinheiro de gastar e guardar Que dizer desses homens que não tem respostas e nem perguntas E o que dizer de mim que homem sou eu e o que não sou

?

[nasceu em São Paulo-SP e viveu em CuritibaPR, onde faleceu em 2008; mais em: http://www. companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00892]

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Mauricio Salles Vasconcelos (RJ/SP)

ARICLÊ

Bem depois do Zoológico de Vidro (mirada Teatro, janela megaurbana e solitária) Logo depois de ter “vivido” a mãe-chave, Minissérie-TV-de-época sobre o Presidente-BrasilModerno*, dois dias após a exibição última Imagem de atriz (Ariclê) (morre Como um personagem recente sob a lista De nomes cessados aos intervalos) (Blocos de apartamentos) (Criaturas Pelo ar em escuta de vozes psicanalistas Destroços divindades rubricas) Em desvio do foco central sobre Uma única pessoa: tão-somente o Limite nomeante,

Anterior suicídio, silogismo Em seu vôo sucedâneo Sem final.

* A atriz paulista Ariclê Perez faleceu dois dias depois da última exibição da minissérie global JK (2006), na qual atuou como Júlia Kubitschek, personagem que, curiosamente, morria no decorrer dos episódios. Caiu da janela de seu apartamento. Suspeita de suicídio. Nenhuma confirmação.

[nasceu no Rio de Janeiro-RJ e vive em São Paulo-SP]

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Alberto Pucheu (RJ)

1.O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e com o contemporâneo Em 1999, em matéria realizada pelo caderno Mais, da Folha de São Paulo, quando da morte de João Cabral de Melo Neto, o crítico e professor João Adolfo Hansen, talvez imbuído do luto pela proximidade do falecimento do poeta, afirmou: “Não tenho nada a dizer sobre a morte de Cabral, nem tenho o que dizer sobre os poetas brasileiros atuais. Alguns são razoáveis, outros nem isso, a maioria chatíssima, sem sangue nem nervo”. Enquanto que, com posições nesse ponto afins e manifestadas no mesmo ano de 2005, em entrevista à jornalista Rachel Bertol, então do caderno Prosa & Verso do jornal O Globo, Silviano Santiago afirmou ser o Brasil “um país de pasmaceira intelectual”, salientando que vê na “literatura brasileira de hoje [...] uma literatura bem-comportada e de gente fina, o que pode ser bom politicamente, e mau esteticamente”, Alcir Pécora escreveu categoricamente que entre os “escritores contemporâneos [que] não cessam de aparecer [...], não há nada de relevante sendo escrito”, acrescentando ainda que “um ou outro (os melhores deles), com muita sorte, deixarão de escrever”. Em 2008, a professora e crítica Iumna Maria Simon escreveu um ensaio em que avaliava que “Por estranho que pareça, ou por tudo isso, uma época de tamanhas transformações e consequências sociais, como as das duas últimas décadas do século passado, não contou no Brasil com um ponto de vista artístico relevante da parte da produção poética. A poesia deixou de ser companheira de viagem do presente, deu as costas aos acontecimentos, os quais no entanto a afetavam no mais íntimo de sua capacidade criativa”. Mais à frente, mencionava “o ramerrão da produção [poética brasileira] contemporânea”. Em outubro de 2011, no número 61 da revista Piauí, Iumna Maria Simon repete a dose, falando, a partir de seu diagnóstico de uma “retradicionalização” da poesia contemporânea (de uma “retracionalização frívola”, de uma “retradicionalização desculpabilizada e complacente”, de um “ultratradicionalismo”, de um “uso relutantemente crítico, ou acrítico da tradição”) da “novidade pouco entusiasmante da dinâmica recente da poesia brasileira”, de seu “estado de indiferença em relação à atualidade e ao que fervilha dentro dela”, mas, é bem verdade, que no fim de seu texto ela parece querer salvar uns happy few não nomeados: “Falando da experiência brasileira, é verdade que raras são até agora as reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta conjuntura. Mas elas existem e estarão fundadas na insatisfação com o paradigma retradicionalizador, o qual, como vimos, não passa de um parasitismo do cânone”. Em fins de 2009, em resenha sobre livro de Marcos Siscar, Paulo Franchetti fala das “pragas da literatura brasileira atual” e, em seguida, da “profusão de má poesia”. Em março de 2010, foi a vez de Luiz Costa Lima afirmar à mesma Rachel Bertol, em matéria no jornal Valor: “No momento em que se diz que o país deu um salto econômico, verifica-se que

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aumentou o abismo entre o que a gente faz e o que se produz de qualidade no exterior. Isso é muito grave, sobre o que não se comenta”. Tal clima criado por colocações como as mencionadas, de importantes formadores de opinião do meio literário, certamente estimula outras de críticos menos renomados que, quanto mais se afincam a um desejo de polêmica, mais se afastam do conhecimento do que hoje se produz no país ou, pelo menos, da capacidade de pensar satisfatoriamente tal produção. Para dar mais um exemplo de tal postura inócua, gerada por um ressentimento em relação à poesia do tempo presente que leva a uma cegueira em relação ao nosso tempo, em conversa com Maurício Salles Vasconcelos significativamente intitulada A Acanhada Produção Literária Contemporânea, Luis Dolhnikoff afirmou: “Venho há algum tempo me referindo a certa pequenez generalizada que tomou conta da poesia brasileira. [...] leio e leio a poesia contemporânea e o que leio passa por meu cérebro como água em uma peneira. Praticamente nada fica de realmente marcante”. Em todos esses casos, assim como o ditado popular afirma que “praga de urubu não mata cavalo gordo”, parece-me que o problema é muito menos da água do que da peneira. Em todos eles, o privilégio retrógrado de se estabelecerem como juízes da arte e não como críticos da arte da linguagem, ou seja, de se colocarem num suposto tribunal (Schlegel diria “seus tribunaizinhos”) e de desprezarem, nesses momentos, completamente, o aspecto reflexivo de uma crítica que queira, em primeiro lugar, desdobrar intensivamente as potencialidades de criação da obra abordada. Chega a ser lastimável que tais críticos, volto a dizer, nesses momentos com pretensões de medalhões eruditos a esquecerem uma crítica pensadora, não se lembrem das palavras de Machado de Assis: “A crítica, que, para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma proscrição em massa, seria a crítica da destruição e do aniquilamento”1. Parodiando o subtítulo do ensaio de Yumna Maria Simon na revista Piauí, parece ser isso, esse descompasso entre a poesia brasileira e a contemporaneidade, “O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira”. 2.Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta2 A parceria é talvez o aspecto mais importante em uma equipe de tow-in, porque a sua sobrevivência depende da sua outra metade. Você não deve fazer tow-in com uma pessoa que não é qualificada e também não deve pilotar o jet-ski para quem não é qualificado. Surfar não quer dizer só você surfar as ondas. Há aquele lado também de você puxar o cara, ser o piloto do surfista, do seu parceiro. É muito adrenalizante, porque o tempo inteiro você sabe que, além de surfar aquela onda enorme, de ter de se sair bem, você também tem de puxar bem. Seu amigo depende daquele seu momento de inspiração, de boa pilota, de botar ele nas ondas, na posição perfeita, para que tudo dê certo, tudo ocorra bem e, no final, ambos saiam felizes. Quando chegou a minha vez de rebocar, eu falei: – Saca só, é assim que se pilota, é assim que se coloca o seu garoto na onda! Eu coloquei o cara lá e disse: – Uhuuu, agora sim! O tow-in é uma combinação entre surfar e salvar vidas, e a salvação para o surfista é o seu anjo motorizado. Se você cair, já era. Você vai precisar de resgate. Não tem como sair sozinho. É o oceano inteiro se erguendo para cair na sua cabeça. São necessários dois surfistas muito experientes em ondas grandes para fazer uma dupla profissional.

ASSIS, Machado. O ideal do crítico. IN: Machado de Assis; obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. Volume III, p. 800. 1.

Esse arranjo foi composto tão somente com frases de surfistas de tow in, retiradas de livros e filmes. 2.

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Ambos devem ser competentes nas duas disciplinas. Você tem que ser melhor do que jamais imaginou para resgatar alguém da zona de impacto. Você precisa de todos os requisitos necessários. Os dois devem trabalhar juntos o tempo todo até ficarem à vontade em qualquer situação, porque o jet-ski pode quebrar, e aí ambos terão que nadar. É uma máquina, ela pode apresentar uma falha mecânica ou ainda acontecer um erro humano. Tudo é possível. Enquanto o surfista ganha a glória, o verdadeiro herói é o cara que dirige o jet-ski. O jet-ski coloca o surfista na onda e depois tem de compartilhar atentamente com ele toda a descida, para o caso de o surfista ser esmagado pela imensidão branca. Quando você sai de uma onda, está a oitenta quilômetros por hora. É necessária uma força de trinta toneladas por metro quadrado para danificar um navio. Uma onda de trinta metros quebrando concentra cem toneladas por metro quadrado e consegue partir um navio pela metade. Ela quebra como uma descarga de escopeta, como uma bomba atômica. É como correr quatrocentos metros prendendo a respiração e sendo golpeado por cinco Mike Tysons. É como ser atropelado por um carro. É como um trem atingindo você, essa explosão. Não se trata de surfar por diversão. É surfar ou morrer. Sem a ajuda da outra pessoa a algumas centenas de metros, o surfe de onda gigante é suicídio. O intervalo entre as ondas é de dez a vinte segundos e podemos prender a respiração por cerca de três minutos. Se você ficar debaixo da água por duas ondas, os surfistas vão dizer que é muito grave; se ficar preso por três ondas, a maioria vai dizer que você vai morrer; se forem quatro ondas, terão certeza de que está morto. O surfe com reboque fez o impossível ser surfável. De repente você está sendo rebocado e uma série enorme se aproxima. Você diz: – Pode escolher, me coloque onde você gostaria de ser colocado. E você vem lá detrás, sem saber o tamanho da onda, você sente que pode ser uma grande e, subitamente, você pode estar na maior onda de sua vida. Você pensa em tudo que já fez na vida e na porra do está fazendo ali. Só estou chegando a este nível porque eu tenho sido guiado por esses caras para chegar a este nível. Eu e Jeff nos tornamos parceiros este ano. Com meu conhecimento e a experiência dele em ondas decidimos que seria um casamento perfeito. Saber rebocar alguém para dentro de uma onda grande, saber como posicioná-lo... É algo tridimensional agora: temos homem, máquina e onda. No surfe de remada, você depende de suas habilidades, de sua capacidade de julgar a onda para decidir onde se posicionar e qual onda pegar. A partir de uma certa altura, é praticamente impossível, ou realmente impossível, entrar nas ondas com a remada; então usamos a corda para nos puxar para as ondas gigantes. Na primeira vez, não havia ninguém ali. Ninguém havia surfado ondas daquele tamanho. Era o desconhecido. Como o espaço sideral ou o mar profundo. Não sabíamos se iríamos retornar. No towin, você deixa seu parceiro escolher a onda. Era um monstro gigante atrás de meu parceiro e ele era apenas um grão de areia diante dessa boca enorme. Se ele olhasse para trás, provavelmente teria desmaiado. Eu o coloquei na onda e chegou o ponto em que eu quase disse: não largue a corda. Quando olhei para trás, ele já a tinha largado.

[nasceu e vive no Rio de Janeiro-RJ; mais em: http://www.albertopucheu.com.br/]

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Adriano Scandolara (PR)

Do progresso nas profissões

Transcendendo o cinza

Não se vê daqui, mas sei que a prostituta na rua tem um olho de vidro. É mais aparente o gancho na mão esquerda ou, mais à luz, sob o poste a prótese da perna. A insaciedade da fome de carne que tem que se satisfazer com borracha. É tempo de fetiches, pessoas que se fazem fetiches. Servir-se da prostituta na rua não era tanto sexo com gente quanto era sexo com coisa –– tevê, geladeira, sonho transerótico do transumanista.

Cinco almas rumo ao pôr-do-sol a 180 por hora. A possante pica de metal penetrando vento e rodovia com freios ABS, ar-condicionado, rodas de liga leve, trava e vidro elétrico, airbags, teto conversível, direção hidráulica e pintura perolada voou do viaduto em chamas crepusculares, uma estrela cadente.

[nasceu e vive em Curitiba-PR; mais em: http://escamandro.wordpress.com]

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Susana Scramim (PR/SC)

MITOLOGIAS Das questões propostas por Babel Poética em suas 5 edições anteriores, a que me pareceu mais transversal e constitutiva do pensamento na poesia foi a reflexão sobre a relação Eu#Outro. Portanto, aqui se pretende, de um modo também transversal em relação à proposta e conteúdo constitutivo dessas edições de Babel Poética, desdobrar algumas questões que me parecem importantes para o pensamento crítico na poesia. Em La religion surréaliste, Georges Bataille demonstra o quanto o sujeito e o objeto estão ausentes na poesia moderna, e que suas dramatizações líricas também são uma maneira de colocar em cena novamente os mesmos sujeitos e objetos, porém sem as fábulas da identidade1. Essa é a questão proposta pelo poema “ser o dublê de si” de Mauro Faccioni Filho, que, numa posição anti-romântica não somente não dá título ao seu poema como trata o sujeito como um objeto e viceversa, ambos tomados no poema em sua ausência. A poesia lírica adquire com essa prática poética uma técnica que o filósofo italiano Furio Jesi denomina, em La Festa, de composição e maneira. Com essa técnica seria possível produzir uma escritura de si cindida e distanciada, contudo sempre se constituindo em uma escritura de si. Tal é a interrogação que Ademir Demarchi constrói em “Um é outro” ao atribuir, caracterizar, a existência do pronome pessoal da primeira pessoa como uma “quimera”. O sujeito que é objeto da poesia contemporânea é pensado como fantasma e retoma, com isso, a força do poema na poesia medieval ou, nas palavras de Giorgio Agamben, “a herança que a lírica amorosa do século XIII transmitiu à cultura europeia não é tanto certa concepção de amor como o nexo Eros-linguagem poética, o entrebescamen do desejo, fantasma e poesia no topos outopos do poema.”2 Composição e maneira são as técnicas pelas quais poderiam ser pensados esse artificialismo simultâneo da sinceridade e sensibilidade da poesia lírica mesma. No entanto, a mitologia dos materiais dos sujeitos ausentes está aí. No poema “Metodologia”, Reynaldo Damazio artificiosamente faz aparecer a mitologia do poema que se escreve com sangue, sendo que a própria mitologia do poema que se escreve com sangue seja afogada, sucumba frente a isso, marca de uma vivência empírica desse “eu”. Furio Jesi também observa em La Festa, livro em que compila ensaios de antropólogos e mitólogos sobre o problema da impossibilidade da existência da festa nas sociedades ocidentais modernas, publicado em 1977, que o problema da festa ou do tempo festivo é bastante importante para pensarmos os desdobramentos da lírica na poesia moderna. Ele ressalta o caráter antifestivo do moderno, uma vez que na antiguidade a festa se apresenta como uma possibilidade, ou uma impossibilidade de um pathos coletivo aparecer, ou seja, uma potência de singularidade patológica livre da particularidade individual, daí a potência de um novo sujeito. É disso que nos fala o poema “O Ouriço”, de Cristiano Moreira: “Nascera de um ouriço suas vontade, por isso difícil de conviver com

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BATAILLE, Georges. “La religion surréaliste” (Conferência proferida no Club Maintenant em 24 de fevereiro de 1948). In: Oeuvres Complètes. Vol. VII. Paris, Ed. Gallimard, 1976. 1

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias, tradução H. Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 223224. 2


seus desejos [...], nem mesmo podia desfrutar do prazer de suas ereções; estas eram inigualáveis em sofrimento... [...]”. Também no poema “A Perna”, de Renato Rezende, esse desejo/impossibilidade desse pathos coletivo aparecer é fortemente marcado pelo eu que enuncia o desejo de transitar entre ser um outro tendo esse trânsito o sentido de produzir uma experiência fora do âmbito individual, pois ele quer ser a perna que falta ao outro: “Me deu vontade/ de entrar no seu corpo/(fragmentado)/a meio metro da calçada./ Entrar em seu corpo e ser ela, ser a perna que lhe falta./ Ser a falta da perna dela/ Tive vontade de amar/ e ser nada.” Por que a antiguidade teria a potência de alçar à condição dos sujeitos coletivos? Jesi se refere a isso retomando um depoimento do filólogo húngaro Karoli Kerényi, um dos mais importantes estudiosos modernos da mitologia grega e romana, em que Kerényi dizia que a festa para o moderno é algo que está “morto, inclusive no nível do grotesco, como os movimentos daquele que dança porém, de repente, perde o ouvido e já não ouve mais a música”.3 Trata-se, portanto, de algo que está vetado ao pensamento moderno porque este não opera com os movimentos da máquina mitológica. Giorgio Agamben, em seu ensaio “Sull’impossibilità di dire Io”4, que apresenta para a revista Cultura Tedesca a compilação e publicação de alguns textos até então inéditos de Furio Jesi, destaca o uso dos materiais mitológicos e antropológicos na obra de Jesi como paradigmas epistemológicos e não como essências ou como mitologias, e muito menos como universais. Aquilo que Furio Jesi reconhece como prática poética que se materializa nisso que ele denomina de “composição e maneira” não pode ser pensado de modo algum como um modo de se manter “neutro” ao mundo. É com essa compreensão que o poema “A luta antes da luta”, de Alberto Pucheu, se apresenta à poesia. Ali se dramatiza a temporalidade de uma luta de um “outro” que é um si mesmo da poesia; a luta, portanto, é pensada enquanto não luta de um contra o outro, e sim como luta de um si contra si. Trata-se de um lutar-se a si mesmo. Do mesmo modo que um bailarino baila a si mesmo, o poeta executa movimentos que dizem a sua própria mitologia, a luta do lutador desenvolve-se a partir de seus fantasmas e, portanto, de suas impossibilidades. O lutador é, diga-se ainda, numa reflexão barroca do fazer poético, o emblema por excelência do poeta. O poeta fala por agudezas, suas palavras devem ter a potência de penetrar a carne, ferir e, portanto, intervir. Para a modernidade barroca de Baudelaire, lida também pela compreensão benjaminiana barroca do moderno, o esgrimista é a alegoria do poeta moderno. A esgrima é luta executada com o florim, delicada espada no cortês ritual de oferecer ao adversário derrotado a próxima chance de vencer. Na luta do ringue, também regulada por regras e um ritual de permissões e proibições, há a preocupação de poder jogar novamente o jogo. No entanto, o jogo do pugilista é marcado pelo corpo a corpo, disso decorrendo o medo de que não haja uma outra vez, uma outra chance. Por isso o poeta pugilista tem que enfrentar com violência suas mitologias: “vá para o ringue e, no meio do entrevero,/ por entre as saraivadas de golpes,/ faça seu adversário sentir o peso do esquecimento/ carregando-o para longe do estádio, carregando-o/ para longe de todo e qualquer lugar”.

Jesi, Furio. La Festa: antropologia, etnologia, folklore / saggi di Kerényi, Thevet, Lafitau, Karsten, Haekel, Pitré, Van Gennep, a cura di Furio Jesi. Torino: Rosenberg & Sellier, 1977. 3

Agamben, Giorgio. “Sull’impossibilità di dire Io”. In: Cultura Tedesca, anno V, n.º 12, Roma, dicembre 1999. 4

A produção de uma escritura de si cindida e distanciada, sempre será construída como uma escritura de si. E, ao contrário do que se espera, é a ausência desse mito que se comporta como mitologia. Desse modo, não se trata de

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não dizer “eu”, senão, ao contrário, de dizer “eu” para assumir na radicalidade desse ato sua própria impossibilidade. Como dizer “eu”? Como escrever “eu” na poesia contemporânea? “Composição e maneira” são as possibilidades que Furio Jesi encontra na poesia de Rilke, Rimbaud e que Agamben também vê em Baudelaire quando lê, no ensaio sobre a mercadoria no livro Estâncias, que a crítica à mercadoria e ao capitalismo na poesia de Baudelaire se constrói com a radical tomada do poema como mercadoria. Entretanto, é o próprio Giorgio Agamben que chama a atenção para essa estratégia de pensamento de Furio Jesi para refletir sobre a mitologia do sujeito na poesia lírica moderna. Agamben lembra-nos que o procedimento da “composição”, segundo Jesi, age ao colocar em jogo no texto “uma pluralidade de vozes, sujeitos e máscaras; e a maneira, porque sublinha tanto a distância que nos separa das imagens, da impossibilidade do sujeito de aceitar imediatamente a própria figura, como o risco de que nosso apego a ela seja tão absoluto a ponto de cair num “buio essere afferrati.”5 Trata-se de apropriar-se por meio de uma impropriedade, apegar-se somente a um ser apegado já tomado por outra coisa. O poema “Um pulha”, de Paulo Franchetti, também apresenta essa luta do sujeito poético com sua própria mitologia, “Um pulha de espadim, bonzo eramá,/ [...] Se finge provençal, nascendo cá:/ [...] Soldado que se julga capitão:”. Tão consciente de seu faltar ali onde é esperado, o poeta diz “extraio sol de onde não tenho”, diz o último verso de “Betume da Judeia”, de Dennis Radünz. Quando Jesi repensa a lírica com a estratégia da “composição” e “maneira”, entende nesse movimento uma irresolução ou talvez uma indecidibilidade de um sujeito dividido entre ser poeta como mediação incondicional daquilo que não é conhecível, e que por isso o impele à escrita, e o ser poeta como alguém que conscientemente elegeu ser poeta. De muitas maneiras a poesia de alguns poetas contemporâneos vive isso que Furio Jesi, em Esoterismo di Rilke, entrevê como uma “scissione vivida come un esoterista”6. Nos poemas “Pessoa ruim”, de Ricardo Corona, e “Tudo acabado”, de Mauro Faccioni Filho, o “eu” se coloca na posição de enunciar sua própria história assumindo a própria máscara do eu. Usar o pronome pessoal da primeira pessoa no contexto da poesia moderna e contemporânea, caracterizadas como uma poesia que produz o apagamento do “eu”, pode chocar e descumprir as expectativas dos leitores. O poeta diz que “Escrevo como quem amaldiçoa almas/ Amém”, no caso do poema de Corona, e “sou eu este seu filho pobre e ruim/ seu filho todo fraco todo ruim todo acabado”, no poema de Faccioni, e em tom de oração e culto a si mesmo entoa uma canção profana, compreendendo o culto a si como um “cultivo” de uma “demonstração”, ou seja, a um fora de si, a um “eu” que no fundo não é conhecido, alguém ainda a ser demonstrado. Portanto, ele – o poema – compreende a lição que advém de um culto, ou seja, do mito de si. Esse lugar de culto ao não-conhecível no conhecido, que tem lugar no círculo mágico de uma arena, de um ringue, parece ser somente alcançável no momento em que o poeta sai de um lugar que lhe é próprio e entra no alheio. Com essa “maneira” de se colocar no mundo, e para evocar outra vez a reflexão de Furio Jesi, a poesia novamente estabelece sua origem justamente “nel fuori di sé che è il suo inteno più remoto, il suo cuore di pre-essere, nell’istante in cui si pone in atto.”7

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5 Idem, p. 13. 6 Furio Jesi, ao analisar a obra de Rilke, distingue dois modos de viver a cisão entre um “eu” voluntarioso, movido pelo pathos, e um “eu” anulado pela racionalidade impessoal do discurso científico. Jesi opera a distinção com a composição entre a atitude do místico e a do esoterista. “Si prima abbiamo osservato la differenza tra la situazione di Rilke e quela de alcuni mistici, è oportuno ora aggungere che proprio queste caratteristiche del comportamento di Rilke indicano nel poeta non un mistico, ma um esoterista: non un mistico che si abandona o auspicia di abbandonarsi a una forza che batte su lui fino ad annichilire la sua volontà, ma un esoterista che riconosce a priori l’insopprimibilità dela própria volontà e che di tale volontà si serve come di un elemento, privilegiato del rituale – rituale di creazione poetica e di esistenza globale – , per ricavare dal rituale tutto ciò che esso consente agli uomini. Cf. Jesi, Furio. “Esoterismo di Rilke”, in: Esoterismo e linguaggio mitológico. Studi su Rainer Maria Rilke. Macerata: Quodlibet 2002, p. 47-48. 7 Jesi, Furio apud AGAMBEN, Giorgio. “Sull’impossibilità di dire Io”, in: Cultura Tedesca, op. cit, p.12.


A motivação desta leitura que aqui se apresenta é a de demonstrar nessa prática obscura do culto de si na poesia contemporânea que esse mesmo culto pode ser pensado como uma daquelas festas nas quais ainda seria plausível encenar alguns movimentos dessa dança do não-conhecível e que impele o poeta a escrever como poeta em nome de um coletivo social. Esse poeta é fruto de uma dramatização ou ainda de uma teatralização a duas ou mais vozes de um mesmo sujeito, de seu ritmo interior e de sua íntima cisão. Com esse modo de composição os poemas ainda podem ser feitos, mesmo em tempos de imaturidade, de guerra e de extrema pobreza material, entretanto, nunca será possível fazê-los em meio à pobreza de espírito, o que, para Giorgio Agamben, materializa-se na ideia de que o sujeito cognitivo e, portanto, falante, se mantém em relação com sua própria zona de não-conhecimento, estratégia pela qual ele vive e elabora o seu próprio enigma, e que determina a índole e a sobriedade de seu conhecimento.

[nasceu em Maringá-PR e vive em Florianópolis; é professora da UFSC]

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Poeta de Meia-Tigela (CE)

Eu não quero comer a gostosa do mês Eu não quero andar no carro do ano Eu não quero aprender a falar inglês Eu não quero passar férias em Miami Eu não quero beber malte escocês Eu não quero vestir a grife da moda Eu não quero ser a bola da vez Eu não quero minha cara na capa da Caras Eu não quero a alegria de vocês

[nasceu e mora em Fortaleza-CE; mais em http://opoetademeiatigela.blogspot.com/]

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Joca Wolff (RS/SC)

eU Você, eu sou Cruz, Desterro. Leminski (remixado)

Começo falando1 do poeta contemporâneo mais falado, incensado e odiado do Brasil, que teve o seu modo de escreviver baseado numa persona pública superexposta sobretudo desde o boom da coleção Encanto Radical da Editora Brasiliense até bem depois de sua morte em 1989. Tudo isso é bastante conhecido, assim como o título da biografia de Toninho Vaz, O bandido que sabia latim (2001), que serve sem dúvida muito bem ao caprichado-relaxado poeta curitibano. Porém, a recíproca não é verdadeira: na verdade foi antes o seminário – Dom Clemente? – o bandido a ter inoculado, ainda na adolescência de Leminski, o bacilo da latinidade cristã em sua vida literária. Ela está por todas as partes, no Catatau, na poesia (povoada de espectros de distinta espécie), nos ensaios (entre os quais “Comunicando o incomunicável”, dedicado à oração enquanto forma). E o que é a biografia Jesus Cristo aC senão um monte de histórias mais ou menos apócrifas reunidas com inventividade, diversão e consistência auto-semio-cristográfica pelo escritor? Quanto a Jesus Cristo depois de Cristo – Flora Süssekind dixit –, sou eu, Cruz, Desterro: Paulo. O namoro turbulento da ensaísta carioca com a egotrip leminskiana vem já desse período, anos 80, em que o monge doido do Pilarzinho reinava sem nunca ter ido à Europa (a exemplo de Mário, de Lezama Lima). Desse reinado Flora abraçava pouco mais que o Catatau, o resto seria pouco além de um inflado eu. Essa persona ao mesmo tempo fascinante e incômoda (para ela, para muitos) via “monge até onde não havia”, como escreve em “Hagiografias”, ensaio centrado na “Santíssima Trindade” Cacaso, Ana C. e Leminski (a expressão é de Flora).2 Chamou ele – escreve ela – o escritor japonês Yukio Mishima de monge cujo labor foi preparar anos a fio a própria morte ritual – e não estamos longe do próprio conceito de auto-hagiografias, as quais Leminski escreviveu desde a infância e certamente segue graf(it)ando além-tumba. Mas e depois dele, depois deles, quem é esse eu, essa Cruz, esse Desterro? Em outros termos, como seriam os modos de fazer falar/calar esse eu poético hoje em dia? Ou, ainda, seguindo as “Hagiografias”, como se esgrimiria uma “Teoria da Santidade” do presente, em suas diversas maneiras de bio-grafar?

1 Contendo uma cinquentena de vozes a quarta edição da Babel Poética, não é possível falar de todas elas: leio contudo todo mundo e busco falar dos que me falam.

2 “Hagiografias” em Experiencia, cuerpo y subjetividades. Literatura brasileña contemporánea (Rosario: Beatriz Viterbo, 2007), compilado por Luciana di Leone, Gonzalo Aguilar e Florencia Garramuño.

Ao menos uma coisa está clara na teoria e na prática social: não se pode pensar mais a orelha do eu sem a orelha do outro. Isto é pensar otobiograficamente, algo indispensável para a assepsia otorrinolaringológica não só da jovem poesia brasileira, como também dos povos transamericanos e seus respectivos po-

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deres. Cabe talvez dizer que essa receita envenenada foi proposta pelo filósofo Jacques Derrida, em Charlotesville, nos Estados Unidos em 1976, em homenagem ao bicentenário da independência dos EUA transformada em reivindicação de Nietzsche: Ecce homo. Derrida não está brincando – derride derridentes! – ao (a)firmar que a assinatura cria o signatário, sendo este o duplo dublê do cavalho-de-batalha nietzscheano, isto é, eu e o outro e os dois ao mesmo tempo. Já Mário de Andrade e Fernando Pessoa eram 350, trezentos-e-cinquenta maneiras de ler-escrever que se milificaram. E os poetas de agora são milhões de senhas e codinomes na ciberbabel neobarrocodélica. Mas na ciberbabel o que importa são coisas como “Compulsão”: minha mente, o lugar mais sujo do mundo, segundo aquele que não põe as mãos no que é sujo no poema de Rodrigo de Souza Leão, este não-Ferreira Gullar cujo pavilhão auditivo é antes centrífugo e extensivo e, portanto, não se confunde com ele, sendo Cruz, Desterro, Souza, Antirrei Leão. “Um é o outro”, condensa no poema-homônimo seguinte Ademir Demarchi, em que se celebra ainda uma vez, em gozosa festa, a mortevida da primeira pessoa de mim mesmo. Há os que ainda antepõem ao ego do poeta a intrínseca maldição: Ronald Augusto, Ricardo Corona: você, eu sou “São Não” (pessoa ruim não responde a solicitação de verbete – como no poema de Augusto – mas também precisa de verba). Portanto é graças a deus que tenho sete vidas matemáticas e que me bastam oito versos de poesia sonora. Pois autoficção de mim quem o faz é Ricardo Silvestrin, da cidade de Porto Alegre. De Fortaleza, Diego Vinhas é compulsivo fazedor de fotos de fotos, fotógrafo de grafias, além de invocador do Barthes do luto materno, da imagem de minhamãe-morrendo em preto-e-branco. Radicada em Santos, de preto-e-branco surge igualmente a curitibana Estrela, ali residente de estirpe: “suas palavras de volta”, Estrela Leminski. O que impera nessa poesia – na de Estrela e de quase toda essa constelação – são as paixões físicas, a nova virada corpográfica ensaiada por bom número desses cinquenta artistas. Em Cristiano Moreira o calafate míope (poema 2) canta uma narrativa; o ouriço (poema 1) nem tanto: ali se execra a memória de um bicho (ouriço, bicho-homem?). E em Paulo Franchetti descobre-se um não-mais-Cabral marcado para viver:

Fui talhado para a madeira ou para o trato dos metais. Por isso estes dedos grossos e a palma larga destas mãos quadradas. Mas não segui o veio redentor, nem propus ao metal a sua cor correta. (...)

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Apenas eu, com o que me deram, contentei-me com palavras. Agora, sem outro peso nas mãos, envelheço sendo ainda o que está sempre chegando e olhando à volta, sem rumo, para o lugar estranho. Também valeria tomar o segundo poema de Franchetti, em que o riso glaucomatoso do soneto do contato do português (pulha) com o nhengatu (bobalhão) é digno de um poeta de florestas de signos, nascido em “matão”, radicado em “campinas”. Quanto a Fabrício Corsaletti, as suas são pausas-preces para o eterno retorno do almoço e à vida como pausa da morte ou coisa parecida. Em Francisco dos Santos o que chama a atenção é que um herói só não basta: “Era uma vez num país de árvores dois heróis” (título do poema) do povo polvo e era uma vez mais uma vez um trocadilho, “essa forma rudimentar de humor ainda tão cara a nós povo povo”; quanto a eu ando doente de ironia e vislumbro um futuro de super-herói do passado, espécie de ted-boy-marino argentino do norte, pierre-menard da periferia do subtrópico para os quais uma cópia, uma falsificação apenas nunca é suficiente. Estilhaços de palavras espirram na “quadrilha química” de Fábio Romeiro Gullo, que apresenta em dez linhas uma colagem-poema forjada na fina flor do asfalto quente, caleidoscópico das imagens dialéticas da selva-selvagem do presente. Eduardo Jorge, por sua vez, gira em torno de um incerto Eduardo, detectado em correspondência de Helio Oiticica a Lygia Clark. Mas eu, Eduardo, não está. De Raquel Stolf vale lembrar que se lê, no único poema, a nádega, o concreto bundo: desejo de contabilizar perdas com uma “nádega inflável” (pouca distância há entre consumir e defecar moedas). De todo modo, a riqueza material é uma bolha de sabão e a cabeça dessa poeta é plástica (amém). Dennis Radünz é autor de Exeus, cujo título fala por si. Do “Betume da Judeia” vale grifar a enumeração do bálsamo da terra até pelo menos o final da estrofe, já na Judeia, além das menções a Uruk, Iraque e Petrolândia – landa do minério da miséria. Em Rodrigo Madeira se vê, como vários o fazem (frequentemente conservando antigos modos) o traço, o risco no disco neo-documental de alegria, alegria, o evangelho sem lenço sem documento. E Fábio Weintraub, nos píncaros da outridade mais que otobiográfica do poema outro. Posa a seu lado “Franjinha sebosa...”, poema sobre a mulher mais comum, macabeia, judiada beleza “aonde os versos não chegam”. Já Fernando Koproski fala de amor com números, o que dizem que dá azar. Sorte tem Julinho da Adelaide – “apesar de você” – por ter despertado a existência de Adelaide do Julinho, a mais viva das escritoras suicidas, cujos orientais pornopoemas não-ornamentais se vingam com elegância e numa tacada do banquinho e do violão, além do poetinha: “que

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/ seja / infinita / enquanto / duro”. Mas, ao contrário do que afirma o poeta que sucede a Adelaide, Reynaldo Damazio – de discreta metodologia e matemática –, todo maluco salta sim duas, dez, vinte, mil vezes em qualquer abismo que se lhe ofereça pela frente. O lamento das mendigas, reflexo do tamanho das feridas. Quero-quero já morreu (jamais começar um verso com “eu quero”), Belo belo nem tanto. Escreve Sabrina Bandeira Lopes: “São afinal nossos lobos, / não as nossas mães / que conhecem / o gosto da nossa carne.” Sendo que o mesmo poema, que assim termina, começa perguntando pelo nome de alguém que, sem hesitação, responde: “Todos”, todos que gostam, gostamos. Um dos poucos sem lugar na internet entre os cinquenta poetas, André Luiz Pinto canta o canto castrato do filho abusado, à maneira – e em oposição – a Miguel Sanches Neto: o “país obscuro” do ex-pupilo de Dalton Trevisan, destituído por mau filho do posto de neto do grande gênio perverso da literatura curitiboca universal. Disso resulta uma poesia-práxis-joão-cabralesco-autobiográfica da fase social. Vale notar, finalmente, a repetição de fábios e fabrícios nessa Babel poética. Fabulosos fabros: as vozes do eu como escutas do outro, quando acontece de seus ecos soarem soltos no mundo. Pois as egotrips leminskianas dançaram em definitivo sob o signo de certa poesia-em-vozes. Afinal já veio o dia quando nada que eu diga seja poesia.

[nasceu em Porto Alegre-RS, vive em Florianópolis-SC; professor, é um dos editores da revista eletrônica Crítica Cultural]

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Angélica Freitas (RS)

oh jack, estou voando pra você, de blusa verde, e pra você, que teve um dia de merda hoje

meu bem, vou comprar a varig é tudo que sempre quis meu bem, vou comprar a varig e salvar este país

vá-se embora daqui, vas-y nem adianta sivuplê, beibê vamos servir croissant, benhê no dejeuner du matin, manhê

pode parecer besteira gastar milhares de milhas e dólares pra sarar a altaneira

e depois vai aterrissar aquela que não descansa ach du lieber gott a lufthansa

companhia voadora pra depois que estiver sã tantararantantan chegar a american

nein nein nein, non tá pra fenda guarde os óirros pra gasolina que amanhã no aerofristique nós fai serrrrfir uns berliner

vai querer comprar, a american mas não estará a venda, ó american decola logo daqui, vai american manda um beijo pro bush, tá american

meu bem, vou comprar a varig que nos eua vira verig na argentina enfim é barig e aqui não tá varigud

e depois vai chegar numa espécie de transe oh la la a air france

mas meu bem, vou comprar a varig é tudo que eu sempre quis meu bem, vou comprar a varig e salvar este país

[nasceu e vive em Pelotas-RS; mais em: http://loop.blogspot.com.br/]

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Pedro Cesarino (SP)

POÉTICAS INDÍGENAS A educação formal brasileira, como se sabe, possui uma base euroamericana. Quando terminamos o segundo grau, adquirimos uma noção geral sobre as artes e literaturas francesas, inglesas ou norte-americanas, que constituem assim o repertório cultural de qualquer cidadão. Os pressupostos que aí se formam sobre expressões estéticas e intelectuais são marcados, porém, por uma imensa e antiga lacuna. Não sabemos praticamente nada sobre os povos indígenas (para não falar dos africanos), ignoramos completamente os seus regimes de pensamento e de criação. Se estivéssemos no México, teríamos no meio da praça central da capital uma imensa pirâmide de pedra azteca. Sua imponência serve como advertência para o processo de dominação (física e espiritual) que se iniciou há cinco séculos. Com exceção, talvez, do que acontece na Amazônia contemporânea, onde os índios têm uma presença maior nas cidades, o Brasil permanece ignorando as produções culturais de seus povos indígenas. As lacunas de nosso sistema educacional não são responsáveis apenas pelo desconhecimento sistemático dos universos indígenas, mas também pela disseminação de uma série de estereótipos que inviabilizam uma compreensão, ainda que mínima, de tais povos. Imaginamos assim (e mesmo quando simpatizamos com os habitantes da floresta) que eles ainda permanecem no estado de natureza, que são primitivos, simplórios, pouco sofisticados, repetitivos ou mesmo ingênuos. Donde a razão para publicar e traduzir as suas histórias em livros infanto-juvenis, aproximados automaticamente de toda aquela cultura popular genérica povoada pelos sacis, cecis, peris e mulas sem cabeça. Imaginamos, assim, que se trata de algo bastante distinto das literaturas clássicas, provenientes da Grécia antiga e do velho continente, produzidas pela civilização por meio da escrita. Este panorama, claramente etnocêntrico, serve para justificar, ainda que silenciosamente, a submissão dos povos indígenas aos nossos critérios políticos, econômicos e culturais. Mas o que, afinal, eles têm a ver com isso? Que espécie de pensamento criativo produziram nos últimos milênios? Antes de mais nada, é preciso esclarecer um ponto: existem inesgotáveis maneiras de se produzir complexidades (de pensamento, de sentido), a despeito daquela com a qual estamos acostumados, derivada da escrita e de uma civilização que se destaca pelo domínio da tecnologia. Sob o aparente despojamento de suas construções e artefatos, os povos indígenas construíram sistemas de pensamento e expressões criativas que, ainda hoje, escapam à compreensão dos melhores cientistas das principais universidades do Ocidente. Trata-se de sistemas que não têm exatamente a ver com a nossa imagem genérica da cultura popular (que, evidentemente, tem também o seu inestimável valor). Os sistemas indígenas se aproximam bastante, diga-se de passagem, dos pensamentos e das artes chinesas ou japonesas.1

1. Como exemplo, veja o que diz o antropólogo Claude Lévi-Strauss em um artigo chamado “O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América” (publicado em Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac Naify, 2008).

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Vamos partir aqui do princípio de que há poesia por toda parte. Mesmo assim, não se pode tomar as experiências poéticas indígenas pelo gênero literário que estudamos através de Camões ou de Fernando Pessoa. As poesias de toda parte implicam, portanto, em formas diversas de experiência e de criação. Estas são marcadas por distintas estruturas de língua e de pensamento, mas também por instituições políticas, processos de educação, entre outras características. Por conta disso, os problemas de interpretação e de tradução se multiplicam, mas não a ponto de se tornarem um impedimento para a compreensão das poéticas da floresta. Suas artes verbais, ou artes da palavra, são bastante distintas, portanto, do que estamos acostumados a ver como literatura escrita. Seguem outros critérios de composição, de criação, de autoria, de recepção e de fruição estética. Fazem sentido em um outro registro de realidade que tendemos a rotular como “mítico” ou “fictício” por contraposição aos conhecimentos científicos modernos. Entre os povos indígenas, é possível aprender cantos com os espíritos dos animais. Aliás, grande parte da cultura dos povos da floresta veio deles. Os Marubo, por exemplo, um povo do Vale do Javari (Amazonas), dizem que seu antepassado Vimi Peiya aprendeu a fazer grandes malocas e cestarias, bem como a caçar com arco e flecha, com o povo que vive nos rios. Tratam-se, a rigor, dos espíritos das sucuris e demais habitantes das águas, que concebem a si mesmos como pessoas. Muitos de nós, ocidentais, vamos às universidades à procura de conhecimento. Na Amazônia, um xamã (ou pajé) pode obter seus cantos dos espíritos das árvores, que são imortais, mais sabidos e belos do que nós, os viventes. Para compreender as narrativas e os cantos indígenas, torna-se então necessário conhecer um pouco mais dos mundos em que eles são criados. Veja a tradução do canto de um xamã marubo, Armando Cherõpapa. O canto pertence ao espírito do gavião preto, que visita o corpo de Armando e canta através dele. É por isso que, na Amazônia, os povos indígenas costumam dizer que os xamãs (ou pajés) “são como um rádio”. Eles são os responsáveis por transmitir as falas e cantos dos espíritos dos animais, das árvores e de outros elementos disso que chamamos de “natureza”. Armando, na verdade, não é exatamente o autor do canto que segue, mas o seu transportador:

koin rome owaki menokovãini

flor de tabaco-névoa caindo e planando

naí koin shavaya

à morada do céu-névoa

shavá avainita

vai mesmo voando

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ave noke pariki

assim sempre fomos

yove mai matoke

na colina terra-espírito

koin mai matoke

na colina da terra-névoa

shokoivoti

há tempos moramos

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O espírito do gavião está aí dizendo como surgiu: a partir das flores de tabaco desprendidas que vão voando para o Céu-Névoa, o último dos patamares celestes da cosmologia marubo. Sim, neste mundo há diversos patamares ou estratos celestes, que possuem os seus diversos habitantes, aldeias, festas e cantos. Os espíritos que ali vivem são mais antigos do que os Marubo; existem desde os tempos do surgimento. Este tipo de canto que aí está traduzido pode, então, ser chamado genericamente de “canto xamanístico” ou de “canto de pajé”. Muitos povos indígenas possuem cantos similares, tais como os Araweté e os Kayabi (do Xingu), os Yanomami de Roraima, entre tantos outros. Aos cantos xamanísticos somam-se, ainda, diversos outros gêneros, tais como as falas de chefe, os cantos de cura, os diversos cantos de festas e rituais, as narrativas míticas, entre outros. Cada povo tem as suas próprias artes verbais, todas elas sofisticadas, diversificadas e bastante vivas ainda nos dias de hoje. Faltam, no entanto, livros e traduções que revelem isso também para nós, nãoíndios. A antropóloga e lingüista Bruna Franchetto, uma das maiores especialistas em línguas indígenas do Brasil, traduziu este belo canto tolo dos Kuikuro (Xingu), aqui reproduzido parcialmente:

Que nasçam asas em nós para aportar atrás da beira d’água irei feito beija-flor Não podes ficar aqui para namorarmos leve-me contigo vamos para a tua aldeia ‘Vou contigo’ disse-me a mulher de canoa ela se foi na nossa frente 40

2. Tradução de Pedro Cesarino.


Lá, em Aitolóu sentirei saudades de ti lá, na terra dos bakairí sentirei saudades de ti (...) 3 Este canto-poema, referente às relações entre amantes, é um bom exemplo do lirismo que se encontra em muitas poéticas indígenas. Elas costumam ser marcadas pelas distâncias e separações que marcam as relações de parentesco, muitas vezes estendidas entre aldeias distintas, separadas por longas viagens pelos rios. Isso confere uma certa qualidade nostálgica a muitas de suas criações verbais, que pode ser encontrada também nas narrativas míticas. Estas, porém, não se referem apenas a sentimentos ou impressões de sujeitos determinados, tal como nos dois cantos acima citados. Elas tratam de temas diversos tais como o surgimento do céu e da terra, dos antepassados, dos animais e dos próprios brancos, entre outros episódios que constituem a base dos conhecimentos indígenas.

3. Franchetto, Bruna. “Tolo Kuikúro: Diga cantando o que não pode ser dito falando”. in Invenção do Brasil, Revista do Museu Aberto do Descobrimento, Ministério da Cultura, 1997: 57-64.

Os Guarani possuem também uma rica mitologia, bem como um vasto conjunto de rezas e cantos cerimoniais. São provas vivas de que as mudanças sociais não levam necessariamente ao desaparecimento dos conhecimentos tradicionais, muito embora dificultem bastante suas vidas e os processos de transmissão de seus cantos. O problema, aliás, não escapa à reflexão dos próprios cantadorespoetas, como vemos nessa tradução feita pelo poeta Douglas Diegues (a partir de um canto coletado por Guilhermo Sequera). Reproduzo, novamente, apenas um trecho:

Queremos Encher a terra de vida Nós os poucos (Mbyá) que sobramos Nossos netos todos Os abandonados todos Queremos que todos vejam Como a terra se abre como flor4

4. Diegues, Douglas (Org.). Kosmofonia Mbya-Guarani. São Paulo, Mendonça & Provazi editores, 2006.

[nasceu e vive em São Paulo-SP; é antropólogo; texto publicado em Povos Indígenas no Brasil: http://pib. socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/modos-de-vida/ as-poeticas-indigenas]

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Wilmar Silva (MG)

ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA eu quebrado por você sou estilhaços no lago de púrpura/ lá entre nós e calos, sou esta enxurrada que invade eu/ aquele que vem com faunos de flautas e flechas sou o mesmo wilmar silva de mil diamantes nos olhos e mesmo que haja asas de arribação na mira da boca: o que faço com esta língua na mina de sangue/ vem agora um ouriço com vestígio de godiva, e/sou este cavalo com escamas nas crinas e cascalho para cavalgar um corpo distante/ mais que esta noite com centelhas de semens que nascem entre meus dedos de sonhos/ eu

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ETNOPOEM WILMAR SILVA & eye ye vindo do meu centro de dentro & eye ye alma de menino & & eye ye o menino pássaro & eye ye o menino cavalo & os insetos ye eye & as pedras ye eye & eu madrepérola eye ye eu feito de eye de sol ye de sol & eye as mãos & eye os pés & eye eu & e eu eye subindo ao amanhecer & subindo ao entardecer & eye sou hey um animal eye eye sou hey um vegetal eye eye sou hey um mineral eye i yum animal naturalis humanus i yum vegetal naturalis humanus i yum mineral naturalis humanus

[nasceu em Rio Paranaíba-MG e mora em Belo Horizonte-MG; mais em: http://www.cachaprego.blogspot.com/]

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Marcelo Chagas (SP) Apenas mais um... Felizmente, não o último. Prezado leitor, Sinceramente, após muito estudo e leitura, sempre de maneira deliberadamente amadora e não acadêmica, posso julgar a mim mesmo, em termos de poesia, um curioso. E talvez essa seja a maior virtude de um leitor interessado em descobrir e inventar sentido nessa escrita ainda chamada de poesia. Se o poeta já foi chamado em outras épocas de “fazedor”, mais antigamente de versos, e hoje, ao que me parece, de uma fala ensimesmada e lúdica, que mais esconde que revela, e sem nenhuma preocupação com cânone ou regra, estilo ou idéia, nós leitores também temos a nossa parcela de “fazer” a cumprir. Desse disparo, feito para qualquer direção, em forma de monólogo, que se revela poesia, a nós cabe receber o impacto e traçar a balística. Partindo de origem desconhecida e com destino incerto, esse disparo poético atravessa diversos sentidos possíveis, como uma bala, que antes de acertar uma vítima, deixa seu rastro de abertura onde quer que atinja. (Imagino agora um ponto de vista perfeito em que posso olhar através de todos os buracos da bala, diretamente até o seu alvo surpreendente). O que mais me chamou a atenção das leituras poéticas recentes foi o efeito dessa abertura provocada pela trajetória do disparo. A possível relação entre impressões vividas e situações imaginadas, entre julgamentos sintomáticos e rasos e aforismos críticos, entre a mais barata ideologia e epifanias quase místicas, entre o senso comum da arte, idiossincrasias burguesas e a mais sincera abertura de si ao outro. Tão bonito quanto egoísta, tão generoso quanto sem inspiração. Muito de catarse, muito de exibicionismo letrado, mas também muito de sensibilidade aguda e imaginação produtiva. Tudo junto, sem melhor ou pior. Concordo com Adorno, em seu texto sobre crítica cultural, onde afirma que o crítico, imerso nas contradições ideológicas próprias da cultura que busca criticar, só consegue mesmo no fim passar por censor ou cúmplice. A poesia de fato conseguiu o lugar de total liberdade que almejava, no entanto, por vezes sofre com a indiferença, invisibilidade e descrédito. Sim, a poesia livre não pede e não precisa de crítica, pois faz o que quer, ou o que simplesmente pode. A meu ver, caro leitor, ao abrir mão do sonho coletivo, tende a se acostumar com um monólogo ruminado entredentes. Alguns dos textos que li, por outro lado, me recordam vivamente um show mambembe de mágica, onde a vulgaridade do truque, do engano, é quase palpável. Onde o espanto da transformação deve muito mais à minha vontade de aplaudir, do que ao primor e engenho do ilusionista. Não só a ingenuidade leva à crença, mas o desespero também. A vontade de que ainda exista algo superior

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a nos redimir, a compensar a ignorância, o ordinário, a ausência de sentido. No entanto, simpatizo mesmo com os mais sinceros, com aqueles que me remetem à experiência do “fora”. Explico. Em alguns dos textos consigo perceber força de vida e transformação vinda, imagino eu, da experiência das ruas, do contato humano, da contemplação desinteressada, da curiosidade, da brincadeira infantil. São quaseprosas que traçam suas rotas margeando sentidos, contornando os significados das palavras, impulsionando a nau do discurso justamente nesses altos e baixos de interpretação. Simpatizo com a angústia criadora desse navegante que vislumbra, logo de cara, o oceano aberto, feito em linha única, onde nada está escrito. Uma linha a se cruzar, tendo toda a crendice e medo contrários à empreitada. Quando me deparo com textos que exalam o perfume, ou o fedor, o frio, ou o calor, a dor e o prazer da aventura, sinto que o truque foi bem feito. Pois mesmo o autor estando imóvel no mirador, consegue ainda nos fazer imaginar o risco e a ousadia, os perigos e o contentamento com a descoberta de um Mundo Novo. Para mim, a fantasia que interessa é aquela que nos convoca a superar os medos, a duvidar das crendices, a questionar autoridades, a compartilhar com outros o “se perder” e “se encontrar”. Depois de tantas poesias, antologias, obras completas, revistas, blogs e sites, é inevitável a sensação ao nos depararmos com um poema de que se trata de “apenas mais um”. E, de fato, podemos nos deixar esmorecer e corroborar a indiferença, invisibilidade e descrédito reinante. Ou, por outro lado, podemos simplesmente nos deixar entreter por essa fala, com o descompromisso de se deixar ouvir, e com a abertura de se permitir a fala. Até porque, hoje, a pior censura é aquela revestida de indiferença, invisibilidade e descré-

dito. Talvez o que seja mais importante na leitura da poesia, hoje, não seja um significado maior, um truque gramatical, ou mesmo um chamado a grandes virtudes ou transformações históricas, mas sim o simples gesto de dar atenção a uma fala desinteressada do outro. Prestar atenção não é apenas um recurso útil para a decifração, mas sim um gesto ético, que põe em diálogo e abre caminho para uma experiência humana compartilhada. Neste universo cultural industrializado e midiático em que vivemos, me parece que tudo o que é dito e mostrado tem a função inversa de incapacitar a atenção, a escuta demorada, a memória e o resgate criativo e crítico. Pois, da mesma forma que não se aprende ética na multidão, não se aprende estética nesta sucessão desatenta de instantes. O que não impede que seja feita estética usando como matéria esses instantes. Recordo-me de Baudelaire e sua passante. Embora no poema o importante não seja a multidão ou o instante, mas sim a sensação, a paixão e o além. E dessa capacidade, ou necessidade, de amplificar as sensações em paixão, e transcender a paixão em além, é que se nutre o poeta e também o leitor. E nesse além não existem regras, estilos ou significados maiores. Mais parece uma abertura, como aquela do projétil, que, com um olhar perfeito, consegue enxergar o devir de dentro de nós ao outro. Muitas vezes sem destino certo, cheia de contradições ideológicas, senso comum e idiossincrasias, mas ainda assim uma abertura ao além de mim. E se mesmo de uma crença a outra, ainda assim, consigo deixar por um minuto o desespero e encher-me de coragem, a epifania poética se fez válida, sem crítico que a explique, rotule ou classifique. Tão bonita quanto egoísta, tão generosa quanto sem inspiração.

[nasceu e vive em Santos-SP; professor, editou a Revista Critério, on line]

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Dennis Radünz (SC)

CURA PELO CRIME

para waly salomão, in memoriam

Tudo o que aí se vê são nichos e núcleos e interiores de útero: antro de mangue,

borrifo de piche em caranguejos-fantasma

se o que se move é fauna de fácil rendição

a exemplo de ‘ssáparos’, quando rebentam

em milagres milimétricos de desaparição.

“E é mesmo esse o leito de desova”

em que enterrais o coração extinto,

como se um refém o seqüestrasse o íntimo, assim

como um líquido dos tóxicos, o tinto como se a cura pelo crime fosse, então

e, enfim, incendiasse a sala de detenção

E o que restar é um estado civil de invertebráveis: os traficantes

de organismos semivivos,

o Ilegal, o Indefensável, o Ilícito. (8/9/10 de maio, 2003)

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APOCALIPSE 1. senhor do inexistido, nada mais me abomina no espaço de extermínio. 2. assim, renasce o gás e o sal em minha lágrima. 3. sou foragido do juízo e devassei a extra/via do sistema extinto em fogo e vi o só confim dessa floresta fictícia – desde aí, esfolio-me em cifras e finanças e tarifas. 4. devo deitar o cipoal na margem mais remota em que exaure-se o sol, rebento do infinito estritamente proibido ao transitar de extraditados nos limites do umbral. 5. ao fim, mais nada me nomina e resta apenas o índigo à vista, celestial e tóxico, um índigo final, de se abolir o próximo. (28/junho e 2/julho/2003)

[nasceu em Blumenau-SC e vive em Florianópolis-SC; mais em: http://www.poetasnosingular.com.br]

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Waldo Motta (ES) Arte Culinária: do Abaporu à Bicha Papona OS POEMAS Os poemas “Reflexão do Pajé” [nesta edição] e “Invocação de Tupã” [in: Babel Poética 5] dialogam entre si e se complementam como falas diferentes de um mesmo personagem, o pajé, que medita, no primeiro, sobre os percalços da busca infrutífera do paraíso terrestre, a Terra sem mal, e, no segundo, apela a um certo deus da montanha e do amor, que é Rudá, e também Gorak e Tupã, para que este se manifeste e revele o lugar almejado. Contrastando com o tom grave e solene e o floreado da reflexão e da invocação desses dois poemas, manifesta-se Tupã, no poema “Assim disse o Trovão” [in: Babel Poética 5], em linguagem descontraída, tom coloquial, dramático, farsesco, irônico, que infunde graça e leveza num assunto sério, profundo, complexo. TERRA SEM MAL Esses poemas fazem parte do livro inédito Terra sem mal, um híbrido de poesia, teatro e romance. O livro tem um enredo épico e místico, e conta a história da busca e do achamento do paraíso terrestre, inspirada em mitos e fatos. A expressão terra sem mal (tupi-guarani: ywy marã ey), literalmente, significa: terra sem desordem, conflito, guerra, sofrimento, doença. Para os índios, é um lugar acessível, concreto, alcançável pelos seres humanos, nesta vida, neste mundo. É antes de tudo, um lugar de abundância, de alegria e paz. No século XVI, o padre Ruiz de Montoya assim definiu ywy marã ey: solo não cultivado, intacto. Isso me lembra que o sagrado é definido como algo intocável, separado, isolado e, estranhamente, também abominável, vergonhoso, indigno, como sugere um dicionário de latim – levando-me a pensar obscenidades, visto que ao obsceno se pode atribuir os mesmos adjetivos. Pero de Magalhães Gândavo, ainda no século XVI, reportou que a sexta capitania – o Espírito Santo – era a mais fértil de todas, com infinita caça e infinita pesca e a melhor provida de todos os mantimentos da terra. Por ironia da história, o europeu encontrou, no paraíso tropical do seu imaginário, o índio em busca de outro paraíso, o verdadeiro. Busca que prossegue nos dias atuais. No final da década de 1960, um grupo de índios guarani veio parar em terras capixabas, acreditando que o paraíso terrestre, a terra sem mal, estava localizado no Espírito Santo. Era mais uma brincadeira do destino. Agora, os índios não pensam mais assim. E todos os anos, na primavera, costumam subir a Serra do

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Caparaó e fazer rituais, em que invocam o deus da montanha, para que este se manifeste e lhes diga onde encontrar o misterioso paraíso. Mais ironia: descobri que o nome do pajé que lidera tais encontros significa buraquinho, grutinha, covinha: kuaraí. Inspirados nesses mitos indígenas, entre outras fontes, os poemas de Terra sem mal satirizam as concepções e as buscas, exaustivas e infrutíferas, de lugares paradisíacos, em todos os tempos e lugares. É uma crítica às utopias, aos projetos salvíficos econômicos, sociais, religiosos. E não se limita a criticar e ironizar; também sugere onde se pode encontrar esse lugar famigerado e misterioso: a zona proibida do corpo. Proibida desde que a humanidade existe, conforme o mito bíblico do paraíso. Sexualidade e religião sempre andaram juntas, aos tapas e beijos. Em 2008, dirigi uma montagem teatral da maioria dos poemas desse livro: a peça Terra sem mal – um mistério bufante e deleitoso, que também chamei de pecinha de lycra azul e rosa. As cores dessa calcinha, digo, pecinha aludem à bandeira do Espírito Santo. Terra sem mal, o livro, não deve ser lido como apenas sátira, gozação: antes de tudo, desenvolve um tema sério, com profundas implicações culturais. Apresento uma visão simbólica da história, da geografia, vinculando o imaginário edênico dos colonizadores, entre outros, com a filosofia, a religião e os mitos indígenas que falam da existência do paraíso terrestre. Após a publicação de Bundo e outros poemas, em 1996, passei a me preocupar com o que dizer no próximo livro; a minha vontade era buscar inspiração na cultura indígena. Em Bundo, eu havia explorado bastante fontes como Bíblia, Cabala e mitologia hindu, budista, nagô etc., que me ajudaram a construir um sistema de pensamento, uma cosmovisão homoerótica. Agora, eu queria ampliar e consolidar essa visão, esse sistema. E precisava de mais referências. Ao longo dos anos, pesquisei dicionários de tupi-guarani, livros, revistas, jornais, e, tendo como referência os mitos, a filosofia e a religião indígenas, criei os poemas do livro Terra sem mal. No ano 2000, com o projeto deste livro, indicado pelo Instituto Goethe, ganhei do Landeshauptstadt Munchen Kulturreferat uma bolsa e estadia de 3 meses, final de 2001 e início de 2002, na Villa Waldberta, Baviera, Alemanha. Nesse período, vislumbrei como seria a estrutura do livro. Inspirei-me na estrutura dos livros Mensagem, de Fernando Pessoa, Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles e História do Brasil, de Murilo Mendes. Alguns poemas evocam os autos, o teatro alegórico e sacramental, de Anchieta, Gil Vicente e Calderon de La Barca. Admito a ideia, que se repete em Karl Marx, de que a história é uma sucessão de tragédia e farsa, um teatro, um sonho... um pesadelo! Fiz teatro amador na adolescência e até hoje não me livrei das sequelas dessa experiência. Já fui comparado a Artaud e reconheço algo brechtiano em meu estilo. No que tange ao conteúdo, consultei também vários autores, dentre os quais lembro Câmara Cascudo, o casal Pierre e Hélène Clastres e Kurt Nimuendaju Unkel.

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Sucedem-se poemas narrativos, descritivos, falas, monólogos e diálogos de personagens: Jaguar, Lua, Pajé, Tupã, Jurupari etc. Amalgamo referências de fontes diversas, com ampla liberdade formal, o que resulta num estilo camaleônico, transformista, um transgênero literário, tratado filosófico & religioso, tese científica, receita culinária antropofágica e o diabo a quatro, melhor, de quatro. POÉTICA Poetas não são apenas fazedores de versos, mas sobretudo criadores de novas realidades abstratas e concretas, pessoais e sociais. A poesia é a mãe de todas as artes, ciências e religiões, filhas ingratas. Pode ajudar a resolver os enguiços, impasses, aporias, quiprocós criados pelas filhotas irresponsáveis. Logopeia: renovação, inovação de ideias, temas, abordagens, perspectivas; reflexão contra a esclerose, a poesia oca e boboca, o torpor, a modorra; a anorexia temática, a anemia espiritual, a mornidão apocalíptica. Leitores não se interessam por ideias e obras que pouco ou nada oferecem (Pound). Destoar do panorama melancólico: gorgeios maçantes, subjetividade rasa; bebuns de estesias nos botecos e igrejinhas; noviços do sublime, devotos da musa automática & psicodélica, sereias desafinadas, parcas porcas, aporia, entropia. Diálogo intertextual, intercultural. A poesia é um diálogo entre autores, e destes com os leitores. Paródia: debochar, avacalhar. Palinódia: desdizer, redizer; crítica e reformulação de ideias. Poeta: vate, profeta, mago. Poesia: magia, vaticínio, profecia. Poesia: arte, ciência, religião. Poesia: revelação, criação. Boi na frente, carro atrás: verdade e beleza; ética e estética; conteúdo e forma. Poiesis: autopoiesis, metapoiesis, mitopoiesis. Valorizar as formas simples, tradições populares, lendas, mitos. Reabertura da agenda modernista (expressão de Raul Antelo): antropofagia, linguagem coloquial, temas nacionais, humor. A prova dos nove é a alegria, como Oswald dizia e repetem os Waldos. Já disse por aí, quando era Valdo: espero que o mundo acabe em gargalhadas – dos que restarem. A crítica é mais eficaz com humor, ironia. Ridendo castigat mores. Malandragem waldivina, utilizo várias máscaras e o burlesco em minha catequese, para seduzir e converter. Iumna Maria Simon, no ensaio “Revelação e Desencanto”, já havia notado em minha poesia, particularmente em Bundo e outros poemas, essa relação entre sagrado e comédia, a ambivalência do profeta que se faz arlequim.

[nasceu em São Mateus-ES e vive em Vitória-ES; mais em: http://waldomotta.blogspot.com.br/]

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Adriano Wintter (RS)

OS HERÓIS Neste quarto, falo. E me escutam a parede, a planta, o cobertor azul. Em um quarto falamos, sem resposta. Falamos: de amores mortos, sonhos em chamas, bocas desejadas mais que um poema ou a tristeza, o desconsolo, o desespero. Somos milhões de vozes mergulhadas, perdidas sob esplêndidas estrelas. Homens, mulheres, criaturas diversas num só sofrimento. E um a um vamos esquartejando a rígida pedra do silêncio, até descobrir - num súbito golpe de esperança a alegria leve dos diamantes.

[nasceu e vive em Porto Alegre-RS; mais em: http://adrianowintter.wordpress.com/]

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Cláudio Portella (CE)

A CRISE DA POESIA BRASILEIRA ATUAL Rezo para que este texto crítico sobre a atual poesia brasileira fique datado. Por dois motivos: a poesia está carente e eu estou em crise. Espero que daqui a algum tempo tudo melhore. A poesia volte a ver passarinho verde e eu a dar pulinhos. Dizem que a poesia nasce da carência e o poeta se faz na crise. Será? Um poeta que está publicado na Babel Poética me perguntou: “carente de quê?”. Sem pensar muito eu respondi: “de tesão!”. Mas o que é a porra do tesão, senão o sentimento mais recorrente do mundo? Enganam-se quem pensa que é o amor! Justamente por esse engano o país está lotado de poesia de gosto duvidoso. Mas o que é poesia? O que é poesia meu caro Edson Cruz? Não saber o que é poesia é o que me faz estar em crise. Quase tudo parece ser poesia e deve ser respeitado como tal. Suas muitas faces estão por toda parte. Confundo-me, entro em crise. Decidi não mais opinar sobre a poesia de ninguém. Difícil vai ser me segurar. Por favor, não me perguntem mais o que acho de seus poemas. Mas não é só de tesão que ela está carente. Vejamos: “de humor”. Não a continuidade do humor dos modernistas e dos marginais, um humor que não tire sarro do poeta, do criador, mas da criatura, de si mesma. Deixar de se levar a sério. Falar dos vícios que a atual poesia carrega há algum tempo é repetir o que disse em outros textos. Mesmo nas edições da Babel Poética, onde os poemas são selecionados por temáticas a cada número, o que poderia trazer uma poesia menos viciada, os vícios estão todos lá. Vejamos outra carência: “de RG”. Está sentada no divã procurando a identidade. É um reflexo dos tempos a falta de identidade? Sendo assim, enveredou pelo lado errado. O lado é o outro, onde, na falta de um mundo com alma, a poesia deveria possuir, feito uma entidade, o corpo, a carapaça oca do mundo. Estamos copiando formas que no passado funcionaram bem. Por favor, não me venham com: “o que é bom deve ser copiado”, justificando a falta de talento em criar uma fórmula que alegre o velho crítico, o leitor cansado de ler e reler os poetas do passado e o novo mundo desalmado. Como fazer isso? É com vocês. Espero ter dado um resquício de pista diagnosticando que a engrenagem emperrou, só gira em translação. Sou apenas um crítico em crise que cansou de opinar sobre poesia, esse gênero de muitos disfarces.

[nasceu e vive em Fortaleza-CE; mais em: clautella@ig.com.br]

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Fabiano Calixto (PE/SP)

Pedaços do esqueleto / se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio medonho, / a decrepitude, a tristeza infinita / o monturo (na vida, na escrita) / nenhuma cia. de seguros / vai arcar com o prejuízo / então, / dou um basta à bosta toda / redesenho o traço da boca / deito um sorriso lindo para o mundo / respiro fundo, vou com tudo / porque é assim (e só assim) que se tem que ir // a av. Paulista correndo é tão engraçada / parece uma cobra de marshmellow / uma viagem de ácido / uma enguia eletrocutando a língua / os olhares, os colares, tristes demais / estupefatos, oleosos, covardes e sem razão / a cavoucar a cidade atrás de um tostão / ou de um milhão / pobres diabos e diabos ricos a rastejar / quarteirão a quarteirão / uns com ar condicionado, mp3, Honda, / apartamento mobiliado, aulas de inglês / outros não / a gente que tem / heliporto / vinho do porto / trabalha no horto / não passa fome nem morto / e a gente que / disfarce a disfarce / ganha apenas o necessário / para endividar-se /

[nasceu em Garanhuns-PE e mora em São Paulo-SP; mais em: http://revistamododeusar.blogspot.com/]

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José Leite Netto (CE)

um cego Homero quem acordará os olhos de Homero sempre cego a esmolar por entre ruas quem lhe dará um troco mesmo mero erro que seja das simples moedas tuas quem lhe escreverá a Ilíada no ônibus lotado: as pratas caem ele se curva quem apagará a história urubus louca gente que luta de alma que uiva quem a não ser ele mesmo sem Odisseia sem Ulisses o grande derrotado homero agora sem lira só receia o tempo as eras em um poema passado o seu verso é a fome que lhe guia ruas que não param e ninguém lhe sorria.

[nasceu e vive em Fortaleza-CE; mais em: http://leiturasjoseleitenetto.blogspot.com.br/]

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Francisco Amarilla (PR)

A fronteira por um conhecedor “Esses dias fui visitar os Aché; o cacique vestia uma camiseta dos Rolling Stones, um relógio suíço, meias Adidas e chinelos Havaianas, um show, cinco culturas num só homem, um indígena.” “Chama-se de índio uma pessoa porque nasceu no mato; a meu ver é uma palavra equivocada, pois são na realidade nativos. Hoje nós podemos chamar de comunidade, em vez de aldeia indígena. Inclusive chamá-los de “indiarada” é uma forma muito baixa para eles, soa como gentalha, pessoas com quem não se deve se juntar. Os Guarani não são gente de contar histórias, são de responder perguntas, e há uma série de perguntas que não adianta fazer a eles, simplesmente porque não irão responder, por exemplo: “Como se faz um parto ou um enterro?”. “Você tem que ver ou vivenciar se quiser saber.” “O que mais me marcou na época da construção de Itaipu, além da vinda das máquinas e turbinas, foi como as pessoas foram sendo retiradas de seus lugares com o crescimento do lago. Esse acontecimento trouxe o progresso e Itaipu exerce uma influência muito grande em toda essa região. Inclusive nas comunidades indígenas, onde interfere. O povo indígena perdeu boa parte de suas terras, a água invadiu suas áreas; essa pode ser considerada a parte mais triste dessa história, pois os Guarani se apegam muito ao seu cantinho, ainda mais um povo de 5.200 anos, sentiram muito de ter que abandonar seus cemitérios. Até o alagamento, a comunidade Acaray era da mesma tribo que havia em Foz do Iguaçu. Viviam nas margens do Rio Paraná, atravessavam de canoa para visitar seus parentes. Quando a água começou a subir, disseram a eles: “Vocês vão ter que sair, pois a água vai chegar até aqui”. Foi como um despejo. Então levaram essas pessoas para uma comunidade emDiamante d’Oeste chamada Tekoha Añetete, que, entre aspas em negrito e vermelho, significa “moradia de verdade”. Há parentes que são da mesma comunidade e que jamais se visitaram. O lago dividiu o povo, gerou um problema, tornaram-se os guaraniparaguaios e os guarani-brasileiros; isso não existe. Índio é índio, onde ele pisar é a terra dele. Apesar de hoje em dia quase todos falarem o espanhol ou o português, não adianta chamar um indígena de paraguaio ou brasileiro, porque eles respondem: “Eu sou Guarani. Nós somos Guarani, os paraguaios e brasileiros vieram depois”. Os Guarani, por serem receptivos, sofreram muito nas mãos dos jesuítas, bandeirantes e colonizadores. Eram conhecedores da região, de toda a América Latina. Sabiam onde estavam o ouro, os metais, só não sabiam exatamente o que eram. Sofreram e sofrem muito até hoje. Antes eram nômades; hoje, pelo fato de não haver mais terri-

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tório para andar, são seminômades.Mesmo assimse mudam constantemente, levantam uma casa aqui e, três a quatro meses depois, a casa está ali ou lá na frente. Eles sentem necessidade de sair do mesmo ponto inicial. Como não há mais para onde irem, vão dando volta. Essa necessidade faz parte da espiritualidade deles.” “Tudo isso aqui se chamava Nação Guarani. O mais curioso – e não sei se os índios Guarani tinham conhecimento ou é coincidência – é que o Aquífero Guarani está localizado exatamente embaixo do território guarani.” “Esses dias viajei para o sul do Paraguai. Cheguei em uma comunidade e o cacique estava muito doente e lembro de seu depoimento: “Como eu queria ir para o mato”, então eu disse: “Mas você está tão doente, por que quer ir para o mato?” e ele me respondeu: “Porque no mato tem a cura”. E sabe a quantos quilômetros se encontrava a mata mais próxima? 35 quilômetros. Entrar na mata cura dor de cabeça, cansaço,medo, enfim, a mata tem a cura deles, mas hoje não tem mais. Se oferecer 35 hectares de terra batida ou 100 metros quadrados de mato a um índio, sabe qual deles ele vai escolher? O mato; tudo de que eles precisam está no mato. Mas não está sobrando mais nada, se você sobrevoar Guaíra até Posadas ou Encarnación, não há mais mata.” “Hoje, em Foz do Iguaçu, há em torno de 38 favelas, numa cidade de aproximadamente 320 mil habitantes. Quase todas as favelas foram geradas com a construção de Itaipu, esse é o lado negativo do progresso. Muitas pessoas vieram pensando que aqui era o Eldorado, que iriam conseguir trabalho e ganhar muito dinheiro. Grande parte foi parar nas favelas.”

“Aqui é uma babilônia, está tudo misturado, aqui ninguém fala bem o espanhol, nem o português ou o guarani, falam tudo misturado. É o charme da fronteira.”

[O Lago Artificial de Itaipu foi criado com o represamento do Rio Paraná em 1982, com as águas se espalhando por terras brasileiras e paraguaias. É um lago bastante ramificado, sua extensão vai de Foz do Iguaçu até Guaíra, com comprimento de aproximadamente 170 km e uma superfície total de 1350 km2, sendo 780 km2 do lado brasileiro e 570 km2 do lado paraguaio]

“Aquí es una babilonia, está todo mezclado, aquí nadie habla bien el español, ni el portugués o el guaraní, hablan todo mezclado. Es el atractivo de la frontera.” “Ape ha’e pe apañuái, imbatarapaite ko ápe, ápe avave no ñe’ê porâi karai ñe’ê, ni portugue ha guaraní, oñe’ê joparapaite. Péa ha’e porombohorýva pe tetârembe’yre.”

[Extratos da fala de Francisco Amarilla em 5 de janeiro de 2010 em Foz do Iguaçu. In: Caderno Trânsito, pp. 44-6; mais em: http://margemdolago.transitos.org/]

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Ricardo Corona (PR)

Algum exercício de alongamento Deixei a cidade sumida no silêncio da madrugada. Ficaram para trás os estirões de asfalto e as ruas tecidas de ferro e de cimento armado. RAUL BOPP1

Desde que se perceba que poesia não é necessariamente coisa feita para o livro, abrindo-se aí o extremo, a fuga, eis, então, a demanda que coloco e anseio para a poesia contemporânea a partir do campo “fronteira”: uma força centrífuga, contrária àquela que se fecha em si, formal-centrípeta, em que fluxos do fenômeno poético antes de sentirem-se atraídos para a grade formal, traiam o cumprimento estrito à experiência literário-letrada.

1 “Como se vai de São Paulo a Curitiba”. In: Poesia Completa de Raul Bopp. Org. Augusto Massi. SP: José Olympio/ Edusp, 1998, pp. 130-144.

Comecemos com uma questão mais genérica e outra mais pontual em sua radicalidade: 1) A literatura está sendo abordada cada vez mais sem seu objeto: o livro. 2) Enquanto o livro, por sua vez, cada vez mais a abandona ao ser comprometido com as estâncias do didatismo ideológico e com a ideologia do mercado. Nas duas há sintomas diferentes do desejo pela ausência de livro e são questões de fronteira política, que, poeticamente, reivindicam o transbordamento e a negação. Para ambas, penso, a resposta pode ser que a literatura merece ser transformada em arte. Uma recusa que já foi levada ao extremo por Joseph Joubert (1754-1824), autor que se manteve no limiar da literatura de livro e o seu fora. Maurice Blanchot menciona o autor sem obra auferindo-lhe a presença de um espaço justamente pela ausência ou falta de obra. Joubert se recusava a escrever um livro porque não teria encontrado a sua fonte e se a encontrasse temia encontrar também os motivos para jamais escrevê-lo. O movimento circular o levou ao centro de uma recusa que radicalizou a presença externa de um espaço e da corporeidade da própria literatura. Joubert, para Blanchot, foi “um dos primeiros escritores completamente modernos, preferindo o centro à esfera, sacrificando os resultados à descoberta de suas condições, e não escrevendo para acrescentar um livro a outro”2, mas para se tornar “mestre do ponto de que lhe pareciam sair todos os livros e que, uma vez encontrado, o dispensaria de escrever”3. Joubert alongou sua literatura com gesto similar às escritas pictóricas e sonoras das poéticas indígenas. Retomemos com algumas entradas ao mesmo tempo sutis e enviesadas na tradição poética brasileira para mostrar fluxos contrários ao sedentarismo centrípeto. Será exagero pensar que a forma é política e constrói tradições? Raul Bopp é um poeta modernista? Obviamente que sim! Mas o é, ainda, um dos precursores mundiais da etnopoesia. Isso foi muito bem lembrado por Régis

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2 O livro por vir. Trad.: Leyla Perrone Moisés. SP: Martins Fontes, 2005, p. 70. 3 Ob. Cit. p. 98.


Bonvicino, décadas atrás, em breve artigo que anunciava a publicação das obras completas de Bopp, organizada por Augusto Massi. Acrescento outra desmedida, menos sutil e mais enviesada, porém, apostando que o pensamento que articula contradições e anacronismos pode acrescentar camadas sensíveis à leitura da história. Haveria em Bopp indícios do cut-up? O método consagrado por William Burroughs, um enfrentamento de textos recortados, uma experimentação técnica de colagem dadaísta inventada pelo escritor e pintor inglês Bryon Gysin (1916-1986), apresentada ao poeta norte-americano em 1959, que a desenvolveu em sua poesia, em produções cinematográficas, tornando-a mundialmente conhecida como o método. Segundo o próprio Burroughs, não teria mais sentido utilizar esse método na literatura porque ele já pertence ao cotidiano, podendo vê-lo em pleno uso com a televisão. Porém, em Bopp, que escreveu, entre outros, na terceira década do Século XX, conforme veremos mais abaixo, o poema “Como se vai de São Paulo a Curitiba”, todo feito de fragmentos “retirados” da paisagem urbana e rural durante uma viagem de carro, ou seja, fragmentos anotados durante um processo, um recortar e colar a partir de um itinerário. Isso talvez contribuísse ao estudo no sentido que Bopp precisa ocupar outros lugares na poesia brasileira e ainda mais tendo o fragmento, a anotação associada à experiência, o verso que se estica para fora, a relação dessa poesia com a antropologia, Freud etc., que fornecem rastros residuais bem mais raros. O autor de Cobra Norato (19294), poema-livro emblemático em sua produção (“eu hei de morar nas terras do Sem-fim”), no qual põe em jogo um verso-alongamento, cuja elasticidade é força que vai de dentro para fora (“A sombra vai comendo devagarinho os horizontes inchados”), mas que, antes ainda desse seu poema mais conhecido, escrevera “Como se vai de São Paulo a Curitiba” (19285). Curiosamente, conforme nos diz Augusto Massi, a partir de um pedido inusitado feito pela Associação Paulista de Boas Estradas: “Você quer ir amanhã para Curitiba? Só há uns 100 quilômetros de estrada regular. O resto você terá que descobrir como chegar lá”6. No dia seguinte Bopp caiu na estrada e durante o percurso “anotou” aproximadamente duzentos fragmentos. Considerado incompleto, o poema é dos mais instigantes para entendermos o exercício de alongamento correndo “por fora” da tradição modernista e para dizer mais sobre isso colocarei o fragmento como procedimento e num salto tresdobrado e distendido da tradição à agoridade, mencionarei outro autor que tem puxado essa linha: Sérgio Medeiros; especialmente por causa dos seus livros Alongamento (Ateliê Editorial, 2004) O sexo vegetal (Iluminuras, 2009) e Totens (Iluminuras, 2012). De fato, são poucos os autores que estão produzindo uma poesia que ataca a forma. A meu ver, esses dois autores já compreendem uma academia de ginástica para os tendões e músculos da poesia contemporânea. Em ambos, podemos tomar o fragmento como sendo um método e um processo que nos leva a perceber o poema como pausa do fenômeno “poesia”, abrindo-se aí os limites da linguagem ou conforme anotou Tamara Kamenszain a respeito de Osvaldo Lamborghini: “No hay que confundirse, sin embargo, y creer que Lamborghini entiende lengua como aquel archivo clausurado que endiosaron sin igual teóricos y escritores de los setenta. Para que no queden dudas, él apela al oxímoron de un ‘archivo que no cesa’ donde ‘escribir ya no tiene nada que ver con la estética’”7

4 Cf. Ob. Cit. p. 145.

Ob. Cit. Idem.

Ob. Cit. p. 17.

7 Cf. KAMENSZAIN, Tamara. “La cárcel del lenguaje”. In: Radarlibros, Página 12. Buenos Aires: 6 de junho/2004. Disponível em: http://www. pagina12.com.ar/diario/ suplementos/libros/101092-2004-06-06.html. Artigo escrito na ocasião da publicação da antologia Poemas 19691985, org. de Cesar Aira.

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Com o fragmento há a extração do detalhe da paisagem urbana e/ou rural, ao passo que o detalhe dos extratos alonga o verso para fora dele mesmo. O modo de mostrá-los incide em variações, multiplicidades, direções. O fragmento pode ser entendido como ready made, numa alusão a Marcel Duchamp, ou como o já mencionado cut-up. Nomes de coisas, fetiches de imagens urbanas e rurais, que aparecem em toda a obra de Bopp e de Medeiros são, em última instância, indicações de itinerários, reais ou imaginários e o mais importante: modulam um ritmo próprio para suas poéticas. Com efeito, ao findarmos a leitura dos livros desses autores, convencemo-nos de que se trata de uma poesia “inacabada”, em que o fragmento sobrepõe-se aos resíduos, tal como é, ou seja, singularidade autorizada pela multiplicidade e o ritmo dado aos poemas, pela poesia enquanto fenômeno que nos abisma sempre porque nos deixa fascinados pelo jogo das sensações provenientes de fluxos sensíveis que também chamamos, por comodidade, paisagens e glosas cosmogônicas. No fundo, trata-se de poéticas que se relacionam incessantemente com o que podemos dizer “mundo sensível”. Mesmo que tenha sido coincidência, Bopp concluiu (concluiu?) o poema “Como se vai de São Paulo a Curitiba” com este verso extremamente peculiar: “Caio pelos cobertores com os olhos amassados de sono”. Esta palavra, “sono”, não é apenas um termo que costumamos dar ao corpo quando entra em processo de expansão? Muito da resistência da poesia está no seu movimento de expansão, seja por linhas que vão em direção ao aberto e se perdem no inapreensível, seja pela ressonância do fenômeno da poesia no corpóreo. Expansão cujos limites não conhecem fronteiras e são difíceis de apreender e mais ainda defini-los rigorosamente. Em nada se parece com a ideia de “poema longo” que em boa parte é apenas encurtamento prolixo. Poéticas que se esticam, que se alongam sem a primazia da forma resoluta, põem em jogo um continuum que produz diferença ao provocar a dissolução das fronteiras e margens subscritas pelas categorias. O apagamento das margens e fronteiras é o que as inclina para outros espaços, abrindo-as à relação com as artes visuais, cinema, fotografia, música e mais ainda com lugares conceituais mais esfumaçados, menos previsíveis que podemos dizer ligeiramente “escrita performativa” e “gesto escritural”. Fluxos que fazem da ilusão da linguagem uma experiência que podemos dizer poesia quando vistos nesse contíguo que se intercomunica sem cessar com acontecimentos do inapreensível. Poéticas que ao se alongarem, ao se esticarem, pelo fragmento, informe e ressonância, distinguem-se por um centro sempre descentrado, que temos em Henri Michaux, com os Meidosems, estes seres com algum parentesco com o homem reduzido a fio de Ponge, as finas figuras de Giacometti e, claro, o Odradek de Kafka, um país das maravilhas: “Por mais que seja grande a facilidade que tem para expandirem-se e passar elasticamente de uma forma a outra, esses grandes macacos filamentosos querem outra maior, mais rápida, desde que seja por pouco tempo e sintam-se seguros de que poderão voltar ao estado original. É por isso que esses Meidosems vão alegres ou fascinados a lugares onde se lhes promete grande extensão, para viver mais intensamente e de lá partirem excitados para outros lugares em que se oferecem semelhantes promessas”8. Esse centro descentrado produz moveres contínuos de variações que é sua própria poética, que acessa exterioridades e se aproxima ao máximo do aconteci-

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8 Si grande que soit leur facilité à s’étendre et passer élastiquement d’une forme à une autre, ces grands singes filamentaux en recherchent une plus grande encore, plus rapide, pourvu que ce soit pour peu de tempos et qu’ils soient sûrs de revenir à leur état premier. Et pour cela s’em vont ces Meidosems joyenx ou fascines vers des endroits où on leur fait promesse d’une grande extension, pour vivre plus intensément et de là repartent excités vers des endroits où une promesse analogue leur a été faite. (A minha tradução se deu a partir do original e da tradução para o inglês). In: MICHAUX, Henri. Meidosems. Translation by Elizabeth R. Jackson. Santa Cruz: Moviment Parts Press, 1992, p. 127.


mento, do aqui e agora, de onde a linguagem quase se abisma, mas que é desse lugar que vem toda sua potência enquanto linguagem. Relação de fuga e de potência. É nesse sentido que coloco o movimento de expansão como um movimento centrífugo que se relaciona com as áreas das marcas e fronteiras, mas atacando-as. Desde sempre as poéticas indígenas e o barroco apresentaram-nos sintomas dessa expansividade latente, cuja função, segundo o poeta martinicano Édouard Glissant, é “a de assumir a contramão da ambição e da pretensão clássica. Ora, a pretensão clássica, obviamente, é a profundidade”9. Contrário à ideia de profundidade que domina o ideal clássico, o barroco e a etnopoesia são sempre expansivos, desdobrados, centrífugos. Por um lado, o fragmento na sua monstruosidade enquanto montagem e artifício e, por outro, o corpóreo e a ausência da escrita feita com palavras, abrindo-se aí o gesto sonoro e pictórico. Glissant, nesse mesmo livro-conversa (Introdução a uma poética da diversidade: uma compilação de conferências, incluídas aí perguntas, respostas, réplicas e tréplicas que foram levantadas pelo público após a fala do autor, o que confere oralidade ao livro, uma distinção cara ao poeta), afirma que “tentamos desfazer os gêneros precisamente porque sentimos que as funções que lhes foram atribuídas na literatura ocidental não convêm mais à nossa investigação, porque ela não abarca apenas o real, mas é também uma investigação do imaginário, das profundezas, do não dito, das proibições. (...) Devemos sacudir todos esses gêneros para poder expressar o que queremos expressar”10. Ora, trata-se mesmo de escapulir do “cárcere da linguagem” , como o fez, entre outros, Osvaldo Lamborghini, cujo verso-lugar “arquivo que não cessa”, fornecenos resíduos de sentidos para apreendermos ainda mais a questão do “aberto”: “el archivo que no cesa. / Porque este escribir ya no tiene nada que ver con la estética / (llamemos estética a cualquer amor), entonces: / el archivo. Caso es dicer cerrado, que no cesa“. Nesses versos de Lamborghini orbitam desde as poéticas “complexas” dos grupos étnicos com suas escritas gestuais, certamente, mas ainda o exercício de leitura oral do texto judeu Talmud. O talmudista na sua condição de leitor antes do que de autor, porque inexiste essa autoridade de autoria, acessa um arquivo que só é memória, expondo-se ao texto supostamente indecifrável, mas aberto ao inapreensível, o que o transforma sempre em outro texto. Lamborghini, nos seus últimos anos de vida (início dos anos 1980), buscava como um colecionador os fragmentos erráticos da linguagem, sublinhando-os em livros pornográficos porque gostaria de aproximar, segundo Reinaldo Laddaga “o momento da formação do arquivo e o momento da construção do escrito publicável”12. Conectava, então, “a possibilidade da escritura com a possibilidade de fazer uma cena”13. Com esse gesto antes da escrita, o poeta argentino mantinha-se atento à conexão com o arquivo antes da escrita fazer-se: “E a cena que até faz nada, até ontem, era possível, já não pode fazerse, ou se faz, mas não tem destinatário. Há um teatro que está fechado: portanto, não se pode já escrever, escrever é coisa de “coitado”. Se se escreve é preciso não publicar. E essa situação é, no entanto – o tom de exasperação da passagem o revela – insustentável. E a solução do enigma? A dessa sorte do koan sobre o qual Lamborghini se voltaria repetidamente: ‘publicar, sem escrever’”14.

9 Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce A. Rocha. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005, p. 111.

10 Ob. Cit. pp. 146-147. 11 Ob. Cit. Idem.

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12 Espetáculos de realidad. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2007, p. 98. 13 Ob. Cit., p. 102.

14 Ob. Cit. p. 98.

É nesse sentido que podemos ler a poesia menos como uma coleção de poemas enfeixada em livro e mais como pausas do fenômeno da própria poesia, que

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não é propriamente poesia no seu sentido “literário”, posto que, justamente por isso, está sempre em expansão para talvez não pertencer a nenhum adjetivo, não se ajeitar a nada, nem ao livro, apesar de ser este, obviamente, seu parceiro. Isso se radicaliza a tal ponto que mesmo a aproximação com as artes visuais e a música, o que é sempre aceitável e sinal de potência, neste caso, de abismo da linguagem, ter-se-ia que pensar em acréscimos, em novos tipos de livros, pois sabemos que estão em jogo os próprios conceitos de literatura no seu movimento centrípeto. Dizendo mais diretamente: Poetas deveriam se interessar por música com a frequência que John Cage se interessou pela poesia. Livrospictóricos-sonoros. Porque a poesia está sempre disponível à relação aberta e basta tomar a sua oralização e materialização como ressonâncias deste lugar de passagem para que percebamos o seu ininterrupto nomadismo de linguagem.

[nasceu e vive em Curitiba-PR; mais em http://blogdocorona.blogspot.com/]


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