Babel Poética 1

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BABEL Poética

Poro

Ano I, n.º 1 – Novembro/Dezembro de 2010 Copyright © dos editores e dos autores BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais.

Marcelo Drummond. Parte integrante da tese de doutorado TIPOS MALdITOS, com bolsa integralmente cedida pela CAPES e desenvolvida junto ao Programa de Doutorado “ Las Revoluciones Tipográficas”, Universidad de Barcelona, Espanha.

Ministério da Cultura Secretaria de Políticas Culturais Associação dos Amigos da Casa de Rui Barbosa João Maurício de Araújo Pinho | Presidente Rede Cultura e Pensamento de Revistas Culturais Sergio Cohn e Elisa Ventura | Coordenadores Rita Ventura | Produtora Luana Villutis | Coordenadora de rede Filipe Gonçalves, Elisa Ramone e Lilian Diehl | Assistentes de Produção Revista Babel Poética | babelpoetica.wordpress.com Ademir Demarchi | Editor | ademirdemarchi@uol.com.br | Santos/SP Amir Brito Cadôr | Projeto Gráfico e Edição Gráfica | amir_brito@yahoo.com.br | Belo Horizonte/MG Conselho Editorial Ademir Assunção (SP), Cláudio Portella (CE), Jorge Luiz Antonio (SP), José George Cândido Rolim (CE), Lúcia Rosa (SP), Makely Ka (MG), Marcelo Chagas (SP), Márcio-André (RJ), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Mauro Faccioni Filho (PR/SC), Nilson Oliveira (PA), Paulo de Toledo (SP), Ricardo Corona (PR), Ronald Augusto (RS), Silvana Guimarães (MG) e Susana Scramim (PR/SC)

Grupo Poro. Propaganda Política dá lucro!!! Marcelo Terça-Nada, 2002 e 2004 Santinho tipográfico distribuído em locais públicos e afixado em butecos, padarias, orelhões, murais etc, de diversas cidades/por diversas pessoas. http://poro.redezero.org/ Lucas Dupin. A Palavra , a Página, o Livro. O Barro, a Paisagem, o Caminho. A partir dessa analogia com o livro, foram confeccionados mais de duzentos tijolos de adobe com o formato de caracteres em sua superfície (assim como nos tipos móveis empregados na tipografia) que posteriormente foram dispostos em uma das trilhas da Ecovila Terra Una (Liberdade/MG), a fim de construir o que chamo aqui de “Livro-paisagem”. O leitor desse livro deveria percorrer este caminho para lê-lo. Este trabalho foi executado durante a residência do projeto Interações Florestais. http://www.flickr.com/photos/lucasdupin/

Colaboradores desta edição Adriano Espínola, Almandrade, Ana Rüsche, Antonio Miranda, Celso de Alencar, Cláudio Portela, Daniel Faria, Daniela Maura, Edson Bueno de Camargo, Frederico Barbosa, Fuzzill, Glauco Mattoso, Jairo Pereira, Juliano Garcia Pessanha, Lau Siqueira, Ligia Dabul, Lucas Dupin, Luish Moraes Coelho, Maicknuclear, Manoel de Andrade, Marcelo Ariel, Marcelo Drummond, Márcio Barreto, Márcio Batista, Paulo Bruscky, Paulo de Toledo, Ricardo Domeneck, Robson Canto, Rodrigo Ciríaco, Ronald Augusto, Sebastião Nicomedes, Sérgio Vaz, Teruko Oda, Valério Oliveira, Valquimar Reis Fernandes e Xico Sá.

Gestão do Projeto Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência www.projetocamara.org.br Rua Caminho dos Barreiros n.º 491 – Beira Mar São Vicente –SP 11040-020

Imagens Paulo Bruscky p. 2 Sandro Saraiva p. 36, 37 Marcelo Drummond p. 38 Lucas Dupin Livro-paisagem p. 44, Sala de leitura # 3 p. 47 Poro Propaganda Política dá lucro!!! p. 50. Luis Moraes Coelho da série Meta-Câmeras, Meta-câmera Quarto, JK, Consultório Psiquiátrico e Quitinete p. 54 Daniela Maura p. 56

Impressão e Distribuição Programa Cultura e Pensamento/MinC Tiragem 10 mil exemplares

Capa Ademir Demarchi, Amir Brito Cadôr e Paulo de Toledo

Agradecimentos Expressamos nosso reconhecimento a todos os que têm colaborado para a concretização deste projeto, em especial aos autores que nos autorizaram a publicação de imagens e textos.

Correspondência Ademir Demarchi / BABEL Poética Rua Espírito Santo, 55, apto. 36 Campo Grande - SANTOS – SP 11075-390

Com a realização de intervenções urbanas e ações efêmeras, o Poro (dupla de artistas formada por Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!) procura questionar problemas das cidades através da ocupação poética dos espaços. http://poro.redezero.org/


Esta publicação foi selecionada entre os projetos que se inscreveram no Programa Cultura e Pensamento – Seleção Pública e Distribuição de Revistas Culturais. Foram escolhidos quatro projetos, e desta forma contemplamos quatro revistas culturais bimestrais cujas tiragens, somadas, chegam a 240 mil exemplares. O objetivo desta iniciativa é estimular a criação de publicações culturais permanentes, e de alcance nacional – não apenas em sua distribuição, mas também em seu conteúdo. Ao patrocinar este projeto, a Petrobras reafirma, uma vez mais, seu profundo e sólido compromisso com as artes e a cultura em nosso país – confirmando, ao mesmo tempo, seu decisivo papel de maior patrocinadora cultural do Brasil. Desde a sua criação, há pouco mais de meio século, a Petrobras mantém uma trajetória de crescente importância para o país. Foi decisiva no aprimoramento da nossa indústria pesada, no desenvolvimento de tecnologia de ponta para prospecção, exploração e produção de petróleo em águas ultra-profundas, no esforço para alcançar a auto-suficiência. Maior empresa brasileira e uma das líderes no setor em todo o mundo, a cada passo dado, a cada desafio superado, a Petrobras não fez mais do que reafirmar seu compromisso primordial, que é o de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Patrocinar as artes e a cultura, através de um programa sólido e transparente, é parte desse compromisso.

CULTURA E PENSAMENTO é um programa nacional de estímulo à reflexão e à crítica cultural. Desde sua primeira edição em 2005, seleciona e apoia projetos de debates presenciais e publicações. O objetivo do programa é dar suporte institucional e financeiro a iniciativas que fortaleçam a esfera pública e proponham questões e alternativas para as dinâmicas culturais do país. Em 2009, o Programa abriu a terceira edição dos editais para financiamento de debates e de periódicos impressos de alcance nacional. Os editais são abertos a propostas de intelectuais, pensadores da cultura, artistas, instituições e grupos culturais, pesquisadores, organizações da sociedade civil e outros agentes, visando à promoção do diálogo sobre temas da agenda contemporânea. Para ampliar o alcance das ações viabilizadas pelo Programa e favorecer a circulação das idéias e a continuidade das reflexões propostas, todo conteúdo produzido – em vídeo, áudio ou texto – é disponibilizado gratuitamente no site do programa (www.culturaepensamento.net.br). O site é a plataforma digital de difusão e estímulo a interações entre os participantes da Rede CULTURA E PENSAMENTO, sejam os realizadores de projetos, seja o público interessado. A edição 2009-2010 do Edital de Revistas do PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO tem patrocínio da Petrobras e é realizada pela Associação dos Amigos da Casa de Rui Barbosa. Este projeto foi contemplado pela seleção pública de revistas culturais do programa CULTURA E PENSAMENTO 2009/2010


ATENÇÃO CUIDADO COM O VÃO ENTRE O TREM E A PALAVRA

2 Paulo Bruscky nasceu em Recife, em 1949, onde vive e trabalha. Artista, ativista e renomado arquivista, Bruscky trabalha com diversas mídias, que incluem desenhos, performances, happenings, copy art e fax-art, arte postal, intervenções urbanas, fotografia, filmes, poesia visual, experimentações sonoras e intervenções em jornais, entre outras experiências.


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EDITORIAL

“Posso, sem armas, revoltar-me?” Carlos Drummond de Andrade - A flor e a náusea, em A rosa do Povo

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iante da obsessiva necessidade de nossa cultura, com vieses populistas ou não, de se “descobrir”, “colonizar” e “educar” o Brasil de modo que “Cada brasileiro terá sua casa/ com fogão e aquecedor elétricos, piscina”, Drummond, em tom irônico no poema Hino Nacional, em 1934 concluía que “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. Sim, já se concluiu, o Brasil existe, mas somente mediante o paradoxo de que nunca será apreensível, ainda que esteja em numerosos poemas desse que foi um dos seus maiores indagadores, e em inúmeros outros textos de intelectuais que se entregaram a essa tarefa, assim como em numerosos poetas contemporâneos que ora mapeamos de 2000 para cá percorrendo esse tema. Essas questões são aqui sugeridas a propósito do edital do Programa Cultura e Pensamento, do Ministério da Cultura, que está formando um grupo de revistas que circularão nacionalmente com 10 mil exemplares cada, em que BABEL obteve primeira colocação por sua proposta, em meio a 170 projetos, e cuja tarefa primordial, dessas publicações, será a de dar visibilidade de forma ampla à cultura que se faz neste país de modo precário e sem circulação expressiva. Será uma experiência valiosa também para provar a importância de mecanismos como esse do edital, que incentiva e reforça o trabalho dos escritores, artistas e produtores de cultura, ampliando as possibilidades de criação e de acesso a informação num país de numerosos analfabetos reais e funcionais que dão o expressivo número de mais de 75% de pessoas que não têm hábito de leitura. A exigência de que a revista tivesse uma entidade gestora do projeto levou BABEL à associação com o Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência, de São Vicente-SP, que atua visando à construção de uma sociedade equânime e sustentável por meio da promoção dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens e do desenvolvimento sociocultural e da proteção ambiental. Esse fato soma-se a outros como a proposta de mapeamento da cultura nacional, com presenças regionais, sugerida no edital, para definir os critérios que definirão o conteúdo das edições que se iniciam com esta pelo tema “Poesia na Era Lula”. A escolha do tema se deve ao fato de que, nos últimos anos, houve uma combinação notável e positiva de avanços sociais e econômicos que levou a uma ascensão notória da qualidade de vida em geral, especialmente para grandes contingentes de pessoas situadas na linha da miséria. Empresas estão crescendo, investindo e vendendo mais e exportando como nunca e até mesmo comprando outras fora

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do país. Trabalhadores vêm conquistando melhorias salariais e mais empregos, com uma inclusão social e econômica em larga escala dos cidadãos. Aliado a isso, um conjunto amplo de indicadores no campo da educação, saúde e habitação apresenta evoluções inegáveis. Ao mesmo tempo, amplificase o que o escritor e crítico Silviano Santiago definiu como “cosmopolitismo do pobre”, em que um grande contingente de pessoas, sobretudo jovens, tem circulado das periferias por todo o país – o Cooperifa, da zona sul de São Paulo, na área de literatura, é um ótimo exemplo – e o fenômeno se dá até mesmo para fora do país, como é o caso da Sinfônica de Heliópolis, composta por jovens músicos daquela comunidade que tocaram com o maestro israelense Zubin Mehta e, pela primeira vez, se apresentaram na Sala São Paulo, em despedida para iniciar turnê pela Europa. Colocada a questão para os poetas hoje, poderíamos indagar: como lidam com o nacional, o regional e o local? Como lidam com as fronteiras geográficas, culturais, lingüísticas, simbólicas? Como o país e sua cultura se mostram em seu trabalho? Em meio ao inevitável fluxo globalizante que tende à pasteurização uniformizadora de culturas e identidades, como se constituem locais de afirmação e diálogo e como o local se mostra e repercute na poesia? As questões são intencionamente provocativas à forma poética contemporânea, enleada majoritariamente num egocentrismo pernóstico, daí o desafio das edições, de mapear respostas. O espírito de BABEL, assim, é reiterado aqui: são privilegiados os poemas, sem interferência interpretativa, com uma mescla de textos e poetas radicalmente diferenciados que faz com que interajam uns com os outros durante a leitura, percorrendo os temas e as questões, sem a preocupação de que as respondam, antes, porém, que as indaguem, como é próprio da poesia. Elege-se, nesta edição, uma coletânea de textos selecionados dos livros publicados pelo Coletivo Dulcineia Catadora, de São Paulo, pelo que ele capta da gênese deste tempo a que nos referimos, repercutindo um movimento que se expressa na América Latina, nascido da crise através de uma solução que busca a simplicidade baseada em ideais comunitários e cooperativos, além de ecológicos e sociais, reforçando na poesia algo que sempre esteve entre os objetivos da revista, porém sem uma clareza tão explícita como ora se configura. A essa seleção somam-se poemas de outras fontes, ampliando o mapa, combinando-o com uma visualidade buscada por nosso editor gráfico nos próprios objetos-livros ou em artistas em que a poesia esteja presente. Boa leitura!

[Mais em: Drummond, Obra Completa, Editora Nova Aguilar, especialmente Brejo das Almas e A Rosa do Povo; Nenhum Brasil Existe – Pequena Enciclopédia, organizada por João Cezar de Castro Rocha para a Editora Topbooks; Silviano Santiago, O Cosmopolitismo do Pobre, Editora UFMG; e Raúl Antelo, Transgressão e Modernidade, Editora UEPG]


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ME ENTERREM COM MINHA AR 15

A rajada volta a soar como a onda da vida Fica frio... É só mais um número-fantasma na área... O urubu no esqueleto do leão escapando da arena... Quem atira é o pseudo-morto, meu irmão... Maluco... Acabou a munição... Foda-se, continuo atirando... Para cima... Beleza... é só isso... a fumaça que sai do cano e sobe até as nuvens... Laser no meu peito... Tá ligado... na seqüência... O coração... explode... e estou livre da boca que se abre pro mar... Quer saber... Morrer não dói... primeiro o tempo fica bem devagar... Tipo sonhando... Aí vem um clarão... Você vê o Morro por todos os lados... E então...

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BECKETT-CELULAR Vida Guerra atirou o recém-nascido do quarto andar e antes que aquele boneco do Farnese chegasse ao chão ele explodiu e de dentro do recémnascido saíram vários celulares com mp3 e câmera digital... antes que eles... os celulares tocassem o solo se transformaram em mendigos do futuro formados na PUC,USP,UNICAMP, MACKENZIE e etc... mendigos e outros fantasmas invisíveis... visíveis por 30 segundos por causa das 9.000 câmeras da Avenida Geral (Ex-Avenida Paulista) Um dos mendigos com mestrado em física antes de desaparecer ouviu o poema dizer: —Basta você não ter dinheiro para ser um fantasma invisível lendo isto ou —Basta você ter muito dinheiro para ser um fantasma vivo lendo isto. —Não há nenhuma indiferença disse o vento de 300 km por hora —Não nenhuma diferença disse o celular escondido dentro da buceta da menina de 17 anos que acabou de entrar no presídio-escola para foder sem camisinha com o interno FunK-Show que ela conheceu no msn-3.000 do Google-zone Ela vai ficar grávida... Ele vai desligar o celular... O ex-presidente vai mandar desligar os aparelhos... O presidente vai aparecer na tv digital de 11 milhões de canais... O mendigo que estava lendo Voltaire vai encontrar outro recémnascido no lixo... O ex-mendigo agora pseudo-terrorista simbólico vai escrever no muro do presídio-escola : ‘Não no Brasil... O Não no Brasil... O Não nunca no Brasil... Sem o nunca... Sim jamais no Brasil... Nunca no sim... O Brasil no nunca... sempre para o nunca... Amém!’ E aqui onde estamos ‘GANHEI’ foi o que ele disse para o ministro antes de cair... antes de cair na poltrona... do corpo do presidente saíram vários celulares e todos vibraram enquanto ele dormia num deles... o fantasma do ex-presidente tentava em vão falar com o presidente-fantasma... O ex-mendigo do meio do poema segurando o recém-nascido tirado do lixo disse como se rezasse: —Seja bem vindo GODOT!

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CADENZA DOS COMANDOS

“Este jogo cômico e bruto quando há de acabar?” – Baudelaire

“Enquanto crianças morrerem de fome, dormirem na rua, não tiverem oportunidade de uma alfabetização, de uma vida digna, a violência se tornará maior. As crianças de hoje, que vendem doces no farol, que se humilham por esmola, no amanhã bem próximo, através do crime, irão com todo ódio, toda rebeldia, transformar seus sonhos em realidade, pois o oprimido de hoje será o opressor de amanhã. O que não se ganha com palavras se ganhará através da violência e de uma arma em punho. Nossa meta é atingir os poderosos, os donos do mundo e a justiça desigual... Se iremos ganhar essa luta não sabemos, creio que não, mas iremos dar muito trabalho, pois estamos preparados para morrer e renascer na nossa própria esperança de que nosso grito de guerra irá se espalhar por todo o País... SE TIVERMOS QUE AMAR, AMAREMOS; SE TIVERMOS QUE MATAR, MATAREMOS.” Misael da Silva, carta escrita em 1995

“O importante de tudo é que ninguém nos deterá nesta luta porque a semente do Comando se espalhou por todos os sistemas penitenciários do Estado e conseguimos nos estruturar também do lado de fora... Conhecemos nossa força e a força de nossos inimigos. Poderosos, mas estamos preparados, unidos e um povo unido jamais será vencioo.” [Fonte: Revista Caros Amigos de 28 de maio de 2006]

É óbvio que preferimos os projéteis de Baudelaire a ver nos túmulos esse uroboro invertido o dragão de setecentas asas e três cabeças movendo sua cauda nos presídios... nas paredes reina no fantasma de Hamurabi.. as unidades prisionais são um átomo do hades... ali os netos dos sobreviventes de canudos tomam duas goras de sol cada e transformam a lágrima

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em faca.... um leu a arte da guerra um Maquiavel por dentro? Outro nunca leu nada só ‘amor-de-mãe’ na pele lápide... lá fora o insolúvel respira... a sociedade contra o social é a U.T.I da alma... uma reação ao insolúvel: os comandos são o seu duplo incômodo (o medo empresarial montado na besta do estado Janta sossegado...) num canto do campo de concentração o poeta enterrado pensa no escuro... da cauda do dragão sai um anjo de trezentas cabeças e oferece um cigarro outro lado do styx... começa o iso 9000 do arrastão... escrito nas nuvens... a cauda do dragão reescreve a cartilha do I.R.A; na cela com os fantasmas de canudos... aqui fora um presídio simbólico ofuscado pela moral do espetáculo? agora a seleção dubla o hino num filme estático o poeta enterrado canta junto...cantam as AR 15... as bombas caseiras... os ônibus incendiados... o canto ecoando num terreno baldio e lá no alto outros anjos cantam o huno do fogo e o huno da terra enquanto penso na quietude voraz dos cemitérios onde reina a paz dos ossos...ali o comando dos comandos acaba com o jogo que separava um presidiário e um policial de um poeta...

[escritor, nasceu em Santos e mora em Cubatão, vive da venda intinerante de livros; poemas de Me enterrem com a minha AR 15 (Scherzo-Rajada), Dulcineia Catadora, 2007; mais em www.teatrofantasma.blogspot.com; www.ouopensamentocontinuo.blogspot.com e na www.revistacriterio.nom.br]

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1 Inclinando-me sobre a

e o homem carregava

árvore assassinada e fria

na perna uma grangrena. Voltando ao local do pesadelo

beijei-lhe a extremidade avistei oito homens junto mais larga e ainda que a uma carroça de muitas rodas não a envolvesse totalmente medindo com entranhas apertei-a longamente como se fitas métricas toda a abraçasse minha mãe extensão da árvore morta ainda viva. e antes que eu lhes perguntasse o que faziam Desesperado por ter furiosos criticaram com encontrado no chão longos uma árvore morta serrotes nas mãos busquei socorro na a minha presença. primeira porta mas foi em vão pois a mulher que eu via não tinha os olhos

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2 Quem poderá me destruir

Alimentam-se do que

mais que os fiscais da prefeitura?

esses ímprobos

Que taxa de conservação municipal

além das subtrações violentas?

é essa, exorbitante, perversa,

Onde colocam seus

paga por mim com

olhos de lince

cédulas do estrangeiro sem comprovação

quando seus filhos ou amantes

do recebimento observam-lhes os rostos? e sem carimbo de órgão público? E mortos, quem lhes prestará honras Por que permitimos que com flores esses larápios sejam convertidos em seus túmulos em servidores públicos e salvas de palmas e discursos servidores do povo afora os seus comparsas? quando nada mais são que achacadores egressos do inferno?

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[poeta e declamador paraense radicado em São Paulo desde 1972, curador da Quinta Poética, que ocorre toda quinta-feira na Casa das Rosas, SP; poemas do Livro obsceno, Dulcineia Catadora, 2008]


PRIMAVERA

Imóvel à venda – Em meio ao mato que cresce miosótis florido.

VERÃO

1 Barraca na praia – Turista de pernas brancas e nariz vermelho.

2 Portão de escolinha – Rei Momo chega chorando no colo da mãe.

[filha de imigrantes japoneses, haicaísta nascida em Pereira Barreto-SP, fundadora do Grêmio de Haicai Caminho das Águas, de Santos; poemas de Vento Leste, Dulcineia Catadora 2008; mais em: http:// www.kakinet.com/caqui/aguas.htm]

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DIÁRIO DO ENTORPECIMENTO CAP. XIII, VERSÍCULO UM ZILHÃO E NOVECENTOS

...flores depois do baile, ainda na calle... enrosco no taco, mais um tango para gastar a manteiga que seria dos futuros croissants... ela aurnenta o “sonic youth”, você gostaria de pensar que é imune a essa coisa que O POETA registrou em cartório, pobre bebê, com nome de Amor, Amor da Silva Xavier, seja homem, monstro ou mulher. Amor Smith da Conceição, Amor burguês com sobrenome e bons modos, pra cima de mim, não, não adianta deixar o bebê Amor na porta, nem na lata do lixo, muito menos disfarçado no cestinho de Moisés que escorre todo dia no corregozinho aos pés do grande Jordão da culpa, do grande oceano das ressacas e de todos os afluentes do tsunami-sorry. Nem vem que não adianta amplificar o “sonic youth” para competir com o sabiá histérico que bica os farelos da manhã de domingo quando eu ainda cismo com as merdas que cagamos um pro outro ontem à noite sobre o jornal da nossa gaiola. Mi corazon, pobre involuntário, ainda recita algo como a canção do beco de William Blake, doces sorrisos da passagem balançam sobre meu terno deleite da pista, a vida-bicicleta, aros e rodas, pede sussurrando com jeitinho, implora: se parar cai, mi viejo safado, se vais envelhecer q seja sem nenhuma dignidade, as flores na garrafa torta de vinho guardam nosso sono de costelas-araldite, sueños-super-bonder, peixinhos vermelhos, betas do mangue q virou caçamento, rumble fish no aquário da melhor das nuestras noches desde que anaxágoras, esse proparoxítono das antigas, descobriu as fases de la luna caliente, dorme meu anjo que teu vira-lata, perro callejero, vigia as fronteiras da suposta realidade, é, esquece, esqueço, se não fosse amor já era... nem tinha almoço de domingo.

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AUTO-AJUDA PELO MÉTODO WONG KAR-WAI

suar o amor correndo no parque, como sugere zed, corrida e leonard cohen no ipod, amor é água, sopra o policial em bicas dos “amores expressos”, a película chapa 1994 de wong karwai, o cara de shangai e hong-kong, aquele mesmo do “amor à flor da pele”, no qual os vestidos e a fumaça dos cigarros falam mais do que todas as línguas de pentecostes; suar como o personagem derretendo-se em água e vapores do outro lado do mundo, como a garçonete maluquete que chacoalha juízo e esqueleto à base de um “california dreams”; a mocinha linda e sound system, sabor gengibre, marinados corazones ao molho de ovas esfarinhadas de peixe amarelo; suar o amor e sair voando pela janela de bicicleta ergométrica; suar no ibirapuera e no parque da água branca suar de novo as redundâncias amorosas todas; suar num estirão do pina ao terminal de boa viagem; suar de olinda ao janga; suar do leblon ao arpoador sem distrair a vista com as bundas, assim não vale, perde o sentido a mandinga; suar os amores líquidos e as represas dos amores do passado; suar uma baía de guanabara de amores em cardumes e mais uma lagoa rodrigo de freitas de olhos de peixes mortos; fazer chover por todos os poros o amor que fica, o amor platônico e o amor de pica; suar o amor com uma sopa de feijão bem quente, seis horas da tarde, no hellcife de todas as glândulas; suar o amor em teresina, com um prato de capote ao molho ou uma fina iguaria de beth cuscuz; suar, amigo, a derrama das nódoas por dentro, suar no pedalinho, mas nada de suar para perder peso ou por esporte, falo suar, por enquanto, para limpar-se dos amores sem futuro. A gente se vê, quem sabe, em 2046.

[ jornalista, nasceu no Cariri-CE e foi criado no RecifePE, vive em São Paulo; poemas de Tripa de cadela & outras fábulas bêbadas, Dulcineia Catadora, 2008; blog: http://carapuceiro.zip.net/]


NOTÍCIA DE JORNAL

Foi encontrado morto José da Silva Brasileiro

Era envolvido com a falta de educação

Em sua residência debaixo do viaduto

Comércio de latinha

Na rua Treze de Maio esquina com a Brigadeiro

Puxava uma droga de carrocinha Era o rei do papelão

Aberto inquérito na polícia Comovido um latifundiário Constatou a perícia Doou sete palmos de terras improdutivas Um vazio no abdome Para no enterro ser solidário Homicídio, suspeita-se da fome Em nota a igreja já se manifestou Fome é crime federal Sua alma não ficará ao léu Já se fala em CPI Crente que encontraria com Deus No Congresso Nacional Já havia adquirido um terreninho no céu Detectada a participação de empresários Indignado o presidente expressa comoção Do setor de laranja E anuncia a liberação de verbas Que para os banqueiros dão canja Para que alguma ONG providencie seu caixão Enquanto dão sopa para outros milionários

As investigações levam a crer Que ele tinha passagem pela polícia Pois possuía RG

[professor de educação física da rede pública do Estado e do Município de São Paulo; poema de Um Sarau da COOPERIFA – Coletânea de poemas recolhidos no sarau de 24.1.07, Dulcineia Catadora/ Eloísa Cartonera, 2007]


CATADOR DE PAPELÃO

Evézio era um catador de papelão Andava com sua carroça, subindo e descendo ladeiras quase sempre na contramão Madrugada, manhã e tarde ele não descansava Lixo, papel e papelão são o que as ruas lhe oferecem Às vezes umas latinhas Na Barra Funda almoçava um picadinho No Bexiga tomava uma pinguinha E ia vivendo desse subemprego Às vezes Evézio pensava que o melhor a ter feito era ter ficado em Petrolina Em cada esquina que dobrava, um novo entulho em volta do postinho Quando passava pelo centro velho, tinha dó das criancinhas viciadas em pedrinhas Na sua velha cama, Evézio lê a sua velha bíblia, e faz as mesmas orações pelas perdidas [criancinhas]

[poemas de Um Sarau da COOPERIFA – Coletânea de poemas recolhidos no sarau de 24.1.07, Dulcineia Catadora/Eloísa Cartonera, 2007; blog: http://www.robson-canto.blogspot.com/]


SABOTAGE (O INVASOR)

Apontava sempre para a periferia. A rima era o rumo

Mauro

O remo da sina.

Era um negro de asas.

No ar,

Um pássaro

Como fumaça de fumo

Com pés no chão.

E vermelha retina

Som de ébano

Era frio,

Com pele de couro,

Era quente,

O mouro fez ninho no canão.

Mas nunca banho-maria.

O passado,

Um dia,

Que o futuro queria

Num voo curto,

Escrito em carvão,

Depois de um longa metragem,

Deixou de ser pó

Um disparo sem rosto,

Pra ser pão,

Uma bala sem gosto

Ao se viciar em poesia.

Calou o personagem.

O poeta

Diante disso,

De plumas negras

E sem nos esperar,

E a voz de pedra

Desfez o compromisso,

Cravou teu canto

Seguiu de viagem,

Preto e branco

E foi cantar em outro lugar

Nas vidraças

Num bom lugar.

Do mundo colorido. Filho banto, Em carne e carcaça Serviu a taça Com vidro moído Aos traidores da raça Navegante De mares insolente, Sua bússola

[poema de Um Sarau da COOPERIFA – Coletânea de poemas recolhidos no sarau de 24.1.07, Dulcineia Catadora/Eloísa Cartonera, 2007; mais em: http:// www.colecionadordepedras1.blogspot.com/]


OUTROS 500

O que chamam de descobrimento Eu dou por invasão O que chamam de conquista Eu dou por destruição O que chamam de encontro Eu dou por extermínio O que chamam de civilização Eu dou por latrocínio O que chamam de religião Eu dou por uma desculpa E o que chamam de tragédia Eu dou por nossas vidas.

[poema de Um Sarau da COOPERIFA – Coletânea de poemas recolhidos no sarau de 24.1.07, Dulcineia Catadora/Eloísa Cartonera, 2007; blog: http://efeito-colateral.blogspot.com/]


SONETO DAS TROUXAS DOS TROUXAS [748]

SONETO DA IDADE TERCEIRIZADA [815]

Um bando embandeirado dos sem-teto

Velhinhos encontrados num asilo

ocupa um edifício abandonado.

em triste condição, num promotor

Instalam-se as famílias. Lado a lado,

despertam choque e raiva. Em seu favor,

convivem rosto e pé, rango e dejeto.

a mídia mostra aonde chega aquilo.

Cubículos estão onde o seleto

Doente, um chora e geme. Em vez de ouvi-lo,

e vasto condomínio foi lembrado.

os outros, sem colchão nem coberto,

Até o momento ausente, agora o Estado

se espalham pelo chão. Paira o fedor

se mexe, cerca o prédio, aflito, inquieto.

de merda e mijo. O rato anda tranquilo.

Os novos moradores barricada

A casa de repouso era, por fora,

constroem, se entrincheiram e resistem

mansão toda cercada de arvoredo

até que o hostil bloqueio os dissuada.

e tinha um ar do lar de quem lá mora.

Por fim seus dados deixam que se alistem

Depois de aberta ao público, dá medo

na fila das promessas vãs, e cada

e deixa uma impressão de que vigora

sem-teto sai sem rumo. Outros assistem.

em toda parte o quadro amargo... e azedo.

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SONETO COMERCIAL [897]

SONETO DIALÉTICO-DIETÉTICO [1016]

Naquele shopping center tem de tudo:

Atrás do restaurante, rente ao muro

revólver imitando os de verdade,

do beco, em latões altos se acumula

carrinho-miniatura, anel que agrade

o lixo e, ali por perto, perambula

ao dedo mais graúdo e ao mais miúdo.

um velho, a revirar cada monturo.

Sofá forrado em couro ou com veludo,

Enquanto alguém, lá dentro, o azeite puro

vitrines exibindo, em variedade,

derrama na salada e cede à gula,

o tênis do rapaz cujo pai nade

na lata um fruto aguarda quem o engula

em grana e que não gaste só no estudo.

e há muito está passado de maduro.

Da praça das comidas sobe um cheiro

Por entre insetos move-se a cinzenta

moderno e irresistível de batata

e gorda ratazana, e fartos restos

assada ou frita, além do pipoqueiro.

misturam-se, da almôndega à polenta.

Dos óculos escuros, há o que bata

Ninguém diz, nem nos lares mais modestos,

no preço dum diamante verdadeiro,

que mal e porcamente se alimenta,

mas meu bolso com eles não empata.

malgrado os esquerdistas manifestos.

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SONETO DA NOITE SEGUINTE [1242]

A praça cheira a mijo. O lixo está jogado pelos cantos. Madrugada adentro, o vento é gélido e, ali, nada indica que o local sagrado é já.

Ao fundo, está o mosteiro antigo e, lá, deserta agora, a gótica sacada de cujo parapeito era lançada a bênção que aos fiéis o Papa dá.

Mendigos perambulam, à procura Deus sabe lá do quê! Se afastam quando, de longe, alguém avista a viatura.

O carro da polícia passa. Em bando, retornam os sem-teto. Em frente à escura fachada, fica um bêbado cantando.

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SONETO DA MOTO CONTÍNUA [1453]

SONETO DA COLETÂNEA SELETIVA [1473]

Ligeiro, esse veículo que, em meio

Enquanto, na Argentina, é “cartonero”,

ao trânsito, as cidades atravessa!

chamado é, no Brasil, de “catador”:

Mas sofre o motoqueiro, com receio

a crise social deu-lhe o tempero

dos carros, e correndo risco à beça...

da popularidade e a local cor...

O moto-boy que, rápido, nos veio

“Alheios à cultura” é um exagero

trazer uma encomenda, mais depressa

dizer de quem está nesse setor,

ainda leva o próximo correio

pois basta olhar o livro, com que esmero

rodante, sem bloqueio algum que o impeça...

trabalha o artesanato de o compor...

Às vezes, na garupa vem o cara

Do lixo, o papelão é reciclado,

que dá-lhe cobertura e que dispara

mas poucos percebiam esse lado

se, lá no carro, a vítima resista...

artístico da caixa desmontada...

Porém o mais comum é, no acidente,

Agora, a poesia se publica

ser vítima o rapaz que, de repente,

com capa em material que a faz mais rica

se vivo, não será motociclista...

que a rima que se cata, uma de cada...

[pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva, nascido em São Paulo, alusivo ao glaucoma congênito que o cegou; marcadamente irônico, fescenino e escatológico, Glauco usa o soneto como principal meio de expressão; poemas de A bicicleta reciclada, Dulcineia Catadora, 2008; mais em: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/]

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PERNAMBUCANO PAULISTANO

MAIS PRAZER ENCONTRO EU LÁ

cada são paulo a que retorno

morar em são paulo

toca tanto que é ruim

é viver em fuga

na marginal eu quase choro

cidade escapista

só porque me sinto vir

essa sem praia

pernambucano paulistano

megavila

como tantos por aqui

provincianópole oxímoro máximo

tenho-a minha toda e tanto

capital do interior

que não a posso possuir a alegria começa como promessa de norte utópico

quando a estrada atravessa o trópico

[professor, poeta, promotor cultural nascido no Recife e radicado em São Paulo; poema de SigniCidade, Dulcineia Catadora, 2009; mais em: http://fredbar. sites.uol.com.br/]

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MEDITAÇÃO

A terra com suas estranhas gargalhadas desperta a impossibilidade. Uma cidade no escuro. O futuro é poeira. Sonho de amanhã que o vento leva além das margens e dos mangues.

[arquiteto, poeta e artista plástico nascido em São Felipe-BA; poema de Malabarismo das Pedras, Dulcineia Catadora, 2007; mais em http://www. expoart.com.br/almandrade/]

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POEMA BRECHTIANO PARA UM 31 DE MARÇO ESQUECIDO

o sono dos justos a noite é clara os filhos aprendiam a diferença no terreno baldio entre o sereno e o gatilho uma centena de jovens entre o pequeno e inútil gesto de bravura que mal batem à máquina de escrever e a fuga daqueles que acenderam a pólvora. esperam armas de fogo, o combate

que não acontecerá.

nunca mais os ônibus circulariam daquela forma com aquela ansiedade

a cidade-monumento, a cidade-estátua

de quando conduziram os combatentes aos seus lares,

a cidade-mármore após deporem a munição inexistente. não foi feita pensando nisso e se cobrirá de esquecimento. a cidade respirou aliviada vencedores e vencidos partilharam o butim. mas naquela noite provavelmente depois de um dia chuvoso quando os pais rezavam ou simplesmente dormiam

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mas não se negará que houve heroísmo nesta história.


INSIDIOSA ALEGRIA À BEIRA-MAR & UMA PROMESSA DE ESQUECIMENTO

1. Sereias Estereofônicas

2. Espinho não machuca flor

Eles me querem todo-ouvidos,

Me lembro de um cara

invadir a lucidez, o que dela me restou,

dando tapas na barriga dela e dizendo

fazer-me translúcido ao seu bombardeio de ruídos.

este filho ainda a ser concebido vai ser meu! E era um fim de noite todos de ressaca

Gritos entrando para dentro, esvaziando o pensamento, pleno de barulhos criados em suas máquinas de ensurdecer,

depois do bombardeio das sereias barulhentas e risonhas, desgrenhadas sereias que naquela hora já dormiam em seus ninhos.

de inocular a alegria insidiosa. Me lembro de um cara Eles não querem que você me escute, que eu te ouça.

apertando o rosto dela com as mãos

Eles interpõem sua muralha de barulhos

como se fosse uma sanfona ou pior um fole.

entre tua boca e meu ouvido.

A noite apenas começava

Eles nos querem calados, atônitos,

o calor subia dos paralelepípedos como um vapor

bonecos fantasmas insones. e o que subia junto eram as falsas promessas As sereias se cansaram de esperar

sem as quais a noite seria trancada a sete chaves.

e arrombaram nossas portas a pontapés,

Me lembro de um cara

carregando auto-falantes e fones de ouvido,

colocando de propósito a música dela predileta

pousaram com suas garras de aves de rapina

na praça no meio dos bêbados.

sobre o que restou de nossos pensamentos.

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Era fim de tarde o sol já tinha sido afugentado pelas batucadas na praia já tinha sido insultado trabalhando como escravo para os vendedores de cerveja e água de coco.

Me lembro de um cara dizendo pra ela meninos de rua deviam ser espancados. Era meio-dia as pessoas já não tinham sombras onde esconder os olhos as coisas não tinham perspectiva tudo estava parado e o vento era claro e ofuscante brilhando as carcaças de caranguejos na areia.

Ah musa ridícula – a manhã em pílulas clama pelo esquecimento.

[historiador nascido em Brasília, mora em Campinas; poemas de Matéria-Prima, Dulcineia Catadora, 2007; mais em: www.linguaepistolar.blogspot.com]

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CONDIÇÃO PERENE nas cheias

PORNOGRAFIA BRASILEIRA

madrugada

o rio comanda o espetáculo três meninos e as margens são apenas ajeitam seus lençóis degraus para o leito mais fundo de sacos e jornais nas secas o rio é a margem

no mercado público de mangabeira

chove MERCADO CENTRAL DE JOÃO PESSOA são tristes as folhas murchas do repolho que um homem faminto não pode comer [nasceu em Jaguarão-RS e reside em João PessoaPB; poemas de Aos predadores da utopia, Dulcineia Catadora, 2007; mais em http://poesia-sim-poesia. blogspot.com/]

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DIGNIDADE OU NADA!

A rua tem fases

Muda-se de opinião.

A rua tem faces

Que adianta uma casa com aluguel por pagar

política da heterogeneidade

contas atrasadas, luz e água vencidas a imobiliária cobrando, logo cedo,

Se chega à rua por vários motivos,

o proprietário batendo à porta.

se cai e se levanta em proporção desigual.

A vergonha, a sede, a escuridão,

Por um tempo se quer sair do relento,

a promissória, o salário baixo, inflação,

voltar pra um teto, um lugar

deflação, cartão de crédito, celular,

com telhado e chuveiro.

caixa postal, boleto, a multa.

Um quarto é sempre um quarto,

Depois que se joga fora a chave da consciência,

saudades de uma cama arrumada.

nada mais importa. Política pública na rua tem de começar por

Nas primeiras noites de rua ainda se sonha,

lazer,

sucesso, oportunidades, portas de saída,

tem que mudar a metodologia, educação e

arrumar emprego, roupa nova,

cultura,

ter um lar, uma moradia.

tem que investir na arte da alegria e paz pra depois reivindicar trabalho, moradia, renda,

Do segundo mês em diante

habitação.

vai chegando o comodismo daqui e ali,

Que quem tá na rua tá de saco cheio de

vem a decepção, de tanto ouvir Não.

promessas vãs,

A calçada fica macia, a grama áspera,

de ofertas medíocres, medidas paliativas,

o chão vira almofada, o papelão que cobre o corpo demagogia qual escravo liberto. é também o lençol, o cobertor, o colchão, o estresse, a depressão e o medo vencidos.

Quem mora na rua não quer voltar pra senzala.

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[nascido em Assis-SP, foi morador de rua, escreveu a peça Bonifácil Preguiça, encenada por moradores de um albergue, em 2005 passou a assinar a coluna Direto da Rua no jornal O Trecheiro, dedicado à vida nas 29 ruas, escreveu Diário de um Carroceiro e escreveu e dirigiu cenas de um filme sobre catadores; poema de Cátia, Simone e outras marvadas, Dulcineia Catadora, 2007; mais em http://www.rederua.org.br/]


PUNK TROPICAL OU DADÁ-BANANA

§ A indeterminação das estações. A sensação (e subseqüente medo) de pertencer à periferia gerando a sede por inovação. Os debates internos exigindo o entrincheiramento de partidos opostos, divididos entre o positivismo das instituições políticas, controladas por uma elite que ainda anseia pelo Norte, e o misticismo das misturas de contextos lingüísticos e religiosos de partes distintas do globo. Porém, as investigações de uma identidade nacional sempre espelhadas em conceitos de homogeneidade cozidos na Europa, onde tais noções de nacionalidade unitária e monolítica são igualmente fictícias, ainda sofrendo e impondo a tentação do homogêneo.

§ As tendências em experimentação artística no território conhecido como Brasil têm se mostrado, freqüentemente, à direção de borrar fronteiras e aterrar trincheiras, onde artistas sempre tiveram que se manter atentos às separações: entre classes, entre sexos, entre raças. Borrar fronteiras, aterro de trincheiras. Se a denúncia da falsidade do mito de Gilberto Freyre para uma democracia racial tornou-se claramente necessária, nunca foi mais inexeqüível a urgência da luta por sua conquista. Assim, em um país onde o conceito de miscigenação foi eleito pelo modernismo como mito fundador, e onde a única trilha possível para artistas em uma sociedade dividida tornou-se a guerrilha pelo colapso de dicotomias como cultura erudita e popular, o conceito de Pop jamais mostrou-se essencial: esta já era a inclinação natural, muito antes dos anos 60.

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§ Por instinto ou não, a escolha de resistência vinda da arte no Brasil foi o caminho de resistência interna. Se Adorno via a recusa da realidade e fuga ao sublime lírico como forma de revolta política, que expulsaria do trabalho artístico tudo o que o artista considera detestável na realidade em redor, podemos contemplar também, nos últimos cem anos, a escolha proposta, entre outros, pelos dadaístas: a estratégia de guerrilha cultural, sabotagem de sistemas, arte como vírus, que somente mostra-se eficiente dentro do organismo. Como a banda Secos e Molhados cantou nos anos 70: “E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mole que resiste”. Para artistas vindos de áreas como a América Latina, onde são constantemente obrigados a enfrentar a questão de identidade (ilusão de centro vendida por ideologias políticas européias, onde já causaram tanto derramamento de sangue, e mesmo assim comprada por nosso modernismo), isto apenas traz novas responsabilidades. Mas, enquanto na Europa a consciência política exige o expurgar de nacionalismos, na América Latina este mesmo nacionalismo é decretado obrigação política para os conscientes da posição econômica e social do continente no mundo, e a opressão que se sente vir do Norte.

§ Estes, os dilemas. Do manifesto modernista de Oswald de Andrade (Tupy or not tupy that is the question), declarando a morte de um padre português por indígenas e sua assimilação pelo ritual antropofágico como o ritual de nascimento da nação, apesar do anti-épico de Euclides da Cunha, à releitura de Pablo León de la Barra e sua proposta (Make your enemy eat you), temos décadas de diálogo artístico em que luso-brasileiros e hispano-


americanos enfrentaram os mesmos questionamentos e dilemas de quaisquer artistas de outras nacionalidades, mas com a responsabilidade de respondê-los a partir de suas próprias perspectivas. E muitos uniram-se às filas de antiinstitucionalistas e, mais importante, interventores culturais que se tornaram ativos desde que o Cabaret Voltaire foi instalado em Zurique e primeiro urrou-se DADÁ em 1916. É em tal contexto de resistência política que se torna necessário analisar interventores como Oswald de Andrade, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Tom Zé, Glauber Rocha, enfrentando os mesmos dilemas culturais e necessidades de resistência de Dadá, Pop, Fluxus ou Punk, aos quais adicionaram várias responsabilidades políticas. É neste contexto e histórico que podemos entender as atividades de interventores, por exemplo, como Bruno Verner e Eliete Mejorado do Tetine ou Eli Sudbrack como assume vivid astro focus, em um clima cultural em que brasileiros não apenas enfrentam questionamentos de identidade, mas também expectativas que o resto do mundo desenvolveu em relação a esta identidade, abrindo espaço para o artista brasileiro desde que ele esteja disposto a seguir o papel já designado para ele por esta expectativa internacional.

§ O trabalho de um punk tropical permanece o de borrar fronteiras, aterrar trincheiras.

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[nascido em Bebedouro-SP, mora em Berlim, é DJ, tradutor, co-editor da revista impressa Modo de Usar & Co. - http://revistamododeusar.blogspot.com/ e da revista eletrônica Hilda -http://hildamagazine.com/; mais em: http://ricardo-domeneck.blogspot.com/]


ONDE TERMINAM AS PRECES

Versículo 12 Eis que me vejo pisando em terras sem lei. Na fronteira exata entre o céu e a insanidade. Caminhando por escombros que exalam um forte odor de fezes humanas. Debaixo do céu da parte arruinada e obscura desta poderosa megalópole. Eis meu reencontro com lugares onde as perversões mais hediondas habitam. Onde a violência é a única linguagem: a linguagem das ruas. Este é meu perigoso vagar por ruas onde o Jazz não existe, mendigos descansam em paz e prostitutas psicóticas de topless te ameaçam com navalhas enferrujadas. [meu pensamento diz] É, cara, onde você foi parar? Reza pra ter asfalto suficiente pra te levar até aquele retângulo de luz, no final desse túnel interditado pela C.E.T..

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Versículo 13 Tentando não cair no fundo daquele poço urbano, continuei andando sentido “qualquer lugar de São Paulo”, sob as trevas de um túnel escavado por minhocas de aço. Avistei adiante dois travecos em formato de vultos sombrios que faziam o túnel de motel e o asfalto de cama. Um deles perguntou se eu queria entrar no “trenzinho”, mas apenas respondi com mofa: “meu vagão é de ouro e não o coloco em qualquer merda de trilho arrombado”. Fiquei aliviado por saber que os vultos eram apenas duas garotas-vírgula, troca-troqueando no asfalto frio, e não demônios que anunciariam minha hora e me levariam para o inferno (como eu pensava) – a família brasileira que passa de carro por ali durante o dia, nem deve imaginar que durante as madrugadas, aquele solo torna-se palco de orgias depravadas. Tudo o que sei é que as madrugadas quentes na terra da garoa, ouriçam o que há de mais fétido, nas almas decompostas que perambulam sobre as calçadas da capital (isto é fato). Mas nem ligo. Pois a noite é minha, a festa é nossa, a cidade é de todos e nada neste esgoto a céu aberto me incomoda. Nada.


Paulistânia Capitulo 2 Versículo 1 Durante aquela madrugada, no canteiro central do chamado “minhocão”, a fumaça nos elevava e ia de encontro ao concreto dos prédios sem alma e depois se perdia na densa atmosfera. 1:23 da matina de um sábado quente que encerrava o último dia do horário brasileiro de verão. Mochilas no chão. Suor na testa. Fogo na bomba e milhares de janelinhas que viam a cidade ser nossa enquanto nos “elevávamos”. Ali, da baixa mureta, pode-se ver a luxúria equilibrando-se em saltos agulha e expondo sua carne apetitosa nas vitrines prostituídas da calçada da infâmia. – Preços a negociar (Nas ruas da indústria informal do prazer, deus é sim uma nota de cem). Deus abençoe estas pobres almas pecaminosas que sobrevivem num lugar onde as preces não são ouvidas simplesmente porque elas nunca começam. Elas já nascem mortas. As preces foram abortadas com pedaços de cabides intra-uterinos e o feto daquela noite que um dia seria uma criança, transborda lentamente em alguma privada de motel.

[músico, web-designer, escritor, produtor musical, vocalista, nascido em São Paulo; poemas de Meu Doce Valium Starlight, Dulcineia Catadora, 2007; mais em http://maicknuclear.wordpress.com/]

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O

Coletivo Dulcinéia Catadora faz livros com capas de papelão vindas do lixo, comprado de catadores e papel reciclado, em oficinas de aprendizado de arte, com a participação de artistas, escritores, catadores de papel e seus filhos. Participam das oficinas adolescentes em situação de risco, morando em abrigos de menores e pessoas com problemas mentais. O coletivo trabalha em sistema de cooperativa em uma sala de 15 metros na Vila Madalena, em São Paulo, envolvendo cerca de dez pessoas. Projeto gráfico, pintura de capas, montagem de livros, tudo é feito artesanalmente por esses meninos, que integram a equipe e são estimulados a estudar e se aperfeiçoar em cursos como editoração eletrônica. O trabalho é coordenado pela artista plástica Lúcia Rosa e vários escritores colaboram na seleção de textos e/ou divulgação do trabalho. Suas atividades começaram em fevereiro de 2007 motivadas pelo papel social, cultural e político da arte. Seus objetivos são a valorização social e a inclusão dos catadores, procurando abrir novas possibilidades de atividades profissionais e desenvolver o potencial artístico dos participantes. As atividades no ateliê, que visam também gerar renda para os jovens envolvidos, promovem a autoestima, a troca de experiências e estimulam o prazer de criar. Na seleção de autores, a preferência é por textos de caráter social e político. A irreverência, o questionamento de valores sociais, o tratamento

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de temas ainda considerados tabus são outros aspectos presentes na maioria das obras publicadas pelo projeto. Autores renomados, como Manoel de Barros, se somam a pessoas às vezes em situação de rua, que dificilmente teriam chance no mercado editorial, mas que podem se expressar por esses livros. Dulcinéia Catadora integra a rede de selos cartoneros na América Latina: além do Eloísa, na Argentina, existe um núcleo no Peru, o Sarita Cartonera, o Yerba Mala na Bolívia, Yiyi Jambo no Paraguai, Animita no Chile, La Cartonera no México, entre outros núcleos que já chegam a quase 20. Esses projetos, muitas vezes associados, abrem a possibilidade de divulgação de escritores por toda a América Latina. Trabalham na contramão do mercado editorial, trilhando caminhos paralelos na história da literatura latinoamericana. As coleções de livros têm sido solicitadas por bibliotecas européias e norteamericanas, evidenciando que se tornou um fato social e cultural importante neste cenário de globalização econômica, pasteurização de culturas e marginalização de imensos contingentes de pessoas, entre os quais artistas e escritores que primam pela reflexão desse contexto. Mais que apenas criar um espaço que, na prática, e pelos meios escolhidos, faz a crítica ao sistema econômico e social vigente, esses projetos captam a gênese da contemporaneidade, repercutindo um movimento que se expressa na América Latina, nascido da crise através de uma solução que busca a simplicidade baseada em ideais comunitários


e cooperativos, além de ecológicos e sociais. Não se trata apenas de questionar a relação da cultura com a economia, mas sim construir uma outra economia que apela à simplificação para a obtenção rápida e barata de resultados, possibilitando a circulação de idéias e o contato direto com o público leitor. Baseada na informalidade, essa experiência se preocupa mais com a interatividade pessoalizada, com o que se contrapõe ao mercado formal composto por editoras comerciais, lentas, inatingíveis, distantes do real que não seja o Real e situadas numa virtualidade impessoal que transforma seus autores em produtos.

Contatos: dulcineiacatadora.pedidos@gmail.com Rua Padre João Gonçalves, 100 Vila Madalena SP Telefone (11) 81 98 0252 Para mais informações, consulte: - O site do Coletivo: http://noticiasdacatadora.blogspot.com/ - Entrevista com Lúcia Rosa: http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=1014 - Notícia na Folha de S. Paulo de 15/07/2009, “Editora que usa papelão para confeccionar livros já publicou obras de Xico Sá e Manoel de Barros”: http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ ult10082u591879.shtml

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Um novo selo cartonero Além do selo Dulcineia, em Florianópolis há o Katarina Kartonera [katarinakartonera. wikidot.com], formado por estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina. E aguarde, em breve, o selo de BABEL, Sereia Ca(n)tadora, que será lançado com o Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência.


Paulo de Toledo (SP)

LUTA DE CLASSES

GLOBALIZADO

no chão um cego esmoler imundo pede uma moeda pro mendigo e ele: vai trabalhar vagabundo

a tv o mendigo olha na tela o reflexo dele desculpem a nossa falha

SUÍTE

MAPA

o mendigo num baita temporal mija no poste e de sua casinha burguesa um cão ri desdenhoso: au-au

com os pés na areia e na mão um panfleto ensinando como evitar o bicho geográfico o mendigo desenha o mapa do brasil com o dedão

PRÊMIO ACUMULADO sujo duro azarado e com fome ante a lotérica “a sorte te ama” o mendigo sonha com miami

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É ISSO AÍ!

PRESENTE

garrafa vazia de coca-cola light pós-moderno travesseiro de ar do mendigo dormindo seminu sob o poste sem luz

ansiosos todos na véspera de natal esperam a farta ceia e o papai noel mas pro mendigo é sempre primeiro de abril

QUE EME! IMPRENSA MARROM quieto no seu canto imundo o mendigo caga e sonha com um mundo onde haja papel higiênico pra todo mundo

no lixão um mesquinho minidicionário mostra ao mendigo que a miséria infelizmente vem antes da misericórdia

[tradutor nascido em Santos-SP; poemas de 51 mendicantos, Editora Éblis, 2007; mais em http:// paulodetoledo.blogspot.com/]

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Lucas Dupin. Palavra forma paisagem, 2010. Trabalho realizado durante residência artística em Terrauna.

Marcelo Drummond. Parte integrante da tese de doutorado TIPOS MALdITOS, com bolsa integralmente cedida pela CAPES e desenvolvida junto ao Programa de Doutorado “ Las Revoluciones Tipográficas”, Universidad de Barcelona, Espanha


Márcio Barreto - SP

[Nasceu em Santos-SP e mora em São Vicente-SP, é compositor, músico, escritor e produtor cultural; mais em: http://percutindomundos.blogspot.com/]

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Sérgio Vaz (SP)

ORNITORRINCO

OS MISERÁVEIS

Jamilton nasceu no Pará numa usina de carvão. Como o pai – seu Vavá – também começou aos seis com uma pá na mão. Cresceu sem vitaminas cheirando fumaça e inalando dioxinas. A brasa queima os sonhos a pele os pés e as mãos. Só não queima o catarro preto que sai do pulmão. Aos onze doente e mutilado depois de tanto trabalhar o menino churrasco por invalidez vai se aposentar. Carne de segunda este bicho não tem pelo não tem pena só osso. Os dedos unidos pelo fogo parecem uma pata. Também pudera ele é filho de um animal estranho: gente.

Vítor nasceu no Jardim das Margaridas. Erva daninha, nunca teve primavera. Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta. Pés no chão, nunca teve bicicleta. Hugo não nasceu, estreou. Pele branquinha, nunca teve inverno. Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha. Vítor virou ladrão, Hugo salafrário. Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário. Um usava capuz, o outro, gravata. Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata. Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio. Um não tinha amigo: parceiro. O outro tinha sócio. Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia, enquanto Hugo fazia pose pra revista. O da pólvora apodrece penitente, o da caneta enriquece impunemente. A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente.

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BARBIE

GENTE MIÚDA

Patrícia nasceu num desses casebres que se equilibram em barrancos. Família pequena, só a mãe, dona Odete e o pai, seu Antônio. O sonho de Pati era ter uma boneca, mas não uma qualquer; na verdade, uma Barbie. Sempre quis uma filha para brincar de casinha, mas a boneca que na TV ela via não fazia parte de sua família. Mamãe, com varizes e estrias, andava o dia inteiro com saco de lixeiro à procura de latinha. Papai, para ajudar na comidinha, catava papel e não tinha dinheiro para comprar a bonequinha. Noel, o da barba branquinha, voava o mundo inteiro mas não lhe fazia uma visitinha. Aos treze romperam-lhe o hímen, não de mentirinha, mas de forma bruta sem fazer cosquinha. Agora tem uma linda menininha, com quem pode morar e brincar de casinha.

Daniel não tinha documentos, RG, certidão ou carteira profissional. Não tinha sobrenome, não tinha número, nem cidade natal. Quase um bicho, dormia na rua sobre as notícias e acordava na sarjeta, na calçada ou no lixo. Os dentes, em intervalos, mastigavam as migalhas do mundo, as sobras do planeta. Era soldado das tropas dos famintos. Os trapos – fardas dos miseráveis – cobriam-lhe apenas o peito, a bunda e o pinto. Sangrava de dia o açoite do abandono. Amigos? Só os cães que o protegiam dos seres humanos. Morreu velho e abatido depois de viver, todos os dias, durante trinta e sete anos, como se nunca tivesse existido.

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[poeta da periferia, criador da Cooperifa, mora em Taboão da Serra; poemas de Colecionador de Pedras, Global Editora, 2007; mais: http://www.colecionadordepedras1. blogspot.com/]


Ju Pe lia ss n an o G h ar a c (S ia P ) ci até s e d Eu édio. : eu não r p u e e e do m ). Eu diss ais coub NTO a h E n i M a m i a r a ? RDA camp o ela que de e eu j meu país a SBO u N a o a A m c TR er to mão (co minha cid onhecer o anto aind h l u c m a l c uma o lhe dei ertenço à nseio de dio. Num se anima z e v l ã p s Certa as eu n , eu não esmo o a rreno ba uando e im nada te m io ,m .Q m a rua este préd do. Existe imenso do amor verá em m n a a n u moro deste mu á, então, ado ferid e já não h r m o o e dentr nhecer, v nimal cha eu espelh o t a c i Se o pequeno o eu sere . ã he há um recer, ent ue te acol q pa desa o buraco d além

[professor nascido em São Paulo; poema de Instabilidade perpétu a, Ateliê Editorial, 2009]

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Adriano Espínola (CE)

A SUMAÚMA No alto amazonas entre matas densas a sumaúma assoma. Raízes tabulares imensas feito uma harpa de cordas tensas se lançam aos pares. O poeta disfarçado de curupira bate nelas os calcanhares para fazer ressoar a melodia da tarde o lamento da terra e a vertigem dos ares quando lá nas alturas ruge a tempestade e no chão a motosserra.

[nasceu em Fortaleza-CE. Poeta e ensaísta, é professor; mais em http://www.corsario.art.br]

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44 Lucas Dupin, artista e encadernador, vive e trabalha em Belo Horizonte - MG, mais informaçþes em www.lucasdupin.com.br


Cláudio Portela (CE)

BINGO!

TOMO UMA POSIÇÃO

Parei a leitura de Crime e Castigo e fui caçar níqueis bem que gostaria de me caçar mas fui à esquina jogar caçar níqueis até agora, hoje, gastei o salário de um semestre.

Quanto mais perco mais me fascino. Seu toque de metal me desnorteia. Perco o norte. Perco o sentido do espaço. Vou, mas eternamente volto. E a percepção me trai, o que era luz é sombra, o que era peso argentino é dólar.

O que poderia fazer com esse dinheiro? Comprar um dicionário de espanhol? Tirar cópias de minha vanguarda? Ir ao dentista? Comprar um xampu? Uma escova de dente? O que eu poderia fazer comigo, senão um poema? O que eu poderia fazer sem essa máquina, senão lotá-la de níqueis? O que eu poderia fazer por Kasparov, se ele perdeu para um computador? E eu, para uma máquina que se liga numa tomada, que se dar umas porradas, que se translada de um lado ao outro do bar. Esse poema épico, essa história de vida, esse vício latente, essa corrente que me prende, à vontade de me matar, o desejo de esgotar essa máquina, o desejo de caçar níquel por níquel, esse épico vale menos que... O Mundo gira com a palavra CASSINO. O Mundo gira feito o CASSINO eletrônico.

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Mudo de lugar, uso todos os computadores do salão. Ganho com um cartão, perco com um milhão. Conheço as atendentes, conheço os jogadores e eles a mim e me olham com olhos cúmplices. Jogo e ganho, quero continuar ganhando e falho. Tomo uma posição: sento para jogar.


PRIMEIRA PEDRA

A CINZA

A pedra do Drummond virou fumaça. A fumaça saía de uma lata de Coca-Cola. Um suspiro mais forte fez a cinza pular. O isqueiro ardia na mão. E a fumaça tomando forma. Subindo. Pairando sobre a favela. Uma favela entre o mar e os prédios. A vista do barraco era de assombrar. Belíssima! Dunas com vegetação nativa. Cajueiros seculares. Uma longa coberta de vegetação, primeiro sinal da poluição, que os moradores juravam haver camurupins de mais de dez quilos. Não pescavam mais. Apenas os relatos de grandes pescarias preenchiam o cheiro da lata vazia, enquanto a fumaça azul ronda a favela.

Insistia com o isqueiro até queimar o polegar. Não havia mais crack na lata. Fumava apenas as cinzas. “As cinzas do velho Aeon”. Sua cabeça já estava completamente impregnada do esmalte da lata e de cinzas. As cinzas. Fumar o que já foi fumado. pensando melhor, fumar crack é ecológico. Uma atividade de reciclagem. Reciclar a latinha de refrigerante, cerveja e energéticos da vida. Reutilizar a cinza do cigarro. Meu sonho maior é fumar crack utilizando as cinzas de minha mãe.

PRESCRIÇÃO Recomendo a pedra de crack como dieta. Perfeita para quem almeja um corpinho de fazer inveja.

OITAVA PEDRA O que difere a Disneylândia da Crackolândia? Tudo é sonho e prazer!

DÉCIMA QUINTA PEDRA Manuel Bandeira disse que no Nordeste tem brisa. Por conta dela, queimei pela terceira vez meu anelar acendendo a pedra de crack. Vamos viver de quê?

DÉCIMA SÉTIMA PEDRA “Cachimbo, Crack, Caixão.”

[nasceu em Fortaleza, é escritor autor de Fodaleza, Bingo!, Crack e As vísceras; contato: clautella@ig.com.br]

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Lucas Dupin. Palavra forma paisagem, 2010. Trabalho realizado durante residĂŞncia artĂ­stica em Terrauna.


Ronald Augu o (RS)

A VOZ DO MORRO

O RETORNO

rasgacéu e mausoléu de nuvens lá vai o morro: visto que parece meio sem jeito mas paira quando nada um passo perene e ainda outro sobre a cerviz viridente quase escura dele quando toda essa brancura em desmesura escarnece demora-se romeira um debruar-se opressivo de bruços

o preconceito racial vive abre os olhos hibema numa zona intermédia entre o costume história como texto divino hábito treta milenar e o reino da estupidez congenial ao nascimento sentimental intelectual da alma sopro do macaco desnudo depelado mas a audácia o topete a afronta afro do negro aquele um que responde retruca em legítimo ataque e de maneira sem papado na língua sem travas na e não engolindo mais a meia-idéia de que para um limbo tenha sido conduzido o racismo um limbo murando-o para que borrascas borra de negrada não o reduzisse a pó branco imêmore marmóreo um limbo que servisse servindo de abrigo ao racismo para então alguma vez torna e meiavolta re-tornar em visitação pública farejando o ar revigorado de novas folhas e disposto a não ver os negros espaços infinitos onde coruscam ínfimas estrelas

em fila gigantas velhuscas monjas lontanas nesta variedade de formatura solar mancheias de velofinos grisalhos em carícias contra o verde crestado a cabeleira cabocla desfeita sobre a testa do morro que se acrioula achando a coisa toda sem serventia e nem unzinho cachorro latia e vaca nenhuma mu

[nasceu em Rio Grande-RS e mora em Porto Alegre; músico, letrista, crítico, coeditor da Editora Éblis, editor associado do website www.sibila.com.br; mais em: www. poesia-pau.blogspot.com]

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Antonio Miranda (MA/DF)

[professor, escritor, nascido no Maranhão e radicado em Brasília; trecho de Terra Brasilis - poema-ensaio sobre o espaço, o tempo e os valores do Brasil; mais em: http://www.antoniomiranda.com.br/]

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Valério Oliveira (RJ/SP)

CASTELO BRANCO PRODUTOS ALIMENTÍCIOS

COSTA E SILVA PUBLICIDADE E PROPAGANDA

Dúvida vital: generais ou cereais?

Não sou ativo nem passivo, muito menos maníaco reflexivo como esses estudantes que há por aí.

No tempo em que os generais dominavam a Terra (ou teriam sido os dinossauros?) não havia essas fabulosas barrinhas de cereais.

Jamais pego em armas pra defender esta nação de baixa definição da falta ou do excesso de ordem e progresso.

O que é melhor? O que é pior? Se generais ou dinossauros, não importa. No tempo em que a força bruta brutalizava a Terra, nessa época não havia essas fibrosas barrinhas de cereais. Ah brutamontes e dinossauros, ah guloseimas vermelhas, amarelas e azuis, de consistência severa e intensa (Deus salve o glúten, a farinha, a aveia, o açúcar e o estabilizante lecitina de soja E 322)! O que é melhor? O que é pior? A força irresistível das mandíbulas fardadas ou as não menos irresistíveis barrinhas de cereais?

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Pra que suar, bater, sofrer? Pra quê?! A paz de todos os supercanais de tevê me permite acompanhar cada cena, cada corte, cada morte bem mais de perto. Não sou ativo nem passivo, sou só do tipo que costuma se manter vivo. A corrupção e a repressão estão tomando conta de tudo? Foda-se, querido. O brilho denso e prateado dos comerciais (ah, as três mulheres do sabonete Araxá) pra mim vale mais do que todas as barricadas do mundo.


AGÊNCIA DE DETETIVE COLLOR Procurei no alojamento, na plataforma de carga, na cabine de controlo, no heliporto. Procurei com afinco, passei horas entre o fogo e o gelo. Ninguém na plataforma de petróleo. Procurei na cripta, no santuário, na capela, no presbitério, na abside. Procurei com determinação, chorei muito entre as gárgulas e os profetas. Ninguém na catedral. Procurei na biblioteca de partituras, nos camarins, no salão de ensaio, no depósito de figurinos. Procurei com empenho, três garrafas de vinho depois, não... Ninguém no teatro de ópera. Procurei na plataforma, no centro de controle, na escada rolante, no túnel. Procurei com perseverança, chutei, chutei longe o urso de pelúcia. Ninguém na estação de metrô. Procurei na casa de força, na sala das caldeiras, no convés de jogos, na ponte de comando. Procurei com vontade tropecei e rolei escada abaixo. Ninguém no transatlântico. Ninguém, absolutamente ninguém em parte alguma.

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AGÊNCIA PRUDENTE DE MORAIS Deixei tudo lá. Deixei tudo, até mesmo a velha crença em milagres. Nas mãos do segurança do banco eu deixei as chaves, a bolsa, o coração e os ossos, deixei tudo o que levava nos bolsos e no corpo porque o alarme não parava de soar. Nas mãos do segurança eu deixei os brincos e os anéis, o pâncreas e os pulmões, deixei tudo o que eu tinha e até o que eu nem sabia que tinha: o câncer no útero, o medo de lugares abertos, a vontade de aprender a dançar. O alarme não parava de soar, simplesmente não parava, a porta-giratória travou e eu não tive coragem de olhar pra trás, pra fila aflita que me vigiava.

Sem mais nada para incomodar o alarme, eu decidi ir embora. Fui até o carro e vi que não tinha mais carro. Voltei para casa e vi que não tinha mais casa. Eu não tinha mais nada, eu não tinha nome, eu não tinha eu. A verdadeira força, a sublime missão dos alarmes, dos seguranças e dos bancos é essa: libertar a humanidade dos pesos e das medidas indóceis. Faltam dois dias para o ano-novo, a cidade continua viva e eu sei, ah, mesmo sem as antigas crenças eu sei que no vaivém das portas giratórias enquanto houver finanças e seguranças fenômenos mais espantosos estão para acontecer.

Deixei tudo, os sapatos, a roupa, as unhas, o estômago e todas as lembranças. Nas mãos do segurança do banco eu deixei as viagens que planejava fazer, os namorados, os filhos que ainda não tive. A porta giratória travou entre a vida de lá e a de cá e eu tive muito medo de ficar presa nesse intervalo econômico. Então eu entreguei tudo, até mesmo o outono, o sorriso e os meus melhores aniversários. Deixei tudo lá. Deixei tudo, até mesmo os dezesseis mil beijos que você me deu, os ardentes e os protocolares.

[nasceu no Rio de Janeiro, mora em São Paulo; poemas de Todos os Presidentes, Hedra, 2008]

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Edson Bueno de Camargo (SP)

PROFECIAS para Roberto Piva

o velhote (e suas barbas cinzas) devora as pedras do calçamento risca fogo com seus dentes de urânio e nicotina pétrea papeis soltos em meio ao vento remoinhos acalentam o meio-fio desta cidade de plástico todos com cuidado coletados (podem conter os nomes de deus) restos de nobreza em frangalhos de sedas e brocais (mantos cerimoniais e clericais) sua carruagem de pneus arruinados e alma de geladeira devastada sua fome de granito contorna a tormenta da tarde pedras devolvidas em graduais ondas de palavras o senhor de cabelos de fios elétricos cinza telefônico é perfeito arauto de seu tempo

o velhote é um profeta mas não o ouvimos

[nasceu em Santo André-SP e mora em Mauá–SP; mais em http://umalagartadefogo.blogspot.com]

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Lígia Dabul (RJ)

MURO Xarpi o mora

Escrevo para estender a língua até onde a saliva desmancha linhas com spray do pixo, essa bomb. E sinto irresistível à mão a lata, a tinta fugindo pelo bico fino bem aqui.

GRAFFITI Portas automáticas adivinham. Mas não vêem teu sexo – mapa na mão dada, palmas prontas para cada linha. O sol despedaça no rumo indefinido. Outra vez não se nota a rápida passagem, luzes, enlace de desenhos no final daquele muro: os dois fixos e a jato.

[nasceu no Rio de Janeiro, é antropóloga e professora; poema de Algo do gênero, Arqueria, SP, 2010]

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Fuzzil

PRETO DO GUETO Sou preto Doutor Não me chame de pardo Sou preto por cima... Preto por baixo. Sou preto Doutor Não me chame de moreno Sou preto por fora... Preto por dentro. Sou preto Doutor Não me chame de burro Sou preto sim... Com muito orgulho. Sou preto Doutor Exijo respeito Sou preto feliz... Sou preto do gueto.

[morador do Capão Redondo-SP, assíduo frequentador dos saraus da região http://fuzzil.blogspot.com/]

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Ana Rüsche (SP)

caminhava por onde não devia em hora ingrata, coisas que surgem, coisas que acontecem, que criam vida já morta e te engolem mastigadinho. e vc caminha por onde não devia com aquele medo idiota de vítima de uns trocados tua sorte está na avó das tempestades essa noite toró que assopra o frio onde jamais haveria soterra os trópicos e suas felicidades em água negra. agora patinhando nas poças que crescem em agressivos vazios de câncer, metástases do esquecimento fuligem, nenhuma malfeitora agora colocaria as mãos em vc poderia cruzar intacta uma torcida enraivecida, com seu ônibus a naufragar num ódio estranho, caminharia entre árvores escurecidas e lameosas escuridão tão inócua quanto a nota de um real quando nunca mais circulará, moeda fora de um país, mas que veio do pó dos ossos serra pelada que comprará pó de osso branco de menino que avoa, aviõezinhos os seguranças também voam, voam rasantes em capas de chuva os únicos que realmente sabem o que significa um terno preto e você caminharia por onde não devia a tremeluzir de frio e segura, tão segura na sopa de água negra mastigando os dentes e bendizendo a sorte e agradecendo, a gente tem que sempre agradecer

[nasceu em São Paulo; poema de Nós que adoramos um documentário; mais em http://www.anarusche.com/]

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Manoel de Andrade (SC/PR)

BAÍA Baía, meu manguezal, arvoredo de forquilhas, verde estuário de ilhas branca areia, meu quintal. Pampos, bagres, paratis, mariscos no quebra-mar, tanto boto a mergulhar, tantas tocas de siris. No porto um casco furado, negro sangue derramado, ó que cinzenta agonia, os pescadores chorando, e o óleo que chega boiando no rastro da maresia.

Curitiba, novembro de 2004. Uma semana após a explosão do navio Vicuña, no Porto de Paranaguá.

[nasceu em Rio Negrinho-SC e mora em Curitiba-PR, mais em http://cdeassis.wordpress.com/]

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Luish Moraes Coelho – RJ/MG

MÁQUINA DE LAVAR Imagine isto é um trem partindo de dentro de mim e me partindo [alto volume] lava e leva alívio aos meus joelhos, luva do meu pensamento, corre corre corre corra corre corre corre corra grimgrimgren go shack shack shack Guggenheim já ficou behind falta-me um trilho sadio com e sem desvio corre corre corre são insano são insano são insano são subindo acima o rio do Rio Grande do Sul ao são insano São Luiz do Maranhão na terra do sol sem trem nem direção nem grana grana grana grana grana grrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr tiros para o ar tiros para o ar tiros para o ar partiram tiros correm correm correm correm riscos morrem no escuro das janelas vou para outro vagão vou para outro vagão onde ainda não passou o sentinela entre um vagão e outro corro riscos, sou Neo & Trinity, Bonnie & Clyde, corre-corre, corre a fita pelo túnel da noite, good night. Ensurdecedor silêncio interno explode som que me acalma, que me apruma, que me espuma, me bruma, me arruma outra matriz violenta pluma, colchão de sons febris travesseiros sonoros para os bruços do meu desespero... gira gira gira gira gira a juventude sônica chutando os patrões cínicos, abre-me os braços, crucifixos, e gira

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gira gira gira as mãos querendo se soltar dos pulsos o pescoço se soltar dos ombros, solta solta solta solta tiroteios pá papá papá papá papá papapapapa papa papapá catrac pá! pulmões inflados pés! pulmões vazios e petrificados até os joelhos vazados, uns cachorros magros, dobram doem dobram doem dobram doem dobermans pulo aos calcanhares sem bater no teto corre corre corre corre pula gira gira gira roda de cabeça cai levanta bate na parede do pulmão bate na parede de braço esticado de cotovelo aberto bate bate bate bate bate corre corre roda a cabeça se solta dos ombros, os braços dos joelhos do estômago o fígado do cérebro e o baço embaça a vista seca e seca a boca com uma cica de tristezas roxas, da cor do dedão do pé etiquetado sobre a maca sob a placa do IML. ...Sob Meditação Espontânea, Uma Música Inédita do Nirvana... No pulso dos quadrados, lâminas sem resposta, cortando rins com estilhaços de espelhos doados. Do cuspe de neurônios irrigados, é um DNA desgovernado que me ressuscita. Sinto o gozo de embriões clonados, espanto a pomba que caga sobre a cabeça de prata do fantasma de Timothy Leary. Iro contra a máquina de lavar cérebros. Do fio-espaço, dores entre os dentes, sai o chute nos computadores. Rasgo pixels e brotam borboletas apago todas as certezas obsoletas. CTRL+ N [novo arquivo]: vim parar aqui por sua causa vou sair daqui por sua causa você vem comigo ou deixa aqui sua alma: acesso negado, 404 não foi encontrado.

[sudestino, morador de Belo Horizonte, professor de fotografia na EBA-UFMG; poema publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais Edição 1.328 – Belo Horizonte jan/fev/2010; mais em: www.luish.com.br]

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Jairo Pereira – RS/PR

CAMPIMIÃ: SEMTERRA SEMPRETERRA :vento: em tua voz tremilúnica dicionarizo sonhos decodifico intenções secretas minhas armas brancas terçadas de chuvas lama suor e sangue

:carbúnculos nas solas dos pés: sob a negra lona da provisória morada provisórios dias de sem-terra essa a vida repartida uma haste vertida do chão sustenta feijões de muitas cores feijões recrescidos no tranço das mãos sujas de terra terra aderida de protopólipos poros ciscos pensamentos uma mulher é de nascer crescer lutar parir seus rebentos muitas mulheres hão de viver ao rés do chão mulheres vertidas de terra suor e lama [...] taquaras bambus preciosas gramíneas que a terra te põe nas mãos flautas doces de enganar o tempo uma taquara madura um bambu como símbolo oco para se ver além da vida além da vã espera aos deferimentos de Brasília vejo ouço pelo canudo de bambu que: formigas trafegam lemptas para o formigueiro larvas cancheiam o chão batido há vento e pós vegeminerais aéreos no espaço da cozinha o rádio de pilha chia sobre a coluna de costaneira :minha posse precária violenta e clandestina: meu teu nosso poder de fato sobre a coisa coisa :posse: :os meninos do Brasil: meninos atirados ao chão seminus no aguardo do pai ganhar a terra a terra que aguarda os deferimentos aos requeridos pra Brasília os meninos do Brasil adestrados na sobrevivência na selva vida repetida

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de uma correia velha de trilhadeira se fazem chinelos de uns colmos de taquaras parises de pescar fácil nas corredeiras do rio de umas madeiras finas as gaiolas das galinhas chiqueiros casas de improviso os meninos do Brasil rural adentram a mata fechada e cunham a vida como podem a vida revestida de verdes e nãos muitos nãos os pais recebem do Governo assimilam e calam para os meninos rurais do Brasil o frio a fome a desinteria tudo se ajusta ao tamanho da sede de viver vida viver uma raposa erra o caminho da toca na alta árvore e vem morrer aos pés dos meninos do Brasil da pequena bolsa marsupial os filhotes da raposa do Brasil güinsgüiem suas orfandades repentidas vida a matar sofrer a vida vida :vida: [...] :o pão: o pequeno pão amanhecido o impúbere do vaticínio será ofertado aos proletários do mundo aos rurais e aos urbanos que constróem o mundo estruturas alarmadas crescidas ao céu improvisado criação natural de astros trabalho trabalho um mundo de muito trabalho espelha a palma de minha mão esquerda o pequeno pão recém-vertido é de se dar ao povo aos párias aos pobres aos letargidos o pequeno pão aventurar no caminho do sem-caminho depois encontrar Jesus a oração simples do dia o fubá exposto à mesa mel de abelhas do mato coquinhos abóboras melancia melões-de-neve tudo repartido em amor amor de pai de mãe de amigo feijões terçados na vida braços com braços mãos com mãos olhos nos olhos bocas em beijos feijões que a vida ergue da terra terça trança e multiplica [...] :um país: feito de miríades de leis decretos portarias medidas provisórias atos institucionais casuísmos leis na terra como um formigueiro lotado de formigas um país feito de leis como solução ao que sequer conhecem um país pródigo em seu criatório de leis flagelos pela palavra escrita os códigos repetidos as letras mortas o fedor de atos espúrios um país repleto de leis insoberano contra muitos filhos um país de leis leis que só se conhecem quando a Polícia comparece o Digno Oficial de Justiça o Ínclito Juízo ou Tribunal precário violento e clandestino meu silêncio de debulhar o milho precário violento e clandestino meu gesto ergoluz o toque algorítmico de minhas preleções diárias

[nasceu em Passo Fundo-RS e vive em Quedas do IguaçuPR; é advogado, escritor, artista plástico; contato: jairobp@ fiqnet.com.br]

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Valquimar Reis Fernandes - RO/SP

A GRADE A grade não me agrada Agrade ou não estou preso Estou preso, não sou preso O Sol lá fora e eu solo Aqui dentro de fora é frio Aqui sou um animal Sem terra não posso vegetar A Grade só me agrada aberta A grade é minha porta A grade é minha janela A grade é meu horizonte A grade é meu sol A grade é minha lua É minha válvula de escape A grade é como um sonho ruim Do meu pensamento saio por aí... O concreto é duro A grade é sinistra e traiçoeira A grade é aos outros não a mim A grade àqueles não a nós.

[nasceu em Ji-Paraná, Roraima, militante do MST através do Acampamento Nova Canudos, na região de Boituva; o poema é de 1999, saiu na BABEL 3, em 2000, e foi escrito na Cadeia Pública de Sorocaba, após condenação do autor por participar de protesto em posto do pedágio da Rodovia Castelo Branco, durante dia nacional de paralisação e protesto contra a política econômica e social do governo, a corrupção, o desemprego, a miséria e pela reforma agrária, organizado pelo Fórum Nacional de Luta por Terra, Trabalho e Cidadania, integrado pelo MST, CUT e movimentos populares]


Poro

Marcelo Drummond. Parte integrante da tese de doutorado TIPOS MALdITOS, com bolsa integralmente cedida pela CAPES e desenvolvida junto ao Programa de Doutorado “ Las Revoluciones Tipográficas”, Universidad de Barcelona, Espanha. Grupo Poro. Propaganda Política dá lucro!!! Marcelo Terça-Nada, 2002 e 2004 Santinho tipográfico distribuído em locais públicos e afixado em butecos, padarias, orelhões, murais etc, de diversas cidades/por diversas pessoas. http://poro.redezero.org/ Lucas Dupin. A Palavra , a Página, o Livro. O Barro, a Paisagem, o Caminho. A partir dessa analogia com o livro, foram confeccionados mais de duzentos tijolos de adobe com o formato de caracteres em sua superfície (assim como nos tipos móveis empregados na tipografia) que posteriormente foram dispostos em uma das trilhas da Ecovila Terra Una (Liberdade/MG), a fim de construir o que chamo aqui de “Livro-paisagem”. O leitor desse livro deveria percorrer este caminho para lê-lo. Este trabalho foi executado durante a residência do projeto Interações Florestais. http://www.flickr.com/photos/lucasdupin/

Com a realização de intervenções urbanas e ações efêmeras, o Poro (dupla de artistas formada por Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!) procura questionar problemas das cidades através da ocupação poética dos espaços. http://poro.redezero.org/


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