TE-ATO Oficina

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TE.ATO

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TE.ATO

Teatro Oficina Uzyna Uzona Lina Bo Bardi, 1984 - 1993

AUH0125 | Arquitetos: Projeto e Crítica Docente | Mônica Junqueira Ana Esteves 10313895 | Bárbara Rennó 10377945 | Giovanna Lejanoski 10266826

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SUMÁRIO

Introdução .......................................................................................7 O Princípio .....................................................................................8 Joaquim Guedes e o Teatro-sanduíche ...........................................10 Flávio Império e o Teatro Brechtiano ............................................13 Ditadura Militar ...........................................................................18 Disputa pelo Espaço parte I ..........................................................20 Lina Bo Bardi ................................................................................23 Lina e o Teatro Oficina..................................................................28 Disputa Pelo Espaço parte II ........................................................35 O subversivo Teatro Oficina ..........................................................37 Bibliografia ....................................................................................42

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INTRODUÇÃO

Este trabalho visa a análise histórica e arquitetônica do Teatro Oficina, localizado na Rua Jaceguai, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. É a sede da companhia de teatro “Teatro Oficina Uzyna Uzona” que produziu peças revolucionárias e inovadoras no cenário brasileiro e sua arquitetura única teve grande influência para sua excepcionalidade. A arquitetura e o urbanismo são elementos definidores da linguagem teatral do Teatro Oficina e o contrário também pode ser dito, a linguagem teatral da companhia determina as configurações de seu espaço arquitetônico. O sucesso e longevidade da companhia é atrelada ao espaço físico que sempre acompanhou esse processo, no mesmo endereço, sofrendo apenas alterações físicas, que serão objeto de estudo deste trabalho. O contexto histórico e político é, também, essencial para o entendimento desse espaço, uma vez que motivou o enredo de muitas das peças e, concomitantemente, a formação do espaço de performance. Ademais, a análise das trajetórias dos arquitetos também é necessária, pois algumas motivações da construção do espaço estão intrinsecamente ligadas à suas experiências de vida. O texto busca, portanto, o entendimento dos fatos históricos do período, uma aproximação com a história profissional dos arquitetos e como essa composição de diferentes informações resultou no espaço do Teatro Oficina que é hoje, repleto de história, política, cultura, arquitetura e a representação de uma sociedade. 7


O PRINCÍPIO

A história começa em 1958, com a criação da Cia Teatro Oficina, resultado da união de um grupo de jovens, intelectuais e com interesse artístico, entre eles José Celso Martinez Correa. Desde o início, a companhia portou-se como um instrumento para mudar ativamente corpos, cidade e sociedade. Tiveram sua primeira apresentação a rua Jaceguai, 520, no Bixiga, local onde reside a sede do Teatro até hoje. O bairro do Bixiga, em São Paulo, nasce como um entreposto entre o centro fundador da cidade colonial e o novo eixo de estruturação sentido Noroeste Sudeste. O tecido urbano é caracterizado por grandes quarteirões com lotes muito compridos e com fachada estreita, o que resultou em grandes espaços intra quadra, os quais permitiam, no início de sua urbanização, espaços compartilhados entre as casas. Posteriormente, a presença de cortiços tornou-se característica da região, e abrigava diversas famílias e culturas. Era um bairro com predominância de imigrantes artesãos que trabalhavam seus ofícios em suas residências, resultando em uma composição espacial residência/oficina particular da área, que consolidou o Bixiga como um bairro de pedestres, já que seus moradores não precisavam de transporte para chegar ao trabalho. As construções eram predominante térreas ou assobradadas, residências geminadas ou de uso misto com comércio na frente dando para a rua. O Bixiga contou com uma grande efervescência cultural e instalação de diversos teatros no bairro devido a vida nas ruas, as cantinas, padarias, samba, características marcantes da região até hoje. 8


A partir do século XX, o bairro sofreu várias rupturas em seu tecido, principalmente com a implantação de várias estruturas viárias, como o Viaduto Júlio de Mesquita Filho (ligação Leste Oeste), que modificaram seu traçado e criaram várias barreiras internas. Com o bloqueio dos fluxos, uma parte do bairro, a qual se situa o Teatro Oficina, sofreu uma desvalorização, o que atiçou a cobiça do mercado imobiliário. Considerando a importância histórica e urbanística do bairro da Bela Vista na estruturação da cidade de São Paulo, como sendo um dos poucos bairros paulistanos que ainda guardam inalteradas as características originais de seu traçado urbano e parcelamento do solo. (SÃO PAULO, 2002)

O imóvel, na Rua Jaceguai 520, mantinha as mesmas características dos outros casarões do bairro: arquitetura eclética, disposto longitudinalmente em terreno comprido e com inclinação decente para o fundo do lote. Media 9m de frente, 50m de comprimento e tinha 3m de desnível. Quando a companhia alugou o edifício, depararam-se com um barracão aberto, estreito, de alvenaria de tijolos. A estrutura aberta do edifício incitou criar uma nova arquitetura teatral e para isso chamaram o arquiteto Joaquim Guedes.

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JOAQUIM GUEDES E O TEATRO-SANDUÍCHE

Joaquim Guedes foi um arquiteto urbanista brasileiro formado em 1954 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e um importante crítico da chamada “escola paulista”. Sua obra arquitetônica é singular na arquitetura brasileira, pautada na disciplina e na razão em detrimento das grandes formas, extravagantes e ambiciosamente inovativas. Por isso, acreditava que a forma final era resultante de uma série de variantes, e não deveria ser pensada a priori. “Guedes é contemporâneo de um rico processo de evolução da estética arquitetônica da segunda metade do século, originado na eficiência técnica, racional e funcional, utopia de uma ideologia que acreditava em poder solucionar questões sociais pelo planejamento de ordens ideais.” (PINI, 1995/96, P.66).

Para Guedes, a dimensão da arquitetura estava no homem, porque concilia matéria com vida. Buscava espaços simples, ligados à vida cotidiana e com soluções do dia a dia e concentrava seus esforços em criar espaços flexíveis e versáteis, que garantissem a realização plena das atividades humanas, permitindo a cada indivíduo apropriar-se do espaço a sua maneira. Guedes tinha, portanto, uma forte relação com o humano, com os espaços das pessoas, e preocupava-se com as necessidades físicas, emocionais e orçamentárias de seus clientes. “Parece-me intoleráveis estruturas que, com grande custo - custo é sempre social, impõe dimensões extraor -dinárias para feitos que poderiam ser alcançados com 10


economia, elegância, pouco material, menos tempo e menos dinheiro e, às vezes para nada, ou para menos”. (GUEDES, 1994, p. 141).

O arquiteto criou, juntamente com a Companhia, um teatro-sanduíche, ou seja, um sanduíche de duas arquibancadas que se defrontavam separadas pela cena. Um espaço com duas platéias, palco central e circulação nos quatro cantos. Se portava como um desafio cenográfico, onde as circulações definiam aspectos teatrais, como, por exemplo, a dimensão dos carros alegóricos. Nessa disposição, havia uma grande proximidade do público com a encenação. Era necessário atravessar o palco para acessar seus lugares, em uma arquibancada de madeira peroba, com 10 lances de escada e 5 fileiras de poltronas estofadas em cada um dos lados da arquibancada, contabilizando 200 assentos. A conformação do espaço e a proximidade dos espectadores com os artistas subvertia as convenções de separação entre palco, bastidores e plateia. Na edícula, em L, ficavam as salas de ensaio e administração. No porão, cantina e jardim - longitudinal, lindeiro ao muro. “O arquiteto Joaquim Guedes realizou um projeto ousado e inovador: o chamado “teatro-sanduíche” - uma semi-arena no centro, com platéia em ambos os lados. Não apenas um recurso de espaço, mas a colocação de um problema de linguagem cênica que inclusive desafiaria a imaginação criativa de encenadores e cenógrafos”. (PEIXOTO, 1982, p.128).

O confrontamento do público cara a cara - à sua própria imagem espelhada - tornava o expectador também ator em relação ao lado contrário. A proximidade física do espectador com o teatro (acentuada pela inclinação da arquibancada) era tema muito explorado nas peças. Os atores aproveitaram dessa característica arquitetônica do espaço para acentuar as relações entre os personagens e o público, de modo que este se sentisse parte da peça, do cenário, mesmo que como mero observador. O público era incluído por sua carga emotiva, por sentir que fazia parte de tudo aquilo. O espaço incitava a ilusão de que o palco transgredia o espaço de 4x6m e se apossava de todo edifício. Contudo, esse teatro foi alvo de algumas críticas, principalmente pela inconveniência de perder a reação do ator quando ele estava com a face para o outro lado do público. Os atores eram, então, obrigados a se contorcer em torno dos joelhos e tronco para contemplar as duas platéias, o que tornava a encenação, de certa forma, pouco realista, mas que era aceitável no jogo cênico estabelecido. 11


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* desenhos gentilmente fornecidos pela Carila Splenger - arquiteta do Te.ato Oficina

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FLÁVIO IMPÉRIO E O TEATRO BRECHTIANO

Em 1966, o prédio sofreu um incêndio que o destruiu por inteiro, restando apenas a fachada, as paredes laterais e a construção dos fundos. Há a especulação de que o incêndio foi criminoso, causado por grupos paramilitares, uma vez que o Oficina estava enfrentando muito problemas com a censura e recebia constantemente telefonemas com ameaças. “Aparentemente, teatro e arquitetura estavam, de fato, perturbando conjuntamente e simultaneamente a ordem urbana e militar”. (MATZENBACHER, 2018, p. 89).

A reconstrução ficou a cargo dos arquitetos Flávio Império e Rodrigo Lefèvre. Para Império, a arquitetura extrapolava os limites do artefato e era vista como ação cultural, comunicativa, produtiva e, acima de tudo, política. Acreditava na percepção e transformação do espaço pela sensibilização do corpo, tendo uma relação muito forte com o teatro. Era, também, cenógrafo, figurinista e, até mesmo, diretor de teatro e já havia feito trabalhos com o Oficina anteriormente. Flávio Império, em conjunto com Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, formaram o grupo Arquitetura Nova, que foi uma corrente mais popular da “escola paulista”, com a reavaliação das utopias sociais base do movimento moderno. Para eles, o canteiro de obra é um lugar de resistência aos processos de exploração do trabalho. Visa, através da ação conjunta e homogênea de escolhas técnicas, de materiais e projetuais, os menores esforços humanos de trabalho. 13


* imagem retirada do acervo do site flavio imperio

Essa arquitetura era marcada pela falta de revestimento, de modo a revelar a mão de obra de construtor. “[...] um dia, fui chamado às pressas à rua jaceguai e encontrei o Zé Celso perplexo e extremamente comovido no meio das cinzas e dos restos fumegantes das arquibancadas, qual houvesse havido uma morte, que, essa sim, é irremediável. Eu ria de ver o antigo espaço descoberto e de repente o dentro virado fora e o céu sobre as nossas cabeças ensolarando os escombros de pedaços de mundo que só tinha conhecido a luz elétrica dos refletores. Um banho de vida sobre um espaço apagado e neutralizado por um espetáculo natural. Graças a Deus aquela caminha que sempre acabava por entrara em cena, maquiada de mil maneiras, não existia mais. Tudo tinha virado carvão.” (IMPÉRIO in HAMBURGER e KATZ, 1999, p.46).

O novo Teatro Oficina se distanciava cada vez mais de um teatro realista e se aproximava do teatro Épico Brechtiano, “ativo e anti ilusionista”. A reforma foi coletiva e realizada em 8 meses, com a participação de artistas e arquitetos, em plena ditadura militar. As paredes de alvenaria, que sobreviveram ao incêndio, foram reforçadas com vigas de concreto e não foi aplicado revestimento, seguindo normas brutalistas. Segundo Lina Bo Bardi, se assemelhava a um “Bunker de resistência cultural”. 14


Império uniu os dois edifícios, o de frente e o de fundo e, sobre eles, criou uma sala de contrarregragem que se conectava diretamente com a parede do fundo do palco, a qual tinha uma janela bem em seu centro, para viabilizar a comunicação com essa sala. No interior do edifício havia dois patamares de arquibancada para acomodar a plateia, com 223 assentos (23 a mais que anteriormente). Os acessos eram laterais, direto da rua. O palco, um cubo de 9x9m, ficava diante da arquibancada, configurando um teatro tipo italiano, mas sem os mecanismos que conferem ilusionismo ao palco, sem parede, sem cortina, sem boca de cena. Ele era nu. Contava apenas com um mecanismo giratório de 7m de diâmetro, construído no centro, que rotacionava. O projeto contava ainda com uma sala branca, cozinha e sanitários, abaixo da arquibancada. Na edícula ao fundo, pouco atingida pelo incêndio, construiu-se uma grande sala de espelhos usada para ensaios.

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* imagens retiradas do acervo do site flavio imperio

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* desenhos gentilmente fornecidos pela Carila Splenger - arquiteta do Te.ato Oficina

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DITADURA MILITAR

O período seguinte foi marcado pela Ditadura Militar e o impacto causado no movimento artístico e cultural brasileiro. O Teatro Oficina passou a seguir mais fortemente ideologias sociais e buscava incitar a tomada de consciência da realidade nacional. Acreditavam que a arte não era um meio isolado da vida real. “A situação política exigia a análise, mais objetiva da realidade. Era preciso deixar de lado a satisfação de suas existências, na procura de satisfazer as necessidades de informação do público.” (DA SILVA, 2008, p. 133).

A companhia também mergulhou no movimento Tropicália, que buscava chamar atenção a desigualdade do Brasil, à modernização por um lado, mas pobreza profunda por outro. Uma forma de descolonização cultural. Era um movimento em resposta à sufocância da ditadura, em que a busca do indivíduo estava ligada a encontrar o todo, na identidade nacional, e isso só aconteceria pelo radicalismo antropófago. O Oficina queria incitar, além de uma tomada de consciência, uma tomada de ação. Suas performances eram políticas, envolventes e desconfortantes para o público. Eram críticas, leituras, do processo brasileiro da época. Para isso, era preciso destruir o teatro por meio de um ato criativo. Assim surge a ideia do TE - ATO que, ao invés de teatro, é um neologismo que brinca com o verbo atar, usado em 1971, dá ideia de que nem o ator nem o espectador são passivos durante o processo de encenação, configurando um teatro ativo. 18


“Quanto mais as liberdades eram esmagadas pelo poderio militar, mais a estética do Oficina se libertava das etiquetas do teatro tradicional.” (MATZENBACHER, 2018, p. 129).

Em 1969, inicia-se a construção do Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão, que foi uma grande obra viária visando conectar a Zona Leste com a Oeste da cidade, através do centro. Foi uma das atitudes radicais do regime militar que buscou conectar uma malha de vias rápidas, expressas e arteriais, que rasgaram o tecido urbano de São Paulo, criando uma paisagem voltada para os carros, pontes, viadutos, vias em trincheiras e trevos. Dessa forma, o bairro do Bixiga foi um dos que sofreu com essa mudança, com a construção do Elevado a apenas 10m do Teatro Oficina, que rasgou o bairro ao meio e provocou mudanças absolutas. Essa transformação foi tão impactante que tornou-se pauta de uma das peças do Teatro Oficina, “Na selva das cidades”, na qual Lina Bo Bardi teve seu primeiro envolvimento com o teatro, projetando a arquitetura cênica urbana e os figurinos. A peça foi uma crítica ao Minhocão que rasga a pele da cidade, aparta, desconecta e expulsa através da especulação imobiliária. todo cenário era composto de escombros de sua construção, troncos de árvores, ferramentas, terra, lixo e resquícios das artefatos das antigas casas demolidas para dar lugar à infraestrutura urbana, como lençóis, toalhas de mesa, etc. Lina também escreveu frases nas paredes zombando do slogan da prefeitura de São Paulo: “São Paulo, cidade que humaniza” A partir dos anos 1970, a companhia passa a se questionar, querem mudar sua relação com o teatro, espaço físico, com público burguês. Querem buscar o verdadeiro sentido da arte, no povo do Brasil, e para isso saem do edifício teatral para chegar na rua. “Se o teatro da década anterior tentava captar o público de todas as classes misturadas e assim formar o espectador; na nova década, o teatro iria até o público, principalmente até as classes desprivilegiadas… oficina quer destruir a cerca que separa o teatro do povo”. (CORREA in DA SILVA, 2008, p.200). Em 1971, eles partem em viagem pelo Brasil. Fazem experimentações, buscam o renascimento da forma de se relacionar com o público, um público, também, criador. Os anos seguintes são compostos por dificuldades financeiras, devido à censura de suas peças, e por isso a Companhia passa a viver na rua Jaceguai 520 e desenvolvem uma aproximação com o povo e o bairro do Bixiga. Em 1974, alguns integrantes são presos, torturados e, 19


sem condições de continuar seu trabalho no Brasil, fogem voluntariamente para o exílio na Europa.

Em 1979, o grupo Oficina volta do exílio e reabre o teatro para exibição de filmes produzidos no período. Essa reabertura está atrelada aos passos lento e graduais do país em direção à redemocratização. Nessa época, o edifício estava em estado precário e havia um desejo de transformar a velha arquitetura de Flávio Império. “Como passamos parte da década passada em viagens no exílio, desde que voltamos começamos a projetar uma revolução espacial ali. Não mais a caixa de sapato escura que chamam teatro, mas um espaço vazado, em contato com o exterior. Com a rua, com os ventos, luzes e chuvas.” (CORREA, in MEICHES, 1997, p. 118).

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DISPUTA PELO ESPAÇO PARTE I

No início dos anos 1980, o Grupo Silvio Santos (Grupo SS), conglomerado de empresas brasileiras, deseja construir um shopping center na quadra do Oficina. Por isso, inicia um processo de compra e demolição das históricas casas italiana e de uma antiga sinagoga, talvez a mais antiga da cidade, que ali se encontravam. A companhia não era proprietária do edifício e sim inquilinos, portanto com a intenção de compra do Grupo SS e o aceite do proprietário, o grupo Oficina foi obrigado a comprar o espaço ou perder sua sede. Sem dinheiro suficiente para a compra, a companhia recorre à tentativa de tombamento do imóvel pelo Condephaat, órgão estadual. A justificativa citava a importância do Oficina para a renovação da mentalidade artística no Brasil; os elementos de arquitetura típica do Bixiga que o edifício conservava; e a necessidade de frear a descaracterização histórica e cultural do Bixiga, com a manutenção de um teatro tradicional do bairro. O pedido é negado, sob justificativa que a decisão deveria ser tomada na instância do município. Zé Celso e outros militantes do teatro organizam suas forças para mobilizar a população até que, em dezembro de 1980, o Grupo SS desiste da compra.Com a mudança da direção do Condephaat para o geógrafo Aziz Ab’Saber, em 1982, o processo é reaberto e o Oficina é finalmente tombado, pautando-se na justificativa de enfoque à preservação do bem cultural em sua atividade, o Te-ato. 21


“Não se trata da preservação arquitetônica, mas ao contrário, da proteção à continuidade e ao crescimento desse bem cultural coletivo que pede agora exatamente uma transformação arquitetônica substancial que permita sua existência contemporânea”. (CORREA, 1982 in SÃO PAULO, 1982, p. 50). “Seu tombamento não deveria, portanto, considerar “fixo”, congelado, o seu equipamento interno, para não estrangular as novas propostas de pesquisa do Grupo” (IMPÉRIO, 1982 in SÃO PAULO, 1982, p.70)

O edifício na Rua Jaceguai, 520, é, portanto, preservado como um lugar que mantém as práticas do teatro Oficina. As obras de reforma começam pelas próprias mãos de seu coro, lideradas por Lina, logo após o tombamento.

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LINA BO BARDI

Arquiteta que apresenta uma carreira bastante abrangente com atuações em diferentes campos, como projeto de arquitetura, cenografia, restauro, artes plásticas, desenho de mobiliários e design gráfico. Achillina di Enrico Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi, é italiana formada pela Faculdade de Arquitetura em Roma e chega no Brasil em 1946, fazendo dele seu país de residência. Estrangeira, traz em sua formação bastante influência do movimento moderno que vinha acontecendo na Europa, e se destaca por compreender a cultura brasileira através de um olhar antropológico. Junto a outras personalidades, participa ativamente da modernização da arquitetura brasileira no século XX. Lina desembarca no país pelo Rio de Janeiro, cidade em que mora seus primeiros anos e expande sua rede de influência, mas logo se muda para São Paulo, onde virá a projetar em 1951, na região do bairro do Morumbi, a Casa de Vidro, residência em que morará com seu marido, Pietro Maria Bardi, até os anos de seu falecimento. Então em São Paulo, a arquiteta junto com seu marido idealiza e monta a revista Habitat e o IAC, Instituto de Arte e Cultura do MASP. Assim começa a se envolver com trabalhos de enfoque mais educativo, inclusive com o que pode ser entendida como a sua primeira experiência como professora, no curso de Elementos de Arquitetura, nos anos de 1951 a 1953. Mais tardiamente também lecionou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e na Universidade Federal da Bahia. O Instituto que fazia parte das atividades do Museu de Arte de São Paulo (MASP) junto com a edição da revista Habitat, foi a primeira escola de artes aplicadas no Brasil, e possuiu papel importante na formação dos profissionais que trabalharam com

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a atividade de desenho industrial no país na metade do século XX e, portanto, na vida urbana paulistana. “O desenho industrial era a atividade fim, entendida como capaz de levar a estética das artes puras, modernas, aos objetos de uso cotidiano industrializados, vinculando a arte à vida numa ação de harmonia entre todos os elementos construídos numa fusão filosófica e concreta. Assim o artista, designer e arquiteto era também um artista completo formado em arte e técnica. Um intelectual capaz de trabalhar ao lado do empresário e do operário na produção industrial, transformando a realidade produtiva e a oferta de bens de consumo e portanto transformando a vida urbana paulistana. (...) uma tarefa pedagógica que a ação do MASP, Habitat e IAC pretendia protagonizar e que certamente contribuiu para abrir os horizontes modernistas e colaborar para o progresso econômico e social do país (...)”. (GRINOVER, 2010, p.36)

Durante seus anos de trabalho no Museu de Arte de São Paulo, através de publicações de artigos sobre as correntes do popular no Brasil nas páginas da revista Habitat e de um contato com elites artísticas brasileiras, Lina Bo Bardi conhece a arte popular da Bahia no momento em que realiza uma intensa pesquisa sobre artesanato nordestino e arquitetura popular, o que resulta na sua transferência para Salvador pelo período de sete anos. Convidada pela família Magalhães para criar e dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB), a arquiteta, então com 44 anos e longe de São Paulo, vê-se mais livre para poder aproveitar a oportunidade de experimentar uma combinação nova dentro do “progresso histórico” em que tanto acreditava, desde que com bases sociais mais democráticas e humanistas.

* imagem retirada do acervo do site researchgate

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Ao mesmo tempo em que elabora para o MAMB uma proposta de museu educativo, não estático, que consiga se movimentar em direção a um debate sobre culturas modernas e populares, fazendo chegar a todos esses valores estéticos modernos até então elitizados, Lina investe na criação de um Museu de Arte Popular e de uma Escola de Desenho Industrial. Ideia que surge e é alimentada a partir de uma experiência de trabalho cenográfico da arquiteta com Martim Gonçalves para a exposição Bahia, que aconteceu na V Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera. A exposição ocupou o vão sob a marquise em que alguns anos mais tarde, Lina Bo Bardi veio a projetar o novo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Ainda em Salvador inicia sua relação com o restauro de arquitetura, tema que está bastante presente em seus escritos. Em 1960, elabora o projeto de restauro do Solar do Unhão que abrigaria o Museu de Arte Popular da Bahia. Nele já é possível observar o método do restauro crítico, o qual a arquiteta afirma ser o mais coerente, pois considera as dinâmicas de transformações do edifício e a história viva deles. Ao mesmo tempo em que esses trabalhos são realizados, todos os domingos numa coluna no Jornal Diário de Notícias de Salvador, Lina escrevia e ilustrava graficamente com seus peculiares desenhos a nanquim sobre temas do cotidiano cultural da capital baiana e do Brasil, mantendo aberto um campo de debate para a arte moderna e a cultura brasileira. Inclusive, com a criação e construção de Brasília, a arquiteta levou para a cidade baiana o debate “universal” sobre a nova capital nacional. No ano de 1964 toda essa experiência que vivia em Salvador é interrompida. O Brasil se encontrava numa ditadura militar muito repressiva, e Lina Bo Bardi então se torna uma das artistas a se colocarem à frente desse movimento propositivamente, o que leva, inclusive, em 1971, ao seu mandato de prisão e saída forçada do país. Então no mesmo ano de 1964, com o seu retorno à São Paulo, participa da finalização do projeto do Museu de Arte de São Paulo que teve início em 1957 numa experiência produtiva bastante inusitada: o escritório da arquiteta ficava na obra; seus desenhos executivos eram produzidos exatamente onde a arquitetura acontecia, onde tudo acontecia. Lina estabeleceu assim uma nova relação entre pensar e fazer, uma vez que naquele espaço existia uma autonomia entre as individualidades, mas também uma profunda integração com o grupo de trabalho. A sua relação e as experiências que teve com o teatro, iniciadas em Salvador, derivadas de trabalhos cenográficos, foram o que provavelmente colaboraram muito para essa experimentação do processo criativo e construtivo que realizava em suas obras. A arqui25


teta inclusive ampliou essa experiência coletiva em outros de seus projetos, o da Igreja do Espírito Santo do Cerrado em Uberlândia (1976/1980), e o do Centro de Lazer SESC Pompéia, na cidade de São Paulo (1977/1986). No período que se segue imediatamente após a conclusão do projeto do MASP na Avenida Paulista, Lina Bo Bardi se envolve com forças mais radicais de combate à ditadura, culminando na sua saída forçada do país. Mantendo idas e vindas até 1974, retorna com sua mãe neste mesmo ano após passar algum tempo com sua família na Itália. Durante seus anos de exílio, trabalhou com muitos projetos de cenografia para teatro e cinema. Após o retorno de Lina ao Brasil e mais precisamente à São Paulo, a arquiteta participa de projetos de edifícios, curadoria de exposições, restauro, concursos, entre outros. Um de seus últimos trabalhos foi o projeto do Teatro Oficina, realizado em conjunto com Edson Elito. Inaugurado em 1993, um ano após a sua morte, a obra não se distancia dos conceitos modernistas que manteve constância em seus trabalhos de arquitetura durante a sua vida.

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* imagem retirada do acervo do site arquitecasa

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LINA E O TEATRO OFICINA Já veio a visão de furar as paredes, a vontade de chegar a terra, ao terreno da Jaceguay, e deixar os ventos, e a luz entrar portanto todos os trabalhos de teatro do Oficina sempre pediram espaços novos. Em síntese, a base espacial que podemos construir agora. Voltamos do exílio querendo transformar esse espaço teatral clássico: o palco italiano e plateia em espaço cênico de terreiro forma encontrada pelos arquitetos cenógrafos e urbanistas: Lina Bardi, Flávio Império, Hélio Eichbauer, Piva que revolucionaram no teatro contemporâneo a ideia de cenografia fazendo-a encontrar-se com a forma africana, índia, popular de terreiro, igreja popular, ligada às soluções urbanísticas de desconstrução do centro das cidades. (CORREA, 1983 in SÃO PAULO, 1982, p 146).

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Como já dito anteriormente, o primeiro envolvimento de Lina Bo Bardi com o Teatro Oficina se deu através do projeto de cenografia da peça “Na Selva das Cidades”, de 1969. Essa relação entre a arquiteta e o teatro são restabelecidas anos mais tarde, em 1979, quando, após uma década de exílio, a volta ao Brasil é marcada por um forte desejo de reconstrução do Teatro Oficina de Flávio Império. A antiga e escura caixa de sapato já não era mais adequada. O tombamento oficial do Oficina em 1982 e sua desapropriação em 1983 - a qual concedeu uso por comodato por até 100 anos - garantiu a proteção necessária do espaço para que Lina Bo Bardi e Marcelo Suzuki pudessem iniciar com segurança os estudos oficiais para reforma do edifício.


* imagem retirada do acervo Instituto Lina Bo Bardi

O grupo monta então a Associação de Energias e Trabalhos de Comunicação sem Fronteiras Uzyna Uzona, a qual passará a próxima década imersa em trabalhos intensos para alteração arquitetônica daquele espaço. Contudo, apesar da conquista da posse do edifício, ainda havia outro empecilho: a dificuldade financeira. A falta de verba para reforma e montagem das peças obriga a associação à buscar soluções criativas de financiamento de suas atividades. Eles passam, então, a registrar suas atividades cotidianas de maneira teatral, incluindo até as negociações com autoridades do governo para conseguir verba. Tudo é transformado em performance. O espaço do teatro torna-se um canteiro de experimentações teatrais e arquitetônicas, e Lina está imersa em todo esse rebuliço artístico. Ela e a Associação passam a pensar o novo projeto do Oficina. Seria um Teatro Terreiro. Um espaço de celebração da comunidade, espaço do povo, coletivo. Os eventos, dotados de caráter festivo, quase ritualístico, de cunho sagrado. A iluminação deveria ser abundante como nas grandes catedrais. Para tanto, o ante-projeto de Lina propõe a demolição de grande parte de seu interior, mantendo apenas a casca do edifício, sustentada pelo pórtico de concreto da antiga boca de cena. A parede de tijolos aparentes com os arcos plenos, com seus 10 metros de altura, tornam evidente a verticalidade do edifício. A cobertura desse espaço é feita por uma lona amarela de duas águas, sustentada pelo pórtico de concreto no sentido da água menor. Ali se configura a ideia de espaço amplo, plano e contínuo. O Terreyro Eletrônico. 29


* imagem retirada do acervo Instituto Lina Bo Bardi

Uma passarela de madeira, em nível, parte da entrada e percorre o espaço em seu sentido longitudinal até o fundo do teatro. A escolha da madeira, presta homenagem ao antigo teatro de piso tabuado de Flávio Império. O restante da sala é de concreto. Acompanhando a parede lateral do edifício, em nível mais alto, uma outra passarela de madeira faz conexão à um mezanino na parte frontal do teatro, junto à fachada. Embaixo desse mezanino localizam-se os banheiros, um de cada lado, deixando o meio livre para passagem do público. O caráter estreito e longitudinal do espaço conformam uma espécie de corredor. A beleza do projeto de Lina Bo Bardi em conjunto com a Associação foi não tentar negar esse caráter desafiador do edifício, mas sim, reforçá-lo. Colocar sobre ele a força do projeto. O corredor é entendido como rua. Rua, um espaço de trânsito, de movimento, de agito e de multidão. Mas, acima de tudo, um espaço democrático. Apoiados sobre teoria Teatral de Oswald de Andrade, especialmente em seu texto Do Teatro que é Bom - onde o autor discorre sobre o teatro da multidão, e no Teatro da Crueldade, de Arthur Artaud - aquele em que há interação entre ator e espectador, e onde a peça não se confina no palco, mas ocupa todo o ambiente e pode ser fruto de qualquer situação - o Oficina torna-se uma espécie de teatro de rua sob cobertura.

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“É um Oficina intermediário, entre o teatro do Flávio Império e o Palco-Rua” (SPENGLER, 2018, p. 185)


Em um dos croquis apresentados, a dupla de arquitetos ainda aponta um desejo de ocupação do terreno baldio localizado atrás do teatro, propriedade do Grupo SS, para construção de uma ampla escadaria, a qual funcionasse como um teatro de arena, e também praça pública. Pode-se entendê-lo como a expressão máxima da intenção de materialização da filosofia do teatro da multidão Oswaldiana. Outra proposta interessante, apresentada por Suzuki, foi a solução para o corrente problema de inundação do terreno, a qual consistiu na criação de uma piscina lateral, onde o ladrão jogaria a água excedente no terreno vizinho. Posteriormente, nos desenhos de Lina a área aparece indicada como uma pequena cachoeira próximo à área designada ao jardim, o qual sempre se manteve no mesmo lugar. Em 1989 Edson Elito é contratado pelo Secretário de Cultura Estadual, Fernando Moraes, para realizar o projeto executivo do Teatro Oficina Terreyro Eletrônico. Ele assume a coordenação das obras,

* imagens retiradas do acervo Instituto Lina Bo Bardi

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* imagens retiradas do acervo Instituto Lina Bo Bardi

enquanto Lina Bo Bardi desempenha função de consultora. A construção do Oficina que conhecemos hoje levou 13 anos para ser concluída. Aparentemente, o fato de as decisões projetuais estarem sendo tomadas em conjunto, a participação coletiva e o intenso fluxo de ideias fizeram com que as soluções de projeto apresentadas fossem reformuladas mais de uma vez. Elito discorre sobre isso no seguinte trecho: [...] quando iniciamos o projeto e durante toda a sua concepção, Lina e eu procuramos concretizar as propostas cênica e espacial de Zé Celso. Houve um sau dável e por vezes complexo processo de integração de diferenças culturais e estéticas: de um lado nós arquitetos e nossa formação modernista, os conceitos de limpeza formal, pureza de elementos, less is more, racionalismo construtivo, ascetis mo, e do outro, o teatro de Zé Celso, com o simbolismo, a iconoclastia, o barroco, a antropofagia, o sentido, a emoção e o desejo de contato físico entre atores e plateia, o te-ato”. (ELITO in FERRAZ, 2015, p. 13).

A fachada oeste ganha uma grande janela de vidro, a qual possibilita uma oferta generosa de luz ao teatro, além de permitir uma maior interação com o ambiente externo, a chuva e o vento. Os andaimes laterais são independentes da estrutura metálica do teto. Fazem o contraventamento da parede de tijolos e sustentam a platéia, conformada por bancos de madeira coletivos, aqueles comumente presentes nas igrejas, os quais tem capacidade para acomodar cerca de 300 pessoas. A parte técnica, localizada nas fachadas menores do teatro - norte e sul - não são escondidas do público. 32


A

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C

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D

A

B

0 1

planta cobertura

10 m

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5

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C

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D

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0

1

planta 3º pavimento

10 m

B

A

5

C

C

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A

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0 1

planta 2º pavimento

10 m

B

A

5

C

C

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0 1

planta 1º pavimento

10 m

B

A

5

C

C

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D

A

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0 1

planta mezanino

10 m

B

A

5

C

C

D

D

A

B

0 1

10 m 5

planta térreo

* desenhos gentilmente fornecidos pela Carila Splenger - arquiteta do Te.ato Oficina

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0 0 1

1

10 m 5

10 m 5

corte AA, corte BB e fachada frontal, respectivamente

0

1

corte CC

10 m 5

0 1

10 m 5

corte DD

0

1

10 m 5

fachada lateral esquerda

* desenhos gentilmente fornecidos pela Carila Splenger - arquiteta do Te.ato Oficina

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DISPUTAS PELO ESPAÇO PARTE II

Em 1997, o Grupo Silvio Santos segue com a demolição dos casarões que existiam no entorno do Teatro Oficina e retorna com a intenção de construção de um shopping-center. Para tal fim, obtém o direito de construção pela prefeitura e pelo Condephaat, uma vez que o tombamento do teatro como bem histórico não se estendia ao entorno da edificação, mas apenas às atividades ocorridas em seu interior. O grupo Oficina recorre à justiça, uma vez que não não queria estar cercado por uma máquina de fazer dinheiro que iria destruir o bairro do Bixiga e impedir a possibilidade de conclusão do projeto de Lina Bo Bardi, que previa a extensão do teatro para uma grande praça pública, no terreno vazio ao fundo do lote. Conseguem, assim, impedir o início de qualquer obra, até que, em 2003, o tribunal define contra essas aspirações, a favor do Grupo Silvio Santos. Sem outra alternativa, José Celso recorre ao IPHAN com um pedido de tombamento como obra de arte urbana, o que implicaria em uma restrição nas construções do entorno do edifício. O processo segue em ritmo lento até que, em 2010, o Teatro Oficina é tombado pelo como bem artístico, de modo que fossem criados instrumentos de controle da ocupação do entorno, visto que a relação do prédio com o bairro é fundamental. O decreto, entretanto, não detalha claramente os critérios e limites da proteção do entorno, o que gera repercussões e embates até hoje. O tombamento se deu, portanto, pela importância do espaço como arte e resistência, além de ser uma referência da história do teatro 35


brasileiro. A aproximação do Grupo Oficina com as camadas populares do bairro, excluídas do processo de desenvolvimento urbano de São Paulo, também foi um fator considerado para a decisão final. Foi valorizada a importância cultural, além da estrita preservação material. “Não são as paredes, nem o telhado ou o piso: é o espaço onde ocorrem as manifestações de valor cultural – definido quase que somente por sua posição geográfica – o que se quer referenciar (e não necessariamente proteger)”. (VIERA FILHO, 2009).

Até hoje, o Grupo SS ainda busca um projeto, que tente aproximar as duas visões de mundo, do empresário e dos artistas, para que seja possível efetuar uma construção, mas o oficina se recusa a aceitá-lo devido àquilo que representam. Essa guerra virou uma luta simbólica entre uma companhia teatral e uma grande empresa de especulação imobilária. “De um lado, o grupo Uzyna Uzona, em nome da legítima preservação de seu espaço de atuação e da qualidade urbana do seu entorno. Do outro, um grupo empresarial, proprietário do terreno, procurando exercer legalmente o seu direito de propriedade e de acordo com as normas urbanísticas que permitem edificá-lo.” (OKSMAN, 2016).

* imagem retirada do acervo do Archdaily

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O SUBVERSIVO TEATRO OFICINA

Tudo se transparece em plateia ou palco, não importa, atores, técnicos e público dividem um espaço com as mesmas funções e hierarquias. Enquanto estruturalmente o edifício é despojado das necessidades de infraestrutura teatral comum aos palcos italianos (não existe palco, quarta parede, cortina nobre, vestimentas, coxias ou salinhas em que se possa sair de cena), todo o edifício é lugar de trabalho teatral. A estrutura interior mutante sublinha uma flexibilidade interior. (SPENGLER, 2018, p. 213)

Observa-se portanto uma ausência de ortodoxia na conformação espacial do Teatro Oficina. Ausência que pode ser observada também nas peças teatrais e obras do grupo como um todo. Seria a espacialidade um reflexo do coro artístico? Seriam as obras fruto da espacialidade? Ou seria a espacialidade fruto das obras e do coro? Não há uma resposta certa. O Oficina que conhecemos hoje é, sem dúvida, indissociável do espaço em que ocupa. É um fenômeno que não poderia acontecer com mesma força e mesma intensidade em outro lugar que não no bairro do bixiga, na rua Jaceguay 520. Ele apresenta, portanto, uma relação simbiótica com o Teatro Ofilica de Lina Bo Bardi. substantivo feminino 1. Ecol. Associação de duas plantas, ou de uma planta e um animal, na qual ambos os organismos recebem benefícios. 2. P. ext. Associação de dois seres vivos que vivem em comum. (Dicionário Aurélio, 2004) 37


* imagem retirada do acervo do Archdaily

Sua arquitetura espacializa e reforça a arte que a Associação Uzyna Uzona se propõe a fazer. Uma arte de impacto. Aquela que faz oposição ao ordinário, e tira o espectador da zona de conforto daquilo que já conhece, a qual está habituado. A começar pela ausência de palco. Tudo é palco em potencial. Não há rigidez na encenação, não há posição exata para os personagens. A performance pode se metamorfosear a cada situação. Pode fagocitar o acaso e dele fazer uso para enriquecimento da cena. Afinal, não há limite entre público e o artista. Há a possibilidade do público virar artista, dada a probabilidade de interação e participação da platéia. O corredor usado como palco é tão permeável que é por ele que se dá o acesso aos assentos, de maneira que o público está constantemente “invadindo-o”. Os andaimes são a evidência mais visível da subversividade daquele espaço. Eles funcionam tanto para acomodar a plateia, como passarelas, e como andaimes propriamente ditos - no sentido de um objeto usado para chegar a um nível superior. Dispostos de maneira tal, que possibilita a percepção da presença do público e a troca de olhares entre os espectadores, tornando-os parte da vista, e, por consequência, do cenário do espetáculo. A visão das pontas, mais desprivilegiadas em relação à vista do centro do palco, obrigam os espectadores a mover-se, debruçando-se para frente e para trás, em busca de um ponto de vista onde se possa ver os atores protagonizando a cena. Essa busca por um bom ponto de vista, a cada cena, provoca desconforto no espectador, uma vez que ele necessita estar sempre ativo, e nunca completamente relaxado. Os assentos duros de madeira também contribuem com o desconforto. 38


É pelos andaimes que os atores acessam os camarins. Dessa maneira é comum que passe um ator ou outro atrás do público, correndo em direção ao camarim. Essa proximidade subverte a ideia de teatro tradicional, onde os atores estão sempre distante dos espectadores, ocupando uma posição desumanizada. Assim, a peça torna-se menos uma ilusão com personagens e mais uma cena/situação feita de pessoas.

* imagens retiradas do acervo do Archdaily

O andaime também é usado como andaime propriamente dito. Não subvertendo sua funcionalidade, mas subvertendo sua funcionalidade, mas subvertendo sua presença naquele espaço - um elemento de canteiro de obras propositalmente colocado dentro de um teatro. Os atores se penduram, fazem acrobacias e escalam aquela peça que é também a platéia, surpreendendo o público e adicionando um caráter circense à toda encenação. A escalada adiciona também um patamar ao ambiente destinado à performance, que não fica restrita ao piso, mas passa a conquistar os ares. Assim também acontece com o subsolo. Há uma fenda aberta no piso, abaixo da passarela de madeira, de onde emergem ou imergem os artistas. O palco não se restringe 39


portanto à um nível único, do solo, mas sim vários. Os artistas se apropriam do espaço e fazem dele um elemento chave da performance. Pode-se dizer que o teatro é ocupado de maneira plena. Essa ocupação é percebida não só no âmbito do espaço interno do teatro, mas também da rua, e de suas calçadas, espaço por vezes entendido como a extensão do palco corredor. Para onde ele desemboca, e também por onde começa. O fato da bilheteria localizar-se na entrada faz com que as pessoas se coloquem em fila na calçada para retirada dos ingressos. No intervalo das peças os espectadores voltam a ocupar as calçadas, dessa vez, de modo menos organizado, dispersam-se até a calçada oposta, do outro lado da rua, onde começa o Minhocão. Essa concepção espacial aproxima o teatro e seu público da rua. Se apropria dela como um solário. E a Rua Jaceguai ganha vida. O movimento artístico do oficina bebe do conceito da Antropofagia de Oswald de Andrade. Ridiculariza a submissão da burguesia brasileira aos países “desenvolvidos”, criticando a idolatria à cultura americana e européia, voltando os olhos à cultura ameríndia e afrodescendente. Outra teoria ligada ao movimento modernista brasileiro fagocitada pelo Oficina é o estudo do Totem e Tabu, de Sigmund Freud. Ele se constitui na transformação do tabu em totem, ou seja, não só dá ao tabu visibilidade, como o escancara, colocando-o como centro da performance, a fim de transcender os sentimentos de medo, receio e repúdio que envolvem o objeto estigmatizado. O teatro ativista assume a idéia de bode expiatório, se trabalha e

* imagem retirada do acervo do Archdaily

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* imagem retirada do acervo do Archdaily

se cultua a imagem do bode expiatório da sociedade, onde há preconceito, para então acabar com ele. A educação pelo teatro, segundo Zé Celso, acontece através da deseducação, pelo confrontamento do senso ético e estético (atrofiado) do espectador, conduzindo-o ao questionamento. É por essa chave que o teatro aborda temas como a nudez, o gênero e a sexualidade. O Teatro Oficina, enquanto criador dessa universidade antropófaga que condensa de maneira não cartesiana um saber-poder desses atletores, é bom exemplo de re(x)istência e, o mais importante, um dos mentores e emissores da criação de novas práticas. Essa nova cartografia de representações, com sua linguagem potente e impactante, tem a capacidade de fazer o corpo ser afetado pelo corpo vivo do mundo. (ROLNIK, 1989)

* imagem retirada do acervo do Archdaily

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARDI, Lina Bo; ELITO, Edson. Teatro Oficina 1980 - 1984. São Paulo: Lisboa, 1999. Instituto Lina Bo Bardi e P. M. Bardi. BIERRENBACH, Ana Carolina de Souza. Lina Bo Bardi: tempo, história e restauro. Revista CPC, São Pulo, n.3, p. 6- 32, nov.2006/ abr. 2007. CRICONIA, Alessandra. Lina Bo Bardi: Un’ architettura tra Italia e Brasile. MACHADO, Rogerio Marcondes. Teatro oficina: patrimonio e teatro. Os processos de tombamento junto ao Condephaat e ao Iphan. Arquitetxs, São Paulo, ano 16, n. 188.00, Vutruvius, jan. 2016. MARGOTTO, Luciano. Lina Bo Bardi - vida, portanto, obra. In Lições da Arquitetura: leituras a partir de poéticas. Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. p. 116 - 129. São Paulo, 2016. GRINOVER, Marina Mange. Uma ideia de arquitetura: escritos da Lina Bo Bardi. (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. VIERA FILHO, Dalmo. Parecer pela materialidade do Oficina em seu processo de tombamento pelo Iphan. 05 jul. 2009. 42


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