A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista

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uma atitude. É o registro histórico de algum tipo de atividade plástica do artista, performática ou não, que pode existir sozinha ou acompanhada de outras formas. É uma aproximação externa, às vezes convencional quanto à forma, e já bastante frequente nas vanguardas do século 20, como o futurismo, o surrealismo e o construtivismo e suas variações. Não há necessidade de maiores comentários, já que normalmente pouco denuncia (como confissão) da intimidade do criador. Este momento desta pesquisa se interessa pela verdade ou pela verossimilhança na revelação da intimidade real ou “construída”. Apenas cito como exemplo (já deixando de ser recente) os diversos trabalhos do grupo (ou movimento) Fluxus.

Sas Colby, Souvenir of Documenta 7, 1982 (Moeglin-Delcroix, 1985, p.137).

Também há algo de exterioridade nos livros formados por coleção documental a partir de algum tipo de coleta que representa uma experiência vivencial. Nesse caso o artista elege sua atitude entre o caminho do acaso (aquilo que casualmente ou incidentalmente Christian Boltanski, chegar a ele numa determinada situação) ou de algum Classe terminale du Lycée Chases, 1987 princípio norteador (uma norma específica de cole(Drucker, 1995, p.329). ta). É o que acontece, por exemplo, com o trabalho Souvenir of Documenta 7, de Sas Colby, 1982, formado por souvenirs, papéis amassados, embalagens, desenhos, fotos, etc., agregados em um pequeno volume, ou com Classe terminale du Lycée Chases, de Christian Boltanski, 1987, organizado a partir de fotos de estudantes extraídas do anuário de uma escola judaica durante a Segunda Guerra. O evento denunciado ou que ocorreu com o artista, ou ao qual ele se refere, pode ser “remontado” a partir de seus indícios. Mas nos interessa, neste momento, verificar a opção de alguns artistas pelo aparentemente convencional. Em primeiro lugar, a utilização zelosa da brochura comum, que apela para a grande distribuição, principalmente naquelas obras que eu chamaria de esclarecedoras, reveladoras, obscenas porque desveladoras e denunciatórias da vida pessoal do artista ou de seu entorno, de uma forma direta, sem pudores. Em segundo lugar, o caso dos cadernos e dos livros de notas reais ou simulados, utilizados por artistas plásticos como complemento de sua vida profissional ou afetiva. No primeiro caso temos o real e/ou o imaginário depositados em uma forma da qual, afinal de contas, também se espera a ficção. Além disso, o artista traz para a arte uma conformação gráfica que pode ser considerada por alguns estranha a ela. No segundo caso podemos ter o que o artista quiser, mas, presumimos, em território “real”, vestigial, não em cenografia. Ele movimenta para o mercado artístico o que provavelmente é (ou ao menos parece ser) um conjunto de notas e esboços pessoais (íntimos), agregando valor ao seu pré-produto. 95


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Texto avulso Enzo Miglietta O ato estético da escrita

1hr
pages 287-319

Entrevista: Iolanda Gollo Mazzotti

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Entrevista: Vera Chaves Barcellos

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Entrevista: Wlademir Dias Pino

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Entrevista Lenir de Miranda

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pages 260-263

Entrevista: Neide Dias de Sá

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pages 264-266

Depoimentos

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page 259

Suplemento: Erguendo os olhos e olhando ao redor

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pages 250-258

A leitura agonizante

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pages 225-244

Considerações finais

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pages 245-249

Polimorfismo, desconstrução e destruição

42min
pages 203-224

Sequestro e aliciamento da aparência e da leitura

19min
pages 193-202

Mimese formal e funcional do corpo e da leitura

34min
pages 165-182

Sequestro e aliciamento da ordem e da função

16min
pages 183-192

Fronteiras com o livro e a literatura

21min
pages 153-164

Ingresso na gravura: objetificação em espetáculo solo

14min
pages 144-152

As artes do livro e a identidade do livro artístico

13min
pages 122-127

Até pode ser que isso não seja um livro de artista. Mas e se for?

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pages 128-143

Representação do confessional e do lúdico: memória real versus memória emulada

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pages 105-118

O livro como corpo físico

6min
pages 119-121

A exacerbação documental: passionalidade versus contrição

8min
pages 95-99

Presunção de verdade ou verossimilhança

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Registro temporal e presentificação pelo documento

8min
pages 89-92

Memória e documento pela escolha da forma códice

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pages 93-94
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