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A Casa Amarela

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Amigos”?

Amigos”?

Conceição Dias . Professora de Inglês

“A Casa Amarela, desbotada e carcomida, abandonada por aqueles que lhe davam alma, cor e som ressuscita, agora, das suas próprias cinzas”

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Situada no centro da cidade, no chamado centro histórico, a Casa Amarela ergue-se imponente e majestosa na sua estrutura de pedra; são 80m2 distribuídos por três andares, encaixados entre outras casas, mais ou menos da mesma época, mais ou menos dentro da mesma arquitetura, personagens do mesmo tempo, testemunhas de tantas vivências… A Casa Amarela resiste ao peso incomplacente dos anos que vai deixando as suas marcas na fachada principal, agora desbotada e carcomida, tal como crava as rugas nos rostos das pessoas deixando claro a sua tirania, o seu domínio sobre tudo e todas. Com as suas janelas em guilhotina, aos quadradinhos, a varanda estreita e comprida ao longo do último piso, as janelas que se abrem para o telhado das outras casas, por onde entravam os gatos vadios e saíamos nós, as crianças de então, para explorar telhados, casas decrépitas, para vigiar a minha avó que no tanque do nosso estimado terraço lavava a roupa, descascava feijões, costurava os “olhos”( como ela dizia) que teimavam em aparecer nas calças, por cima do joelho, nos cotovelas das camisolas, nas meias, enfim, nas suas lides diárias de dona de casa prendada, de mulher, mãe, avó, sogra querida… O telhado, por vezes traiçoeiro e escorregadio pregava-nos partidas e não raras vezes a minha irmã, muito mais aventureira e destemida do que eu, aterrava no terraço solarengo da nossa Casa Amarela, mesmo em frente à minha avó, descoberta na sua demanda, flagrada em delito, exposta na sua traquinice de menina travessa e rebelde; uma Maria-Rapaz como tantas vezes lhe chamávamos. Voltemos à Casa Amarela, à sua porta principal ornamentada por dois rendilhados encaixes em ferro, um batente (em forma de punho) polido pela tia Arminda que energicamente o deixava luzente e dourado todos os fins-de-semana. A fechadura pesada que albergava uma chave igualmente pesada emitia um estalido sempre que se entrava ou saia de casa. Talvez por isso, quiçá, a porta da Casa Amarela nunca estivesse trancada… por ela passavam as crianças da rua que subiam a larga escadaria, de caminho ao terraço, ou mais dois lances de escadas rumo ao segundo andar não sem antes admirarem a altíssima

claraboia que gentilmente iluminava e aquecia o percurso até ao quarto das bonecas. O quarto das bonecas era uma casa de bonecas; uma casa dentro de outra casa com as suas rotinas, risos e choros, como qualquer outra casa que se preze…. ali eramos as donas de casa, éramos os adultos que ditavam as regras, que diziam o que fazer aos mais novos, também eles transformados em bonecas, bonecas de carne e osso… nem sempre corria bem e era ver o meu irmão, de gatas, a sair devagarinho daquele domínio, à procura de refúgio , de um colo seguro… A varanda, toda ela delicadamente bordada a ferro forjado também conta histórias; lá éramos cantores a entoar os canções da Revolução do 25 de Abril, a plenos pulmões, incentivados, quiçá, pelo megafone vizinho que laboriosamente desempenhava o seu cargo de arauto da liberdade, da democracia e enchia a rua de esperança… Nó gostávamos patulamente do tema ”Somos Livres”, também conhecido como o tema ”Uma gaivota voava, voava” originalmente interpretado pela actriz Ermelinda Duarte e que celebra a liberdade almejada e finalmente conquistada pelo povo a seguir ao derrube da ditadura do Estado Novo e fim da censura pela Revolução de 25 de Abril, a dita “Revolução dos Cravos”. Ser livre de voar, de crescer, de dizer, de traçar o próprio destino, parecia-nos bem, bastante promissor…. A varanda da Casa Amarela assistiu à narração de vidas difíceis, a episódios vividos na ditadura, a piqueniques improvisados à volta de uma cesta de cerejas e pão de milho nas noites de verão enquanto se conversava com a vizinha da frente, a Dona Antónia, separada de nós pela rua estreita e calcetada, na velha e boa tradição portuguesa. “Os vossos pais estão cá no Natal e ficam durante um bom tempo…” dizia a minha avó. A cozinha, a sala verde que merecidamente aclamou este título por estar pintada de um verde água, a casa de banho com a sua banheira de pés, o autoclismo barulhento e a gata branquinha, a “Boneca” não raras vezes flagrada sobre a sanita, a satisfazer as suas necessidades fisiológicas vivem, hoje, nas minhas memórias, juntamente com os meninos e meninas da nossa rua. A Boneca… nunca soube muito bem se essa gata bonacheirona e branquinha era nossa ou da vizinha da frente, a dona Antónia, tão à vontade ela se sentia entre estes dois mundos. Acabou por morrer na casa da vizinha, a dona Antónia que nos disse que a Boneca devia andar por ai, nos telhados das outras casas, com outros gatos e que haveria de aparecer ….um dia…. A Casa Amarela, desbotada e carcomida, abandonada por aqueles que lhe davam alma, cor e som ressuscita, agora, das suas próprias cinzas, da degradação causada pelas intempéries, da inexorável autoridade do tempo e ergue-se, magistral, com a mesma fachada, as mesmas janelas em guilhotina, a mesma caixa do correio que diz ”Cartas”, o seu batente lustroso imponente e altivo…. Fico feliz por saber que a Casa Amarela tantas vezes por mim visitada e revisitada em sonhos e lembranças já tem nova alma, cor e som e se reergue, imortal, para compilar novas histórias, tecer novas memórias, albergar novos meninos… Fico feliz.

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