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Clarim da Verdade

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Meu Douro, meu rio

Meu Douro, meu rio

“Clarim da Verdade”

O género visto por um jornal paroquial

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Pedro Babo . Professor de História de Arte

PARTE

Éaceite pela generalidade dos historiadores (Cruz 1998:15, Léonard 1998:117-113)1 que apesar do Estado Novo não ter sido um regime confessional existiu entre o regime salazarista e a Igreja uma grande cumplicidade na defesa de uma orientação moral essencialmente de inspiração católica. A leitura do jornal paroquial Clarim da Verdade permite-nos aceder ao discurso ofi cial com que ambas as instituições procuraram moldar a identidade de género em Fontelas. A forte implantação da Igreja no meio rural, composta na sua generalidade por um clero extremamente colaborador com o regime, com canais de comunicação perfeitamente estabelecidos e dire-

1 A quando da assinatura da Concordata, Salazar exprimiu a necessidade de uma separação estrita entre os poderes espiritual e temporal: «O Estado vai abster-se de fazer política com a Igreja, na certeza de que a igreja se abstém de fazer política com o Estado. Isto pode e deve ser assim. Pode ser, primeiro, em virtude de todas as razões derivadas da formação espiritual deste povo e da sua vocação histórica, e depois pelo facto de termos enfi m um estado Nacional, ou seja, termos chegado à integração da nação no Estado Novo Português. Deve ser assim, porque a política corrompe a Igreja, quer quando faz quer quando a sofre, e para todos é útil que as coisas e pessoas sagradas as toquem o menos possível mãos profanas, e o menos possível também as agitem sentimentos, interesses ou paixões terrenas. Considero perigoso que o Estado adquira a consciência de tal poder que lhe permita violentar o céu, e igualmente fora da razão que a Igreja, partindo da superioridade do interesse espiritual, busque alargar a sua ação até infl uir no que o próprio Evangelho pretendeu confi ar a César» (in Léonard 1998:63). Informações recolhidas na obra « Fontelas - Perfi l Monográfi co» do padre Alípio Martins Afonso edição do autor de 1971. tos (Eucaristia, Jornais paroquiais e organizações religiosas), ofereceu ao Estado Novo um precioso sustentáculo para manter as províncias rurais numa ordem que era apresentada como imutável porque plenamente conforme à natureza das coisas. Se atendermos às suas reduzidas dimensões geográfi cas e populacionais, Fontelas apresenta uma tradição invejável no âmbito da imprensa local e regional, ao possuir jornais próprios desde 1925, saídos da ofi cina gráfi ca aí instalada na mesma data, da propriedade de Carlos Frias. O primeiro título Defesa do Douro foi publicado de 1925 a 1933, como semanário regional, sob a direção de Júlio Vilela. Seguiram-se-lhe respetivamente Voz de Fontelas (1930-33?) e Fontelense (1933) ambos mensários da responsabilidade do próprio Carlos Frias e, simultaneamente, Termas de Moledo (1930-33?) dirigido especifi camente àquela estância termal sob a direção de Armindo da Conceição Pinto. Com a transferência das ofi cinas gráfi cas para a sede do concelho terminaram as publicações locais. Reapareceram passados 19 anos com a forma de boletins paroquiais, o quinzenário Clarim da Verdade e o mensário À Luz da Torre, recuperando assim a tradição jornalística de Fontelas. Graças ao cuidado dos sucessivos párocos em preservar estes documentos tive a possibilidade de consultar na íntegra a totalidade dos seus 164

e 54 números respetivamente. Tal já não foi possível no que diz respeito às anteriores publicações, das quais se lhe perdeu o rasto por completo. Para o investigador das questões de género, o segundo título tem pouco interesse. Com ambições bem modestas, não passa de um típico boletim paroquial, surgindo só muito esporadicamente colunas com objetivos fiscalizadores da moral sexual dos jovens fontelenses. Por tal facto, dirigi preferencialmente a minha análise para o primeiro título, que se apresenta com objetivos bem mais alargados no que diz respeito à formação moral dos paroquianos. O primeiro boletim das Paróquias de Oliveira e Fontelas foi publicado na década de cinquenta, mais propriamente entre 10 de fevereiro de 1952 e 18 de janeiro de 1959, com o referido título de Clarim da Verdade. Sob a direção dos párocos José Ribeirinha Machado até 10 de Novembro de 1957 e Alípio Martins Afonso depois desta data até ao termo da sua publicação, o Clarim, mais do que um simples boletim informativo das atividades ligadas às suas paróquias, era um manual de formação, quer para os jovens, quer para as famílias, fornecendo de forma exaustiva modelos comportamentais considerados adequados “à natureza de cada sexo.” As relações entre homens e mulheres e a função atribuída “naturalmente” a cada um dos sexos na família e na sociedade foram objeto de colunas, com uma permanência de vários meses, como as intituladas «Sede Heróis!» e «Aos Jovens» destinadas aos rapazes e a rúbrica «A ti rapariga amiga» dirigida às raparigas, publicada com uma regularidade quase absoluta ao longo dos sete anos de sobrevivência do Clarim. Todas estas rúbricas foram publicadas utilizando a estratégia literária do pseudónimo, as duas primeiras com um simples «S» e a dirigida às jovens com a simbólica assinatura de «Maria». Pelo teor das mensagens e pela linguagem empregue, não seria de estranhar que o «S» fosse o próprio pároco. Quanto à «Maria», a única pista que deixou cair foi o facto de se intitular uma “Jacista” , termo que designava os membros da Acção Católica, organização que formava um grupo muito ativo nos anos cinquenta, em Fontelas e que, a julgar pelas palavras desta sua ativista, mais não fez do que perpetuar o tradicional conservadorismo da Igreja em matéria de relações entre os sexos. fórmula «devendo sempre abster-se de toda a atividade política» o Estado Novo impediu a livre organização política e eleitoral dos católicos (cf. Cruz 1998:69-78). Sem afastar a possibilidade de o Clarim não atingir de todo os seus propósitos em matéria de regulamentação das relações de género, penso ser de toda a importância, numa época em que as relações entre o Estado e a Igreja eram tão es-

treitas, conhecer em pormenor e na forma escrita, o ideário moral com o qual a Igreja local procurava moldar a identidade de género em Fontelas. Ao fazer chegar o boletim paroquial a todas as residências obrigando à sua devolução no caso de o paroquiano não estar interessado na sua leitura, o pároco assegurava a chegada do seu “manual” de organização familiar a todos os lares de Fontelas. A leitura do Clarim permite, por outro lado, ultrapassar, pelo menos parcialmente, o lamento de tantos investigadores das questões de género que nos seus trabalhos não podem contar com o testemunho escrito de mulheres por causa da milenar prisão da mulher à palavra escrita do homem: «Há assim uma longa história do corpo, fascinantemente contado através de um olhar masculino e espantado» (Joaquim 1997:53). O olhar feminino transmitido pelas mulheres que escrevem no Clarim não difere em nada, como veremos mais adiante, da visão masculina; antes, pelo contrário, inscreve-se perfeitamente nos modelos de género preconizados pelo boletim de Fontelas. A dominação masculina contou pelo menos parcialmente com a colaboração feminina. A mulher foi, e ainda o é, ao mesmo tempo vítima e corresponsável pela perpetuação da sua submissão ao homem. Não restam dúvidas que a construção da identidade de género se faz, em primeiro lugar, dentro da família e esse papel educativo foi culturalmente assumido fundamentalmente pela mulher. Como afirmou De Beauvoir (1976:28): «Uma das maldições que pesa sobre a mulher está em que, na infância, é abandonada às mãos das mulheres». A visão que a mulher transmite é assim, muitas vezes, uma visão dominada, em resultado da incorporação de princípios tornados naturais pela educação (cf. Bourdieu 1995:58). Não se espere pois encontrar no Clarim uma visão feminina desviante. Essa, se a houver, terá de ser procurada fora dos discursos oficiais, na oralidade ou no âmbito das atitudes observáveis do trabalho de campo.

(continua no próximo número)

Afonso, Alípio Martins, Fontelas - Perfil Monográfico, Chaves, Edição do Autor,1971. Beauvoir, Simone, O Segundo Sexo, Amadora, Livraria Bertrand,1976. Bloch, Marc, Introdução à História, Men Martins, Publicações Europa América, s/d. Bourdieu, Pierre, “Observações sobre a História das Mulheres” in Duby e Perrot (org.) As Mulheres e a História pp 57-59, Lisboa, Publicações Dom Quixote,1995. Bourdieu, Pierre, La domination masculine, Paris, Éditions du Seuil, 1998. Cruz, Manuel Braga da, O Estado Novo e a Igreja Católica, Lisboa, editorial Estampa,1998.

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