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Índice [A maioria da gente enferma…] \ FERNANDO PESSOA....................................................... 1 «Mundo fora, à aventura» \ AQUILINO RIBEIRO ................................................................. 2 «Lágrima de preta» \ ANTÓNIO GEDEÃO ............................................................................ 3 «História antiga» \ MIGUEL TORGA ..................................................................................... 4 «Cantiga da Garvaia» \ PAI SOARES DE TAVEIRÓS ........................................................... 5 [Ai flores, ai flores do verde pino] \ DOM DINIS .................................................................... 6 [Senhora, partem tão tristes] \ JOÃO ROIZ DE CASTEL-BRANCO ..................................... 7 «Soneto de Inês» \ JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS ....................................................... 8 [Verdes são os campos] \ LUÍS DE CAMÕES ........................................................................ 9 [Descalça vai pera a fonte] \ LUÍS DE CAMÕES .................................................................. 10 [Descalça vai pera a fonte] \ FRANCISCO RODRIGUES LOBO......................................... 11 «Poema da Autoestrada» \ ANTÓNIO GEDEÃO .................................................................. 12 «Naturalidade» \ RUI KNOPFLI ............................................................................................ 14 «Esperança» \ VASCO CABRAL .......................................................................................... 15 «Trova do vento que passa» \ MANUEL ALEGRE ............................................................... 16 «Receita para fazer azul» \ Nuno Júdice ................................................................................. 18 «Pedra Filosofal» \ ANTÓNIO GEDEÃO ............................................................................. 19 «Verbo Ser» \ CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ..................................................... 21 «Garota de Ipanema» \ VINICIUS DE MORAES.................................................................. 22 «O Mostrengo» \ FERNANDO PESSOA............................................................................... 23 «Cântico Negro» \ JOSÉ RÉGIO ............................................................................................ 24
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[A maioria da gente enferma…] \ FERNANDO PESSOA A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não «Tenho vontade de chorar», que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: «Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. «Tenho vontade de lágrimas»! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
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«Mundo fora, à aventura» \ AQUILINO RIBEIRO
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«Lágrima de preta» \ ANTÓNIO GEDEÃO
Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume:
nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.
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«História antiga» \ MIGUEL TORGA
Era uma vez, lá na Judeia, um rei. Feio bicho, de resto: Uma cara de burro sem cabresto E duas grandes tranças. A gente olhava, reparava, e via Que naquela figura não havia Olhos de quem gosta de crianças. E, na verdade, assim acontecia. Porque um dia, O malvado, Só por ter o poder de quem é rei Por não ter coração, Sem mais nem menos, Mandou matar quantos eram pequenos Nas cidades e aldeias da Nação. Mas, Por acaso ou milagre, aconteceu Que, num burrinho pela areia fora, Fugiu Daquelas mãos de sangue um pequenito Que o vivo sol da vida acarinhou; E bastou Esse palmo de sonho Para encher este mundo de alegria; Para crescer, ser Deus; E meter no inferno o tal das tranças, Só porque ele não gostava de crianças.
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«Cantiga da Garvaia» \ PAI SOARES DE TAVEIRÓS
No mundo nom me sei parelha mentre me for como me vai: ca já morro por vós e, ai! mia senhor, branca e vermelha queredes que vos retraia? quando vos eu vi em saia, mao dia me levantei, que vos entom nom vi fea,
E, mia senhor, dês aquela, me foi a mi mui mal, ai! e vos filha de dom Pai Moniz, e bem vos semelha d’aver eu por vós garvaia! pois eu, mia senhor, d’alfaia nunca de vós ouve, nem ei, valia d~ua correia
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[Ai flores, ai flores do verde pino] \ DOM DINIS
-Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pos comigo! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado aquel que mentiu do que mi ha jurado! Ai Deus, e u é? -Vós me preguntades polo voss'amigo, e eu ben vos digo que é san'e vivo. Ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss'amado, e eu ben vos digo que é viv'e sano. Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é san'e vivo e seerá vosc'ant'o prazo saído. Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é viv'e sano e seerá vosc'ant'o prazo passado. Ai Deus, e u é?
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[Senhora, partem tão tristes] \ JOÃO ROIZ DE CASTEL-BRANCO
Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida, tão cansados, tão chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tão tristes os tristes, tão fora d' esperar bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém.
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«Soneto de Inês» \ JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS
Dos olhos corre a água do Mondego os cabelos parecem os choupais Inês! Inês! Rainha sem sossego dum rei que por amor não pode mais. Amor imenso que também é cego amor que torna os homens imortais. Inês! Inês! Distância a que não chego morta tão cedo por viver demais. Os teus gestos são verdes os teus braços são gaivotas poisadas no regaço dum mar azul turquesa intemporal. As andorinhas seguem os teus passos e tu morrendo com os olhos baços Inês! Inês! Inês de Portugal.
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[Verdes são os campos] \ LUÍS DE CAMÕES
Verdes são os campos, De cor de limão: Assim são os olhos Do meu coração. Campo, que te estendes Com verdura bela; Ovelhas, que nela Vosso pasto tendes, De ervas vos mantendes Que traz o Verão, E eu das lembranças Do meu coração. Gados que pasceis Com contentamento, Vosso mantimento Não no entendereis; Isso que comeis Não são ervas, não: São graças dos olhos Do meu coração.
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[Descalça vai pera a fonte] \ LUÍS DE CAMÕES
Descalça vai pera a fonte Lianor pela verdura, Vai fermosa e não segura. Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata. Cinta de fina escarlata, Sainho de chamalote, Traz a vasquinha de cote Mais branca que a neve pura. Vai fermosa, e não segura. Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entrançado, Fita de cor encarnado, Tão linda que o mundo espanta. Chove nela graça tanta, Que dá graça à fermosura. Vai fermosa, e não segura.
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[Descalça vai pera a fonte] \ FRANCISCO RODRIGUES LOBO
Descalça vai para a fonte Leanor pela verdura; Vai fermosa, e não segura.
A talha leva pedrada, Pucarinho de feição, Saia de cor de limão, Beatilha soqueixada; Cantando de madrugada Pisa as flores na verdura: Vai fermosa, e não segura. Leva na mão a rodilha Feita da sua toalha, Com uma sustenta a talha, Ergue com a outra a fraldilha; Mostra os pés por maravilha, Que a neve deixam escura: Vai fermosa, e não segura. As flores por onde passa, Se o pé lhe acerta de pôr, Ficam de inveja sem cor E de vergonha com graça; Qualquer pegada que faça Faz florescer a verdura: Vai fermosa, e não segura. Não na ver o Sol lhe val Por não ter novo inimigo, Mas ela corre perigo Se na fonte se vê tal; Descuidada deste mal Se vai ver na fonte pura: Vai fermosa, e não segura.
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«Poema da Autoestrada» \ ANTÓNIO GEDEÃO
Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, Vermelho de alizarina, modelando a coxa fina de impaciente nervura. Como guache lustroso, amarelo de indantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta. Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa, e bem segura. Como um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta lembra um demónio com asas. 12
Na confusĂŁo dos sentidos jĂĄ nem percebe, Leonor, se o que lhe chega aos ouvidos sĂŁo ecos de amor perdidos se os rugidos do motor. Fuge, fuge, Leonoreta. Vai na brasa, de lambreta.
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«Naturalidade» \ RUI KNOPFLI
Europeu, me dizem. Eivam-me de literatura e doutrina europeias e europeu me chamam. Não sei se o que escrevo tem a raíz de algum pensamento europeu. É provável... Não, é certo, mas africano sou. Pulsa-me o coração ao ritmo dolente desta luz e deste quebranto. Trago no sangue uma amplidão de coordenadas geográficas e mar Índico. Rosas não me dizem nada, caso-me mais à agrura das micaias e ao silêncio longo e roxodas tardes com gritos de aves estranhas. Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical, um negro e uma viola estalando.
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«Esperança» \ VASCO CABRAL
É como se alguém me pisasse e eu me risse - uma alegria toda cor e luz. É como se alguém me batesse e eu cantasse - um canto de amizade e paz. É como se alguém me cuspisse e eu passasse indiferente - um caminho claro como o dia. É como se alguém me apunhalasse e eu o abraçasse - um fogo de fraternidade humana. Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome este vício secreto e interior esta badalada do relógio da alma este pulsar no coração do mundo esta consciência duma ferida em chaga este sentir a dor duma mulher pobre e faminta. Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome Ó silencioso grito dos camponeses sem terra! Ó vento da certeza que os carrascos temem!
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«Trova do vento que passa» \ MANUEL ALEGRE
Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem 16
mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste. Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo. E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz. Quatro folhas tem o trevo liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo. Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não. 17
«Receita para fazer azul» \ Nuno Júdice
Se quiseres fazer azul, pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande, que possas levar ao lume do horizonte; depois mexe o azul com um resto de vermelho da madrugada, até que ele se desfaça; despeja tudo num bacio bem limpo, para que nada reste das impurezas da tarde. Por fim, peneira um resto de ouro da areia do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal. Se quiseres, para que as cores se não desprendam com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado. Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico. Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que possas distinguir entre uma e outra. Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim, iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser, algum dia, imitar o céu.
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«Pedra Filosofal» \ ANTÓNIO GEDEÃO
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, 19
barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.
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«Verbo Ser» \ CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser Esquecer.
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«Garota de Ipanema» \ VINICIUS DE MORAES Olha que coisa mais linda Mais cheia de graça é ela menina, que vem e que passa Num doce balanço a caminho do mar Moça do corpo dourado Do sol de Ipanema O seu balançado é mais que um poema é a coisa mais linda que já vi passar Ai! Como estou tão sozinho Ai! Como tudo é tão triste Ai! A beleza que existe A beleza que não é só minha E também passa sozinha Ai! Se ela soubesse que quando ela passa O mundo interinho se enche de graça E fica mais lindo por causa do amor Só por causa do amor...
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«O Mostrengo» \ FERNANDO PESSOA
O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; A roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tetos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo: «El-Rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso. «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse: «El-Rei D. João Segundo!» Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!»
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«Cântico Negro» \ JOSÉ RÉGIO
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 24
Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou - Sei que não vou por aí!
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