7 minute read

2.4.3 – Palmares

No navio negreiro O negro veio para o cativeiro. Finalmente uma lei O tráfico aboliu, Vieram outras leis, E a escravidão extinguiu, A liberdade surgiu Como o poeta previu. (Anexo 5)

Mais uma vez a Lei Áurea é retomada no contexto da palavra liberdade sendo que, anteriormente, o autor mencionou a Eusébio de Queiroz em “Finalmente uma lei/ o tráfico aboliu” e implicitamente as leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. Ao final do samba-enredo, o registro de que os negros seriam livres, em definitivo, sem o navio negreiro que, simbolicamente, representou todas as dores da escravidão narradas pelo poeta dos escravos. Assim, iniciaria um novo tempo de liberdade, porque “não há mais cativeiro”. Diante desse verso, há que se questionar – não existiam outras formas de opressão naquele tempo da escrita? Eneida de Moraes destaca que quarenta escolas desfilaram no Carnaval daquele ano de 1957. A pesquisadora descreveu a mobilização das pessoas, homens, mulheres, crianças que vinham organizados, bem vestidos, com suas fantasias ricas e de bom gosto “cantando as glórias de Castro Alves, a fundação do Rio de Janeiro, falando-nos com a voz do samba em Estácio de Sá, em Pedro I, em D. João VI; louvando nossas riquezas, saudando nosso petróleo e a Petrobrás, cantando-nos harmoniosamente glórias de nosso passado, falando em nossos escritores, em nossos estadistas, na nossa gente.” (MORAES, 1958, p. 301-302)

Advertisement

2.4.3 – PALMARES

Em 1960, a escola de Samba Salgueiro apresentou o Quilombo de Palmares, cujo enredo foi contado à maneira dos griot e de outros contos tradicionais, retomando o pretérito “No tempo em que o Brasil ainda era/ um simples país colonial” para destacar, no estado de Pernambuco, o Quilombo de Palmares17, como um rastro, um lugar de memória, um símbolo de resistência à escravidão na Era Colonial do nosso país.

17 Lilia Schwarz e Heloísa Starling definem o Quilombo de Palmares como “a maior comunidade de escravos fugidos e possivelmente a que sobreviveu por mais tempo na América Portuguesa”. (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p. 100)

Estandarte da Salgueiro sobre Palmares, em 1960. http://cjcarnaval.blogspot.com.br/2015/05/e-quando-o-salgueiro-passou-alguem.html

A história contada no samba-enredo, preparado para o desfile, coincide muito com a oficial, principalmente, no tocante ao contexto daquela época de Palmares, quando, de fato, as invasões holandesas traziam um clima de instabilidade no nordeste brasileiro, o que possibilitava a fuga de escravizados.

Com a invasão dos holandeses Os escravos fugiram da opressão E do julgo dos portugueses. Esses revoltosos Ansiosos pela liberdade Nos arraiais dos Palmares Buscavam a tranquilidade. (Anexo 8)

Observemos que, nesse fragmento a palavra liberdade é definida como um alvo, uma meta, um objetivo máximo dos revoltosos, “ansiosos” por ela. A narrativa prossegue com a figura de Zumbi, “o divino imperador”, mesclando o plano espiritual e o material, como os portugueses assim o fizeram com a fé e o império. De igual proceder, objetivando tornar o samba-enredo um elemento épico por excelência, o escritor dialoga intertextualmente com a Tróia, da Ilíada e Odisseia, obras clássicas atribuídas a Homero: “Surgiu nessa história um protetor / Zumbi, o divino imperador / Resistiu com seus guerreiros em sua Tróia” . (Anexo 8) Zumbi, apesar da heroica resistência e do comando à frente do Quilombo de Palmares, foi abatido pelo exército colonial liderado por Domingo Jorge Velho, conforme a história registra. Dessa forma, o autor encerra o samba-enredo sugerindo o suicídio para

o líder negro ao ver a sua Tróia18 incendiada. A “Serra da Barriga” foi substituída pela “Serra do Gigante” causando um efeito estético maior que a rima “impressionante” sugerindo um espaço amplo de liberdade.

De luta e glória, Terminou o conflito dos Palmares, E lá no alto da serra, Contemplando a sua terra, Viu em chamas a sua Tróia, E num lance impressionante Zumbi no seu orgulho se precipitou Lá do alto da Serra do Gigante. (Anexo 8)

O desfecho dessa canção carnavalesca é uma homenagem que se desdobrou para além das fronteiras dolorosas do passado escravista, a exemplo, o louvor às heranças culturais africanas, como o maracatu, por sua vez, uma manifestação afro-brasileira musicada e dançada, voltada aos rituais de coroação dos reis do congo. Um patrimônio que pertence ao compositor e, ao mesmo tempo, é o elemento capaz de inverter a posição de dominado – “Meu maracatu” tem origem nobre e ele “É da coroa imperial/ É de Pernambuco”. Portanto, há que se considerar que os escritores dos sambas-enredos se utilizam de vários recursos para rememorar as histórias do passado e, não raras vezes, diante dos fatos trágicos como a queda de Palmares, ressignificam a palavra liberdade e, simultaneamente, agregam, à canção, os momentos festivos, culturais, como o maracatu, simbolizando uma herança de Pernambuco, lugar de Palmares. Monique Augras, analisando esse samba-enredo, afirmaque o único herói trágico homenageado como tal é Zumbi dos Palmares e que a exaltação a ele contrasta fortemente com o tratamento dado às personagens valorizadas pela história oficial. “O suicídio, além de estar claramente descrito, não é enfocado como sacrifício, mas sim como orgulhoso desafio. Aqui, a violência está presente, e responde à opressão”. (AUGRAS, 1998, p.137) Relevante destacar que a escolha desse tema ocorreu depois que o Presidente da Salgueiro, Nelson de Andrade, foi ao Teatro Municipal, conhecer e convidar o professor da Escola de Belas Artes e cenógrafo Fernando Pamplona19 para elaborar o enredo para

18 Ao comparar Palmares a Tróia, muito provavelmente, os autores desse samba-enredo buscaram um diálogo intertextual com os escritos do intelectual português Joaquim Pedro de Oliveira Martins quem, segundo Jean Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, em Três vezes Zumbi, introduziu para a memória de Palmares um caráter épico, “o mais belo, o mais heroico” exemplo de protesto do escravo. “É uma Tróia negra, e a sua história uma Ilíada” (FRANÇA e FERREIRA, 2012, p. 80) 19 Sérgio Cabral, quando entrevistou Fernando Pamplona, perguntou-lhe sobre a proposição do enredo “Quilombo de Palmares” no primeiro encontro com Nélson de Andrade. Pamplona afirmou que na ocasião estava lendo um livro editado pela Biblioteca do Exército, escrito por dois militares, sobre Palmares. “Era um livro extraordinariamente bem feito. O que sei é que, depois, esse livro sumiu da Biblioteca do Exército.

o carnaval de 1960. A afirmativa de Pamplona “veio acompanhada da sugestão de que o enredo de 1960 do Salgueiro fosse uma homenagem a uma personalidade tão importante para a História do Brasil quanto esquecida pelos compêndios, o líder negro Zumbi dos Palmares” . (CABRAL, 2011, p. 200) Sérgio Cabral, nessa linha analítica, afirma que a Salgueiro, em seus poucos anos de existência, já havia fugido dos padrões tradicionais ao homenagear um acusado de subversão, o prefeito do Rio, Pedro Ernesto e também tinha uma disposição de ir em busca do novo, como o enredo que homenageou o pintor francês Jean-Baptiste Debret, no ano anterior, 1959. Merecem consideração as dificuldades iniciais que Fernando Pamplona e sua equipe encontraram para convencerem os integrantes da Salgueiro a se apresentarem com as fantasias de escravizados. Sérgio Cabral assegura que uma velha tradição, não só das escolas de samba, como das manifestações folclóricas de origem negra, permitia aos negros realizar, pelo menos na indumentária, o sonho de se apresentarem como reis, rainhas, duques etc. “Afinal, o povo das escolas de samba, desempregado ou mal pago em seus empregos, já era escravo o ano inteiro. Por que ser escravo também no carnaval?” (CABRAL, 2011, p. 201) Essa experiência adquirida por Pamplona de vestir os negros com as fantasias de escravizados e que colaborou, de certa maneira, para a vitória da escola de samba Salgueiro, ao representar o contexto do tempo de Palmares, permite-nos verificar, a partir das reflexões de Roberto DaMatta, que realmente os participantes daquele Carnaval estavam conscientes de que uma nova inversão era fundamental para a festa “Chama a atenção, em tais desfiles, a inversão constituída entre o desfilante (um pobre, geralmente, negro ou mulato) e a figura que ele representa no desfile (um nobre, um rei, uma figura mitológica)”. (DAMATTA, 1981, p.46) Portanto, o samba-enredo Quilombo de Palmares é emblemático não somente pela proposta de homenagear um herói negro, mas também do convencimento da representação da comunidade negra, uma espécie de destronamento de uma tradição, para descer ao passado da escravidão e depois serem coroados, novamente, com a reescrita da

Nélson topou a ideia”. (CABRAL, 2011, p. 438) Seria importante se esse livro fosse encontrado e estudado, pois, indubitavelmente, teríamos acesso a mais um documento fundamental para a história do Brasil. Ainda sobre a entrevista, Pamplona argumentou que o escritor e estudioso africanista, Édison Carneiro, não concordou com as fantasias de escravos. Diante disso, ele quisera saber o porquê de os negros se fantasiarem com as roupas dos senhores nas escolas de samba, no maracatu e nas congadas. Pamplona e a equipe, não obtendo a resposta, especularam que, naqueles casos, o traje teria mesmo a função de fantasia. “Ou seja: a roupa africana era o traje do escravo. Nos festejos, portanto, fantasiavam-se com a roupa que representava o poder. O pessoal das escolas de samba gostava muito de sair com as roupas dos nobres que eram chamadas sempre de “Luís XV”, qualquer época que representasse”. (CABRAL, 2011, p. 440)

This article is from: