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3.3 – Liberdade e República

A partir desse primeiro samba, vamos verificar que há, nos demais, ao menos naqueles que têm a liberdade relacionada ao povo indígena, essas marcas preponderantes – a folclorização, a harmonia dele com a natureza e a retomada do “bom selvagem”, do protótipo do cavaleiro medieval emergido dos textos dos nossos escritores do Romantismo. Dessa forma, nos sambas-enredos coletados por nós, quase não há uma denúncia da escravidão indígena e um silêncio que incomoda sobre as situações de preconceito e discriminação que também aviltam esse povo. Um discurso para representar o outro bem diferente do discurso do negro. Há que se reparar22 .

3.3 – LIBERDADE E REPÚBLICA

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Nesse segundo ciclo de 1965 a 1985, encontramos dois sambas-enredos em que a palavra liberdade foi atribuída ao contexto da República. Salgueiro, 1967, com a História da liberdade no Brasil23 (Anexo 12) e Unidos do Cabuçu, 1979, com O gigante negro na abolição da República. (Anexo 25) Importante registrar que em muitos sambasenredos a liberdade foi escrita mais de uma vez e, no processo de repetição, os referentes podem ter sido modificados. Esses dois sambas exemplificam essa situação. O História da Liberdade no Brasil, por exemplo, tem o vocábulo relacionado à Escravidão (Zumbi), à Independência (D. Pedro) e à República (Deodoro). Sobre a república, destacamos os seguintes versos:

Liberdade, Liberdade afinal, Deodoro acenou Está chegando a hora Está chegando a hora, E assim quando a aurora raiou, Proclamando a República, O povo aclamou. (Anexo 12)

22 Observemos que Lilia Schwarcz e Heloísa Starling discorreram acerca da situação dos indígenas durante o Regime Militar “Mas nada se compara aos crimes cometidos pela ditadura contra as populações indígenas. O mais importante documento de denúncia sobre esses crimes – o Relatório Figueiredo – foi produzido pelo próprio Estado, em 1967, e ficou desaparecido durante 44 anos, sob a alegação final de que havia sido destruído num incêndio. (...) O resultado é estarrecedor: matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades foram cometidas contra indígenas brasileiros por proprietários de terras e por agentes do Estado.” (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p. 463) 23 Esse samba-enredo será analisado na seção “3.6 – Liberdade e Independência”.

Em O gigante negro na abolição da República, da Unidos do Cabuçu, percebemos o reconhecimento, por parte dos compositores, da postura política de José do Patrocínio, em defesa da abolição da escravidão e da Proclamação da República. Esse samba rememorou o período colonial, relatando o sofrimento cotidiano de um negro coletivo que, em fuga dos castigos, refugiava-se nas matas, nos quilombos. Naquele contexto é que surge “Um negro jornalista, farmacêutico e escritor/ Em colunas de jornais lutava pelos irmãos de cor”, José do Patrocínio24 , considerado, para os sambistas, um gigante negro da abolição que “pela República lutou/ conseguindo a Proclamação/ e assim a liberdade chegou”. Apoiados nos argumentos de José Murilo de Carvalho, observemos que o nosso povo não tivera participação na Proclamação da República no Brasil, diferente do papel que coube ao povo na Revolução Francesa.

Se nenhum líder civil republicano teve qualquer gesto que pudesse ser imortalizado pela arte, o povo também esteve longe de representar um papel semelhante ao que lhe coube na Revolução Francesa de que tanto falam os republicanos. Apesar dos esforços de Silva Jardim, nem ele próprio foi admitido ao palco no dia 15. O povo seguiu curioso os acontecimentos, perguntou-se o que se passava, respondeu aos vivas e seguiu a parada militar pelas ruas. Não houve tomada de bastilhas, marchas sobre Versalhes nem ações heroicas. O povo estava fora do roteiro da proclamação, fosse este militar ou civil, fosse de Deodoro, Benjamin ou Quintino Bocaiúva. (CARVALHO, 2014, p. 52-53).

Dessa forma, o povo, novamente, foi desconsiderado em mais um processo histórico, e o carnaval, atendendo a diferentes objetivos, seria também o momento oportuno para os autores dos enredos reescreverem fatos legitimados, como a Proclamação da República, apontada no samba da Unidos do Cabuçu, acrescentando novos discursos, incluindo a participação de personalidades iguais a José do Patrocínio, aquele “gigante negro”, que defendeu a República e a Abolição da Escravatura.

24 Em Isabel, a “Redentora” dos escravos, Robert Daibert Junior afirma que o abolicionista José do Patrocínio, tão empenhado em sua causa, escrevera severas críticas à herdeira do trono reclamando a Isabel uma postura de governo, onde o executivo, o legislativo e o judiciário não sejam apenas um formato, mas utilizados em favor da resolução do problema, que era o fim da escravidão negra no Brasil. (DAIBERT, 2004, p.121) Nesse sentido, os versos da Unidos do Cabuçu, ao reverenciarem José do Patrocínio como “O gigante negro na abolição da República” autorizam reconhecer a história daquele brasileiro que também defendia a causa dos irmãos escravizados.

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