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3.6 – Liberdade e Independência
realidade/ Liberdade/ O sonho foi morar em outra cidade” (Anexo 34), em alusão à história da artista homenageada.
3.6 – LIBERDADE E INDEPENDÊNCIA
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Nesse período, semelhante ao anterior, a Independência do Brasil foi parte dos versos sobre a liberdade. A São Clemente, em 1967, com o samba-enredo Festas e tradições no Brasil, descreveu eventos nos palacetes, festas nordestinas a São Benedito e a coroação do rei negro Baltazar no Rio de Janeiro. Apresentou os dominós, os arlequins, os pierrôs “Que cantavam a família imperial” e rememorou a Independência da Bahia, no Dois de Julho, e a do Brasil em “Já raiou a liberdade”. (Anexo 13) A partir de várias festas, aquela Escola mesclou alegria, cultura e independência na grande festa do povo. Nessa mesma linha temática, a Em Cima da Hora, em 1972, desfilou com o samba-enredo intitulado Bahia, berço do Brasil no qual reverenciou Maria Quitéria, uma militar que pertenceu aos quadros das Forças Armadas Brasileiras.
Salve o Senhor do Bonfim Que os baianos têm muita fé Glória à heroína Maria Quitéria Mulher de grande valor Lutou pela liberdade. (Anexo 22)
Nesse samba-enredo, o escritor igualmente apresentou elementos culturais, a capoeira, e religiosos, o candomblé e o catolicismo, para chegar ao elemento histórico, a heroína, baiana valorosa que lutou por uma liberdade coletiva. A Unidos de São Carlos expôs, em 1981, o samba-enredo Quem diria, da monarquia à boemia, ao esplendor da Praça Onze em que, novamente, nos permitiu reconhecer o discurso oficial que atribui ao Imperador, ainda que sutilmente, a responsabilidadepelaIndependênciapolíticaeeconômicado Brasilde Portugal.Vejamos:
Nesta avenida iluminada Vem o artista louvar O esplendor da velha praça Relíquia da cultura popular Destacando nosso imperador A liberdade, a monarquia Saudando o namorador Sua corte e a boemia (Anexo 26). Ainda sobre esse mesmo tema, a nossa Independência, a Portela, em 1983, escreveu o samba-enredo A Ressurreição das coroas, destacando a liberdade nos versos
“A Independência flutuou/ Assim a liberdade ecoou/ Um canto forte alastrou/ Trazendo a miscigenação de amor”. (Anexo 28) Relevante assinalar que, nesse texto, o enunciador promete no introito “embalar na poesia/ com amor e sedução” e, depois de uma retomada cultural e histórica, coroar do índio à nobreza – Ganga Zumba, Obá, Chico Rei –encerrando a música com três versos triunfais “O rei mandou sambar/ O rei mandou vadiar/ no carnaval das ilusões”. Que rei seria? O Momo, o do Congo ou mesmo o povo, carnavalizado de rei? E as ilusões? Quais? As do texto ou aquelas além dele? Os dois sambas a seguir são textos que contemplam referentes variados no contexto da liberdade. Canções que têm em comum a Independência, a República e a Escravidão. Em 1967, nos primeiros anos da Ditadura Militar, a Escola de Samba Salgueiro elaborou o enredo História da Liberdade no Brasil (Anexo 12), a partir do qual resgatou a memória de personagens e de eventos que objetivavam a libertação dos escravizados, a Independência do Brasil e a Proclamação da República. A palavra liberdade foi empregada quatro vezes nesse samba-enredo. Nessa direção, esse escrito rememora a história de Zumbi, no Quilombo de Palmares, o grande herói que “Chefia o povo a lutar/ Só pra um dia alcançar / Liberdade.” Chama a atenção o emprego do verbo chefiar, no presente do indicativo, apontando para um ‘agora’ de Zumbi. Prosseguindo a escrita, o compositor enumera expressivos levantes e rebeliões Emboabas, Mascates, Inconfidentes. A palavra liberdade emerge no contexto da Independência do Brasil, quando o narrador aponta o ‘Fico’ de D. Pedro I como ato que contrariou a corte portuguesa e “Era a liberdade que crescia” para o futuro Sete de Setembro. Mais uma vez, a Princesa Isabel é personagem de um samba-enredo que apresenta o tema da liberdade. “No dia 13 de maio/ negro deixou de ter senhor/ Graças a Princesa Isabel/ abolindo com a Lei Áurea/ O cativeiro tão cruel”27. Finalizando acanção, o autor homenageiaDeodoro da Fonseca com os seguintes versos “Liberdade, liberdade afinal/ Deodoro acenou/ Está chegando a hora/ E assim quando a aurora raiou/ cortejando a República/ O povo aclamou28”.
27 Não nos parece exagero afirmar que esses versos sugerem uma crítica implícita à época em que ele foi escrito e apresentado. Será que a maioria da população, naquele momento, não teria um senhor que controlava o destino do país – o regime de exceção? Isabel, mulher que exercera o poder, no Rio de Janeiro, lugar da recepção carnavalesca, não seria, mais uma vez, contraponto ao poder masculino, exercido pelos militares? 28 Em A Formação das Almas – o imaginário da República no Brasil, José Murilo de Carvalho elenca os candidatos a herói que participaram do 15 de novembro. Deodoro, Benjamin Constant e Floriano Peixoto, contudo “A busca de um herói para a República acabou tendo êxito onde não o imaginavam muitos dos participantes da proclamação. Diante das dificuldades de promover os protagonistas do dia 15, quem aos poucos se revelou capaz de atender às exigências da mitificação foi Tiradentes” (CARVALHO, 2014, p. 57)
A leitura dessa História da liberdade no Brasil permite-nos deduzir que, se ainda vigorava a exigência de temas nacionais na escrita dos sambas-enredos, os autores o fazem revisando o nosso passado, legitimando o que já estava oficial no discurso histórico e, ao mesmo tempo, enaltecendo aqueles movimentos que não foram suficientemente estudados e reconhecidos na luta pela liberdade, como o Quilombo de Palmares. Igualmente, merece destaque a forma com que o samba-enredo é finalizado. O desfecho está no período republicano. Depois dele, nada mais foi dito. Nenhuma consideração sobre a Era Vargas e aquele período de Ditadura Militar. O silêncio, esse não dizer, presume, num primeiro momento, omissão dos autores, contudo, podemos mudar de opinião se recuperarmos as palavras introdutórias desse escrito: “Quem por acaso folhear a história do Brasil / verá um povo cheio de esperança/ desde criança/ lutando para ser livre e varonil”. Propor a autoestima do povo, utilizando as palavras “esperança”, “luta” e “livre” é, a nosso sentir, uma forma de estimular resistência diante da força opressora do presente, podendo, inclusive, superá-la, tendo, como estratégia, recontar episódios mais distantes e inescapáveis da nossa memória. Afinal, “Contamos histórias porque finalmente as vidas humanas têm necessidade e merecem ser contadas”, (RICŒUR, 2012, p. 116) Nesse samba-enredo, o narrador contou histórias, no plural. Histórias que gravitaram em redor da liberdade. Em 1969, em um dos momentos mais ásperos da Ditadura Militar, a Império Serrano trouxe para avenida os Heróis da liberdade (Anexo 15), rememorando a Escravidão, a Inconfidência Mineira e a República. O samba-enredo é iniciado com um canto “Ô ô ô ô/ Liberdade, Senhor” em que o autor menciona o lamento e a agonia de um escravizado ao suplicar pelo “fim da tirania”. A liberdade é retomada em “Já raiou a liberdade / A liberdade já raiou”, aludindo à Independência do Brasil. Novamente, há um procedimento metalinguístico no texto, posto que o samba “Tem a sua primazia/ Em gozar de felicidade/ Samba, meu samba/ Presta esta homenagem/ Aos heróis da liberdade”. Assim, a função dessa escrita parece-nos dupla, a busca pelo gozo da felicidade, da alegria, inerentes aos festejos carnavalescos e o discurso em homenagem aos “Heróis da Liberdade”, de forma difusa. Palavras como “tirania”, “opressão”, “soldados”, “alunos”, “professores”, “juventude” sugerem-nos pensar que o sambaenredo não tratava de uma escrita totalmente debruçada no passado, ao contrário, os fatos consumados serviam de pretexto, de instrumento de denúncia daquele momento histórico.
Inclusive, Monique Augras afirmou que esse samba-enredo despertou a desconfiança das autoridades29 .
Bateria da Império Serrano – 1969. Foto: Agência O Globo. Fonte:http://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/um-hino-liberdade-emtempos-de-perseguicao-politica-11492976.html
Era, afinal, o primeiro carnaval depois do Ato Institucional no 5, e os versos de Silas de Oliveira, Mano Décio e Manuel Ferreira pareciam evocar temas subversivos30 . “Felizmente, o compositor conseguiu tranquilizar as autoridades, ‘fazendo-as ver que o samba era histórico e que apenas por coincidência poderia se relacionar com o que se estava passando no país àquela hora’” . (Valença e Valença, 1981. p. 93. In: AUGRAS, 1998, p. 67) Sérgio Cabral também discorreu sobre esse escrito que, para ele, foi considerado um dos mais bonitos da história das Escolas de Samba. Conforme o seu relato, quem
29 “Contam que um a avião da Força Aérea sobrevoou o desfile, para impedir que o samba fosse escutado pelo povo”. (MUSSA e SIMAS, 2010, p. 76) 30 Diana Taylor, Em o Arquivo e o Repertório, argumenta que a Ditadura Militar Brasileira foi diferente de outras ditaduras “O Brasil, diferentemente de outros países latino-americanos sob governos ditatoriais durante o mesmo período, parecia permitir maior liberdade física e sexual, embora se negasse a liberdade de expressão e outros direitos civis. A imagem de um corpo sensual e multirracial era o maior produto de exportação do Brasil. O carnaval e o samba, os dois produtos culturais brasileiros mais conhecidos, glorificam a carne sensual, ondulante, aparentemente não reprimida. O corpo como mercadoria econômica e política funcionava como significante de uma liberdade apenas superficial, parte de um espetáculo duplo, ou melhor, um espetáculo dentro de um espetáculo (...) O corpo, para os militares, faz uma coisa. As palavras vão para outro lugar”. (TAYLOR, 2013, p. 316)
detestou o samba foram as autoridades militares que intimaram os autores dele e os encaminharam ao Secretário de Segurança da Guanabara, general França. França e seus assessores se incomodaram, segundo nosso pesquisador, com esses versos “Ao longe, soldados e cantores/ Alunos e professores/ Acompanhados de clarim”. Por quê?
[...] porque a ditadura militar ainda não se recuperara do susto que levou com a “passeata dos cem mil”, realizada em 1968 sob a liderança dos estudantes pela volta da democracia no país. Viram naquele trecho uma referência à “passeata dos cem mil”. Os compositores explicaram que a descrição nada tinha a ver com fatos recentes e que tudo aquilo fora retirado dos livros de História do Brasil. Depois de muita conversa, tiveram de retirar do samba a palavra revolução, substituída por evolução. (CABRAL, 2011, p. 216)
Ao concluir a leitura desse samba-enredo podemos certificar também que Paul Riccœur esclarece que o discurso histórico deve ser construído em forma de obra; “cada obra se insere num ambiente já edificado; as releituras do passado são outras tantas reconstruções, às vezes ao preço de custosas demolições: construir, desconstruir, reconstruir são gestos familiares para o historiador”. (RICŒUR, 2012, p. 222) Certamente, os sambistas agiram igual aos novos historiadores, recontando episódios do registro oficial e, ao mesmo tempo, apresentando um outro discurso sobre a liberdade. Praticaram a inversão, propiciada pela língua ao ser desviada, deslocada, de tal forma que incomodou altos representantes do regime em vigor. Na avenida, pensando nas reflexões de Diana Taylor, não era apenas o corpo em movimento, mas o desejo de liberdade, pronunciado, cantado, nas letras do samba. Devemos, então, considerar, mais uma vez, a dimensão da escrita proposta por Barthes, escrita que pode assumir o “caráter ficcional dos falares mais sérios” e dar à linguagem uma dimensão carnavalesca, escrita que “antecipa um estado das práticas de leitura e de escrita em que é o desejo que circula, não a dominação”. (BARTHES, 1984, p. 103-104)