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3.9 – Considerações Sobre Este Capítulo CAPÍTULO 4 – A PALAVRA LIBERDADE AO LONGO DA DEMOCRACIA
3.9 – CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTE CAPÍTULO
Neste capítulo, verificamos que a Independência e a Escravidão foram os agrupamentos que se repetiram do ciclo 1; enquanto naquele período, de 1943 a 1964, localizamos o percentual de 30% dos sambas empregando a liberdade no contexto da Independência do Brasil, nesse ciclo, de 1965 a 1985, o percentual foi de 16%. O tema da Escravidão esteve em 50% dos sambas no período anterior e nesse em 35,14%. Observamos, também, a inserção de outros temas, personalidades e eventos, Indígenas, Estácio de Sá, Batalha dos Guararapes e Semana de Arte. Elaboramos novos agrupamentos como o Carnaval, o Povo, a República e as Significações Difusas, com o objetivo mesmo de examinar a potencialidade expressiva do nosso vocábulo, naqueles sambas-enredos elaborados e apresentados pelas Escolas de Samba no tempo da Ditadura Militar.
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Evidentemente, tivemos de considerar a imposição do contexto na compreensão, a que nos foi alcançada, acerca do trabalho poético dos compositores, de deslocamento da palavra. Assim, alertamos, repetidamente, que o nosso entendimento é uma hipótese, não uma certeza, posto que aqueles escritos assumem a linguagem, muitas vezes, imprecisa. Era necessário sê-lo. Uma linguagem que, não raro, nos perturba, nos incomoda, nos desassossega – é aquilo! Mas, será que não pode ser isso, também? Talvez tivéssemos entrevistado um ou outro compositor do período, tentado colher um testemunho, pudéssemos ter encontrado alguma resposta mais objetiva a muitas de nossas conjecturas. Por outro lado, além de estarmos diante de um número considerável de autores dos sambas-enredos, comprometeríamos a significação, ao escolher um autor em detrimento de outro, ou mesmo se alguém escolhido argumentasse que a intenção particular em elaborar esse samba foi esta e não aquela. Se assim o fosse, centraríamos a significação somente no autor e sabemos que ele não dá conta de sua obra, em absoluto. A obra de arte, é maior que seus criadores, maior que nós leitores, espectadores e críticos. De toda forma, a análise, até aqui elaborada, leva-nos a afirmar que, mesmo recontando, nos sambas-enredos, a história oficial a partir de personalidades, monumentos e eventos do passado, em virtude da “imposição” dos temas nacionais, os compositores reescrevem e ressignificam a nossa memória, especialmente, aquela da escravidão negra.
Confirmamos que, no período anterior, os heróis da causa negra foram a Princesa Isabel, o poeta abolicionista Castro Alves, o líder negro africano que se estabelecera em Ouro Preto, Chico Rei, e a entidade Preto Velho. Nesse ciclo, destacaram-se Palmares, Zumbi, José do Patrocínio e Chica da Silva. Trazer novos símbolos, novos ícones para a escrita parece-nos pretender expandir a memória para outras perspectivas, incluindo,além de outras personalidades já homenageadas, uma mulher negra que superou a condição de escravizada.
Sobre Palmares, é imprescindível conferir que os sambas-enredos a ele aludidos não mencionaram os embates ideológicos que puderam ter existido entre seus destacados líderes – Ganga Zumba e Zumbi, conforme registrado por vários estudiosos. De igual forma, no projeto de luta pela liberdade, as diferenças religiosas também foram desconsideradas pelo olhar do narrador, posto que Alá e Olorum se irmanaram. Observemos que a principal preocupação do escritor é descrever uma comunidade unida, sem se apropriar do elemento servil, como muitas vezes foi cogitada, por alguns teóricos, a permanência da escravidão em Palmares. Os compositores, evidentemente, idealizaram aquele quilombo e seus líderes com justa razão – a de valorizar, às vezes em tom épico, a comunidade negra e o enfrentamento à opressão. Afinal, Palmares, uma comunidade multirracial no imaginário coletivo, era o exemplo maior de um local em que se refugiaria a liberdade. Palmares era a “chama” daqueles negros rebelados que se contrapunha à escuridão das forças autoritárias que controlavam o país. Do mesmo modo, não podemos desconsiderar que, ao escrever sobre episódios históricos brasileiros, os escritores dos sambas-enredos não evitaram o discurso da democracia racial. Se a indústria da escravidão era denunciada, as críticas se reservaram somente àquele processo, genericamente. Assim, os colonizadores portugueses, os representantes do Estado, a elite eugenista, enfim, todos aqueles que defendiam claramente a escravidão e práticas segregacionistas, não eram combatidos, denunciados em suas posições políticas – ainda que essas autoridades, afastadas pelo tempo, não estivessem presentes no momento da escrita. Portanto, temos de considerar que a estratégia de união de todos, em um projeto nacional, não poderia ser distanciada do ideário deharmonia entre as raças constituidorasdo país. Excluindo nomes de autoridades conhecidas que se empenharam pela permanência do elemento servil poderia ser uma forma de aproximação da elite patrocinadora da festa e cada vez mais definidora das regras de desfiles, ingressos e premiações. A proposta era não ofender, provocar, essa elite e, simultaneamente, naquele evento que sempre propiciou alternâncias e renovações,
apontar temas históricos de interesse da comunidade negra, de todos, porque o dito estava incompleto e era preciso dizer mais, sem mágoas, sem cólera, sem ressentimentos, denunciando as sequelas do sistema colonial, clamando por igualdade ao lado de liberdade, sem apontar algozes e enaltecer personalidades anônimas ou pouco lembradas que tiveram importância fundamental, de forma positiva, na memória cultural e histórica do país.
Mesmo nos momentos de dificuldades por que se passava o processo de escrita, na obrigatoriedade de temas nacionais, no controle do Regime, os compositores podem ser comparados, em suas perspectivas e anseios, com aquele poeta de T.S. Eliot “Todo poeta gostaria, imagino, de ser capaz de pensar que a sua obra teve alguma utilidade social direta (...) Ele gostaria de ser um artista popular, de poder pensar o que pensa por trás de uma máscara cômica ou trágica. ” . (ELIOT, 2012, p. 155) No entanto, se os compositores foram bem sucedidos na questão negra, no sentido de apontarem vários exemplos de resistência e de superação da escravidão, como Zumbi e Chica da Silva, há de se ressaltar que a representação dos indígenas, no caso do emprego da palavra liberdade, foi estereotipada, consolidando aquela imagem construída no Romantismo, a do mito do bom selvagem e, ao mesmo tempo, acrescentando que o silvícola era um indivíduo propenso a ser aculturado. Finalizando essas breves considerações, salientamos que neste capítulo a liberdade também foi aludida ao Hino da Independência. Os versos “Já raiou a liberdade/ Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”, de Evaristo da Veiga, em 1822, passam a ser, na nova escrita “Já raiou a liberdade”, de “Festas e tradições no Brasil”, da São Clemente em 1967; “Mais tarde raiou a liberdade/ Para aqueles que completassem/ Sessenta anos de idade”, em “Sublime Pergaminho”, da Unidos de Lucas, em 1968, e “Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou”, em “Heróis da Liberdade”, da Império Serrano, em 1969.
Nesse período, observamos que a liberdade, em três sambas-enredos, foi inscrita, apoiando-se nos substantivos “grito” e no verbo “ecoar”, evidenciando o clamor por esse direito. São estes os exemplos: “O grito da independência/ E liberdade da escravidão”, em Três fases da poesia, da Acadêmicos de Santa Cruz, em 1971. “Assim, a liberdade ecoou/ Um canto forte se alastrou”, em A Ressurreição das Coroas, da Portela, em 1983 e “A liberdade fica/ Ainda ecoa pelos ares”, em O sonho de Ilê Ifé, da Unidos do Viradouro, em 1984.