MĂŠdicos na Terra da Luz
100 anos
Presidente da AMC Dra. Maria Sidneuma Melo Ventura
Presidente da AMB Dr. Florentino Araújo Cardoso
Organização Frederico de Castro Neves Ana Karine Martins Garcia Tibério Campos Sales
Pesquisa Cícera Rozizângela Barbosa Ribeiro Jana Rafaella Maia Machado
Coordenação Artística André Scarlazzari
Projeto Gráfico Isabel Schreiber
Tratamento de Imagem Elton Gomes
Crédito das Imagens Museu da Imagem e do Som Arquivo Nirez Academia Cearense de Medicina Faculdade de Medicina da UFC Associação Médica Cearense Fortaleza Nobre
Revisão Ortográfica nonoononononono
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MĂŠdicos na Terra da Luz
100 anos
Palavras da Presidente O Estado do Ceará vivia momentos difíceis do período republicano, a alternância de poder no governo do Estado se fazia após dolorosa experiência de revolta dos fortalezenses que culminou com a saída de Acioly assumindo o governo seu adversário, Franco Rabelo. O sertão cearense era invadido pelo cangaço e o fanatismo religioso concentrava-se principalmente em Juazeiro do Norte, onde o Padre Cícero Romão Batista era idolatrado, e, por ser homem dotado de inteligência privilegiada e desfrutar de acesso a informações que não atingiam a população, gozava de prestígio e poder em todo o Ceará. A Medicina, então, na segunda década do século XX, contava com poucos profissionais, 64 em todo o estado, 38 em Fortaleza, todos com formação em escolas do Rio de Janeiro, Bahia e estrangeiro. Eram filhos de famílias que detinham o poder econômico, político e/ou social na época. Não havia organismos públicos na organização da saúde, como não havia controle de doenças, situação que favorecia a proliferação de graves epidemias e alarmantes índices de mortalidade infantil. Nesse cenário, em que o Ceará repetiu o pioneirismo da libertação dos escravos, fundava-se a primeira instituição associativa médica do Ceará e segunda do Brasil, em 1913, precedida apenas pela Associação Médica de Pernambuco, fundada em 1841. O Centro Médico do Ceará (CMC), inicialmente idealizado como Associação Médica Farmacêutica, teve em Manuel Duarte Pimentel, nas dependências da Santa Casa de Misericórdia, a primeira
manifestação de compor uma sociedade médica. Em reunião na casa de Manuel Theóphilo Gaspar de Oliveira, no dia 20 de fevereiro de 1913, a Instituição foi proposta com a denominação de CMC, ocasião em que discutiram-se também os primeiros estatutos. A eleição da 1a diretoria, sob a presidência do Barão de Studart, a aceitação do nome, Centro Médico Cearense, e a aprovação dos estatutos, ocorreram em 25 de fevereiro do mesmo ano. A posse da diretoria deu-se em ato solene na Assembleia Legislativa em 25 de março de 1913. Quase 50% dos médicos do Ceará filiaram-se à instituição fundada por 26 dos 38 médicos militantes na capital, além dos 17 farmacêuticos e 07 cirurgiões dentistas, que compuseram o quadro de 53 fundadores. A partir de então, a história da Medicina do Ceará tomou uma direção progressista. O Centro Médico Cearense liderou inúmeros os movimentos em prol do profissionalismo na área da saúde, empreendeu ações importantes no campo assistencial e no ensino, e atuou de forma decisiva na política de saúde do Estado. Seus membros participaram ativamente da criação de unidades de saúde para atenção à lepra, à infância, e buscavam o avanço tecnológico e científico em congressos nacionais, cursos no exterior e promoviam a atualização médica, trazendo congressos nacionais para nosso Estado. A esse grupo de saudosa memória, devemos também a criação da Faculdade de Medicina do Ceará, em 1948. Passados 100 anos, nosso Estatuto preserva a essência da estrutura e das fina-
Dra. Maria Sidneuma Melo Ventura Presidente da AMC
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lidades daquele de 25 de fevereiro de 1913, mostrando que o CMC foi edificado em bases sólidas. A evolução técnico-científica e cultural fielmente acompanhada por sucessivas diretorias e o aperfeiçoamento constante do aparelho institucional mantém em nossa casa o espírito agregador da classe médica e o interesse pelos destinos da saúde da população. Ao longo desses 100 anos, inúmeras conquistas e desafios, sempre culminando com uma organização maior, como ocorreu com a proliferação de associações em todo território nacional, implicando na criação de uma instituição central que imprimisse maior unidade e poder aos diversos segmentos constituintes, as federadas. Assim, em 1951, com a criação da Associação Médica Brasileira (AMB), o CMC passou a integrar seu complexo de filiadas, otimizando e fortalecendo os princípios de defesa da dignidade profissional do médico e a assistência de qualidade à saúde da população. Reflexos do avanço associativo com a AMB são evidenciados, entre tantos feitos, com a elaboração do 1o Código de Ética Médica, em 1953, dando à classe médica brasileira um instrumento legal de deveres e direitos, baseados na Declaração de Genebra de 1948, fundamentada nos preceitos morais do juramento de Hipócrates, e, em 1967, com o lançamento da Tabela de Honorários Médicos, primeiro referencial norteador de remuneração do médico. O 1o centenário da Associação Médica Cearense (AMC) – CMC até o início da década de 2000 – é a garantia de solidez do associativismo médico, legado dos que nos antecederam, a quem rendemos nossa gratidão eterna e todas as homenagens neste ano de 2013. Vivemos um contexto distante daquele de 1913; hoje, o Ceará destaca-se no Brasil e no mundo globalizado, mo-
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vido pelo progresso. Ao completar 100 anos, nossa instituição ostenta vasta folha de serviços prestados à Medicina do Ceará no campo da defesa profissional, do ensino permanente, da influência nas políticas de saúde pública e na organização da saúde suplementar. Nossa missão principal de educação permanente do médico, sempre articula-se às ações de ética do exercício profissional e de defesa de salários dignos em todos os segmentos públicos e privados em que atuam os médicos. Congregamos 43 sociedades de especialidades médicas em atividade, mais de 7.000 médicos associados dos 14.240 registrados no Conselho Regional de Medicina (10.181 ativos), e, estatutariamente, estudantes de medicina também compõem nosso quadro de associados. Somos uma instituição vitoriosa, com ampla e permanente agenda de compromissos com a classe médica e com a população do Ceará, para os próximos centenários. Uma história tão significativa não deve perder-se na linha do tempo. É imperioso registrá-la de forma organizada a fim de perpetuar seus atos e atores, presenteando às futuras gerações um norte para sua condução em busca do progresso ilimitado e necessário. Daí a edição deste livro, o Livro do Centenário, comemorativo dos 100 anos de fundação de nossa entidade. Nesta edição histórica, além de fatos, nomes e conquistas relevantes na construção da trajetória do CMC/AMC, fica também grafada a evidência da frase do ex-presidente, professor Galba Araújo: “O homem vive eternamente através de suas ideias”. Conclamo, pois, aos que nos sucederem, a inspirarem-se nesse passado glorioso, para perpetuarem-se, construindo um futuro cada vez melhor.
Associação Médica Cearense 100 anos: a retomada do movimento associativo Iniciei a vida associativa no início dos anos 90, participando de eventos científicos, como o “Outubro Médico”, do qual fui Presidente na sua décima edição, que se realizou no Centro de Convenções do Ceará e foi o maior em número de inscritos até hoje, com vários conferencistas nacionais e internacionais. No final daquela década, a Associação Médica Cearense (AMC), ainda à época Centro Médico Cearense (CMC), passava por uma enorme crise: credibilidade, representatividade, esvaziamento. A relação com as demais entidades médicas (Conselho Regional de Medicina do Ceará – CREMEC e Sindicato dos Médicos do Ceará) era conflituosa ou simplesmente não existia. A renovação da diretoria permitiu a revalorização e a redinamização de nossa entidade, favorecendo maior integração, de um lado, entre o CMC e os problemas sociais com os quais os médicos ou a Medicina se relacionam e, de outro lado, entre os próprios associados. A estrutura administrativa foi reorganizada, com reuniões ordinárias semanais da Diretoria e forte engajamento de todos, nas suas respectivas atribuições. Na parte científica, a AMC buscou maior interlocução com nossas Sociedades Médicas de Especialidades e o “Outubro Médico” foi priorizado e revigorado. Como nossa principal e tradicional atividade científica, o “Outubro Médico” voltou a crescer em número de participantes e em importância social. O evento passou a ser realizado também em Juazeiro do Norte e Sobral, interca-
lando sempre com Fortaleza; era uma das maneiras de aproximar ainda mais os centros formadores de profissionais de saúde do Ceará. Passamos a participar mais ativamente das reuniões da Associação Médica Brasileira (AMB) e procuramos fazer parcerias com diversos setores e segmentos no Ceará, buscando maior visibilidade, importância e meios para melhorar os recursos da nossa entidade. Após um periodo de reorganização, nossa entidade voltou a interferir positivamente na sociedade cearense, procurando sempre melhorias nas condições de saúde da população e propondo mudanças nas políticas públicas na area de saúde. Buscamos, em especial, realizar entendimentos com as operadoras de saúde, que dominavam (e dominam) o setor de saúde complementar no Brasil, no sentido de valorizar os honorários médicos, que acumulavam contínuas perdas. Neste sentido, nossa entidade se reencontrava consigo mesma, já que a luta por melhores condições de trabalho dos médicos foi uma marca da atuação do CMC, desde sua fundação. Ao mesmo tempo, como foi lançada oficialmente a Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), iniciamos uma cruzada nacional para implementá-la, fazendo parte integrante da Comissão Nacional. Inúmeras reuniões foram realizadas por todo o país, divulgando para os médicos a relevância dessa medida. Era a classe médica tendo para si uma nova oportunidade de resgatar perdas em seus honorários, assim
Dr. Florentino Araújo Cardoso Presidente da AMB
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como tínhamos agora uma hierarquização dos procedimentos médicos reconhecidos no Brasil. Importante destacar que a CBHPM foi construída pela Associação Médica Brasileira (AMB) com a participação das sociedades de especialidades e a ajuda técnica da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), entidade de enorme credibilidade no Brasil. Foi uma luta árdua, mas conseguimos várias vitórias. Nesse cenário, o Ceará mais uma vez destaca-se como um dos primeiros estados a implantar a CBHPM (inicialmente, com banda de -20%). O mercado de operadoras de saúde no Ceará era inteiramente dominado pelo sistema UNIMED, especialmente pela UNIMED-Fortaleza. Todavia, foi o Grupo UNIDAS o primeiro a implantar a CBHPM no Ceará. Foi uma grande vitória do movimento médico, através da Comissão Estadual de Honorários Médicos, composta por seis membros, dois de cada uma das entidades médicas (AMC, CREMEC e SIMEC). Em Assembléia Geral bastante concorrida, após debates acalorados e intensos, os cooperados da UNIMED (a Diretoria Executiva era contra) finalmente decidiram pela implantação da CBHPM. Uma vitória dos médicos, uma vitória da verdade, uma vitória para trilhar um novo caminho de valorização do trabalho médico no sistema de saúde suplementar. Nesse periodo, já estava sedimentada a união das três entidades (AMC, CREMEC e SIMEC) em torno dos grandes embates para a valorização do médico, embora às vezes surgissem divergências, sempre resolvidas pacificamente. O CMC valorizava (e valoriza) a boa formação médica, a defesa dos bons cursos de medicina, o que significa uma luta contra a abertura desenfreada de escolas médicas, pois as novas eram na grande
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maioria privadas, sem hospital de ensino, sem um corpo docente qualificado. Nossa necessidade sempre foi de médicos qualificados e não em quantidade excessiva. Surgiam novas faculdades de medicina no Ceará: Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte (FMJ – 1998), curso de Medicina de Sobral (2001), curso de Medicina do Cariri (2001), curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (UNIFOR – 2008), curso de Medicina da Faculdade Christus (2008). A AMC e a AMB enfatizam fortemente a importância do médico bem formado, tanto na graduação quanto na pósgraduação. Precisamos de faculdades de medicina de qualidade, com vagas ampliadas para residência médica, preferencialmente nas áreas de maior carência para as necessidades do povo, tendo como base os critérios epidemiológicos. Com isso, mais trabalho e dedicação para o movimento associativo brasileiro, pois as lutas em defesa da nossa profissão são cada vez mais intensas na defesa de um ensino médico de qualidade e com forte visão nos problemas sociais por que passa a população brasileira. Ao mesmo tempo, acontecia um intenso processo de judicialização da saúde e o crescimento do mercado suplementar de saúde, com operadoras que não cumprem as suas obrigações, vilipendiando a medicina e colocando em risco a saúde das pessoas. A precarização do trabalho médico progredia, exigindo do movimento associativo ainda mais força e fôlego para atuar nos sistemas público e privado de saúde. A verticalização de operadoras apertava o cerco sobre os profissionais de saúde, sacrificando seus honorários. Neste momento de lutas em favor de uma Medicina de qualidade, os dirigentes associativos precisam estudar mais
e aprender melhor sobre os temas que afetam diretamente a atuação dos médicos, como a incorporação tecnológica, a economia da saúde, a inflação na saúde, etc. Além disso, é preciso conhecer e avaliar continuamente o sistema publico de saúde (SUS), pois é dele que depende exclusivamente a grande maioria da nossa população (cerca de 75%). O interesse de nosso movimento é fazer um SUS forte, realmente universal, igualitário, equânime. É preciso sempre chamar atenção para o sub-financiamento da saúde pública, para os problemas de gestão (politiqueira e eleitoreira em muitos estados e municípios), para a corrupção, para os desvios. A baixa remuneração no SUS afasta os médicos, diminuindo ainda mais o acesso dos pacientes, que, no Brasil todo, peregrinam em longas filas de espera para consultas, exames, cirurgias. Defendemos que para termos avanços significativos na saúde e termos melhor utilização dos recursos, precisamos que nossos pacientes tenham acesso rápido e de qualidade. Melhorar o acesso depende da vontade dos governos no setor público, pois a grande concentração de médicos nas capitais e grandes cidades deixa sem médicos os pequenos municípios, que verdadeiramente carecem de infra-estrutura e boas condições para o desejado exercício da Medicina. A esperança da regulamentação da EC (Emenda Constitucuional) 29 foi decepcionante, pois mostrou a todos que saúde não era prioridade para o Governo Federal, nem para os parlamentares do Congresso Nacional. Não podemos imaginar ainda, no Brasil, que tenhamos médicos em todos os municípios, pois sabidamente alguns desses locais não tem condições físicas nem estruturais adequadas.
Interessa ainda o desenvolvimento, no Brasil, do ensino de qualidade, da pesquisa, especialmente a pesquisa clínica inovadora na área da saúde. Falamos da necessidade de avanços na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e na estrutura dos ministérios da Saúde, da Educação e da Ciência e Tecnologia. A AMB e suas federadas, como a AMC, sempre tem-se colocado à disposição para enfrentar os enormes desafios existentes, sem nunca abdicar de premissas, especialmente às que se relacionam à boa formação médica e à educação médica continuada. Suas ações repercutem cada vez mais no movimento associativo, federadas e sociedades de especialidades e educação médica, oferecendo cada vez mais conteúdo gratuito para que os médicos mantenham-se atualizados. Em especial, a defesa das adequadas condições de trabalho e digna remuneração tem sido um tema constante a aglutinar os médicos em suas entidades representativas. O progresso do conhecimento no setor de saúde é rápido e contínuo. Urge que nos mantenhamos permanentemente estudando e adquirindo esses novos conhecimentos. Valorizar a boa faculdade de medicina, o bom médico, a boa residência médica, o título de especialista e a atualização desse título é obrigação de quem prima pela qualidade na saúde. Para melhorar o financiamento público na saúde, a Associação Médica Brasileira e várias outras entidades nacionais (inicialmente, a OAB Nacional e a Academia Nacional de Medicina, depois somaram-se outras da áreas de saúde e de outras áreas do conhecimento), lançaram, no dia 3 de fevereiro de 2012, o Projeto de Lei de Iniciativa Popular que propõe a alocação de 10% da receita corrente bruta da União na saúde pública. O evento ocorreu durante coletiva de imprensa na
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sede da AMB, em São Paulo. O que afirmei naquele momento, como presidente de nossa entidade nacional, é que este é um projeto do povo brasileiro, não só dos médicos. Precisamos mostrar para o governo federal que a regulamentação da Emenda 29 não foi como a população necessita e que a saúde pública deste país precisa sim de mais recursos. O projeto altera a Lei Complementar nº 141/12, que regulamentou a Emenda Constitucional 29, não só no que diz respeito ao subfinanciamento do SUS, mas também propondo que os recursos sejam aplicados em conta vinculada, mantida em instituição financeira oficial, sob responsabilidade do gestor de saúde. Avança também um grande Projeto de Educação Médica Continuada – UNIVADIS, em parceria com o British Medical Journal e com a MSD, que vai oferecer cursos gratuitos e de qualidade à distância para os médicos brasileiros, além de possibilitar-lhes pontuação para o certificado de atualização profissional da AMB. A AMB, com suas federadas e sociedades de especialidades, lançou, em 04 de dezembro de 2012, em Brasília-DF, o
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portal www.salvesaude.com.br, que visa levar boa informação médica, embasada nas melhores evidências científicas e em linguagem para leigos, para que toda a população tenha acesso e consiga dirimir muitas das suas dúvidas e curiosidades. A participação da AMB junto às entidades internacionais – especialmente CMPLP (Comunidade Médica dos Países de Lingua Portuguesa), CONFEMEL (Confederacão Médica dos Países da América Latina e do Caribe), FIEM (Fórum Íbero-Americano de Entidades Médicas) e WMA (World Medical Association/Associação Médica Mundial) – é expressiva sob diferentes aspectos. Na WMA, participamos da revisão da Declaração de Helsinki e fomos escolhidos para sediar a Assembleia Geral da WMA de 2013, que se realizará no Ceará, de 16 a 19 de outubro. É o maior evento da WMA e, pela primeira vez, ocorrerá no nosso estado, onde deverão estar representantes de entidades médicas de cerca de cem países, participando de um debate mundial sobre a Medicina, a Saúde. O futuro promete. Vamos chegar bem lá!
Os cem anos do Centro Médico Cearense Há cem anos, por inspiração do médico Manuel Duarte Pimentel, nascia o Centro Médico Cearense, instalado a 25/03/2013 com grande solenidade na Assembléia Legislativa, sob a presidência de Guilherme Studart, mais tarde feito Barão pela bula do Papa Leão XIII, em reconhecimento à benemerência com que se houve na assistência aos necessitados e no serviço da Igreja Católica. Eram então 26 médicos, 17 farmacêuticos e 7 dentistas os pioneiros na constituição dessa associação. Acolhe-nos esta noite a Universidade Federal do Ceará para dar início às comemorações centenárias, cabendo-me a honrosa tarefa de agradecer as homenagens prestadas pela diretoria da entidade ao Barão de Studart e Waldemar Alcântara, ambos “in memoriam”, e a Zilmar Fontenele e Silva. Do Barão pode se dizer que sendo um, foi muitos, por sua atuação em diferentes áreas, sempre em posição de destaque. Criou organizações e sociedades de natureza cultural e filantrópica destinadas a suprir carências da comunidade, impulsionar o associativismo e promover o progresso e o conhecimento. Enfim, um intelectual representante típico do iluminismo então predominante na cultura de sua época. É vasta a lista das que lhe devem a paternidade ou o apoio decisivo, valendo relacioná-las pela importância de que desfrutaram a seu tempo, lembrando que três delas – o Instituto do Ceará, a Academia Cearense de Letras e o Centro Médico – vararam uma centúria de existência: Centro Abolicionista (1884), Instituto do Ceará (1887), Academia Cearense de
Letras (1894), Centro Médico Cearense (1913), Círculo Católico (1913), Círculo dos Operários Católicos (1913 – 1915), Patriotic League of Briton Overseas – filial do Ceará (1915), Instituto Pasteur (1918) e Cruz Vermelha Brasileira – filial do Ceará (1918). Da leitura, fica a impressão de que nada lhe era indiferente, da promoção da fé à defesa dos interesses das empresas inglesas concessionárias de serviços públicos na condição de Vice Cônsul Britânico. Todas iniciativas relevantes recebiam o sinete de seu prestígio. Seus biógrafos são unânimes em descrevê-lo como uma figura austera e honrada, temperamento contido, não obstante, acessível, como demonstra sua correspondência passiva pontilhada de solicitações que instavam sua participação na solução de problemas, alguns de cunho pessoal. Sua obsessão pelo estudo da história e da medicina, a dedicação no atendimento aos pobres, às vítimas da seca, aos variolosos, tornaram-no um símbolo de poder, uma figura ilibada, um filantropo definitivamente comprometido com a igreja e a ciência. Pedro Sampaio descreve-o como o via, ainda menino, à casa de seu pai em visita a alguém doente: “Fraque preto, colarinho duro e óculos reluzentes com aros de ouro, chegava à nossa casa, batia à porta, chamava meu pai e, sorridente, perguntava por mim, seu afilhado de crisma. E tudo isso em voz ciciada, de modo fidalgo, num meio sorriso, com essa simplicidade e essa bondade que eram apanágio dos médicos dessa época”.
Dr. Lúcio Alcântara
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A indumentária solene da qual não abria mão era a expressão da circunspecção que o caracterizava. Mais tarde, já médico, Sampaio, solicitado pelo Barão, viria a enfileirar-se entre os fundadores do Centro Médico. É dele a notícia de como Studart freqüentava regularmente a reunião mensal da novel agremiação que presidiu por seis anos até sua consolidação. Em 1928, a entidade se reorganiza ganhando novo viço, sendo o Barão de Studart investido na presidência de honra. Formado em medicina na Bahia em 1877, depois de cursar humanidades a partir dos doze anos no notável Ginásio Bahiano, sob a direção de César Abílio Borges, o Barão de Macaúbas, Studart logo regressa ao Ceará, onde se depara com a tragédia da seca que espalhava miséria e dor na população. Inicialmente em Maranguape, e logo depois em Fortaleza, assiste aos flagelados aglomerados em barracões acometidos de doenças que grassavam sob forma epidêmica, disseminando sofrimento e morte. A conduta humanitária do jovem médico grangeou-lhe o respeito e a admiração das autoridades e da sociedade. Se, como disse Pedro Sampaio, “entrou para a medicina pela porta da desilusão”, o confronto só fortaleceu sua determinação de colocar-se a disposição dos humildes para atendê-los em seus padecimentos. De seus ingentes esforços no cumprimento do dever dá-nos conta ele mesmo em desabafo que vale a pena reproduzir: “Ninguém poderá calcular a vida que levei nos dez primeiros anos de minha estada no Ceará; o escravo das grandes fazendas de São Paulo ou Rio de Janeiro não trabalhava mais que eu”. Sua vinculação à Igreja Católica e a teia de amizades construída a partir das associações a que pertenceu projetaram seu elevado valor moral de intelectu-
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al voltado para o trabalho e a pesquisa, abrindo-lhe as portas da proeminência que merecidamente alcançou. Seria uma espécie de sucessor de Thomaz Pompeu, o Senador Pompeu, cujo desaparecimento (em 1877) abriu enorme lacuna cultural no meio local preenchida pelo espírito entusiasmado e culto de Studart. Valeu-lhe para tanto a afabilidade no trato pessoal e os relacionamentos gremiais, que acabaram por configurar o que Eduardo Lúcio Guilherme Amaral chamou de “sociabilidade de salão”, o que veio a conferir-lhe prestígio social e imagem pública favorável. Passando ao largo da possível contradição, conciliou ciência e fé para registrar elogios de vozes ouvidas dos dois campos. José Honório Rodrigues, segundo Clélia Lustosa, o equiparou a Varnhagen, “não havendo na historiografia estadual ou regional brasileira quem se lhe avantaje no amor ao estudo, na vastidão da pesquisa, na capacidade de realização, como cronista, geógrafo, historiador e editor de documentos”. Capistrano de Abreu, o grande historiador que o Ceará ofereceu ao Brasil, conhecido pela severidade de seus julgamentos, assim se manifestou em correspondência dirigida ao nosso homenageado: “O Ceará é o estado do norte cuja história está mais investigada. Podes te gabar que ninguém fez ainda como tu para esclarecer períodos ignorados de 1600-1630”. Preocupado com a comprovação dos fatos, reuniu formidável documentação adquirida no exterior, copiada ou comprada com recursos próprios em sucessivas viagens, constituindo a Coleção Studart formidável manancial de subsídios para a história do Ceará. Do seu labor caridoso como médico e vicentino, presidente que foi da Conferencia Central de São Vicente de Paulo no estado por mais de quarenta anos, falou Austregésilo
de Athayde, jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras, que presidiu por muitos anos, em incisiva síntese: “é um santo moderno”. De um modo geral, restou a percepção de que, em relação ao Barão de Studart, a imagem do historiador se sobrepôs às demais, sendo o Instituto do Ceará sua maior obra institucional. Se assim é, reside longe da irrelevância sua atuação no campo da saúde como médico modelar, estudioso e humanitário, criador de uma rede assistencial que buscava suprir a ausência do Estado no socorro à pobreza. Impregnado das idéias higienistas sopradas a partir da Europa, prevalecentes à época, ilustrou a literatura médica com trabalhos de sua autoria, entre outros: “Climatologia, Epidemias e Endemias no Ceará”, memória apresentada ao 4º Congresso Latino-Americano, no Rio de Janeiro, em 1909. O Centro Médico, sob seu patrocínio, cumpriu importante papel de aproximar os colegas, de defesa da classe e fórum de discussões científicas. Sua permanência secular demonstra não serem infundadas as motivações de seus instituidores. Fez ainda parte do programa do novo grêmio a publicação da revista “Norte Médico”, denominação mais tarde substituída por sugestão de Carlos Ribeiro por “Ceará Médico”. Arrefecido o entusiasmo inicial, experimentou a entidade um período de marasmo sacudido sob a liderança do Barão no ano de 1928. Dessa retomada das atividades, participaram 42 dos 50 médicos existentes em Fortaleza. Entre outras iniciativas decidiram fundar uma policlínica que levaria o nome do Visconde de Sabóia, a criação de um monte médico de beneficência e a luta contra o pagamento de impostos pelos médicos.
Segundo Vinícius Barros Leal, as reuniões realizadas nas casas dos sócios eram concorridas e proveitosas. Muitos anos depois, ao término da 2ª Guerra Mundial, assoma à presidência do órgão, no bojo de um movimento de renovação, um jovem médico recém-egresso do interior em substituição a Cesar Cals, há seis anos no posto. Era chegada a vez de Waldemar Alcântara liderar a sociedade representativa dos médicos cearenses, em meio a vaga democrática que fez ruir o Estado Novo e o arrastaria para a política. Sem a expressão histórica da personalidade luminosa do Barão de Studart, foi ele também um semeador de instituições, tais como a Sociedade de Assistência aos Cegos, o Instituto do Câncer, que presidiu desde a fundação até a morte, a Faculdade de Medicina, que dirigiu por dois períodos, a Academia Cearense de Medicina e a Associação de Professores do Ensino Superior do Ceará. Na administração pública, percorreu itinerário cuja escalada o leva de médico do posto de saúde de Quixadá à Secretário de Educação e Saúde do estado e posteriormente titular da pasta da Saúde, quando desmembrada da anterior. Isso sem mencionar outras relevantes funções exercidas, estranhas à sua formação médica. Na condição de parlamentar estadual e federal não se distanciou da área da saúde para a qual não se cansava de chamar atenção dos governos por meio de pronunciamentos e projetos de lei. A escolha de Waldemar Alcântara como um dos homenageados nessa ocasião histórica carrega uma feliz coincidência: o Centro Médico e ele comemoram centenários de nascimento, o que terá em muito contribuído para reavivar a memória de suas realizações como médico,
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professor, administrador público e político. Ouso interpretar seu pensamento para afirmar que, se vivo fosse, partilharia a homenagem com todos aqueles que, como ele, experimentaram a glória de dirigir a entidade máxima dos médicos cearenses. Faço-o agora em nome da forma modesta como viveu e ensinou-me. Desde sua fundação, e por largos anos, cumpriu o Centro Médico diversas funções como detentor do monopólio da representação da classe médica. O advento do Sindicato dos Médicos e do Conselho Regional de Medicina subtraiu-lhe por imposição legal parte de suas atribuições, comprometendo assim sua representatividade. Esvaziamento agravado pela proliferação de sociedades médicas especializadas, que acolhem em seu seio especialistas frutos da fragmentação da clínica e da cirurgia em decorrência do progresso da medicina. A longevidade societária da doutora Zilmar Fontenele e Silva explica sua homenagem ao tempo que serve de exemplo e alerta. Sua fidelidade a nossa vetusta instituição ultrapassa no tempo o período em que exerceu com competência e ética a profissão que abraçou. Rareiam os que agem assim em oposição aos muitos indi-
ferentes à sorte da instituição de que só se dão conta em esporádicas ocasiões. Da doutora Zilmar, professora de parasitologia da Escola de Enfermagem São Vicente de Paulo e da Faculdade de Medicina, chefe do Laboratório Central do Hospital Universitário de 1991 a 2001, autora de vários trabalhos científicos, digo que é uma dessas pessoas que não se deixam notar muito, pois tudo fazem com eficiência e discrição. É preciso prestarlhes atenção, pois gente assim é imprescindível para a construção de sociedades harmoniosas e funcionais. Por último, agradeço a presidente Maria Sidneuma Melo Ventura e seus companheiros de diretoria, em nome das famílias dos homenageados póstumos e da homenageada aqui presente, a distinção recebida, ressaltando o esforço que empreendem para preservar a obra dos que edificaram o CMC/AMC com amoroso empenho. As celebrações que decorrerão ao longo do ano exigirão de nós, mais que um olhar nostálgico sobre o passado, uma atitude prospectiva diante do desafio que nos encara a cobrar vigor e alento de uma instituição cuja formosa tradição por si só não lhe assegura permanência.
Discurso proferido em 25/03/2013, durante cerimônia comemorativa dos 100 anos de fundação do Centro Médico Cearense/Associação Médica Cearense, no Auditório da Reitoria da Universidade Federal do Ceará. Na ocasião, foram homenageados, em nome de toda a categoria, os Drs. Guilherme Studart, Zilmar Fontenele e Silva e Waldemar Alcântara.
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Introdução “A data de 25 de Março assignala, pois, para nós, a liberdade dos espíritos, como já assignalava para o Ceará a libertação dos escravos.” Esta epígrafe, de autoria do Dr. Theophilo de Oliveira, escrita no primeiro número da revista Norte Médico, em 1913, indica algumas preocupações dos médicos naquele momento de fundação do Centro Médico Cearense. Dedicava-se o autor em destacar uma conexão entre a nova entidade associativa dos profissionais de saúde (não havia, neste momento inaugural, distinção entre médicos, farmacêuticos e dentistas, sendo, todavia, a “classe médica considerada como elo de união das duas outras”) e a libertação dos escravos no Ceará, ocorrida em 25 de março de 1884. A “libertação”, neste caso, significava o reposicionamento dos médicos no novo cenário social que se avizinhava no início do século XX, ganhando status profissional e normas válidas para todos, independentemente dos vínculos políticos ou familiares, ao melhor estilo republicano. A cidade de Fortaleza crescia e se modernizava e aos médicos caberiam funções básicas fundamentais aos novos ritmos e padrões de crescimento urbano. Os problemas das cidades, neste momento, exigiam um novo olhar sobre as relações com o corpo, com a saúde, com a natureza, que só a Medicina poderia oferecer. Ao mesmo tempo, Dr. Oliveira indicava as características gerais que esta associação viria a defender: a defesa dos princípios profissionais, a intervenção social e a organização de tipo sindical. As novas funções assumidas pelos
profissionais de saúde – na organização de serviços médicos de assistência, no combate às epidemias, na direção de organismos estatais de política na área de saúde, etc – levaram-nos cada vez mais ao centro da vida social, como representantes de uma nova mentalidade ligada ao progresso e à civilização. A identificação crescente da civilização com os princípios higiênicos e sanitários defendidos pelos médicos fez com que esses profissionais assumissem posições destacadas na sociedade, tanto no aspecto assistencial quanto no aspecto político. O desenvolvimento da ciência médica trazia, assim, uma mudança no vocabulário político destes anos iniciais do século XX. Ao invés da noção de “salubridade”, característica do século anterior, defendiam os médicos a noção de “higiene”, mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais precisa, alcançando dimensões mais amplas da vida social, influenciando nas formas de moradia, de relação com o corpo, de relacionamentos afetivos, enfim, difundindo para todo o universo social um conjunto de conhecimentos e procedimentos definidos como “civilizados” – o que, cada vez mais, significava “higiênicos”. Tais princípios transformaram-se, ao longo dos anos, em referências básicas do planejamento urbano, das políticas sociais, da administração pública, contaminando a linguagem da política e da economia, desdobrando-se em noções de outras disciplinas, generalizando-se como conhecimentos básicos da vida política e solidificando-se como princípios da própria administração do Estado.
Frederico de Castro Neves
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Neste processo, os médicos desempenharam papel fundamental, como agentes destes novos comportamentos e como pensadores destas novas noções. Por meio de suas entidades associativas – como o Centro Médico Cearense (CMC) e, posteriormente, o Sindicato dos Médicos (SIMEC) e o Conselho Regional de Medicina (CREMEC) –, difundiram o ideário higienista por toda a sociedade, combatendo as moléstias do corpo, da alma e da política. Ocuparam, ao mesmo tempo, cargos públicos na área de saúde, procurando transformar em política de Estado os princípios basilares de preservação da vida biológica. As reuniões do CMC, portanto, não eram apenas em defesa de mecanismos mutualistas de proteção dos profissionais que trabalhavam em hospitais, farmácias e consultórios; eram momentos de discussão científica, quando os médicos podiam atualizar-se com as mais recentes publicações e pesquisas na área, além da discussão política sobre as formas mais eficazes de organizar socialmente a população no sentido de evitar as epidemias ou garantir a saúde de todos. Daí, a importância de uma revista que reunisse toda essa complexidade de intenções e necessidades: nasce assim o Norte Médico, que posteriormente se transforma em Ceará Médico. Em suas páginas, ganhavam destaque o debate científico, as notícias sobre novas terapêuticas e as mais recentes descobertas, as propagandas de remédios, serviços médicos e alimentos especializados. Enfim, uma revista de divulgação e formação para os médicos que perdura por todos esses anos como um instrumento de congregação e informação para os profissionais de saúde. Depois de 100 anos, podemos e devemos avaliar, por meio de um livro de História, as conquistas médicas e, espe-
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cialmente, os processos nos quais o CMC (depois Associação Médica Cearense – AMC) esteve envolvido. A entidade possui uma história que não se resume aos feitos de seus dirigentes ou à sucessão de seus diretores. A opção assumida por este livro é de enfatizar algumas situações em que o CMC e/ou seus associados ocuparam lugar privilegiado. Situações, por outro lado, que se relacionam com as três linhas de atuação já assinaladas pelo Dr. Oliveira, em 1913: a defesa dos direitos sociais e trabalhistas dos médicos (como o movimento grevista de 1937); o estímulo ao desenvolvimento científico (como o Congresso Médico de 1935 e a criação da Faculdade de Medicina do Ceará, em 1947); e a atuação profissional e social (como o combate à lepra, a epidemia de malária e a luta por instituições hospitalares, como a Maternidade João Moreira). Trata-se de uma seleção de temas que tem por critério a relevância histórica e a contribuição de profissionais qualificados, com pesquisa na área, domínio dos temas relacionados à medicina e abordagens atualizadas e críticas, que possam fornecer aos leitores – médicos e outros interessados – uma visão de conjunto e, ao mesmo tempo, a possibilidade de entendimento das várias faces da atuação dos médicos e suas instituições. Para os historiadores, hoje, interessa apresentar os processos como possibilidades realizadas e não apenas como progresso necessário. Estas análises constituem a primeira parte desse livro, cujo título “História” expressa o objetivo de oferecer aos leitores análises diversificadas sobre aspectos pouco enfatizados pelos livros que tematizam os temas da saúde e da doença no Ceará. Não pretendemos, assim, alcançar verdades absolutas e inquestionáveis – não é esse o objetivo de nossa disciplina.
A segunda parte – “Memória” – procura homenagear alguns médicos que desempenharam atividades fundamentais na consolidação do CMC ao longo de suas primeiras décadas de atuação. Não se trata de uma compilação completa; muitos outros nomes poderiam constar nessa lista. No entanto, é um grupo seleto de médicos que, em cada uma de suas especialidades ou em cada uma de suas atividades, contribuíram significamente para a consolidação do CMC, foi capaz de construir uma associação profissional que se estabeleceu solidamente na sociedade cearense e se mantem até hoje como referência na defesa de princípios basilares da Medicina científica. A terceira parte – “Documentos” – reúne reproduções dos diversos estatu-
tos que foram elaborados para o CMC/ AMC, permitindo perceber as mudanças ocorridas no interior da entidade, além da relação de presidentes, desde 1913, assim como a relação de sociedades e cooperativas vinculadas. Enfim, este livro possui certamente um caráter comemorativo; mas, para além disso, sua leitura permitirá uma reflexão sobre diversos aspectos da atuação do CMC/AMC ao longo destes 100 anos, ampliando a compreensão de médicos e outros interessados sobre a história da saúde e da doença, das instituições médicas, da saúde pública, da atuação de profissionais, do combate às epidemias, no Ceará.
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Sumário Parte I – História Fortaleza e a criação do Centro Médico Cearense . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Ana Karine Martins Garcia, Frederico de Castro Neves e Tibério Campos Sales
Os Clamores dos Esculápios: o primeiro Congresso Médico Cearense em Fortaleza (1935) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Ana Karine Martins Garcia
O Centro Médico Cearense e a campanha grevista no final da década de 1930 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Tibério Campos Sales
A Maternidade Dr. João da Rocha Moreira e a Ciência dos partos em Fortaleza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Aline da Silva Medeiros
A posição do Centro Médico Cearense na história da lepra: uma relação de proximidade e distanciamento . . . . . . . . . . . . . . .
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Antonio Nelorracion Gonçalves Ferreira
Tempos de Peste: o Centro Médico Cearense e a epidemia de malária no Baixo Jaguaribe-CE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Gláubia Cristiane Arruda Silva
Centro Médico Cearense, ensino médico e a Faculdade de Medicina do Ceará . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Cícera Rozizângela Barbosa Ribeiro, Frederico de Castro Neves e Jana Rafaella Maia Machado
Os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Parte II – Memória Biografias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Parte III – Documentos 124 Sociedades e Cooperativas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182 Presidentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Estatutos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
20 MĂŠdicos na Terra da Luz
Hist贸ria
Hist贸ria
Fortaleza e a criação do Centro Médico Cearense
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Nos primeiros anos do século XX, a cidade de Fortaleza ainda ressentia-se das grandes ondas de secas do final do século anterior. Estas crises faziam com que a população urbana aumentasse significativamente e, no mesmo movimento, avolumava-se a pobreza, com suas mazelas decorrentes: a doença, as epidemias, a formação de bairros insalubres, enfim, todos aqueles problemas identificados pelos higienistas como as principais questões a serem enfrentadas pelo processo civilizatório que se queria para o Brasil. Os médicos, como em várias cidades, já haviam assumido posições importantes na definição das políticas urbanas desde a década de 1870, nas Juntas de Higiene, na elaboração dos Códigos de Posturas Municipais e nas campanhas de vacinação. Tentavam, por diversos meios, combater as doenças que se instalavam na capital cearense e prevenir a difusão de epidemias que causavam inúmeras vítimas, não só entre aquela população pobre que se multiplicava a cada crise climática. Ao mesmo tempo, Fortaleza se embelezava com equipamentos novos (teatros, mercados, praças, prédios públicos e privados) e arruamentos arrojados, com um traçado em xadrez que permitia antever a ampliação da malha urbana com um sentido de controle higiênico e sanitário que ultrapassava as maiores cidades brasileiras.
Frederico de Castro Neves Ana Karine Martins Garcia Tibério Campos Sales
Alguns sócios fundadores do Centro Médico Cearense, na escadaria da Santa Casa de Misericórdia (1913). Em pé: Adalberto Studart, Raimundo Gomes, José Frota, Nelson Catunda, Amâncio Filomeno, Afonso Pontes, Antônio Messiano, Eliezer Studart e César Cals. Sentados: Meton de Alencar, Eduardo Salgado, Guilherme Studart, Manoelito Moreira e José Carlos da Costa Ribeiro.
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Centro de Saúde de Fortaleza, fundado em 1933, na administração do interventor Carneiro de Mendonça. Localizado na esquina das ruas General Sampaio com Liberato Barroso, prestava atendimento médico e auxiliava as demais unidades sanitárias do Estado.
As ruas arborizadas e largas (para o tráfego da época) permitiam a livre circulação dos ares vindos tanto do sertão quanto da praia, configurando um ambiente pouco propício à formação dos miasmas – grandes inimigos da saúde pública –, conforme os conhecimentos médicos predominantes até as primeiras décadas do século XX. Uma cultura europeizada e bacharelesca, comum a todas as formações urbanas desde o Império, impulsionava a criação de instituições literárias e culturais, assim como entidades sindicais e de trabalhadores. O ambiente intelectual fomentava o aparecimento de uma camada de profissionais de várias áreas, unidas no sentimento comum de pertencer a uma cidade de segunda ordem, reféns de uma pobreza institucional que os fazia migrar em direção aos grandes centros (Recife, Salvador ou Rio de Janeiro) para sua formação. Uma cidade – que, na ótica de seus intelectuais, se pretendia bela e civilizada – convivia com uma outra de pobres, normalmente com vínculos ativos com o
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mundo rural, de onde, muitas vezes, tinham saído contra a vontade. Apesar dessa dupla configuração, Fortaleza não era dotada de instituições médico-hospitalares de vulto, capazes de dar conta dessa infinidade de doenças que acometiam sua população. Os profissionais da saúde, assim, viam-se no interior de um processo no qual seus esforços pareciam isolados, com pequena repercussão na cidade. E, de fato, a maioria dos médicos trabalhava isoladamente em seus consultórios particulares ou em farmácias. A Santa Casa de Misericórdia (fundada em 1861) e os lazaretos intermitentes, que eram criados durante as epidemias, não absorviam o trabalho dos médicos e outros profissionais de saúde que atuavam na capital, nem constituíam alguma coisa que pudesse ser chamada de “sistema público de saúde”.1 O atendimento à população pobre, restrito à Santa Casa e à ação caridosa ou filantrópica de alguns médicos (que dedicavam dias para atendimento gratuito), tornava-se cada vez mais necessário e evidente com o crescimento urbano e a
formação de bairros periféricos sem estrutura sanitária. O ambiente para a reflexão coletiva e para a formação de instituições de debate e elaboração de projetos para a cidade estava, assim, constituído em Fortaleza. Os médicos que atuavam ali, embora muitos deles nascidos no Ceará, eram formados em diversas faculdades de Medicina, com predominância para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Faculdade de Medicina de Salvador. Muitos outros, porém, graduaram-se em instituições estrangeiras (como o Dr. Joaquim Antônio Ribeiro, primeiro médico nomeado para atuar na Santa Casa, nascido em Icó, em 1830, e formado na Inglaterra, em 1853), o que fornecia a esses doutores uma visão ampla e atualizada tanto dos procedimentos práticos de cura ou alívio do sofrimento quanto da necessidade de um ambiente salubre para evitar a proliferação de doenças. Os profissionais da área de saúde, farmacêuticos, enfermeiros e médicos, mas principalmente estes, perceberam neste contexto a necessidade de constituir uma entidade que fornecesse o espaço propício para o debate sobre os temas científicos na área e, ao mesmo tempo, refletisse sobre o papel e a importância da Medicina no Ceará.
O Centro Médico Cearense As tentativas de formar associações ou grupos destinados à defesa e aos interesses dos profissionais de saúde em Fortaleza tiveram início antes da década de 1910. Nesse sentido dois projetos tiveram destaque no ano de 1902. O primeiro foi a “Sociedade de Medicina e Pharmacia”, cujo estatuto foi elaborado pelos médicos José Lino da Justa, Luna Freire e o
Barão de Studart. Em seguida, foi fundado a “Câmara Cearense da Ordem Médica”, que teve como presidente o Barão de Studart, e suas reuniões aconteciam na casa nº. 66 da Rua Major Facundo.2 No entanto, verificou-se na documentação pesquisada que não há referências sobre a atuação dessas duas associações e nem há dados mais precisos sobre seus funcionamentos. Nesse começo do século XX é também relevante mencionar que houve a fundação da “Liga Médica” em 1906, cuja duração foi curta. De acordo com o médico Borges Sales faltava a esse grupo o amadurecimento e o espirito associativo.3 Anos mais tarde, o Dr. Manoel Duarte Pimentel teve como ideia criar uma “Associação Médica e Farmacêutica”,4 tendo por objetivo construir uma sociedade de seguros de vida destinada a atender à classe médica e farmacêutica do Ceará; porém essa ideia também não foi exitosa. Segundo Vinícius Barros Leal, essas diversas tentativas não lograram porque “a classe não estava amadurecida para o empreendimento”5. Todavia, é importante ressaltar que, na primeira década do século XX, a quantidade de profissionais na área de saúde era pequena e, na época, Fortaleza contava com 32 médicos que exerci suas atividades de maneira liberal.6Esses profissionais da saúde contavam somente com seus consultórios, a Santa Casa de Misericórdia e o Asilo de Alienados da Parangaba para desempenhar mais efetivamente o auxílio aos doentes. Em meio a todas as efervescências e transformações vivenciadas na cidade no início nos anos de 1910 – como a revolta urbana que depôs o oligarca Nogueira Accioly em 1912 –, o médico Manuel Duarte Pimentel retomou seus planos, agora com outros objetivos. Reunindo-se, no dia 20 de fevereiro de 1913, na residência do
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