Estudo de Obras Literárias Unicamp 2017

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R DIR N O EI U T LL O IS SR IS E TE SE M RV A A D D E O EN S SI N O

deObras

Literarias Sonetos – Luís de Camões Análise: Antônio Sérgio Bueno

Poemas negros – Jorge de Lima Análise: Aloisio Andrade Oliveira

Amor – Clarice Lispector

Análise: Antônio Sérgio Bueno

A hora e a vez de Augusto Matraga – Guimarães Rosa

Análise: Aloisio Andrade Oliveira

Negrinha – Monteiro Lobato

Análise: Jair Corgozinho

Lisbela e o prisioneiro – Osman Lins

Análise: Jair Corgozinho

O cortiço – Aloísio Azevedo

Análise: Vera Lopes

Coração, cabeça e estômago – Camilo Castelo Branco Análise: Aloisio Andrade Oliveira

Caminhos cruzados – Erico Verissimo

Análise: Alexandre Castro

Til – José de Alencar Análise: Fernando Santana

Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

Análise: Flávio de Castro

BE

Terra sonâmbula – Mia Couto

Análise: Aloisio Andrade Oliveira


Sumário 4

BE

R DIR N O EI U T LL O IS SR IS E TE SE M RV A A D D E O EN S SI N O

Sonetos – Luís de Camões

Poemas negros – Jorge de Lima

16

Amor – Clarice Lispector

42

A hora e a vez de Augusto Matraga – Guimarães Rosa

48

Negrinha – Monteiro Lobato

56

Lisbela e o prisioneiro – Osman Lins

62

O cortiço – Aluísio Azevedo

68

Coração, cabeça e estômago – Camilo Castelo Branco

86

Caminhos cruzados – Erico Verissimo

102

Til – José de Alencar

116

Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

128

Terra sonâmbula – Mia Couto

146

EXERCÍCIOS

162


OS POEMAS NEGROS DE JORGE DE LIMA

R DIR N O EI U T LL O IS SR IS E TE SE M RV A A D D E O EN S SI N O

Estudo da obra Poemas negros, de Jorge de Lima

BE

por Aloisio Andrade Oliveira

RUGENDAS, Johann Moritz. Casal de negros. 1831.


Nos anos 1920-30, os autores modernistas brasileiros

conhecido pelo desejo constante de se aventurar por novas

buscavam recuperar a autenticidade identitária do

formas e temáticas literárias. Não por acaso sua poesia passa

negro, tentando livrá-la dos arroubos românticos de

de uma fase inicial mais formal e parnasiana à inovação e

autores como Castro Alves, para citar o mais conhecido

ao abrasileiramento propagados a partir da Semana de Arte

poeta do chamado Condoreirismo, uma linha poética

Moderna, em 1922. Radicado no Rio de Janeiro, mas de

social e nacionalista do Romantismo responsável por

origem alagoana, Jorge de Lima focaliza em sua poesia os

cantos antiescravagistas permeados de hipérboles e

motivos brasileiros e nordestinos principalmente a partir

metáforas expressivas, que retratavam o sofrimento dos

de 1925, aderindo à linguagem coloquial, ao verso livre e

africanos arrancados de suas longínquas terras e trazidos

à enumeração caótica recursos estéticos que criam pontos

acorrentados até o Brasil.

R DIR N O EI U T LL O IS SR IS E TE SE M RV A A D D E O EN S SI N O

Jorge de Lima (1893-1953) foi um médico e escritor

de contato com o movimento modernista. Sua preferência

Como autor modernista, Jorge de Lima esforça-se

são os temas regionais e folclóricos. Posteriormente Jorge

para fugir do idealismo romântico, apresentando ao

de Lima torna-se conhecido como poeta que aborda

leitor uma perspectiva mais concreta e realista da

assuntos ligados ao cristianismo universalista por meio de

participação do afrodescendente na formação cultural

símbolos bíblicos e religiosos, dedicando-se às reflexões

da nação, sem deixar de apresentar também o convívio

espirituais e sociais. Nessas fases poéticas, o autor flerta

sugestivamente amistoso entre diferentes povos,

com o Surrealismo por meio do uso de imagens oníricas

a propalada democracia racial brasileira da qual negros

e encantadas, além do resgate de temas relacionados a sua

e brancos participariam equilibradamente. A perspectiva

infância totalmente imersa na cultura popular nordestina.

de Jorge de Lima, no entanto, não ignora as tensões e

A coletânea com os 39 “poemas negros” de Jorge de Lima

os conflitos raciais existentes na História do país, que

foi originalmente publicada pela editora Revista Acadêmica

tornam evidente como a convivência foi mais benéfica

em 1947, reunindo textos escritos no intervalo aproximado

para os brancos, ao passo que os negros assumiram um

entre 1927 e 1940. A obra agrega a poemas mais antigos uma

posto inferior na escala social. No entanto, ainda assim,

série de novos outros que dialogam com a temática do negro

se trata de um olhar lírico sobre a participação do negro

no Brasil e, em especial, no Nordeste brasileiro, o que confere

na formação da nação, em pleno acordo com as ideias

a ela um caráter de antologia. Poemas negros aparece durante

divulgadas pelo companheiro e mentor intelectual do

um rico período de debates e estudos afro-brasileiros, os

autor, o antropólogo Gilberto Freyre.

quais pretendiam mostrar principalmente o indivíduo negro

No prefácio que escreve para Poemas negros, Freyre

como o humano que não perde suas características étnicas,

condena aqueles que criticam os literatos nordestinos por

conservando suas tradições e cultura: o sujeito que se vale

apenas aproveitarem os aspectos pitorescos do trabalhador

das raízes africanas como forma de resistência à escravidão e

sertanejo, da figura do negro e da paisagem dos antigos

à opressão pelo homem branco.

engenhos. Não sendo de origem explicitamente popular,

Nos Estados Unidos, em Cuba e nos demais países da

ameríndia ou africana, os escritores não seriam, segundo

América Latina, também há publicações de antologias de

os críticos, autênticos em seus textos. Para o antropólogo,

poemas com temática afrodescendente e de estudos antro-

ao contrário, esses mesmos escritores nordestinos é que

pológicos que analisam a miscigenação racial, textos que

se dedicam verdadeiramente, por exemplo, ao estudo e à

promovem um rico intercâmbio de informações entre os

interpretação da cultura negra, por isso exalta a tarefa de

autores. A imagem pitoresca e folclórica do negro vai sendo

Jorge de Lima, autor abertamente simpático à miscige-

deixada de lado e, no lugar do exotismo ligado aos seus

nação e ao poder da cultura afro-brasileira.

costumes e práticas religiosas, surge um olhar de respeito

Cabe ressaltar que, para Gilberto Freyre, os preconceitos

e reverência à sua cultura. A etnia negra, antes oprimida

no Brasil são oriundos mais de questões de classe social

e humilhada, passa a ser encarada como autêntica e auto-

do que de cor, ou seja, a mestiçagem teria supostamente

consciente dos processos históricos e sociais cujo emblema

rasurado a problemática do preconceito racial, o que teria

mais trágico foi a escravidão no Novo Mundo. O resgate da

tornado as diferenças socioeconômicas mais preponde-

sua autoestima, a tomada de consciência da sua dimensão

rantes do que a cor da pele no tocante à discriminação.

humana e a sua luta pela libertação e pelo reconhecimento

Atualmente, essa ideia é bastante discutida e muitas

tornam-se os grandes temas dessa literatura.

vezes atacada, principalmente no âmbito acadêmico. Bernoulli Sistema de Ensino

pOEMAS nEGROS

A COR MULATA

BE

S

17


18 Para Freyre, haveria no Brasil uma convivência fraternal entre as matrizes étnicas portuguesa, ameríndia e africana, e essa mistura teria formado a peculiar e grandiosa nação em que vivemos. Ao exaltar tal miscigenação e explicitar enorme empatia quanto ao sofrimento dos negros, Jorge de Lima foge de uma perspectiva segregacionista, ressentida e hostil que os debates raciais poderiam tomar, convergindo, de fato, para as teorias defendidas por Gilberto Freyre. No entanto, Lima resvala também em uma abordagem tida frequentemente como paternalista em relação ao afrodescendente, e esse é um ponto delicado nos Poemas negros. Se de um lado expõem uma terna solidariedade pelo sofrimento do negro, por outro reforçam padrões e paradigmas sociais referentes à identidade negra hoje considerados

R DIR N O EI U T LL O IS SR IS E TE SE M RV A A D D E O EN S SI N O

ultrapassados e negativos. Para citar um exemplo, tomemos um trecho da carta que escreve ao pintor Lasar Segall, que viria a compor as ilustrações para a obra. Jorge de Lima destaca:

[…] o assunto deve ser apenas a representação do negro em todos os ambientes em que demorou desde a sua vinda para o Brasil, isto é: o negro (quando digo o negro, digo negra também, não fazendo distinção de sexo) nos navios negreiros,

milhares de cabindas, de guinés, de todas as tribos africanas apinhados nos porões dos veleiros; o negro nas senzalas; a negrinha bonitinha nas casas-grandes, um perigo de tentação para o branco português; o velho negro Pai-João; o negro rebelado refugiado nas serras guerreando o branco; a sereia negra que habita o mar; o negro feiticeiro; cenas de macumba; a negrinha penteando a sinhá branca nas redes; a negra vendedora de doces; a negra amamentando o menino branco; a negra contando histórias nos terreiros das casas brancas, etc., etc. 1

Isso quer dizer que Jorge de Lima comporta-se poeticamente mais como um observador da cultura negra do que como um indivíduo que se vê como um homem negro. Seu olhar é de compaixão, sua análise é daquele que olha de fora, e externamente sente o perigo do “embranquecimento”, da elitização da cultura brasileira.

Os modernistas possuem esse traço comum: são avessos ao atraso intelectual, às heranças coloniais negativas que desprezam a pluralidade cultural e etnográfica brasileira, ao simplismo de reconhecer negros e indígenas como meros coadjuvantes na formação do Brasil. Lima compactua com esse olhar e, ainda que não consiga, em certos momentos, livrar o negro de imagens

estereotipadas construídas por uma historiografia discriminatória, apresenta nos poemas lembranças afetivas e nuances

comportamentais e culturais que têm o indivíduo negro como fator marcante. Assim, o poeta dá bastante atenção ao contexto

folclórico e religioso, sendo um grande defensor da cultura africana e reconhecedor do negro como ser social com História trágica fundamental para a concepção que temos sobre a nação brasileira no século XX.

Uma literatura afro-nordestina

Ao prefaciar a edição dos Poemas negros, Gilberto Freyre discorre sobre a obra de Jorge de Lima, escrevendo:

Em Jorge de Lima o verbo fez-se carne neste sentido: no de sua poesia afro-nordestina ser realmente a expressão carnal

do Brasil mais adoçado pela influência do africano. Jorge de Lima não nos fala dos seus irmãos, descendentes de escravos, com resguardos profiláticos de poeta arrogantemente branco, erudito, acadêmico, a explorar o pitoresco do assunto com olhos distantes de turista ou de curioso. De modo nenhum. Seu verbo se faz carne: carne mestiça. Seu verbo de poeta se

torna carnalmente mestiço quando fala de “democracia”, de “comidas”, de “Nosso Senhor do Bonfim”, embora a metade

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aristocrática desse nordestino total, de corpo colorido por jenipapo e marcado por catapora, não esqueça que a “bisavó dançou uma valsa com D. Pedro II”, nem que “o avô teve banguê”.2

O poema de Jorge de Lima a seguir, que abre os Poemas negros, corrobora a observação do antropólogo:

1  Carta de Jorge de Lima para Lasar Segall, Rio de Janeiro, 10 fev. 1944. Arquivo Lasar Segall / Museu Lasar Segall / Ibram-MinC (In: LIMA, 2014, p. 119-120). 2  FREYRE, 1947. (In: LIMA, 2014, p. 14-15).

Coleção Estudo


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