SUMÁRIO
Agradecimentos.................................................................................................... 7 Prefácio................................................................................................................ 9 Introdução.......................................................................................................... 11 Parte I Bases para a educação teológica..................................................................... 15 1. Uma serva útil na execução do plano de Deus: bases bíblicas para a educação teológica — Dieumeme Noelliste....................................... 17 2. Desenvolvendo uma filosofia operacional da educação teológica: uma cartilha sobre o modo de caminhar da filosofia para a estratégia — Lee Wanak............................................................................ 41 3. Indo para a terra prometida — visão, missão e valores: como esses elementos moldam os objetivos na educação teológica — Paul Wright...... 69 4. Fatores que contribuem para a excelência na educação teológica — Steve Hardy.............................................................................. 87 Parte II Liderança acadêmica: características e responsabilidades.......................... 105 5. Diretor e coordenador acadêmico: parceiros na educação teológica — Fritz Deininger........................................................................................ 107 6. A coordenação acadêmica vista como ministério: uma posição de liderança desafiadora — Fritz Deininger..................................................... 127
Parte III Liderança acadêmica: práticas administrativas........................................... 147 7. Planejamento estratégico na educação teológica — Manfred Waldemar Kohl......................................................................... 149 8. Certificação: importância e benefícios para a instituição — Bernhard Ott.......................................................................................... 179 9. O coordenador acadêmico e a avaliação institucional: o quê, por quê e como? — Ralph Enlow............................................................... 209 Parte IV Liderança acadêmica: práticas inerentes à liderança eficaz....................... 229 10. Líderes acadêmicos como agentes de mudança — Orbelina Eguizabal................................................................................. 231 11. A liderança acadêmica nos conflitos e crises: quando o trabalho em equipe não está funcionando — Paul Sanders...................................... 257 12. Reflexões práticas sobre a liderança acadêmica — Albert Ting................ 271 Colaboradores................................................................................................... 285
PREFÁCIO
Qualquer grupo social, para ser sustentável, precisa concentrar sua atenção na formação de sua liderança e na de seus membros. O mesmo se aplica à igreja. A necessidade do desenvolvimento da liderança mostra-se particularmente aguda toda vez que a igreja experimenta um crescimento quantitativo significativo, para que não seja levada para longe de sua missão e de seus valores centrais. Conforme Philip Jenkins, Andrew Walls e Lamin Sanneh têm demonstrado, o centro do evangelicalismo, na verdade, da própria igreja, tem mudado do Ocidente para o Sul e Oriente do globo. É no “mundo majoritário” (países em desenvolvimento) que o maior crescimento e os maiores riscos estão acontecendo. Instituições evangélicas de educação teológica desempenham um papel central no crescimento e na sustentabilidade da igreja. Se a missão da igreja é alcançar e servir o mundo, a missão das instituições de treinamento teológico é servir à igreja por meio do treinamento da liderança para sua missão — a escola teológica não é um fim em si mesmo, mas um instrumento missional nas mãos da igreja. Bem no centro do papel da escola teológica estão as atividades do diretor da instituição e do coordenador acadêmico (deão ou diretor de estudos). O diretor, enquanto lidera toda a instituição e toma a decisão vital sobre o cumprimento da missão e da visão da escola, trabalha em cooperação vital com o coordenador acadêmico, para que este possa “liderar a partir do centro”, parafraseando o título de um livro de Jeanne McLean. Esse centro é a interseção em que a liderança
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executiva, o corpo docente, os alunos, o conselho e as partes interessadas se encontram e trabalham juntos na comunidade de aprendizagem. Apesar da evidente importância desses papéis, os executivos e os coordenadores acadêmicos das escolas teológicas geralmente são impelidos a esse trabalho sem treinamento profissional. Os coordenadores acadêmicos geralmente se acham nessa posição porque a) são organizados; b) estão disponíveis; c) têm um bom relacionamento com outras pessoas da instituição. Entretanto, eles normalmente se veem mal preparados para a tarefa que está diante deles, com poucos recursos e pouco apoio a um trabalho que, de modo geral, é mal compreendido pelos colegas. Não é de admirar que o “prazo de validade” deles nessa função seja, com frequência, relativamente curto. Seu trabalho e seu chamado os colocam no centro nervoso da instituição, todavia a falta de preparo profissional e de apoio pode frustrá-los e enfraquecer toda a instituição, frustrando, consequentemente, o cumprimento de seu chamado. Esses homens e mulheres dedicados não merecem tal destino. Se Deus permitir, este volume e os outros que se seguirão pretendem suprir os diretores executivos e os coordenadores acadêmicos nas instituições teológicas com o que precisam para cumprir sua tarefa com maior satisfação e senso de realização. Acreditamos que isso redundará não só no bem-estar e na longevidade dos coordenadores acadêmicos, mas também na eficácia da própria instituição no cumprimento de sua missão e de seu chamado a favor da igreja, em colaboração e sinergia com as instituições semelhantes próximas e, por fim, pela causa da igreja e da missio Dei. Essa é nossa intenção e oração com respeito ao presente livro e aos futuros volumes que o acompanharão. Paul Sanders Diretor internacional emérito do ICETE
INTRODUÇÃO
Os líderes acadêmicos desempenham um papel essencial no cumprimento da missão e da visão das instituições teológicas e normalmente têm sido chamados para servir num nível em que se espera que assumam responsabilidades para as quais não foram treinados. Sem distinção de local ou tipo de instituição de ensino, é fato que a maioria dos que são nomeados para os cargos de liderança não possuem treinamento específico para uma liderança eficaz. Com o propósito de auxiliá-los nesses cargos, publica-se todos os anos um número considerável de livros que tratam de assuntos de liderança, administração acadêmica e áreas relacionadas, principalmente no contexto norte-americano. No entanto, quando viajamos a outras regiões do globo para oferecer oficinas aos líderes acadêmicos mantidos pelo ICETE, por meio do Programa para Liderança Acadêmica, deparamos com a necessidade de recursos escritos que forneçam as percepções necessárias aos líderes acadêmicos dessas regiões com relação aos desafios do dia a dia, em busca de qualidade e excelência. Este é o primeiro livro da Série para Liderança Acadêmica, concebido ao mesmo tempo em que o Programa para Liderança Acadêmica do ICETE foi estabelecido oficialmente em setembro de 2010, no encontro do conselho executivo do ICETE, em Medellín, na Colômbia. Na época, Fritz Deininger foi designado coordenador do programa. Entre outras responsabilidades, o Programa para Liderança Acadêmica está empenhado em fornecer treinamento aos líderes acadêmicos nas escolas
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teológicas relacionadas com as oito agências regionais de certificação do ICETE e em publicar o material utilizado nesse treinamento. Após inúmeras conversas com os membros do conselho executivo do ICETE durante a Conferência Continental Trienal da AETAL (Associação Evangélica de Educação Teológica na América Latina), que se seguiu ao encontro do conselho em Medellín, eu (Orbelina) fui convidada a me unir ao projeto deles para trabalhar com Fritz como editora das séries. Portanto, o propósito deste projeto é oferecer recursos escritos de qualidade a serem usados nas oficinas do Programa para Liderança Acadêmica realizadas ao redor do mundo. Esta série inicial consiste em três livros-textos: Bases para a liderança acadêmica, Bases para o desenvolvimento de currículo e Bases para o desenvolvimento do corpo docente. O presente livro, Bases para a liderança acadêmica, não tem a intenção de ser um texto abrangente sobre liderança acadêmica. Nosso objetivo é apresentar os aspectos essenciais dos quais os líderes acadêmicos das instituições teológicas e seminários devem estar cientes. Por isso, nós o estruturamos em quatro seções principais, nas quais diferentes autores contribuíram com tópicos que representam suas áreas de conhecimento e sua compreensão acerca do difícil trabalho que os líderes acadêmicos exercem em nome de suas instituições. A parte I trata das bases para a educação teológica. O capítulo 1 estabelece as bases bíblicas para a educação teológica a partir de três perspectivas, incluindo o bem-estar do povo de Deus, o avanço da missão de Deus e a preservação da integridade da fé cristã. Ele conclui que o aprendizado teológico é um elemento necessário na revelação dos propósitos divinos. O capítulo 2 oferece diretrizes para o desenvolvimento de uma filosofia operacional da educação teológica, as quais o autor propõe como uma forma prática de caminhar da filosofia para a estratégia. No capítulo 3, o autor afirma que cada instituição teológica precisa de uma “terra prometida” e cada uma delas precisa de um Moisés para conduzi-la até lá. O caminho da visão para a realidade exige uma visão, uma missão e valores bem definidos, a fim de moldar os objetivos da educação teológica. O capítulo 4 discute os fatores que contribuem para oferecer, à comunidade cristã e à sociedade mais ampla, diplomados que possam demonstrar fielmente a qualidade de sua educação teológica, por meio da excelência da própria reflexão e ministério. O autor enfatiza: “O fator mais importante de todos é que a comunidade educacional é uma comunidade aprendiz, empenhada não só em fazer as coisas bem-feitas, mas também em fazê-las cada vez melhor”. A parte II aborda as características e responsabilidades da liderança acadêmica. Nos capítulos 5 e 6, o autor oferece percepções que obteve ao servir como coor-
INTRODUÇÃO
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denador acadêmico num seminário teológico em Bangkok durante muitos anos. O capítulo 5 discorre sobre o relacionamento entre o diretor e o coordenador acadêmico, que devem ser parceiros na educação teológica. Os aspectos discutidos nesse capítulo presumem uma estrutura organizacional em que o coordenador acadêmico trabalha diretamente com o diretor da instituição e se reporta a ele. O capítulo 6 concentra-se na coordenação acadêmica como um ministério e nos desafios que a posição e função de coordenador acadêmico apresentam. A parte III concentra-se em algumas das práticas cruciais exigidas na administração acadêmica. O capítulo 7 oferece uma explicação sobre o que é planejamento estratégico ao contrastá-lo com aquilo que ele não é. O autor também oferece orientações detalhadas para desenvolver um plano estratégico e algumas considerações para sua implantação levando em conta os diferentes níveis de liderança das instituições e sua capacidade. O capítulo 8 discute o processo de certificação (credenciamento/ reconhecimento). Com base na própria experiência com certificação no contexto europeu, o autor ajuda-nos a compreender de que trata a certificação e aponta algumas concepções errôneas comuns entre os líderes acadêmicos. Ele também trata do trabalho amplo que a certificação exige. O capítulo 9 aborda um tema crítico intimamente relacionado com a certificação, que é o processo de avaliação institucional. Baseado em sua experiência com certificação (reconhecimento) de educação superior na América do Norte, o autor apresenta observações práticas sobre as questões “o quê?”, “por quê?” e “como” da avaliação, conscientizando os líderes acadêmicos de que “a avaliação deve produzir melhorias na instituição”. A parte IV é composta de três capítulos que abordam as diferentes práticas inerentes à liderança eficaz. O capítulo 10 concentra-se nos líderes acadêmicos como agentes de mudança e destaca os aspectos da mudança organizacional que ajudarão esses líderes a ter uma melhor compreensão do que essa mudança significa. Também discute o modo como o ambiente que cerca a instituição, o ambiente interno e a cultura da instituição influem na mudança. As características dos agentes de mudança e algumas recomendações aos líderes acadêmicos também estão incluídas na discussão. O capítulo 11 lida com a resolução de conflitos no contexto da educação teológica. O autor oferece um método prático para resolução de conflitos. O capítulo 12 é uma reflexão em que o autor analisa a própria experiência a fim de informar o que considera serem as características e competências necessárias a uma liderança eficaz. Esperamos que os líderes acadêmicos que trabalham nas instituições teológicas sejam beneficiados com a leitura de cada um dos capítulos e de suas seções de reflexão e pontos de ação. Essas seções foram elaboradas para ajudar o leitor a
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perceber como os assuntos discutidos pelos autores refletem nos próprios atos que exercem como líderes. Gostaríamos de concluir esta introdução com as palavras de Gordon T. Smith, presidente da Faculdade e Seminário Universitário de Ambrose e professor de teologia sistemática: Os bons líderes administrativos se importam com as pessoas! E se importam com uma boa erudição. E se importam com o ensino e aprendizado. Mas o trabalho deles é inerentemente institucional; sua disciplina acadêmica, poderíamos dizer, é o Seminário ou a Faculdade. Sua energia mental e emocional — pensamento crítico, criatividade, solução de problemas, sua compreensão complexa e profunda — está concentrada no fenômeno da instituição.11 Fritz Deininger e Orbelina Eguizabal Editores
1 Gordon T. Smith, Prefácio, in: Karen A. Longman (Org.), Thriving in Leadership: Strategies for Making a Difference in Christian Higher Education [Prosperando na liderança: estratégias para fazer a diferença na educação cristã superior] (Abilene, TX: Abilene Christian University Press, 2012), p. 15.
PARTE I
BASES PARA A EDUCAÇÃO TEOLÓGICA
UMA SERVA ÚTIL NA EXECUÇÃO DO PLANO DE DEUS: BASES BÍBLICAS PARA A EDUCAÇÃO TEOLÓGICA
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Dieumeme Noelliste
Já faz algum tempo que a educação teológica tem sido objeto de muita crítica. Nesse debate, praticamente cada aspecto dessa empreitada tem sido visto com descontentamento. Alguns têm chamado a atenção para o que consideram uma aparência fragmentada e desconexa.1 Outros criticam o foco desproporcional sobre a cabeça e a consequente negligência ao coração e à mão.2 Outros ainda têm censurado a resistência à mudança e o esquecimento com relação às novas mentalidades, realidades contextuais e necessidades contemporâneas.3 No mundo não ocidental, as reclamações concentram-se na subserviência ao modus operandi ocidental.4 Essas críticas têm gerado dúvidas sobre a própria validade da educação teológica. Em sua introdução a uma coleção de ensaios direcionados especificamente 1 Cf. Edward Farley, Theologia: The Fragmentation and Unity of Theological Education [Teologia: a fragmentação e unidade da educação teológica], Evangelical Review of Theology (v. 29, n. 3, Philadephia, jul 2005, 1983). 2 Cf. D. G. Hart & R. Albert Mohler, Jr. (Org.). Theological Education in the Evangelical Tradition [Educação teológica na tradição evangélica]. Grand Rapids, MI: Baker, 1996, p. 12, onde isso é identificado como um fator significativo na ambivalência e no desconforto do evangelicalismo diante do aprendizado teológico. 3 Cf. Manfred W. Kohl & Senanayake A. N. Lal (Org.), Educating for Tomorrow: Theological Leadership for the Asian Context [Educando para o amanhã: liderança teológica para o contexto asiático] (Bangalore: SAIACS Press; Overseas Council International, 2002). 4 Kosuke Koyama, Theological Education: Its Unities and Diversities [Educação teológica: suas combinações e diversidades], ATS Theological Education (Pittsburgh, PA, v, XXX, supl. 1, outono 1993).
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à educação teológica evangélica, D. G. Hart e Albert Mohler Jr. afirmam que, apesar do papel que tem desempenhado no crescimento e na vitalização do evangelicalismo ao longo dos séculos, a importância da educação teológica para essa tradição “tem sido geralmente diluída, se não ignorada”.5 Uma crítica recente foi ainda mais incisiva e exagerada: “A educação de seminário, de forma geral, apresenta quatro erros: ela é ensinada por pessoas erradas, no lugar errado, com o currículo errado e com uma supervisão errada”.6 Entretanto, essa avalanche de críticas não representa a totalidade das opiniões sobre o empreendimento. À parte dos ataques, há uma linha de pensamento mais favorável a esse esforço, embora também reconheça vários desafios. Nessa vertente, há quem detecte não só uma afirmação da utilidade da educação teológica, mas também uma apologética moderada e um otimismo cauteloso sobre o futuro dela.7 Nesse contexto, parece apropriado perguntar com que orientações as Escrituras podem contribuir para esse debate. Em sua exposição sobre a natureza da revelação, Geerhardus Vos afirma que a autorrevelação de Deus tem sido apontada como resposta às “necessidades práticas de seu povo no decorrer da história”.8 Se a educação teológica tem alguma importância para o bem-estar do povo de Deus, é natural que esperemos encontrar indícios desse propósito na revelação de Deus. Na verdade, a tese deste capítulo é que as Escrituras não só confirmam a utilidade do aprendizado teológico, como também demonstram que, em seu âmbito, há informações suficientes para a criação de uma apologética rigorosa a favor da própria necessidade desse empreendimento. No cerne de nossa argumentação, está a afirmação de que, falando biblicamente, esse aprendizado constitui um acompanhamento essencial à revelação do plano e da economia de Deus. Tentarei apresentar boas razões para essa afirmação ao explicar a importância da aprendizagem teológica com relação a três elementos do propósito divino: o bem-estar do povo de Deus, o avanço da missão de Deus e a preservação da fé cristã. 5
Hart & Mohler, op. cit., p. 12.
6
Kohl & Senanayake, op. cit., p. 31.
7 Cf. Robert Banks, Reenvisioning Theological Education: Exploring a Missional Alternative to Current Models [Em busca de uma nova visão para a educação teológica: explorando uma alternativa missional diante dos modelos atuais], in: International Council for Evangelical Theological Education, Manifesto for the Renewal of Theological Education [Conselho Internacional para educação teológica evangélica, manifesto para a renovação da educação teológica], 1983, 1991 (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1999); Daniel O. Aleshire, Earthen Vessels: Hopeful Reflections on the Work and Future of Theological Schools [Vasos terrenos: reflexões esperançosas sobre a obra e o futuro das escolas teológicas] (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2008). 8 Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1948, 1985), p. 9. [Publicado em português com o título Teologia bíblica: Antigo e Novo Testamentos (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
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A EDUCAÇÃO TEOLÓGICA E O BEM-ESTAR DO POVO DE DEUS É uma verdade fundamentada na Bíblia que o bem-estar da humanidade é um dos principais propósitos de Deus. A Bíblia começa e termina com a mesma cena feliz: a humanidade desfrutando alegria na presença de Deus (Gn 1.26-31; Ap 21.1-4; 22.1-6). De acordo com o plano de Deus, a principal bem-aventurança, que teve início e foi perdida no Éden, será restaurada na cidade eterna de Deus, na consumação de seu plano redentor. Mas até lá a agenda de Deus para o bem-estar de seu povo continua, e a Bíblia situa a educação teológica no cerne da implantação dessa agenda. Isso ficará bem claro quando considerarmos o papel da educação teológica no cuidado, segurança e reavivamento do povo de Deus. O exame das Escrituras revela que a entrega desses “bens” demanda um aprendizado teológico considerável. Consideremos cada um deles. Cuidado por meio do pastoreio dedicado O cuidado é essencial para o bem-estar de qualquer coisa. Cuidado é a atenção necessária que damos a algo a fim de promover seu crescimento, manter sua condição e garantir seu contínuo desenvolvimento. Na Bíblia, a importância do cuidado com o bem-estar do povo de Deus é tida por tão elevada que sua provisão é confiada aos que são conhecidos como os especialistas no assunto: os pastores! No salmo 23, Davi descreve o próprio Senhor como pastor — seu pastor (v. 1). No Novo Testamento, essa designação é constantemente aplicada a Jesus, que chamou a si mesmo “o bom pastor” (Jo 10.11). Da mesma forma que no caso do Senhor, o papel de Jesus como pastor relaciona-se especificamente com seu povo (Jo 10.14; Hb 13.20). O pastoreio é exercido para benefício de um rebanho necessitado. De acordo com Jesus, os rebanhos sem pastor estão vulneráveis e expostos ao perigo, porque carecem de cuidado (Mt 9.36; cf. Ez 34). A profunda consciência de Jesus sobre a necessidade do cuidado pastoral para com o povo explica a importância do chamado que fez a Pedro e do treinamento que lhe deu para cumprir a tarefa, em benefício de sua igreja. João 21.15-17 é o locus classicus da comissão de Pedro. Antes disso, Jesus havia declarado que Pedro desempenharia um papel de liderança na emergente comunidade messiânica (Mt 16.17-20). Agora que o cumprimento dessa promessa se aproximava, Jesus julgou necessário renovar a comissão de Pedro. Nesse ato de recomissionar, a preocupação de Jesus era, sem dúvida, pastoral. Isso fica evidente pela sua tríplice incumbência a Pedro: “Cuida dos meus cordeiros” (Jo 21.15); “Pastoreia as minhas ovelhas” (v. 16); “Cuida das minhas ovelhas” (v. 18). A principal tarefa confiada a Pedro,
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portanto, consistiu na provisão de alimento adequado e orientação apropriados a um rebanho que não podia sustentar a si mesmo. Para Jesus, a necessidade de cuidado era urgente, e a tarefa de pastorear, muito séria. Em primeiro lugar, a reunião do rebanho era iminente (Jo 21.1-14). Para que a colheita não se perdesse, a tarefa do pastoreio tinha de começar de forma austera. Os que estavam para ser reunidos precisavam ser alimentados e cuidados com urgência.9 Em segundo lugar, esse alimento tinha de ser providenciado com diligência, uma vez que o alvo desse cuidado eram pessoas especiais para Jesus: ele as chama “meus cordeiros” e “minhas ovelhas”. Em terceiro lugar, a função do pastoreio é muito nobre, porque se trata de uma continuação do que o próprio Jesus estava fazendo a favor do rebanho. Mas como preparar alguém para desempenhar esse elevado papel? O caso de Pedro demonstra com clareza que a responsabilidade de pastorear não é confiada a todos, independentemente de sua disposição para isso. O pastoreio é um chamado que exige preparo condizente com a natureza dessa função. Os Evangelhos mostram que Pedro, antes de ser incumbido desse ofício, teve de passar por um programa de aprendizagem bem severo. Podemos distinguir três níveis desse preparo para o ministério. Primeiro: como um membro-líder dos Doze, Pedro fazia parte da comunidade mais íntima de Jesus e, nesse âmbito, estava imerso no regime de treinamento que Jesus designara para o grupo. Aprendemos também com os Evangelhos que esse programa era consistente, contínuo, intensivo e abrangente, pois não só exigia que os discípulos lidassem com questões difíceis, mas também os deixava cara a cara com situações desafiadoras e os mergulhava em experiências emocionalmente intensas. Segundo: Pedro fazia parte do “do grupo dos três”, o círculo mais íntimo de Jesus (Mc 9.2), e, como tal, participou de experiências às quais o restante dos discípulos não tinha acesso. Por exemplo, pense na transfiguração, quando Jesus deu um raro vislumbre de sua glória ao privilegiado trio (Mt 17.1-11). Esse acontecimento causou tanto impacto em Pedro que ele mais tarde usou a experiência para reforçar a autoridade de seu ensino (2Pe 1.12-18). Terceiro: o temperamento e a personalidade de Pedro deram às suas experiências de aprendizagem uma vantagem exclusiva. Curioso como era, ele costumava pedir alguma explicação sobre as questões que pareciam não ser parte do plano de aula original de Jesus (Jo 13.6-10). Como sempre expressava o que estava no coração, estava propenso a dizer tolices, mas Jesus invariavelmente as usava como 9
Idem, ibidem.
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oportunidades para correção, repreensão e até para exercitar no ministério pastoral aquele aprendiz ingênuo e impressionável (Mt 16.22-23; Mt 26.40). Impulsivo, colocava-se em situações de aprendizagem extraordinárias (Mt 14.28-31). O espaço não nos permite falar da atenção especial e da instrução particular que Pedro recebia ocasionalmente do próprio Jesus (Mt 16.22-23; 17.24-27). Contudo, é surpreendente que nem mesmo esse treinamento contínuo aplicado pelo Mestre dos mestres o deixou pronto para a tarefa pastoral. Depois que o trabalho real de pastoreio teve início, fez-se necessário um aprendizado adicional! Por exemplo: embora Jesus tenha dito que as ovelhas das quais Pedro estava encarregado de pastorear incluiriam elementos que não faziam parte do aprisco judeu (Jo 10.l6; 17.20ss), foi necessária uma dramática intervenção do próprio Deus para persuadi-lo a se comunicar com a parte gentílica do rebanho (At 10.13-16). E, ao mesmo tempo em que essa experiência ensinou a Pedro que “Deus não trata as pessoas com base em preferências” (At 10.34), seria ainda necessária uma severa repreensão por parte de seu colega mais novo, Paulo, para ajudá-lo a aplicar esse princípio de forma consistente (Gl 2.11-15). Portanto, o caso de Pedro deixa claro que, biblicamente falando, a tarefa de cuidar do povo de Deus não é confiada a qualquer um, esteja ele preparado ou não para isso. Nos Evangelhos, Pedro aparece como o líder dos Doze (Jo 1.42; 21.15ss; Lc 5.5ss; Mt 14.25-31). Isso mostra que ele possuía algumas qualidades de liderança já antes de sua experiência de treinamento. Mas, diante desse foco na história de seu aprendizado teológico, é razoável concluir que suas habilidades naturais não foram consideradas ideais para o trabalho pastoral a que fora chamado para desempenhar. Para servi-lo bem nessa difícil tarefa, elas tiveram de ser desenvolvidas, afiadas, aprimoradas e complementadas. Segurança por meio da firmeza teológica O segundo elemento crucial para o bem-estar do povo de Deus é a segurança que provém da firmeza teológica. Se o cuidado e a alimentação fornecidos pelo pastor bem preparado são essenciais ao crescimento das ovelhas, o domínio das verdades bíblicas é vital para a segurança e estabilidade delas. Por isso, a aprendizagem teológica é essencial. Entre os escritores do Novo Testamento, Paulo faz soar essa nota com uma força singular e uma clareza inconfundível. Ele faz isso em Atos e nas cartas pastorais. Em Atos, ouvimos essa nota em seu discurso de despedida aos presbíteros de Éfeso, na cidade costeira de Mileto (At 20.17-31). Nessa mensagem, Paulo incumbe os líderes da igreja de Éfeso de modo semelhante à forma em que Jesus comissionou a Pedro anos antes. Paulo exorta-os a ter cuidado “de todo o rebanho sobre o
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qual o Espírito Santo vos constituiu bispos” e a pastorear “a igreja de Deus, que ele comprou com o próprio sangue” (v. 28-29). Aos olhos de Paulo, assim como aos de Pedro, os presbíteros foram divinamente designados para ser supervisores (no grego, episkopoi), incumbidos da responsabilidade de cuidar do rebanho de Deus (no grego, poimainein). Mas o cuidado para o qual Paulo foi chamado a exercer tem outra ênfase: ele se concentra na proteção do rebanho contra ensinos nocivos. Por meio de um mandamento duplo (“tende cuidado”, v. 28; “estai atentos”, v. 31), ele apela para o tipo de vigilância que julga necessária para impedir que o rebanho seja vítima das induções nocivas e dos ensinamentos perniciosos dos falsos mestres, os quais já estavam trabalhando fora e dentro da igreja (v. 29-31). Eles foram mantidos a distância enquanto Paulo esteve lá. Agora que ele está para sair de cena, é necessário que os presbíteros de Éfeso assumam essa tarefa, a fim de que o rebanho fique seguro e protegido. Mas com base em que Paulo lançou essa pesada obrigação sobre os ombros daqueles líderes? Ele pôde convocá-los para assumir a missão porque ele mesmo os havia preparado para a tarefa! Ele mesmo ressaltou a questão lembrando seu ministério de ensino entre eles. Em primeiro lugar, lembrou-os de que seu ministério de ensino fora conduzido com integridade e transparência, o que era do conhecimento de todos eles (v. 17,20). Em segundo lugar, afirmou que seu ensino fora realizado com tal zelo e cuidado que libertava sua consciência de toda culpa. Com seu senso de urgência, havia ensinado tudo que era proveitoso para eles (v. 20). E, com ousadia, ele havia proclamado “todo o propósito de Deus” a eles (v. 27). Ele havia feito isso com grande empenho, utilizando-se de todos os meios legítimos e fazendo uso de todas as oportunidades para cumprir a tarefa (v. 20,31). John Stott resume corretamente a atitude e a abordagem do treinamento teológico de Paulo ao dizer: “Ele compartilhava toda verdade possível, com todas as pessoas possíveis, de todas as maneiras possíveis”.10 Em suas cartas a Timóteo e Tito, Paulo continua a defender a causa da proteção aos crentes por meio do ensino sadio. Em primeiro lugar, expôs aos jovens pastores a realidade perniciosa do falso ensino e a ameaça que este representava para as igrejas sob seus cuidados (1Tm 1.3-7; 2Tm 3.13; Tt 1.10). Em segundo lugar, insistiu na necessidade de combaterem aquela ameaça assumindo a posição de ministros do evangelho com responsabilidade e convicção. Mais que tudo, precisavam ser líderes defensores da sã doutrina (1Tm 4.16; 2Tm 2.15), que refutassem os falsos mestres (1Tm 1.3; Tt 1.9b) e ensinassem a sã doutrina aos que estavam sob seus cuidados (Tt 1.9a; 1Tm 4.6,11-14). Em terceiro lugar, garantiu10 John Stott, The message of Acts (Leicester: InterVarsity Press, 1990), p. 328. [Publicado em português com o título A mensagem de Atos (São Paulo, ABU: 1994).
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-lhes que esse compromisso com a ortodoxia teológica protegeria o rebanho da ruína (Tt 1.11) e salvaria tanto os pregadores quanto os ouvintes (1Tm 4.16). Mais especificamente, isso os guardaria do tríplice perigo da distração fútil (1Tm 1.3-9), do engano nocivo (2Tm 3.6-8) e da destruição (1Tm 1.19-20). Qual a base da confiança de Paulo na capacidade daquela segunda geração de líderes cristãos para proteger a igreja contra a investida dos falsos mestres? O Novo Testamento responde a isso com abundante clareza. Além da graça de Deus, a confiança de Paulo estava fundamentada no conhecimento de que o investimento que ele mesmo fizera no treinamento deles os havia preparado adequadamente para o desafio. De muitas maneiras, Paulo era para Timóteo e Tito o que Jesus fora para os Doze. À semelhança de Jesus, ele os trouxe para seu círculo pessoal e providenciara oportunidades para que fossem preparados para o ministério por meio da instrução direta (2Tm 2.2), da imersão na vida ministerial e do envolvimento real na prática do ministério (Fp 2.20-22). Portanto, se Paulo se sentia confiante ao pedir que Timóteo permanecesse em Éfeso durante sua ausência, a fim de garantir que determinados homens “não ensinem outras doutrinas” (no grego, heterodidaskalein; 1Tm 1.3), era porque, ao contrário daqueles que afirmavam o que não conheciam (1Tm 1.3ss), Timóteo, tinha conhecimento de fato! Ele conhecia os ensinamentos de Paulo, seu modo de vida, seu propósito, sua fé. (2Tm 3.20). E, por causa disso, ao contrário dos outros, iria permanecer naquilo que aprendera e de que fora inteirado, sabendo de quem o havia aprendido (2Tm 3.14). Reavivamento por meio do Espírito e da Palavra O terceiro elemento crucial para o desenvolvimento do povo de Deus é o reavivamento. É por meio do reavivamento que nos tornamos aquilo que Deus deseja que sejamos (2Co 3.18; 1Co 13.13; 1Jo 3.3). Mas como o reavivamento acontece? E que papel o aprendizado teológico desempenha nesse acontecimento? Se explorarmos alguns exemplos de reavivamento nas Escrituras, como o episódio do vale dos “ossos secos” (Ez 37), o derramamento do Espírito no Dia de Pentecostes (At 2) e o avivamento liderado por Esdras no Israel pós-exílio (Ne 8), veremos que o aprendizado teológico está por trás de todos eles. Biblicamente falando, dizer que o reavivamento é obra de Deus é um truísmo (uma verdade notória). Para os profetas, Yahweh é o Único que estabelece o plano e põe em ação o programa para a transformação radical que seu povo precisa, e por toda a Escritura a obra divina de reavivamento é realizada pela ação do Espírito Santo, cuja infusão traz vida (Ez 37.9-10; cf. Rm 8.10-11) e cuja habitação e plenitude produzem obediência (Ez 36.27; cf. Ef 5.18ss).