Caráter moldado para a perserverança

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ApĂŞndice

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Margaretha N. Adiwardana questiona as ideias preconcebidas e tradicionais de como preparar missionários para o campo. Com base na Palavra de Deus, ela nos leva a visualizar um modelo integral e profundo de formação de missionários fiéis para este mundo conturbado. Com certeza, este livro irá servir de referência para mim e para muitos outros interessados no treinamento de missionários, no Brasil e em outros países. BARBARA BURNS Missionária, doutora em Missiologia e professora de missões no Brasil há quarenta anos. Avançamos muito na capacitação de nossos futuros missionários. Contudo, acompanhando vocacionados antes, durante e após o período de preparo, ainda percebo o romancismo que envolve o chamado de muitos, no qual o complexo sentido da renúncia parece inexistente. Por esse motivo, Caráter moldado para a perseverança é leitura obrigatória para todos os que militam no preparo de vocacionados, sobretudo os primeiros a identificá-los — os pastores. Privilegiado por ter servido ao lado de Margaretha em grandes desastres internacionais e visto de perto o esforço e o sofrimento dos que servem em ambientes de catástrofes, recomendo especialmente a leitura dos apêndices que tratam desse assunto. MARCOS GRAVA Primeira Igreja Batista de Santo André (SP) Coordenador de Caravanas Humanitárias Membro do Grupo Gestor de Segurança do Missionário da AMTB Caráter moldado para a perseverança será uma contribuição muito valiosa na formação de missionários e daqueles que os enviam. Margaretha Adiwardana escreve com profundo conhecimento bíblico e tem muita experiência de vida e ministério em campos extremamente difíceis. Você não encontrará teorias interessantes, mas vida vivida com paixão, ousadia, fé, compromisso e sabedoria. ANTÔNIA VAN DER MEER Doutora em Missiologia, foi professora e coordenadora de Desenvolvimento da Escola de Missões do Centro Evangélico de Missões. Serviu dez anos como missionária em Angola.


Com fundamentação bíblica e conhecimentos das ciências sociais e da educação, Margaretha oferece-nos uma profunda reflexão sobre o treinamento de missionários para perseverar em campos de risco. Com maestria, experiência missionária e vivência em preparo de socorristas ao longo dos anos e como fundadora e presidente da Associação Missão Esperança (AME) tem servido a igreja brasileira e dado assistência em situações de dor e sofrimento em diversos países. Este conteúdo é de extrema necessidade para todos os que trabalham com o preparo de missionários transculturais. DURVALINA BEZERRA Missionária, professora e escritora “Perseverança” é, sem dúvida, uma palavra-chave para a missão da igreja de nossos dias. As crises mundiais, o confronto religioso, a perseguição e o desafio dos lugares onde o crescimento do evangelho é lento ou mesmo inexpressivo requerem obreiros, igrejas e organizações missionárias que perseverem na convicção e no envolvimento missionário. O livro de minha amiga e colega Margaretha Adiwardana, Caráter moldado para a perseverança, ajudará os candidatos a missões, os missionários no campo e os que preparam e enviam obreiros a refletir sobre a necessidade de perseverar, de se preparar para resistir às adversidades e de seguir desenvolvendo um caráter conforme o modelo de Jesus Cristo. Margaretha tem dado um claro exemplo de perseverança em sua liderança missionária ao longo dos anos e é, em grande parte, com base na própria experiência que ela nos presenteia com este importante trabalho. BERTIL EKSTRÖM (PHD) Diretor associado da Comissão de Missões da Aliança Evangélica Mundial (WEA)


Sumário

Prefácio.................................................................................................. 9 Prefácio da autora ............................................................................... 11 Introdução ........................................................................................... 15 1. A necessidade de preparar missionários que perseverem nas adversidades.............................................................. 25 2. O ensino bíblico sobre a perseverança............................................. 39 3. Um modelo de transformação cultural.............................................. 69 4. A formação para a perseverança...................................................... 83 5. "Jeitinho brasileiro" –– Fatores positivos e negativos e implicações para o preparo missionário...........................................115 6. Preparando os missionários para situações de risco........................127 Parando para recapitular e refletir......................................................139


Apêndices O cuidado com os missionários envolvidos em situações de catástrofe....................................................................143 Por uma teologia de consolo em catástrofes (segundo Lamentações de Jeremias)................................................155 Tabelas.............................................................................................162 Bibliografia .........................................................................................166


Prefácio

É animador ver o número crescente de missionários enviados pelas igrejas da Ásia, da África e da América Latina, mas é motivo de certa preocupação o fato de não estarem suportando as pressões que encontram e retornarem desanimados para casa antes da hora. Neste livro, Margaretha Adiwardana trata dessa questão e oferece um programa de treinamento que irá preparar candidatos ao trabalho missionário para uma vida de sacrifício e reforçar sua capacidade em perseverar diante do estresse, das dificuldades e dos perigos. Depois de chamar nossa atenção para a taxa inaceitavelmente elevada de retorno prematuro de missionários, Margaretha descreve o tipo de dificuldades com que missionários transculturais podem se defrontar. Ela identifica tendências culturais nas sociedades contemporâneas que influenciam fortemente o pensamento dos candidatos a missionários e reduzem sua capacidade de perseverar em ambientes desanimadores ou hostis. Também aponta as numerosas passagens do Novo Testamento que advertem os cristãos das dificuldades e problemas que com certeza irão encontrar, incentiva-os a ficar firmes e continuar seu trabalho.


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A autora argumenta que, se a próxima geração de missionários — do Ocidente ou dos mais novos países enviadores — quiser sobreviver e agir com eficácia, eles precisam de um quadro realista do que está envolvido na missão. Precisam entender também que a tarefa de alcançar o mundo com o evangelho só será realizada por aqueles que estão prontos a pagar o preço. Precisam ainda ser preparados de tal modo que ampliem seu entendimento, mudem sua atitude e motivem sua vontade. Na parte final do livro, Margaretha propõe um programa abrangente de treinamento missionário voltado para esse objetivo. Tenho o grande prazer de recomendar este livro e o faço com muito carinho. Margaretha é uma querida amiga que tem grande amor por Cristo e um desejo intenso de ver homens e mulheres preparados da forma certa para o trabalho missionário. Ela tem uma experiência considerável no treinamento de missionários e é muito respeitada no Brasil como professora em cursos missionários. Neste livro, ela compartilha muito do que aprendeu com relação aos desafios da obra missionária transcultural de hoje. Ela também abre seu coração e nos deixa ver sua paixão por fazer o melhor preparo de nossos candidatos a missionários. Esse é o propósito deste livro. Essa é a motivação que fez Margaretha perseverar ao escrever estas páginas, em circunstâncias longe das ideais, acamada várias vezes devido a problemas de saúde. Ela fica triste ante a perspectiva de ver missionários enviados com tanto entusiasmo retornarem derrotados e desiludidos pouco tempo depois. Aqui está o apelo dela às igrejas. Não podemos decepcionar nossos candidatos a missionários. Não podemos enviar gente mal preparada para enfrentar os rigores e as demandas do serviço e do ministério cristãos. Eles são valiosos demais para que se percam. Dr. David Harley Pastor anglicano, serviu como missionário na Etiópia. Professor e ex-diretor do Centro de Treinamento em Discipulado, em Singapura, e da faculdade All Nations do Reino Unido. Diretor da Overseas Missionary Fellowship em Singapura.


Prefácio da autora

Este livro, na versão original, foi uma dissertação escrita em 1999 para a conclusão do curso de mestrado em Teologia versando sobre a Missiologia, quando eu era apenas professora de missões. Hoje, dezoito anos depois, a experiência complementa a teoria estudada: já com uma ONG própria, a Associação Missão Esperança (AME) preparando, enviando e cuidando de obreiros que trabalham com sofrimento em locais pós-catastróficos, em contexto de perseguição, pobreza, conflitos armados e violência. Refugiei-me longe dos ministérios a fim de ter tempo para escrever a dissertação e acabei por submetê-la ao Discipleship Training Centre em Singapura (DTC), uma vez que meu mentor, o reverendo David Harley, era seu diretor. Não foi coincidência minha estadia no DTC, mas um ato providencial de Deus. Fiel ao nome, DTC era um centro de treinamento por discipulado com cursos de um e dois anos de pós-graduação em missões a nível de mestrado. Fui muito abençoada em fazer parte dele como se fosse aluna e convivi com cerca de dez nacionalidades entre os alunos e o corpo docente. Os professores viviam no mesmo complexo da escola com os alunos.


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Fazíamos tudo juntos em grupos de tarefas, os quais cuidavam da escola e em pequenos grupos de mentoria — muito antes de surgir o método, hoje bastante conhecido e praticado. Cada professor cuidava de cinco ou seis alunos. Conviviam com eles a secretária da escola, a bibliotecária, a cozinheira — enfim, todos do staff. Reuníamo-nos em comunhão para partilhar experiências, discutir e refletir sobre problemas e fortalecer uns aos outros. Também promovíamos saídas de lazer e confraternização. Os professores e todo o staff faziam parte dos grupos de tarefas capinando, cuidando do jardim, da biblioteca e da cozinha, fazendo limpeza, jogando fora o lixo e praticando esportes. As casas dos professores, que ficavam com a frente para o prédio onde dormíamos, tinham janelas de vidro sem cortinas. Foi um verdadeiro discipulado. O ministério principal dos professores consistia em discipular e cuidar dos alunos por meio daquela convivência. Leio hoje os boletins sobre os ex-alunos e vejo praticamente todos ainda servir a Deus pelo mundo inteiro. Encontrei vários deles, este ano (2017), prósperos e perseverantes no ministério. Concluí que a estadia no DTC fez muita diferença no meu viver ministerial, graças à convivência com os professores, que dedicaram sua vida a fazer discípulos de nós como preparação para o campo missionário, por amor ao Senhor, à obra missionária e aos treinandos. Depois de todo esse tempo em que preparei e enviei obreiros, reconheço fatores variantes que tanto podem ser percalços quanto motivadores dos obreiros com relação à perseverança no campo missionário. Alguns deles: ambiente da criação, infância e juventude do treinando: se o ambiente foi tranquilo ou turbulento; passado do treinando antes da conversão: pode significar um peso se não for tratado especificamente; personalidade: reação diante da disciplina do treinamento na perseverança (alguns o suportam no curto prazo, como numa contagem regressiva de voltar para casa, mas não no médio e muito menos no longo prazo); tempo de compromisso: hoje poucos vêm dispostos a ficar por longo tempo no campo (a maioria prefere o curto prazo de dois anos);


Prefácio da autora

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cultura original: o treinando pode ter tendência maior à disciplina e à perseveranca ou ao imediatismo; relativismo pós-moderno: a tendência cultural de não ter nada permanente (tudo pode ou deve ser mudado “se não der certo”). Acima de tudo isso está o apoio constante da igreja enviadora, do pastoreio e do cuidado integral do obreiro aliado à compreensão da dinâmica da vida missionária transcultural, de modo que o acompanha principalmente nas dificuldades que enfrenta quando vive e trabalha num contexto difícil, complexo e às vezes instável. Por fim, eu diria que precisamos sempre buscar e usar ferramenta disponível, como o conhecimento, para essa tarefa árdua e complexa, pois envolve seres humanos complexos. Nada é simples na vida humana neste mundo caído. Deve haver dedicação total dos que se dispõem a usar essa ferramenta na tarefa de preparar obreiros eficazes, eficientes e efetivos para um mundo cada vez mais complicado, mutante e instável. Mas no final do dia dizemos que o resultado é só pela graça. Sempre me lembro de que o Senhor Jesus, o Mestre de todos os mestres, discipulou doze pessoas por mais de três anos, dia a dia, 24 horas. Um deles negou-o três vezes por medo, outro duvidou dele, dois brigaram por um status mais elevado entre seus companheiros de ministério e um o traiu por dinheiro, o que levou o Mestre à crucificação. Com esse lembrete, reconheço humildemente quem sou para poder obter melhores resultados. No fundo do dilema, cada um tem livre-arbítrio para escolher seu caminho em cada encruzilhada da vida: continuar servindo e pagando o custo do discipulado — negar a si mesmo e levar a cruz, como nosso Senhor alertou e mandou — ou tomar outro rumo. É a graça de Deus que concede o livre-arbítrio. Só por sua grande misericórdia e amor profundo pelo ser humano, na plenitude de seu sentido e realidade, o obreiro terá condições de continuar servindo diante das enormes dificuldades do campo ou condições de preparar outros vocacionados para realizar o ministério designado pelo Senhor da seara. A capacitação do Espírito Santo, o Paráclito, que anda ao nosso lado consolando, ensinando, encorajando, exortando em correção e assim nos dando poder para o desempenho da Grande Comissão, é necessária cada dia e cada momento, até à consumação dos séculos.



Introdução

Por ocasião do Congresso Brasileiro de Missões, realizado em 1993, tomamos conhecimento de que, durante o período de 1987 a 1992, 75% do total dos missionários brasileiros retornaram antes de completar o tempo de serviço previsto. Este dado causou um forte impacto sobre todos os presentes, especialmente nos educadores para o trabalho missionário. De 1994 a 1996, a Comissão de Missões da Aliança Evangélica Mundial (WEF-MC) realizou uma pesquisa internacional sobre as causas das perdas de missionários. Uma investigação foi conduzida em catorze dos países que mais se destacavam no envio de missionários.1 Em abril de 1996, a WEF-MC organizou uma oficina em que participantes convidados puderam discutir os resultados dessa pesquisa, os quais demonstraram que, durante o período de 1992 a 1994, nos catorze países estudados, uma média de 5,1% dos missionários de longo prazo deixou o campo todos os anos.

1 Os catorze países são: Austrália, Brasil, Canadá, Costa Rica, Dinamarca, Alemanha, Gana, Índia, Coreia do Sul, Nigéria, Filipinas, Singapura, Reino Unido e Estados Unidos.


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A pesquisa arrolou 26 razões que levaram os missionários a abandonar o campo de missão, divididas em duas categorias: 1) as chamadas razões inevitáveis, ou seja, que não podem ser prevenidas, como morte e aposentadoria; 2) as chamadas causas preveníveis, ou seja, que podiam ter sido evitadas mediante melhor cuidado pastoral, com seleção e treinamento para enfrentar problemas de relacionamento, pessoais e espirituais. De acordo com William Taylor, então diretor executivo da WEF-MC e coordenador da oficina sobre as causas do retorno prematuro dos missionários, 71% dos missionários que retornaram prematuramente procederam assim em decorrência de motivos evitáveis.2 Durante a oficina da WEF-MC, foram discutidas as causas do retorno prematuro e propostas possíveis curas. Formaram-se grupos de debate que enfocavam todas as áreas do empreendimento missionário. Um dos grupos abordou o treinamento preparatório formal e o não formal. Tive o privilégio de participar desse debate. O referido grupo concluiu que um dos objetivos primordiais na formação de candidatos para o trabalho missionário é equipá-los para enfrentar sofrimento e agruras. Alguns membros do grupo, oriundos de continentes diversos, reconheceram que a cultura contemporânea fomenta a autocomplacência e é muito orientada para o sucesso — fatores que desmotivam os ideais do autossacrifício e da perseverança em meio a dificuldades. Como decorrência do relatório do Congresso Brasileiro de Missões de 1993 sobre o alto índice de perdas de missionários, a Associação de Professores de Missões no Brasil (APMB) dedicou algumas de suas consultas seguintes à discussão das causas e prevenções do retorno dos missionários, singularmente aos caminhos e meios para melhorar o preparo missionário com vistas a reduzir a perda de obreiros. Como resultado, reconheceu-se que o caráter dos missionários é importante gerador de força para a persistência no campo e que existe a necessidade de elaborar currículos integrados que incluam em seus objetivos a formação de caráter.3 2 Os dados e avaliações referentes à pesquisa estão publicados no livro Valioso demais para que se perca, organizado por William D. Taylor. 3 Barbara H. Burns, O perfil do missionário.


Introdução

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Há numerosos campos de missão em que os missionários são expostos a adversidades. Hoje em dia, há uma forte ênfase na necessidade de atingir os grupos étnicos não alcançados. Alguns movimentos missionários instam as igrejas a enviar com urgência missionários a esses grupos étnicos. Na pressa de enviar esses obreiros, há o perigo de se enviar candidatos que não estão devidamente preparados para a situação que irão enfrentar. A maioria dos povos não alcançados está localizada em áreas que expõem o missionário a vários riscos: viver num contexto de pobreza; ter a família exposta a doenças que representam ameaça à vida, pela ausência de boas condições sanitárias; sofrer perseguição religiosa; ser apanhado em situações de violência e de guerra. Por essas razões, é imperioso que os missionários enviados a tais áreas sejam preparados de forma adequada, para que possam enfrentar esses desafios. Se insistirmos em mandá-los a contextos de alto risco e grande adversidade sem orientação e treinamento apropriados, corremos o perigo de aumentar o índice de perdas de missionários. Eles precisam ser preparados adequada e especificamente para prever dificuldades e perseverar na adversidade. Isso se aplica a qualquer programa de treinamento e discipulado das igrejas, porém é particularmente necessário aos que são enviados a todos os quadrantes da terra em nome de Cristo. Os missionários precisam desenvolver a aptidão de perseverar. Entretanto, a cultura pós-moderna dominante, da qual procedem e que configurou a vida deles, tende a desmotivar a atitude de pertinácia, pois busca evitar o sofrimento e incentiva os resultados rápidos e a autossuficiência. A formação contemporânea para o ministério missionário precisa capacitar os candidatos a perseverar e ministrar com eficácia sob quaisquer condições, a fazer todo sacrifício que for necessário e a depender inteiramente de Deus. Este livro examina um componente do treinamento para o trabalho missionário que visa à formação da mente e do caráter de conformidade com os princípios bíblicos. Propõe uma metodologia educacional que desenvolverá a aptidão dos candidatos a perseverar. A transformação cultural tem seu foco numa perspectiva bíblico-missiológica da mudança


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de atitude do candidato à obra missionária com relação à cultura. Em decorrência disso, o grau de perdas em recursos financeiros e humanos diminuirá. Grandes investimentos estão sendo realizados nos empreendimentos missionários de igrejas em todo o mundo. Os missionários que retornam antes do término do tempo estipulado geralmente o fazem antes de produzir os frutos, como a plantação de igrejas e o discipulado de vidas para Jesus. As igrejas patrocinadoras, que despenderam dinheiro, às vezes com sacrifício, ficam desapontadas e possivelmente não irão se animar a proceder da mesma forma no futuro. Pior ainda é a situação do missionário, pois ele sente que falhou. Muitos estão esgotados emocionalmente e perdem a coragem de retornar ao campo. A frustração e o fracasso podem destruir a vida deles. É imperioso, portanto, que essa questão seja tratada com seriedade. Em última análise, este estudo visa contribuir com a formação de discípulos que sigam o modelo encarnacional de Jesus: que esvaziem a si mesmos e sejam obedientes mesmo no sofrimento, de modo que as nações vejam a soberania, o poder e a glória de Deus na vida humana.

Pressupostos básicos Em primeiro lugar, constatamos que a igreja é intrinsecamente missionária em sua verdadeira natureza (Ef 3.10). David Bosch afirma: “A igreja não é de outro mundo. Ela está envolvida com o mundo, o que significa que ela é missionária”.4 Jesus comissionou seus seguidores a fazer discípulos de todas as nações (Mt 28.18-20). Isso implica que a igreja deve enviar evangelistas a todas as partes do mundo. Roger Hedlund escreve: “A característica apostólica da igreja não reside em suas tradições, mas em sua obediência missionária”.5 Em segundo lugar, sustentamos que os enviados devem viver com os povos a que se dirigem e no meio deles. O modelo desses missionários 4 Transforming Mission, p. 168. 5 The Mission of the Church in the World, p. 213.


Introdução

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é a encarnação de Cristo, que esvaziou a si mesmo e foi obediente até a morte na cruz (Fp 2.6-8). Paulo diz: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (v. 5, NVI). Em terceiro lugar, defendemos que todos os seres humanos, como resultado de sua condição de criação caída, apresentam valores e comportamentos culturais discrepantes do padrão de comportamento encontrado nas Escrituras, daqui em diante designados “inclinações culturais”. É o “padrão desse mundo” (Rm 12.2, NVI). Sherwood Lingenfelter define as inclinações culturais como “aqueles valores, prioridades e entendimentos da natureza e do mundo que brotam de interesses próprios e sociais”.6 Os candidatos ao trabalho missionário, como todos os seres humanos, tendem a formar uma inclinação cultural. Por isso, antes que saiam a campo suas atitudes carecem de retificação e transformação. E só Deus pode transformar seus servos. Educadores para a obra missionária são meros agentes de transformação. Em quarto lugar, presumimos que a Bíblia constitui a ferramenta primária para que se alcance essa transformação na vida dos candidatos à obra missionária. Como escreve Paulo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). Toma-se igualmente como premissa que a comunidade de fiéis é o contexto ideal em que essa transformação pode acontecer. De acordo com David Bosch, os cristãos “formam uma comunidade de caráter singular. [...] Eles têm de se portar de acordo com o que são em Cristo. Isso se manifesta particularmente em seus relacionamentos”.7

Conteúdo O capítulo 1 apresenta a necessidade de cultivar a perseverança, em face do número de missionários que deixam os campos de missão. Examina os possíveis problemas encontrados no campo de missão e as tendências 6 Agents of Transformation, p. 237. 7 Op. cit., p. 166.


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culturais de nossa época que desmotivam a perseverança na adversidade. Considera o índice de perdas revelado pela pesquisa da Comissão de Missões da WEF. Examina exemplos das décadas de 1980 e 1990 em que missionários enfrentaram pobreza, condições precárias de saúde e higiene, perseguição religiosa e guerra. As informações são extraídas da literatura e de cartas com pedidos de intercessão publicadas pela India Evangelical Mission (IEM),1 Overseas Missionary Fellowship (OMF),2 Open Doors3 e pelo Institute for Study of Islam and Christianity (ISIC).4 O capítulo 2 estuda passagens bíblicas que tratam da necessidade de perseverança na adversidade. Os princípios bíblicos que regem a confiança e a reação dos cristãos diante da perseguição e das dificuldades são extraídos dos ensinamentos de Jesus em Mateus 24. Em 2Coríntios 11, é analisada a vida do apóstolo Paulo como exemplo de missionário que enfrentou provações. A exortação de Pedro a respeito da atitude e da reação cristãs ao sofrimento é examinada em 1Pedro 4. Alguns textos do Apocalipse são igualmente considerados exemplos de como o sofrimento e a perseguição podem ser vistos pela perspectiva mais ampla do propósito soberano de Deus. Por fim, são extraídas algumas lições da experiência da igreja em Atos 2.42-47, quando os primeiros cristãos experimentavam um grau notável de ameaças constantes e de perseguição violenta. O capítulo 3 expõe a proposta de Sherwood Lingenfelter para a transformação cultural como solução de conflitos transculturais. Examina sua tese de que os conflitos entre o missionário e os nacionais se devem às inclinações culturais dele e que a solução é encontrada no estudo e na aplicação de princípios bíblicos. Isso conduz à transformação pessoal em comunidade.

1 Fundada em 1975, é uma das maiores agências missionárias na Índia, conta com cerca de quinhentos missionários. 2 Fundada como China Inland Mission, no século XIX, conta hoje com cerca de mil missionários em todo o mundo. 3 Conhecida no Brasil como Portas Abertas. Missão internacional que trabalha em países nos quais a literatura cristã é proibida. 4 Fundada na Inglaterra por Patrick Sookhdheo, é especializada em estudos sobre o islamismo e sobre a situação de países muçulmanos.


Introdução

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O capítulo 4 apresenta um modelo de treinamento integral adaptado da tese de Sherwood Lingenfelter. Sua teoria da eliminação da inclinação cultural é aplicada ao cultivo da atitude bíblica da perseverança por parte de missionários que deparam com adversidades. Em seguida, a proposta de uma educação missiológica integrada, de Barbara Burns, é adaptada à descoberta de princípios bíblicos em contraposição à inclinação cultural. Seu método, baseado em princípios missiológicos bíblicos e originalmente dirigido à transformação de traços não bíblicos na cultura brasileira, é aplicado ao propósito único de produzir perseverança na adversidade. Esse é o método formal no treinamento missionário. O aspecto não formal do treinamento missionário é aplicado à transformação pessoal. O conceito de Lingenfelter, do missionário como agente de transformação, é adaptado no sentido de que o educador missionário é um agente de transformação dos candidatos à obra missionária. O relacionamento educador-candidato segue o padrão bíblico de discipulado que Jesus praticou. É um tipo de treinamento que modela e monitora, e que deve levar o candidato a se convencer da exequibilidade da transformação à revelia de suas tendências culturais. Lingenfelter propõe que as ideias básicas para essa cosmovisão são dissociadas dos interesses da pessoa, embora as ideias influenciem e sejam influenciadas por interesses individuais e sociais. Os interesses pessoais e sociais do candidato devem ser redirecionados para os interesses vigentes no Reino de Deus e para valores no processo de interação, bem como para um relacionamento pessoal de aprendizado com os educadores. Proponho um método informal de treinamento para a transformação no nível volitivo e comportamental. A sugestão de Lingenfelter sobre vida comunitária como o contexto ideal para transformação cultural é adaptada em conformidade com os princípios bíblicos estudados em Atos 2.42-47, no capítulo 2 de nosso livro. As inclinações culturais no âmbito volitivo devem ser eliminadas pela disciplina espiritual. A vida diária prática em comunidade molda o nível de comportamento, à medida que os membros são expostos ao relacionamento recíproco. Atitudes concordes ou divergentes dos princípios bíblicos são evidenciadas no convívio. Animação e exortação acontecem numa edificação recíproca de acordo com uma atitude bíblica.


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Por fim, proponho que o cultivo da perseverança faça parte essencial do preparo dos candidatos aos campos de missão, especialmente os que enfrentarão contextos de adversidade. Isso pode ser alcançado em parâmetros de treinamento integral que englobam as dimensões formal, informal e não formal e levam à transformação de ideias e de comportamento. O capítulo 5 analisa alguns aspectos do “jeitinho brasileiro”, seus fatores negativos e positivos e implicações quanto ao preparo missionário, como parte da proposta do treinamento para a perseverança dirigida a organizações missionárias que recebem candidatos da cultura brasileira. O capítulo 6 se faz necessário diante do atual contexto mundial, que nas últimas décadas envolve vários perigos. Trata dos múltiplos desafios, das oportunidades e das implicações que envolvem o preparo do missionário para atuar e perseverar em contextos de risco, tragédia e pós-tragédia. No apêndice, abordamos o cuidado com os missionários envolvidos em situações de catástrofe e a questão da segurança. Também oferecemos o esboço de uma teologia do consolo em catástrofes segundo o livro de Lamentações de Jeremias, pois as grandes tragédias causam muito sofrimento e perdas irreparáveis e é comum ficarmos sem ação e sem palavras para confortar os sofredores. Pior ainda, às vezes, por não saber o que fazer, as pessoas acabariam repetindo “chavões”, como: “É preciso ter paciência”; “Deus sabe o que faz”. Sem dúvida, são verdades, porém não consolam. Soam aos ouvidos de quem já está com o coração ferido como uma carga extra e uma cobrança.

Envolvimento pessoal com o tema Envolvida com o preparo e a formação de missionários, minha preocupação é que os candidatos sejam capacitados da melhor maneira possível e se tornem obreiros eficazes no campo missionário. Leciono desde 1991 em vários seminários teológicos, escolas de treinamento transcultural, em centros de treinamento de agências de envio e desde 2001 na ONG da qual faço parte, a Associação Missão Esperança (AME) e a Rede SOS Global.


Introdução

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As disciplinas abordam: vida transcultural, antropologia missionária, comunicação transcultural, contextualização e fenomenologia da religião. As experiências de lidar com candidatos a obreiros transculturais mundiais e com o retorno depois de várias décadas acompanhando o movimento missionário trazem para o presente estudo uma convicção sobre a importância do tema da perseverança, desenvolvido em meu mestrado e agora atualizado e ampliado diante do aumento de violências, catástrofes e missões aos campos “fechados”. Todos envolvem sofrimentos, acentuados pela minha condição de obreira atuante no envio de equipes de socorro em situações de catástrofe, que procura servir de forma integral com atendimento emergencial, reconstrução e desenvolvimento comunitário, a fim de fortalecer e capacitar a igreja local.

Definições Na medida do possível, os termos-chave de nosso conteúdo serão utilizados de acordo com as definições originais nas fontes consultadas (a pesquisa da WEF-MC sobre a perda de missionários, publicada no livro Valioso demais para que se perca, de Taylor, e o livro Agents of Transformation, de Sherwood Lingenfelter). Treinamento. É visto como a preparação de candidatos para a obra missionária antes que partam para o campo missionário. Missionários. São os que se preparam para uma carreira de longo prazo na obra missionária. Integral. O termo “integral” aqui é usado para descrever um treinamento integrado em que os métodos formal, não formal e informal, para atingir a formação da mente e do caráter, estão envolvidos na capacitação. Perdas. A partida de missionários de seu campo de trabalho, independentemente da causa. Um enfoque particular é dado ao retorno prematuro ou evitável dos missionários.


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Índice de perdas. Porcentagem que expressa o número de partidas dos campos missionários conforme os parâmetros específicos de tempo, comparada com o número geral de missionários enviados por uma organização ou movimento. Perdas inevitáveis. Perdas aceitáveis ou compreensíveis, como aposentadoria, término de um contrato, licença de saúde ou “chamado legítimo” para outro ministério. Perdas preveníveis. Perdas que poderiam ter sido evitadas por uma melhor seleção ou enquadramento iniciais, por capacitação ou treinamento mais apropriados ou por um cuidado pastoral mais eficaz durante o serviço missionário. Inclinação cultural. Padrões de valores e crenças comuns, prioridades e entendimentos da natureza e do mundo que brotam do interesse pessoal e social. Pode ser própria de cada cultura ou geral e universal. Como conceito missiológico, pode ser aplicada a valores e crenças que contrariam os valores e crenças bíblicos. Ideias. Propostas básicas sobre como entender a natureza do mundo e a lógica usada para explicar e racionalizar pensamentos e ações. São fundamentais para a cosmovisão em todas as culturas. Interesses. Desejos de indivíduos que precisam ser alcançados mediante relacionamentos com outros.


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