Prólogo E eles verão a Deus A curiosidade movia os visitantes para bem perto da porta, os olhares eram curiosos e a expectativa grande. Antes de qualquer movimentação mais ousada, um barulho de passos duros contorceu alguns pescoços, outros mais corajosos viraram o corpo inteiramente para trás.
outros em burburinhos perguntavam mais sobre a sala onde estavam. - Entendo a curiosidade de vocês. Este local onde estamos, é a sala chamada E eles verão a Deus, lugar do encontro entre a imaginação dos autores e o divino poder de criação, para uma simbólica absolvição dos pecados dos personagens, antes da eternização deles na imaginação dos leitores. Aqui, nenhum pecado é condenado ou punido.
- Bem-vindos! O tom grave da voz assustou alguns, mas foi o suficiente para capturar a atenção de todos. - Nosso passeio já vai começar, não tenham pressa, não tenham medo. Antes, é preciso que me apresente e que informe algumas coisas. Eu sou o guardião dos livros do selo Ex Libris Brasil. Irei conduzi-los ao universo das obras literárias escritas neste solo e visitaremos sete salas. Vocês verão muitos pecados. Era uma apresentação um tanto quanto pomposa, que intimidava alguns, mas
Mal a frase terminou e uma tênue fumaça começou a turvar a visão de todos. - Agora vamos começar de fato. Porém antes, um último aviso! Vamos visitar sete salas, cada uma delas entorpecida de um pecado: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e orgulho. Apenas peço que não se envolvam demais com os personagens, para que não se transformem em uma versão piorada deles. Foram três palmas, a porta finalmente se abriu e a fumaça aos poucos foi se dissipando pelo ar.
Gula Quem comeu, comeu. Quem não comeu, não come mais? A porta estava totalmente aberta, mas só era possível ver no vão uma grande imagem com os dizeres Ex Libris Brasil – Gula. - Não tenham medo, entrem. E assim o guardião atravessou o selo, que nada mais era do que uma visão holográfica, sendo seguido por todos. Tão logo entraram o vermelho da sala já invadia os olhos dos todos, que curiosos, começaram a passear pelo recinto. Não tardou muito e o aroma de melancia já invadia as narinas. Havia muitos livros, e todos com cheiro de comida. O grupo foi se dispersando quando de repente uma velha começou a correr pela sala tentando capturar os visitantes. Diante do pânico geral, o guardião novamente bateu três palmas e a velha ficou imóvel. - Eis aí Ceiuci, a mulher do gigante, que tentou devorar Macunaíma, na bela obra de Mário de Andrade. Sua gula é incontrolável e ela come tudo que vê pela frente. Mas fiquem tranquilos, ela não vai importunálos durante o passeio. Nem bem havia passado o susto, o som do toque de três sinais, tal qual os de teatro é ouvido. Em um canto, uma cortina se abriu. Havia um homem sentado, e logo surgiu outro, um mordomo, carregando uma terrina com sopa. Serviu o homem e saiu do palco. Sem saber se era a mistura dos cheiros ou o jeito caricato do personagem, assim que ele pegou a colher e começou a tomar a sopa, todos cairam na gargalhada.
Após uma pausa, ele recomeçou a tomar a sopa, e novamente gargalhadas. - Vocês podem não saber direito o motivo de acharem isso tão engraçado. Saibam que nem ele. O que vocês assistem agora é o segundo ato, “A Ceia - Livro VII – Au théâtre”, do livro Confissões de Ralfo. E obviamente ele é o Ralfo, de Sérgio Sant’Anna. Caso vocês não tenham lido o livro, informo que o desdobrar da cena será ele começar a atirar comida na plateia. Então se me permitirem, fecharei as cortinas. Todos ainda riam um pouco, mas concordaram com a cabeça e assim a cortina foi fechada. Seguiam encantados com os livros e o cheiro de comida, quando de repente caíram vários pedaços de folha do teto. Logo um menino começa a correr pela sala desamarrando o cadarço de alguns visitantes. Ele tem na mão uma coxa de frango e os lábios bem lambuzados de gordura. - Leonardinho, temos visitas. Vá aprontar suas traquinagens lá longe. Foram poucas palavras que fizeram o menino esbanjar birra, mas sair andando para um dos cantos, não sem antes desamarrar mais um cadarço. - Quando Leonardo Pataca descobriu a traição da mulher Maria da Hortaliça, eles se separaram e Leonardinho ficou para ser criado pelo tio. O pequeno é chegado em aprontar e é muito guloso. Sua história está naquele livro ali. O guardião apontou a estante e todos foram olhar o livro. Tão logo chegaram perto, puderam perceber que se tratava da obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Enquanto folheavam o livro, um forte cheiro de tapioca atraiu a atenção de todos. - Xi! Não façam barulho, deixem ela pensar que está sozinha.
Os visitantes ficaram sem entender direito, já que não havia ninguém na sala. Foi então que o guardião vagarosamente abriu uma fresta em uma parede para que todos pudessem observar a mulher gorda fazendo tapiocas e se esbaldando com elas. Todos puderam espiar, então ele rapidamente fechou a fresta. - Ela casou, mas não quer que o marido saiba que ela gosta muito de comer. Assim, tão logo ele sai, ela se farta com quitutes. Só não posso revelar o que mais acontece nessa história, se algum de vocês quiser saber o desfecho, haverá de ler o conto A gulosa disfarçada de Câmara Cascudo. Alguns começaram a andar pela sala procurando livros do autor para entender o desfecho da história que tinham, em parte, presenciado. O cheiro de tapioca ainda não havia desaparecido, e eis que surge correndo pela sala um porco vestido de gente. Ele encosta o nariz na parede, exatamente no local onde o guardião havia aberto a fresta. Com as patas tenta abrir a parede, sem sucesso. - Rabicó, não há comida aí! Que tal aquele bolo de fubá ali? O guardião nem bem terminou a frase e o porco saiu em disparada para o outro lado da sala, para devorar um bolo de fubá que estava sobre uma mesa. - Perdoem o mau jeito do bichano. Mas acredito que todos vocês tenham lido ao
menos algum dos vinte e três volumes da série Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato e conhecem bem o Marquês de Rabicó. Agora, acredito que poderemos por ali. Todos estavam caminhando tranquilamente na direção da porta, quando de repente são surpreendidos por um barulho muito alto. Olham para o lado e veem uma menina de vestido amarelo comendo com muita vontade uma grande fatia de melancia.
- Ah, sim! Não posso esquecer. Evidentemente todo mundo conhece a Magali dos quadrinhos de Maurício de Sousa. Como vocês perceberam essa sala não parece melancia à toa. E antes que alguém ouse sequer pensar, reforço, embora muita gente considere que história em quadrinho não é literatura, aqui, não fazemos tal distinção, afinal, é justamente por elas que muitos pequenos adquirem o prazer da leitura. A menina sorri, acena e retorna ao seu grande pedaço de melancia. Três palmas e uma nova porta se abre.
Avareza Eu não reparto!
parto,
nem
Outro selo holográfico, desta vez com os dizeres Ex Libris Brasil – Avareza. Os visitantes já não titubearam e atravessaram o selo como se ele ali não estivesse. Porém, mal adentraram a sala e alguns já manifestaram a vontade de sair. Era uma sala muito grande e muito suja, com algumas construções, algumas roupas penduradas e dejetos espalhados pelo chão. Haviam livros espalhados, alguns em janelas, outros na soleira das portas, mas como tudo ali, também estavam sujos. - Não pensem que o estado dos livros é obra do acaso. Os que aqui estão preferem que ninguém nunca os toquem, para que possam durar mais. Percebendo que os visitantes não faziam muita questão de desbravar o local, o guardião resolveu fazer as vezes de guia. - Por aqui! Sigam-me! E assim foram todos andando com muito cuidado até chegar em frente a algo que parecia um mercado. - Este é Halim, um dos personagens de Capão Pecado, do escritor contemporâneo Ferréz. Ele, além de pão-duro, é representante da classe que se opõe ao personagem principal da história, Rael. Um dos visitantes tentou ingressar naquele pequeno recorte de mercado, porém o guardião estendeu o braço impedindo sua entrada. - Seguiremos por aqui.
Enquanto andavam um rapaz um tanto quanto narigudo cruzou o caminho dos visitantes. Carregava na mão uma mala e andava cabisbaixo. Ao escorregar em dejetos o rapaz desata a gritar palavrões impublicáveis. Era tão agressiva a maneira como ele falava que nenhum dos visitantes teve nenhum impulso de prestar ajuda. - Todos aqui são pecadores, mas definitivamente ninguém que vocês encontrarão em sala alguma, será tão mal humorado quanto José Severo. Fosse apenas esse defeito, tudo bem. Ele está aqui porque dentre muitas outras coisas ele é sovina, e foi eternizado com a mala, representando a viagem que faria do Rio de Janeiro para Alagoas. O breve relato do guardião atiçou a curiosidade de todos, que gostariam de saber mais sobre o homem. - Para saber mais é preciso ler a obra, que é o primeiro romance de Carlos Heitor Cony, O Ventre. Vendo alguns livros com o título em uma espécie de janela, alguns visitantes foram até lá para passar os olhos nas páginas. Gastaram um bom tempo por ali e o guardião achou por bem aguardar que eles saciassem um pouco da curiosidade. O momento de tranquilidade e leitura entretanto não durou muito, pois uma porta que mais parecia algo cenográfico é aberta e dela sai uma velha, de trajes um tanto quanto pomposos e uma sombrinha na mão. Rapidamente a velha começa a bater com a sombrinha nos braços dos visitantes, enquanto gritava que eles poderiam estragar os livros de José Paulino. - Devolvam os livros e não se preocupem, ela sempre acha que é a dona da casa, mas somente cuida dela. A velha recolheu os livros com um bocado de raiva e os visitantes se entreolharam curiosos.
- Era Tia Sinhazinha, personagem do livro O Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Muito severa e controladora, o terror dos empregados da fazenda onde o menino foi criado. E por falar em terror, aconselho vocês a recuarem um pouco. Todos recuaram alguns passos para trás enquanto golpes de bengalas são disparados no ar. Alguns visitantes mais afoitos esconderam-se atrás do guardião. Segurando a bengala, um velho muito furioso gritou que ninguém ira encostar na sua porca. Como o lugar onde estavam lembrava de certa forma um chiqueiro, os visitantes começam a olhar para os lados procurando o bichano. - Não, não! Não é animal que o senhor Euricão está defendendo, e sim uma porca de madeira, na qual ele guarda todo o seu dinheiro. E eu sei onde ela está!
Tendo ouvido a provocação do guardião, o velho avançou em sua direção, mas após três palmas ele ficou estático. - Como vocês podem ver, dinheiro aqui é a coisa mais importante que há. Euricão é personagem de O santo e a porca, escrito por Ariano Suassuna, umas das mais relevantes obras sobre avareza já escritas na literatura nacional. Com o movimento de braço do guardião, os visitantes rapidamente entenderam que deveriam seguir caminhando um pouco mais. Todos caminhavam sem pressa, comentando sobre o que estavam vendo, sobre como haveriam de ser magníficos os livros ali representados. Ao se depararem com um ambiente bastante semelhante ao do mercado que haviam conhecido pouco tempo antes, os
visitantes ficaram um pouco alvoroçados, imaginando estarem andando em círculos naquele local. - Sem aflições desnecessárias. Estamos em outro local, se prestarem atenção entenderão que este ambiente certamente é de outra época. Mal havia acabado a frase, o guardião gesticulou com as mãos pedindo silêncio aos visitantes, que obedeceram prontamente. Alguns tentavam enxergar o que se passava dentro daquele lugar, mas só conseguiam ouvir alguém dizendo que trocaria a mercadoria por “dez réis de mel coado”. O diálogo logo acaba e surge um homem um pouco baixo e com cara de poucos amigos. Atrás de uma espécie de balcão ele começa a contar algumas moedas. - Por sorte não dependemos dele para sair daqui, caso contrário haveríamos de deixar alguma coisa. E antes que perguntem, esse é João Romão e possui uma lista de pecados tão grande que mal coube nas páginas do livro O cortiço, de Aluísio Azevedo. Como podem ver, ele comanda essa sala, que parece muito com um cortiço, vocês não acham? Barulhos de vozes tímidas surgem. Alguns visitantes entenderam finalmente a sala onde estavam. - Só lhes peço para deixa a leitura dos livros para depois. João Romão ficou com todo o dinheiro de sua amante, Bertoleza, falsificando documentos de alforria. Ela, agradecida, ainda trabalha com ele absolutamente todo o tempo. Assim, qualquer tentativa de leitura pode se tornar uma oportunidade para que ele vos cobre algum trocado. Findada a frase, os visitantes recuaram um pouco e seguiram o guardião, três palmas e uma grande porta se abre.
Lúxuria
considerado uma das bandeiras do homoerotismo. Literatura adulta, para adultos de fato.
Delírio sensual, arco-íris de prazer...
A inquietação tomava conta dos visitantes, que foram novamente interrompidos.
Como esperado, a porta se abre e há um selo holográfico, Ex Libris Brasil - Luxúria. Alguns visitantes até demonstraram uma certa empolgação com a visita, mas foram interrompidos. - Antes de entrar já aviso que visitaremos a sala da luxúria, mas não esperem ver pornografia! Os primeiros passos já despertaram a curiosidade, uma vez que a sala era muito diferente do que eles haviam imaginado. Era um tanto quanto escura, com muitas fitas (estilo fitas cassete), gravadores e uma série de teias de aranha formadas pelo emaranhado das partes internas das fitas. Um dos visitantes apertou sem querer o play em um dos aparelhos e de repente todos começaram a ouvir uma voz grave e um tanto ofegante que falava coisas como “seu puto”, “seu viadinho de merda”. Os visitantes se entreolharam sem muito entender, até que alguém aperta o botão stop do aparelho. - Senhores, por favor, não vamos tornar explícito aquilo que o Sargento Garcia prefere que fique oculto. Todos concordaram com a cabeça, um homem de exército de camiseta branca e semblante preocupado baixou os olhos e fitando o chão saiu andando por aquele labirinto de fitas e teias. - Talvez seja o conto mais conhecido do Caio Fernando Abreu. Uma pena que poucos leem de fato a obra dele e ficam compartilhando frases soltas em redes sociais. Este conto por exemplo, é
- O livro é Morangos Mofados, mas esta sala ao contrário das outras não tem exemplares. Para saber mais utilizem os aparelhos, de preferência com fones. O guardião apontou alguns aparelhos portáteis que foram logo utilizados pelos visitantes. Enquanto ouviam mais detalhes sobre a história do Sargento Garcia os visitantes percebem uma grande quantidade de vaga-lumes sobrevoando um pedaço da sala. Embora tentassem recuar, o guardião os convida a continuar andando. - Estes vaga-lumes que agora veem, são de uma espécie chamada Lucíola. Assim o guardião revelara para alguns dos visitantes o próximo personagem que encontrariam, pois o nome Lucíola não era estranho para a maioria deles. Três palmas foram dadas e o som que os visitantes ouviam nos aparelhos foi mudado bruscamente. A narrativa erótica de voz masculina dá lugar a uma narrativa romântica, também em voz masculina, dizendo frases do tipo “insetos noturnos que brilham em meio à lama” e “a pureza da alma de Lúcia, que ainda existe apesar de ela estar num abismo de perdição”. - Pelo visto muitos dos senhores já leram o livro, mas cabe a mim alertá-los que embora o nome seja Lucíola, a personagem principal se chama Lúcia, ou melhor, Maria da Glória. Lucíola é uma espécie de vaga-lume e o motivo de ser este o título da obra os senhores acabaram de ouvir. Alguns passos a mais e os visitantes puderam ver uma jovem um tanto quanto requintada, sentada em frente a uma penteadeira, perdida entre passar perfume e contar algumas moedas de ouro.
- José de Alencar é da época do romantismo, então, apesar da vida de cortesã, Lúcia teve motivos nobres para entrar nesta vida, o fez para salvar a família. E como sempre, em livros deste período, o amor serve como redenção. Mas ouçam mais no caminho que entenderão melhor. O guardião continuou conduzindo os visitantes pelo emaranhado de fitas escuras, aos poucos os vaga-lumes foram ficando para trás e desaparecendo. Novamente três palmas do guardião e os aparelhos começam a tocar uma música muito conhecida. Os visitantes se animam um pouco, uma luz sai do teto e é iniciada uma projeção no chão da sala. - Creio que seja evidente que a música vocês conhecem, também conhecem os personagens que aqui aparecem. A luxúria do romance de Gabriela com Nacib já é mundialmente conhecida, seja pelo livro, seja pelas adaptações em televisão ou cinema. Aliás, Gabriela Cravo e Canela há de ser o livro mais conhecido do Jorge Amado e vencedor do mais importante prêmio da literatura nacional, o Prêmio Jabuti. Imagens das diversas versões de Gabriela continuavam a ser exibidas e formavam uma sequência muito próxima do que poderia ser considerado um resumo do livro. Não tardou e a música aos poucos foi perdendo o volume, as imagens foram se dissipando no chão e a luz da projeção ficando cada vez mais fraca até sumir de vez. Os visitantes começaram a apertar o play dos aparelhos já que o som também havia cessado. Aos poucos ouvem de fora dos fones um barulho que seria impensável para uma sala que aparentemente estava toda fechada. O guardião acelera o passo e também o fazem os visitantes. Nos fones eles ouviam uma voz feminina narrava aventuras de quem saia a tarde de casa, entrava em um lotação qualquer,
sentava ao lado de um senhor... Qual foi a surpresa dos visitantes quando de ouvintes passaram a ser espectadores da aventura que era narrada nos fones. Havia uma espécie de ônibus recortado, como se fosse pela metade, e nele uma mulher sentada ao lado de um homem de roupa azul, com manchas de graxa. - A dama do lotação vocês conhecem? Faz parte da coletânea de contos A vida como ela é, do Nelson Rodrigues. Aquela é Solange, casta aos olhos do marido e bastante liberal com os homens que encontra no ônibus. Os visitantes seguiram observando a cena, logo Solange cutuca o homem e fala “desço contigo”. As rodas do ônibus recortado, que pareciam flutuar no ar, neste momento voltam a tocar o chão e o estranho veículo se move. Um pouco mais adiante ele para e ainda era possível ver Solange descendo com o senhor e sumindo na escuridão. Findada a cena os visitantes voltaram a percorrer o caminho que parecia ser natural da sala. De repente os visitantes assustados abaixaram-se. - Ora, ora. Parece que em breve encontraremos nosso novo personagem. Recuperados do susto os visitantes aos poucos levantam e começam a conversar sobre aquilo que haviam visto. - Senhores, que não haja pensamentos patéticos em vocês esperando encontrar o Batman! Alguns risos puderam ser ouvidos, mas foram rapidamente seguidos por uma saraivada de perguntas. Diante de tantas indagações o guardião conduziu os visitantes alguns passos adiante. Os fones voltaram a funcionar e então os visitantes conseguem ouvir a frase “tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho”. Foi quando viram um homem
manuseando um mosaico de fotos. Nas fotos, várias mulheres, de variados tipos. Em algumas era possível até reconhecer uma ou outra paisagem urbana, como a Ópera de Arame. - Nelsinho, esse vampiro, não sedento por sangue, mas por libertinagem e no entanto escravo da solidão urbana. Tentando se aproximar do personagem um grupo de visitantes inicia um breve debate, já que nenhum deles conhece o personagem. - Nelsinho é personagem do livro O Vampiro de Curitiba, escrito por Dalton Trevisan. Na verdade é um livro de contos, mas todos eles, independente de ligação ou não, tem em comum o personagem. Obcecado por sexo, ele vagueia por Curitiba à procura de suas vítimas.
guardião não teve outra alternativa a não ser apontar para um canto da sala, que após três palmas, foi iluminado. Diferente de todos os outros espaços, esse era um quarto de criança, todo rosa. Deitada na cama uma menininha escrevia em um caderno, também rosa. - O caderno rosa de Lori Lamby. Talvez seja um dos mais polêmicos livros da literatura nacional. Porém, pouco conhecido, como praticamente todo o resto da obra de sua autora, Hilda Hilst. O alvoroço entre os visitantes não cessava e foi então que o guardião compreendeu que eram necessários maiores esclarecimentos. - O livro em questão, muito pornográfico, conta a história de uma menininha de oitos anos que se prostitui a pedido dos pais. Ainda pior, que admite gostar de sexo. Os visitantes não dão trégua nas reclamações, mas o guardião prossegue.
Buscando satisfazer a curiosidade dos visitantes, as aventuras de Nelsinho começaram a ser narradas nos fones, e com isto, eles seguiram a caminhada. Quando as histórias de Nelsinho terminaram e uma nova voz é ouvida, fica cristalina a cara de espanto dos visitantes. Era uma voz de criança, notadamente pequena que narrava “o moço falou que quando ele voltar vai trazer umas meias furadinhas pretas pra eu botar. Eu pedi pra ele trazer meias cor-de-rosa porque eu gosto muito de cor-de-rosa e se ele trazer eu disse que vou lamber o piupiu dele bastante tempo, mesmo sem chocolate”. A última frase fez com todos os visitantes tirassem o fone dos ouvidos. Assim, o
- Mas calma lá senhores, que o livro esconde atrás desta primeira narrativa, a intenção principal da autora, justamente naquilo que é periférico na construção da obra: uma menina que precisa ajudar o pai, escritor, a conseguir dinheiro, pois o editor considera os livros do pai muito complexos para os leitores. E esta outra narrativa carrega consigo traços biográficos importantes para a autora. Tomados pela compreensão daquilo que realmente importava, os visitantes já estavam um pouco mais calmos, mas ainda assim, chocados com o que viram e com o que ouviram, apressaram o guardião para a continuidade da visita. Três palmas e o quarto da menina se apagou, ele então sinalizou para que os visitantes voltassem com os fones e assim seguiram. Pouco mais adiante a luz de uma pequena televisão iluminava algumas velas apagadas, que montavam uma espécie do mostruário. Os visitantes se aproximaram
curiosos para observar a tela da televisão que mostrava algumas pessoas bebendo felizes em uma ilha tropical. De repente a imagem fica estática em um homem. - O Rei da Vela, esse é o Abelardo I, industrial que fez fortuna com sua fábrica de velas e ganhou ainda mais dinheiro com a agiotagem. Perguntas sobre o porquê deste personagem estar na sala da luxúria começaram a ser feitas, obrigando o guardião a seguir com as palavras. - O Rei da Vela é um texto teatral de Oswald de Andrade. Basicamente dividido em três atos, o que os senhores passam agora a observar é um pequeno trecho do segundo ato da peça. Esta ilha tropical foi presente de Abelardo I para sua noiva, aquela senhora que está ali na esquerda do monitor. Neste ato, Abelardo I foi traído, porém conseguiu a proeza de ter relações sexuais com a própria sogra. Os visitantes demonstraram interesse na história, e começaram a apertar o play de seus aparelhos. - Antes que vocês possam ouvir um pouco mais, acho relevante que saibam que a peça só foi encenada pela primeira vez trinta anos depois de escrita, pelo Teatro Oficina, polêmico até os dias atuais. Então os visitantes passaram a ouvir em seus aparelhos diálogos do segundo ato da peça e seguiram caminhando lentamente atrás do guardião. Sem saber se foram minutos ou horas depois, o som foi lentamente desaparecendo. Muitos visitantes haviam tirado os fones. Seguiram pouco adiante e havia no canto uma senhora, na faixa dos seus quase
setenta anos, segurando um gravador enquanto falava “não lembro onde li a respeito de dois Budinhas, um macho e uma fêmea fazendo sexo, essas coisas milenares de chinês, nunca entendo direito, misturo as datas, apronto a maior confusão. Havia uma espécie de templo...” - A Casa dos Budas Ditosos. Desculpem minha ousadia ao completar a frase por ela, mas é justamente esse o nome do livro do qual ela é personagem. Aparentemente muitos dos visitantes já conheciam o livro e começaram a falar um pouco sobre ele. O guardião deixou o diálogo entre eles fluir um pouco, para então completar. - O livro começa com um depoimento do autor, João Ubaldo Ribeiro, afirmando ter recebido um pacote, com a transcrição datilografada dos depoimentos de uma mulher, que se identificava como CLB. Nas páginas recebidas a senhora narra todas as loucuras sexuais que cometeu na vida em nome da diversão pura e da satisfação. Bastante polêmico, deixo para que vocês leiam, ou releiam, e concluam se a introdução do autor é de fato verdadeira ou apenas ficção. Durante toda fala do guardião a senhora havia continuado o depoimento, e assim, os visitantes ficaram ali um bom tempo, estáticos ouvindo a narrativa da velha senhora “comer alguém deve ser um gesto de amizade e que complementa e aprofunda, não estraga essa amizade”... Os visitantes ficaram ali, estáticos, totalmente envoltos na narrativa da velha senhora, até ouvirem o som de três palmas. Uma porta grande se abre.
Ira Vai... Não amanhecer!
haverá
O selo Ex Libris Brasil - Ira surgiu assim que a porta se abriu. Já sem receio algum do selo holográfico os visitantes atravessaram-no rapidamente. Na sala era possível ver vitrolas antigas e algumas fontes escuras, enfeitadas com corações bregas, que jorravam um líquido vermelho. Nem bem os visitantes entraram e começaram a ouvir uma canção “estava louco, seu delegado! Matei por isso, sou desgraçado”. - Já dizia outra canção: “o amor e o ódio se emanam na fogueira das paixões”1. Em breve vocês verão como o amor é o principal elemento catalizador da ira na nossa literatura. Com um gesto o guardião foi conduzindo os visitantes pela sala. Mal haviam começado a caminhada, alguns visitantes aproximaram-se das fontes. - Senhores, peço que não toquem! É sangue! Curiosamente algumas caras de nojo ainda eram possíveis, apesar de tudo o que os visitantes já haviam presenciado até o momento. Sob as fontes, havia alguns livros. Eram muitas fontes e a sala um pouco escura permitiu apenas que os visitantes reconhecessem um vulto, um pouco longe de onde estavam. Aos poucos o vulto foi se revelando e puderam ver um homem bem rústico, alto, barrigudo, lembrava bastante um vaqueiro do sertão.
- “Criado no sertão bruto e um bruto do sertão”. Senhores, este é Manecão. Personagem do romance Inocência de Visconde de Taunay. Ele é reflexo da aridez do local onde vive. Os visitantes fizeram tantas perguntas que o guardião foi obrigado a seguir. - Manecão foi escolhido pelo pai de Inocência para ser seu noivo. Mas a moça se apaixonou por outro e iniciou um romance proibido. O segredo foi descoberto e Manecão, evidentemente, tomado pela raiva, mata seu rival. Entretanto, bem, o entretanto deixo para vocês. O guardião apontou então uma fonte, e sob ela alguns exemplares do livro Inocência. Os visitantes buscaram os livros e começaram a ler. Estavam tão imersos na leitura, que mal se deram conta de passar por eles um negro com roupas de hospital, segurando uma navalha.
Como o homem voltou e parecia estar procurando algo, os visitantes perceberam sua presença. - Depois de ter assassinado seu amante ainda vaga possuído pela ira e pela loucura, pensando em novamente encontrá-lo. Os visitantes se organizaram para observar o personagem mais de perto. Novamente três palmas e as vestes do homem mudam repentinamente para a de marinheiro. - Amaro, este é o nome dele, personagem do livro O bom crioulo de Adolfo Caminha, era marinheiro, e se envolveu com Aleixo, um colega de trabalho. Viveu um romance, mas foi pouco correspondido. As desilusões o levaram a um hospital, onde soube que o
amado estava de caso com uma mulher. Tomado por diversos sentimentos, fugiu do hospital e foi ao encontro de Aleixo. O ódio novamente fez uma vítima, e Amaro tornou-se um criminoso. Como essa não era a primeira história de amor entre dois homens, os visitantes até quiseram saber um pouco mais, afinal, as vestes indicavam que esta aconteceu um pouco antes. - Sim, senhores. Este livro foi o primeiro romance que retratava a homossexualidade escrito no ocidente. Mal havia terminado a frase e o guardião já indicava a fonte onde estariam os exemplares dos livros para que os visitantes pudessem ler. Diferenciando a fonte das demais havia uma âncora apoiada em sua base. Os visitantes começaram a procurar mais sobre a história de Amaro e demoraram um bom tempo para perceber que havia uma corrente amarrada à âncora que formava um caminho no chão. Movidos pela curiosidade eles começaram a seguir a corrente, acompanhados de perto pelo guardião. Andaram até encontrar outra fonte, e ao lado dela um homem amarrado nas correntes que eles seguiram. - É preciso entender de metáforas. As correntes que o amarram são, a bem da verdade, a culpa que ele carrega. E antes que perguntem, este é Aldo Tolentino. Também foi traído, mas seu plano de vingança não saiu como deveria. O guardião então aproxima-se da fonte e retira um papel com anotações - Aldo suspeitava da esposa, viajou de avião para São Paulo e se hospedou em um hotel. Com documentos falsos ele voltou para sua casa no Rio de Janeiro e flagrou a traição da mulher com seu sócio. Com raiva, matou os
dois. Retorna a São Paulo para sustentar o álibi que havia criado. Entretanto quem encontrou os corpos foi seu próprio filho, que acusado pelo crime, se suicidou na cadeia. A propósito, isso explica o nome do livro de onde ele vem, A faca de dois gumes, do Fernando Sabino. Como havia acabado de contar inclusive o final do livro, não restou outra alternativa ao guardião a não ser conduzir os visitantes pela sala. Os visitantes avistaram então, uma jovem senhora, organizando roupas em uma mala. Ela se virou e então os visitantes se alvoroçaram querendo saber se era gravidez. - Sim, senhores! Lenita está grávida. E está fugindo, mesmo grávida, pois descobriu cartas enviadas por outras mulheres para seu marido. Como a tragédia era a tônica da sala, os visitantes passam a ter curiosidade sobre quem ela teria assassinado. - Lenita não assassinou ninguém, diretamente. Possuída pela raiva e tristeza da descoberta das cartas, fugiu grávida, mas casou de novo. E seu novo casamento foi responsável pelo suicídio de seu antigo marido. Aliás, o livro A Carne, de Júlio Ribeiro, foi pioneiro ao retratar uma mulher com nuances independentes para a época. A mulher continuava arrumando a mala, retirou alguns exemplares do livro e entregou aos visitantes, que iniciaram a leitura, procurando compreender melhor o universo desta personagem. Enquanto liam os visitantes novamente identificaram a música que tinham ouvido assim que entraram na sala “estava louco, seu delegado! Matei por isso, sou desgraçado!”. O som era ainda baixo, mas seu volume foi aumentando gradativamente, até que os visitantes puderam ver um microfone antigo sobre um
pedestal que se movia sozinho pela sala, e tentando cantar ao microfone um homem algemado. - Amor e sangue! O tema desta sala, fontes românticas jorrando sangue derramado pela raiva. E também nome do conto de Alcântara Machado, na obra Brás, Bexiga e Barra Funda. Este que canta é Nicolino, personagem do conto, que mata sua exnamorada porque ela não queria voltar com ele.
O homem parecia atordoado, e seguia cantando de maneira bem desafinada, dando voltas ao redor dos visitantes. Mesmo desafinado, os visitantes perceberam que o sangue jorrava das fontes bailando ao ritmo do refrão, repetido exaustivamente pelo homem. Três palmas e o microfone foi para longe dos visitantes. No mesmo instante, uma grande porta se abre.
1. As aparências enganam (Sérgio Natureza e Tunai) Intérprete: Elis Regina.
Inveja Vou sonhar os sonhos dela O selo holográfico já adiantava a nova sala, Ex Libris Brasil – Inveja. Os visitantes curiosos e ainda bastante animados passaram rapidamente pela projeção. Embora fechada a sala lembrava um pouco as instalações de um jóquei clube, até pelo cheiro de esterco de cavalo. Uns até caminham um pouco procurando os animais, porém não encontram. Eles avistaram uma mulher negra, com trajes que remetiam à escravidão fazendo tranças, sentada em um monte de feno. - Esta é Rosa, muito menos invejosa daquilo que vocês ficaram conhecendo pela televisão. E quando falo isso, é porque a obra em questão é uma das mais vistas em todo mundo, A escrava Isaura, romance de Bernardo Guimarães. Alguns visitantes menos cultos surpreenderam-se ao saber que a famosa novela tinha inspiração em um livro. - O amante de Rosa preferiu Isaura, e despertou sua inveja. Rosa então fofocou um pouco e conseguiu fazer com que Isaura perdesse alguns privilégios e voltasse para a senzala. Com um gesto o guardião indicou alguns pergaminhos que continham o exato trecho do romance em que o feito acontece. Os visitantes foram aos poucos abrindo os objetos e iniciando a leitura. Não muito distante de onde estavam avistam um homem com boas vestes e um chapéu, sentado atrás de uma escrivaninha assinando alguns papéis.
- A inveja pode também ser responsável por definir os objetivos de uma vida. Esse aí é o fazendeiro Paulo Honório. Ele era apenas um peão de uma fazenda, mas a inveja dos donos fez com que ele dedicasse boa parte de sua vida para conquistá-la. E conseguiu, abolindo muitos dos valores morais seguidos por outros homens. Os visitantes insistiram para conhecer um pouco mais a história - Paulo Honório fez, e não foi pouco. Sugiro que leiam São Bernardo, de Graciliano Ramos, e então poderão acompanhar inclusive o que acontece depois que ele conquista a fazenda, que a propósito, também se chama São Bernardo. O tempo da visita já era grande, acelerando o ritmo de familiarização dos visitantes com as salas e com os personagens. Tanto estavam à vontade, que sequer esperaram gestos do guardião e já foram buscar os livros que estavam próximos da mesa de homem. Enquanto eles liam as obras compenetrados, uma baia de cavalo começou a se abrir em diagonal, formando uma espécie de palco. Algumas luzes iluminaram o novo cenário, captando toda atenção dos visitantes. Surgiu uma mulher no palco “com uma o quê, seu beato pamonha? Carola duma figa! A mulher dando em cima do homem da gente e ele aí com essa cruz! Isso também faz parte da promessa?”. - Conheçam Marli, personagem do texto teatral O pagador de promessas de Dias Gomes. Acho que a inveja fica clara nessa frase. O homem dela envolve-se com a mulher do personagem principal e ela, evidentemente, aproveita para... Bom, acompanhem. Marli ainda continuou no palco narrando outros fatos da peça. Assim os visitantes ficaram sabendo que a revelação feita por ela foi o estopim do desfecho da peça.
Com o apagar das luzes, os visitantes seguiram a indicação do braço do criador, e moveram os pescoços para a direita. Havia um homem escovando um pelo de carneiro sobre uma mesa.
contagem sempre era até quarenta e depois se iniciava novamente.
- Esse é Judas, irmão de Abel. Tão invejoso que matou o irmão, mas não é esse o fim, nem será esse o recorte essencial da história escrita por Raimundo Carrero no livro Sombra Severa. O guardião nem bem havia terminado a frase e os visitantes já faziam perguntas sobrepostas, quase todos querendo entender o pelo do carneiro. - O pelo que agora vocês veem só é possível aqui, porque no episódio, pois bem, seguimos. Certo dia Abel ganhou um cordeiro de presente de seu padrinho. Judas, sempre invejoso, resolveu esfaquear e queimar o bicho. Ao terminar a frase o guardião apontou para longe, onde havia uma mesa com alguns livros e uma grande porta, como se fosse o final de uma pista de corrida de cavalos misturada com um grande estábulo. Os visitantes iniciaram a aproximação e durante o caminho puderam ver pela primeira vez os cavalos, cujo odor invadia o local. Quando já estavam bem próximos começaram a ouvir uma voz que contava. Reduziram o ritmo e perceberam que a
Quando chegaram bem perto perceberam um jovem, com roupa de médico, contando e organizando gravatas. Como eram em número de quarenta, sempre que atingia tal número o homem recomeçava a contagem. - Vimos muita inveja nesta sala, mas aqui está talvez um exemplo bastante particular. O homem é Eugênio Fontes, personagem do livro Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo. Não foi fácil para ele a formatura em medicina, e durante o curso, invejava seu colega, Alcebíades, pelos carros e cavalos de corrida que tinha, e também por que o colega tinha quarenta gravatas. A entonação da frase provocou risos nos visitantes, que logo entenderam que nada mais saberiam sobre a obra, já que o guardião estava apontando para a porta. A contagem estava quase chegando a quarenta. Três palmas, em perfeita sintonia com o final da contagem, abriram a porta.
Preguiça Puxa o prosear
banco,
vem
O selo Ex Libris Brasil – Preguiça, ironicamente foi rapidamente atravessado pelos visitantes, curiosos com a nova sala. - Veja como são as coisas, vocês tão apressados justamente na sala da preguiça. Antes todos fossem assim para a leitura, sem o imediatismo das frases fáceis. A sala era um tanto estreita, com alguns elementos que remetiam a uma mistura de mata com um quadro de Dali. Muitos troncos retorcidos e umas construções que remetiam a ocas indígenas feitas com uma palha estranha. Também havia algumas redes, mas soltas, sem que estivessem presas a nenhuma árvore, feitas com um material duro, que lembravam barcas no chão.
- Aos seus lugares senhores, vamos, tomem suas redes. A sala é da preguiça, e portanto ninguém vai andar. Aos poucos os visitantes foram tomando seus lugares, e perceberam então que a sala estreita era na verdade um grande corredor. Assim que todos estavam devidamente acomodados em suas redes, três palmas determinaram a arrancada. As redes começaram a andar pelo grande corredor. Em um movimento que arrancou suspiro de alguns, as redes subitamente viraram para o
lado. Os visitantes então observaram uma sala de casa, antiga, uma casa de senhor de escravos, e viram um menino negro, a brincar com cartas e bilhetes. - Poderia ser correio elegante, se fosse nos dias de hoje e se fosse São João. Esse é Pedro, um dos personagens centrais do texto teatral O demônio familiar, de José de Alencar. Preguiçoso, apenas ajudava seus donos nas conquistas amorosas, aproximando e afastando casais. Mas não é bem sucedido nessa brincadeira de fazer de seus senhores marionetes. Assim que o guardião terminou a frase, o menino pegou alguns bonecos e começou a brincar de montar casais. - Pedro era protegido da família e tão preguiçoso que ao final, sim, vou contar porque não teremos livros para que os senhores leiam nesta sala, acabou tendo um castigo inusitado. Ganhou a alforria, e livre, teria que seguir sem a proteção da família para a qual trabalhava. Com o término da frase do guardião, novamente as redes fizeram um movimento brusco e seguiram a jornada. Não tarda e as redes novamente viram para o lado. Por um buraco na parede os visitantes avistaram uma paisagem bucólica, que lembra muito a maioria dos sítios brasileiros. Sentado na varanda, um homem bastante desajeitado, que muitos pensaram em um primeiro momento conhecer. - Não é o Mazzaropi, embora ele tenha, através do cinema, tornado o Jeca Tatu muito conhecido. Os visitantes ficaram um pouco frustrados pois imaginavam que estivessem corretos ao reconhecer o astro do cinema no personagem que contemplavam. - Caso não saibam, o Jeca Tatu é um personagem do escritor Monteiro Lobato. Aparece pela primeira vez no conto A velha praga, do livro Urupês. Um retrato caricato
do homem do campo, preguiçoso, alcóolatra. E mais os senhores saberão lendo a obra. As redes mudaram a orientação e seguiram pelo corredor. No caminho os visitantes conseguiram reconhecer uma música, cujo som fica mais nítido conforme se aproximam. O som já é bastante alto, em um cubículo um homem com muitos discos. Pelas capas eles confirmaram a suspeita sobre a música que estavam ouvindo, era Beatles. - Um beatlemaníaco. Esse é Tio Nelson, personagem do romance de memórias Big Jato, de Xico Sá. Preguiçoso, sem vocação para o trabalho, Tio Nelson influencia as preferências pessoais do jovem. Os visitantes entenderam o personagem, mas por ser obra de autor contemporâneo, queriam saber mais sobre ela. - Como eu havia dito, é um livro de memórias, uma espécie de autobiografia ficcionada. Big Jato é o caminhão que o pai do menino utiliza para limpar as fossas das casas. O livro acompanha o menino, sua transição entre infância e adolescência. Desta vez as redes não arrancaram, apenas giraram cento e oitenta graus e a parede se abriu. Por um momento, os visitantes pensaram ter visto um ambiente a céu aberto pela primeira vez, já que o lago parecia refletir raios solares. - Tão bem feito que parece realmente o lado de fora, não? Pois é, senhores, ainda não saímos da sala, o ambiente é apenas para manter confortável o bichano. Os visitantes levaram um susto quando um jacaré muito grande, e muito gordo saiu da água, fazendo muito barulho. Com
movimentos lentos, o animal deitou embaixo da sombra de uma árvore. - O nome dele é Jácomo, personagem principal do livro O jacaré preguiçoso, de Ruth Lemos. Como é um livro infantil, evidentemente a fábula tem a tal moral da história. Mas o fato relevante aqui é que a preguiça foi responsável pela sua captura, que fez com que ele fosse parar atrás das grades de um zoológico. Antes que os visitantes pudessem questionar alguma coisa mais, o guardião prosseguiu. - E se quiserem saber como termina essa história, leiam o livro. É um livro infantil, poucas páginas, ideal para os adultos preguiçosos. O trocadilho despretensioso do guardião fez com que os visitantes caíssem na gargalhada, mal percebendo que as redes já seguiam o caminho. Quando eles deram por si, estavam de volta a um lugar que eles juravam ser o mesmo do início da jornada nesta sala. Entre os galhos retorcidos das árvores surgiu um homem. - Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Personagem da obra homônima de Mário de Andrade, é sem sombras de dúvidas, o mais preguiçoso personagem da literatura nacional. Sua preguiça é tanta, que a frase mais repetida por ele ‘ai, que preguiça’ praticamente significa preguiça preguiça, já que o som de “ai que” remete a uma palavra indígena que significa preguiça. O homem se escora em uma árvore, coloca uma das mãos na cintura, respira fundo e e solta sua frase preferida “ai, que preguiça”. Três palmas e uma porta se abre.
Orgulho Eu sou, e sei que sou A porta se abriu e o selo holográfico já anunciava a nova sala, Ex Libris Brasil – Orgulho. Tão logo entraram na sala, alguns gritos são ouvidos. A sala, escura, abrigava grandes quantidades de dinheiro e muitos ratos caminhavam livremente pelo local, vários deles roendo as notas que ali se acumulavam. - Não temam, eles nada irão fazer a vocês. Podemos seguir livremente pelo caminho. Venham. O guardião iniciou a caminhada na frente, sendo seguido pelos visitantes, que cautelosamente pisavam o chão desviando dos animais. Em um canto, há um homem sentado em uma cadeira, na sua frente uma mesa com uma xícara de café e uma vela. - Bento, ou melhor, Dom Casmurro. Evidente que os senhores já o conhecem, pois o livro de Machado de Assis é um dos mais relevantes da nossa literatura. OS visitantes concordam com as palavras do guardião, mas aproveitam para questionar a presença do café. - Tem uma passagem no livro que Bento pensa em se matar com uma xícara de café envenenado, depois pensa em matar o filho e, por fim, conta ao menino que ele não era seu pai. Como os senhores sabem, Bento desconfiava da traição da esposa com o melhor amigo, e a semelhança física do filho com o amigo serve para ele como confirmação. A partir daí ele e sua esposa decidem se separar e o orgulho dele é responsável por... Bom, melhor que os senhores leiam.
O guardião distribui luvas para que os visitantes pudessem manusear os livros cobertos com impurezas de ratos. Eles iniciaram a leitura calmamente e poucos perceberam que o homem sentado aos poucos desapareceu, dando lugar a uma jovem senhora. Ela estava sentada em uma poltrona, atrás havia uma estante com muitos cristais iluminados brevemente por uma luz difusa. Segurava nas mãos um prato de porcelana, com um figo e uma pera. - Conheçam Aurélia, personagem central do livro Senhora, de José de Alencar. Uma garota pobre, que havia se apaixonado por um homem chamado Seixas. Como o jovem era ambicioso, decide casar-se com outra mulher, muito rica. Mas, obra do destino, Aurélia herda uma grande fortuna, e com orgulho ferido pede ao seu tutor que ofereça um dote maior para Seixas, que aceita o casamento, sem saber quem seria a noiva. Os dois se casam, mas não consumam o casamento e Aurélia humilha o marido, dizendo tê-lo comprado. Mas como é outro livro do período do romantismo... Bom, deixo aos senhores a descoberta do final. Enquanto o guardião falava os livros que os visitantes tinham nas mãos foram mudando e se transformaram no livro Senhora. Porém os visitantes manifestaram curiosidade em entender as frutas na mão da moça. - Esta é uma passagem do capítulo chamado Posse. Nele, Aurélia humilha o marido, e o obriga a realizar uma rotina, como lanchar frutas no período vespertino. Os visitantes procuraram o capítulo no livro e chegam a achar engraçada a passagem das frutas, já que Aurélia diz par ao marido “aqui tem; um figo e uma pera; é apenas um casal”. Enquanto liam tentando buscar o final da história, a mulher aos poucos desaparece e no lugar dela surge um homem.
Era grande, cabelos claros e usava um traje típico. Reclamava baixinho em alemão, idioma inicialmente não reconhecido pela maioria dos visitantes. - Canaã, obra de Graça Aranha lançada em 1901, aborda a imigração europeia. O autor expõe muita coisa nos diálogos travados entre dois personagens: Mikau e Lentz. Mikau é otimista, acredita na igualdade entre os povos. Já este que vocês estão vendo, Lentz, é a representação máxima do racismo. O orgulho enviesado de sua raça, considerada por ele superior. No livro, entre outras coisas, ele afirma que o modo de falar dos mulatos provoca nele a sensação de enjoo do mar. Evidentemente o livro vai um pouco além. O guardião terminou a frase e os livros nas mãos dos visitantes transformaram-se no livro em questão. Os ratos continuavam sua atividade pela sala, mas os visitantes passaram a dar menos importância aos animais, movidos pela curiosidade das histórias. Enquanto liam, o homem robusto que estava sentado aos poucos foi desaparecendo e em seu lugar surgiu outra mulher. Ela usava trajes do século XIX, e fica a todo tempo se olhando no espelho.
- Não que mulheres fossem sua exclusividade. Ambrosina desfrutava dos prazeres, em geral, em troca de dinheiro. Assim ela se torna a Condessa Vésper, que é também o nome do livro de Aluísio de Azevedo. Muito orgulhosa, ela sempre fez questão de humilhar seus amantes. Porém, a mocidade não dura para sempre e... A fala do guardião foi interrompida pela mulher, que com um dedo em riste na frente da boca pediu silêncio. Gesto feito, a mulher desaparece e os visitantes começam a buscar no livro que tem em mãos a continuação da história. A concentração dos visitantes logo é interrompida por um homem que grita com os ratos e tenta tirálos de perto do dinheiro. - O que os senhores acompanham agora é a paranoia. Naziazeno, um homem orgulhoso, foi intimado pelo leiteiro a acertar o que devia. Depois de um dia recheado de desencontros, ele conseguiu o dinheiro para saldar a dívida. Porém, a estafa foi tamanha, que resultou nesse colapso. Quanto mais o homem grita, mais o número de ratos aumenta e mais rapidamente eles roem o dinheiro que está na sala. - Em breve tudo ficará bem. Por ser este nosso último personagem, mostrarei o final do livro Os ratos, de Dyonélio Machado.
- Bem senhores, nossa empreitada apresenta muitos tipos. Vocês já foram apresentados ao primeiro personagem homem homossexual da nossa literatura. Agora permitam-me apresentar-lhes a primeira personagem mulher homossexual retratada em um livro brasileiro. Enquanto o guardião falava, a mulher o encarou, em uma leve tentativa de censura.
Três palmas são dadas e tudo ficou em silêncio. Os ratos desaparecem, o dinheiro apareceu todo empilhado e o homem sentado em uma cama. O semblante abatido e ele parecia esperar por algo. Um barulho fez o homem levantar. Ele abriu uma porta e viu algumas garrafas de leite. Fechou a porta, voltou para a cama e adormeceu. Três palmas novamente e outra porta apareceu. Os visitantes caminham calmamente para fora da sala.
Epílogo Sob o céu azul anil, pecar é preciso Os visitantes atravessaram o selo holográfico, que desta vez trouxe a inscrição Ex Libris Brasil – sob o céu azul anil, pecar é preciso. Alguns deles estranharam, porque após atravessar o selo eles se viram no meio de um grande campo, com árvores baixas e algumas flores. O Sol não estava forte, mas o céu era muito azul.
- Pois bem senhores, chegamos ao final. Espero que tenham apreciado toda experiência. Aqui não é exatamente uma sala, mas é definitivamente o começo de um futuro. Vocês viram muitos personagens, entenderam motivações e quiçá até apreciaram alguns pecados. Mas é preciso continuar sempre, e assim vos ofereço este fabuloso céu azul anil, que continuará sendo fonte de inspiração para que outros autores criem outros personagens imperfeitos. Todos contemplavam a beleza do céu, e mal perceberam que aos poucos a voz do guardião foi ficando cada vez mais distante. - Vale lembrar o que dizia Clarice Lispector: “O pecado me atrai, o que é proibido me fascina”.
FIM