Censura da Memória

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Bibliotecas Destruídas e Livros Proibidos Este pequeno livro é a “memória” da exposição que acompanha a inauguração e habitação do novo edifício do Centro de Documentação e Biblioteca da Universidade Nova de Lisboa, no Campus de Caparica. Um novo espaço de “memória”, que representa uma oportunidade única para o desenvolvimento do conhecimento e de actividades culturais múltiplas, impondo a este espaço privilegiado a capacidade de tornar a Biblioteca “tradicional” num utensílio com vasta gama de potencialidades e vivências. Que melhor maneira de inaugurar este novo espaço do que lembrar a Destruição de Bibliotecas e a Proibição de Livros? Esta exposição por um lado, aborda a Destruição e Proibição de Livros e de grandes Bibliotecas desde tempos imemoriais até à actualidade. Por outro lado, examina as consequências intelectuais, políticas e culturais da perda de documentos escritos. Grandes catástrofes como a queima de textos na China unificada, o desaparecimento da Biblioteca de Alexandria, a destruição nazi de livros judeus, as recentes pilhagens na Bósnia, Tibete e Iraque, a proibição insana de textos escritos durante o período Salazarista são alguns dos exemplos que são trazidos à reflexão. Infelizmente, muitos casos poderiam ser relatados e estes são apenas alguns!...

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Destruição de Livros na China Unificada A Biblioteca de Alexandria A Inquisição e a Censura de Livros em Portugal A Censura Literária em Portugal e o Pensamento Iluminista Ciência e Censura Censura, Artes Divinatórias e Magia Destruição de Livros e Bibliotecas nos séculos XX e XXI O Holocausto Nazi Fascismo e Censura em Portugal


O Filme que acompanhou a Exposição: Fahrenheit 451

A novela Um texto de ficção científica escrita por Ray Bradbury (1953). A acção desenvolve-se num mundo ficcional onde livros e pensamento crítico foram banidos. Guy Montag, a personagem central, é um “bombeiro” (significando “o que queima livros”). 451 graus Fahrenheit (cerca de 233°C) é a temperatura à qual “os livros se incendeiam” . Um texto curto sobre este tópico tinha sido publicado anteriormente pelo autor sob o título “The Fireman” em Fevereiro de 1951, na Galaxy Science Fiction. O filme Em 1966, François Truffaut adaptou esta obra ao cinema. A dramatização do livro foi feita também pela BBC Radio 4. As adaptações seguem de muito perto a obra de Bradbury. O contexto A novela reflecte uma preocupação e crítica ao periodo do “McCarthysm” (anos 50) e à chamada "thought-destroying force" (destruição do pensamento). Em paralelo, a novela critica também a destruição de livros pela Alemanha Nazi em 1933, a supressão de livros e autores por Estaline na ex-União Soviética, assim como as horriveis consequências da proliferação de armas nucleares.


Resumo A história tem lugar algures nos Estados Unidos da América, no século XXI, numa sociedade hedonística e sem auto-controlo. Os livros são considerados obsoletos, em virtude do ritmo de vida demasiadamente frenético ... “não há mais tempo para ler” ! Na opinião do Governo (e do público em geral) os livros devem ser banidos por introduzirem problemas e teorias conflituosas, tornando as pessoas infelizes, ansiosas, tristes e serem uma ameaça à Sociedade em geral. De modo a eliminar este perigo potencial, o Governo emprega “bombeiros” que devem descobrir, queimar e destruir livros em favor da paz, disciplina e felicidade. De acordo com as autoridades, Benjamin Franklin teria sido o “primeiro bombeiro”. Ver TV todo o dia e o uso de drogas são modos de atingir a felicidade. O símbolo da Brigada F451 é uma Salamandra, um animal “considerado” desenvolver-se no fogo. Após 10 anos de actividade, Guy Montag encontra Clarisse McClellan. Esta fá-lo questionar-se sobre a sua actividade e o significado dos livros introduzindo-o numa sociedade que “inventou” um meio de não deixar morrer as mensagens escritas ...

Ficha Técnica do Filme (1966) Director François Truffaut

Créditos literários Ray Bradbury (novela) Jean-Louis Richard (adaptação)

Elenco Oskar Werner - Guy Montag Julie Christie - Clarisse/Linda Montag Cyril Cusack - Capitão Anton Diffring - Fabian Bee Duffell - Mulher Livro Alex Scott - Pessoa Livro: 'The Life of Henry Brulard' Duração: 112 min (aprox.) País: GB Versão: Inglês Cor: Color (Technicolor) Som: Mono (Westrex Recording System)


D es t r u i รง รฃ o d e L i v ros na China Unificada A B i bl i o t e c a de Ale xandria

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Destruição de Livros na China Unificada Qin Shi Huang

Rei dos Chineses, Estado Qin (247 – 222 a.C.) Primeiro Imperador da China Unificada (221- 210 a.C.)

Qin Shi Huang associou o seu nome para a posteridade a um reino “no centro da Terra” encerrado sobre si mesmo.

Não se contentando com o título de “imperador do centro da Terra”, Qin Shi Huang ordenou a construção de uma imponente muralha; esta ordem obedecia à

vontade de defesa do exterior e desejo íntimo de ser eterno.

Um documento da época, preservado do fogo, informa que dentro dos limites do maior reino conhecido, milhares (talvez milhões) de camponeses foram

obrigados a abandonar os cultivos de arroz para se dedicarem à construção da

Muralha (a única construção humana visível da Lua). Nunca existiu ordem

imperial mais imposta pelo terror.

Vários motivos levaram o Imperador a realizar esta obra nefasta. Primeiro, o

estudo excessivo do existente levou-o a querer saber tudo, incluindo o inexistente. Os letrados com que discutia, contrapunham sempre considerando Confúcio como

o maior sábio existente sobre a Terra, tornando este nome tão intolerável como a palavra morte. Segundo, autorizou uma escola filosófica a guardar livros de

medicina, agricultura e artes mágicas na Biblioteca Imperial Qin.

Qin Shi Huang – o mesmo que estabeleceu um sistema de escrita por ideogramas

– ordenou então aos seus exércitos o saque de todas as bibliotecas do “centro da

Terra”, de modo a terminar com a forte oposição dos letrados com quem discutia,

aniquilando hábitos feudais e controlando o pensamento. Absurdo é o facto de ter

estabelecido ideogramas – uma mesma escrita para diferentes línguas – e ao mesmo tempo ter ordenado a queima de obras escritas. Ao contrário da Muralha, esta


depreciação cultural assumiu um período curto do seu mandato, mas conduziu à destruição, por incineração, de milhões de livros.

Qin Shi Huang foi enterrado no seu Mausoléu com o famoso Exército em Terracota, na província de Shaanxi.

214 a.C.: Qin Shi Huang inicia a construção da Grande Muralha. É crime criticar sua Majestade

Decreto do ano 221 a.C. promulgado por Qin Shi Huang.

Bibliografia Debainne-Francfort, C., The Search for Ancient China, Harry N. Abrams Inc. Pub. 1999 Dillon, M.(ed). China: A Cultural and Historical Dictionary. Curzon Press, 1998. Ledderose, L., A Magic Army for the Emperor from Ten Thousand Things : Module and Mass Production in Chinese Art, ed. L.Ledderose, Princeton UP, 2000. Perkins, D., Encyclopedia of China: The Essential Reference to China, Its History and Culture, Roundtable Press, 1999.


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A Biblioteca de Alexandria

A Destruição A Nova Biblioteca The library of Alexandria is a legend. Not a myth, but a legend. A respeito do número de obras da estrutura complexa e das colecções existentes para quê especular? São tudo memórias dos homens...

A Biblioteca de Alexandria na Antiguidade

A Nova Biblioteca

Fundação e um pouco de História

Alexandria foi fundada no Egipto por Alexandre, o Grande. A Biblioteca Real de

Alexandria foi, em dada altura, uma das maiores bibliotecas do mundo. Atribui-se

a sua fundação a Ptolomeu I do Egipto, no início do séc. III a.C., após o seu pai

ter construído a que foi considerada a primeira parte do complexo, designada por Templo das Musas – o Mouseion (que deu origem à palavra Museu).

A Biblioteca distribuía-se por vários edifícios: o Mouseion (situado no distrito real), um depósito de livros (localizado no porto) e uma “Biblioteca-Filha” (localizada no

Serapeion, o templo dedicado a Serapis, deus da fertilidade). O seu primeiro bibliotecário terá sido Demétrio de Falera, pupilo de Aristóteles.

O acervo da Biblioteca era composto por 500.000 obras em rolos de papiro.

Filósofos e literatos da época frequentavam-na para consultar os arquivos existentes e contribuir com novos conteúdos. Diz-se que Arquimedes terá ali estudado durante horas.


É um facto aceite que a Biblioteca de Alexandria foi destruída pelo fogo, mas os detalhes, os responsáveis e as razões do desaparecimento permanecem controversos.

Unânime é o reconhecimento do grande prejuízo que a perda do seu espólio – uma compilação da história de gerações e civilizações – causou à Humanidade.

A Destruição

Quem destruíu a Biblioteca de Alexandria?

Júlio César, 48 a.C.? Teófilo, 391 d.C.? Omar, 642 d.C.?

Este é um assunto ainda polémico. Infelizmente, os historiadores – de Plutarco (que

culpa Júlio César) a Edward Gibbons (um ateu que prefere culpar os Cristãos

e Teófilo), até ao Bispo Gregory (anti-islamita que culpa o Califa Omar) – não nos oferecem uma visão isenta. Provavelmente, o declínio e destruição da

Biblioteca de Alexandria foram consequência de muitos factores e actores.

Também parece ser um facto que a Biblioteca principal e o Mouseion teriam sido destruídos primeiro e que a “Biblioteca-Filha” teria continuado em actividade.

A verdadeira tragédia não é a incerteza do conhecimento do destruidor da Biblioteca mas sim o que se perdeu de conhecimento da história, ciência e literatura da antiguidade. Cânfora

A Nova Biblioteca

A Biblioteca é uma celebração e reconhecimento da Biblioteca de Alexandria perdida na antiguidade, uma tentativa de reencontrar o brilho deste centro de erudição. Um

tributo da Humanidade. A ideia

A Biblioteca de Alexandria (reconstrução) é o maior centro cultural na bacia do

Mediterrâneo, situado em Alexandria, Egipto. O novo edifício foi inaugurado perto do local onde se considera que a Biblioteca destruída teria existido.


A ideia de fazer reviver a velha Bibioteca remonta a 1974, num esforço da Universidade de Alexandria, que seleccionou o local, perto do mar, próximo do sítio pnde outrora existia a biblioteca desaparecida.

Um líder activo desta iniciativa foi o Presidente do Egipto, Hosni Mubarak, um projecto muito bem aceite por muitas Instituições e Agências Mundiais.

Em 1988, um concurso para atribuição da concepção do novo edifício, coordenado

pela UNESCO, recebeu 1400 propostas. A escolha recaiu sobre o arquitecto norueguês Ktejil Thorsen.

Os primeiros fundos (65 milhões de dólares, doados principalmente por Países Árabes) foram atribuídos em 1990, numa conferência realizada em Assuão. A construção iniciou-se em 1995 e a inauguração do complexo ocorreu a 16 de Outubro de 2002. O custo total da obra foi de 220 milhões de dólares. O projecto

As dimensões do projecto são vastas: 8 milhões de livros em 85,000 m_ distribuídos

em 11 andares em cascata. O complexo alberga: centro de conferências, bibliotecas especializadas para invisuais, para jovens e crianças, 3 museus, 4 galerias de arte, um

planetário e um laboratório de restauro de manuscritos. A arquitectura global do

edifício é impressionante. A sala principal de leitura tem um pé direito de 32 m que

culmina num telhado de vidro, desenhado de modo a controlar a luz solar directa,

num diâmetro de 160 m. Uma enorme parede exterior de granito cinzento do Assuão inscreve 120 tipos de alfabetos.

Bibliografia Bevan, E., The House of Ptolemy. Argonaut Inc. Chicago: 1968. Canfora, L., The Vanished Library. University of California Press. Berkely: 1989. Ellis, C., Ptolemy of Egypt. Routledge. New York, 1994. Fraser, P. M., Ptolemaic Alexandria. Volume I of III. Oxford University Press, 1972. Johnson, E. D., History of Libraries in the Western World. Scarecrow Press, Inc. Metuchen: 1970. Marlowe, J., The Golden Age of Alexandria. Trinity Press. London, 1971. Gibbons E., Decline and Fall of the Roman Empire. Christian Classic Etheral Library, Calvin College.


A I n q ui s i ç ã o e a Censura d e Livros e m Portugal A Censura Literária em Portugal e o Pensamento Iluminista C i ên c i a e C e n s u ra C e n s u ra , A r t e s D ivinatórias e Ma g ia

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A Inquisição e a Censura de Livros em Portugal Os que queimam os livros, que proscrevem e matam os poetas, sabem rigorosamente o que fazem. O poder indeterminado dos livros é incalculável. George Steiner

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi instituído em Portugal através de

uma Bula do Papa Paulo III datada de 23 de Maio de 1536. Deve ressalvar-se que não foi a igreja que introduziu no nosso país a Inquisição, mas sim o Estado. Na

realidade, o seu estabelecimento foi obtido por solicitação expressa do rei D. João

III. Foi também este quem propôs ao Papa o nome do seu irmão mais novo,

o cardeal D. Henrique, como primeiro Inquisidor-Geral. A história da Inquisição

em Portugal seria quase sempre pautada por uma aliança estreita entre o poder político e o poder religioso.

Inicialmente, o tribunal da Inquisição foi introduzido para fiscalizar e punir os descendentes dos judeus convertidos à força ao catolicismo e suspeitos de praticar

a religião judaica. Os seus objectivos e competências viriam depois a ser alargados,

passando a incluir a censura e o controle de publicação e da difusão de livros e outros textos. A censura literária em Portugal viria a ser uma das mais rigorosas de

todas as censuras inquisitoriais, tendo tido um manifesto impacte negativo na cultura

e na sociedade portuguesa até à sua extinção definitiva em 1821. Ela actuaria de

modo a que as ideias renovadoras da Europa e imanentes da própria cultura portuguesa fossem marginalizadas e substituídas pelos valores do poder vigente.

A invenção da Imprensa por Gutemberg em 1436 teve um impacte revolucionário

na propagação de ideias, tornando assim mais difícil o controle da difusão de livros e outros papéis impressos. A censura vai exercer-se de dois modos: a censura

preventiva e a censura repressiva. A censura preventiva consistia na censura

prévia das obras, o que dará origem mais tarde à elaboração de índices


Folha de rosto da obra Fides, religio, moresque, Aethiopum sub imperio Pretiosi Joannis de Damião de Góis.

Bula que estabelece a Inquisição em Portugal.

Santiago e Hermógenes. Atribuído ao Mestre da Lourinhã, c. 1518-1526.

Retratos de Erasmo censurados e violentamente riscados pela Inquisição.

expurgatórios. Por seu lado, a censura repressiva exercia-se através do controle das

alfandegas e dos portos, das livrarias, das tipografias e das bibliotecas. Uma das actividades mais importantes da Inquisição consistia na elaboração de índices ou

catálogos de livros proibidos que iriam depois orientar a actuação dos censores e,

em princípio, também a dos livreiros e impressores. Ao longo dos séculos XVI,

XVII e XVIII, os livros confiscados são sobretudo de índole religiosa, romances de cavalaria, ou livros de prognósticos. As sanções aplicadas vão da excomunhão até à

multa pecuniária e à proibição de licenças especiais para permitir a posse de livros perigosos e, em casos extremos, à prisão.

O dogmatismo precisou sempre de órgãos de intimidação e protecção e, neste

sentido, a Inquisição serviu fielmente a política da Igreja católica. A reforma

religiosa protagonizada por Lutero constituiria o desafio mais perigoso para o

catolicismo oficial. Em 1520, uma bula papal excomungou Lutero e proibiu a difusão

e leitura de qualquer dos seus escritos. Esta proibição alarga-se a outros autores

considerados heréticos tais como Erasmo de Roterdão.

Também alguns dos

autores portugueses não ficaram ilesos ao crescente rol de proibições. A obra Fides,

religio, moresque, Aethiopum sub imperio Pretiosi Joannis [A Fé, a Religião, e os Costumes da Etiópia do Império de Prestes João] de Damião de Góis é proibida em Portugal

em 1541 — tinha sido publicada em Lovaina em 1540 e em Paris em 1541. As razões invocadas pelo Inquisidor-Geral, o Cardeal D. Henrique, consistem no facto

de o peso dos argumentos do embaixador do Prestes a favor da fé e costumes dos


etíopes serem mais fortes do que os argumentos contrários das autoridades católicas. É de realçar que, neste período, Góis é o

português com maiores

contactos com figuras intelectuais defensoras da reforma da Igreja, tais como Lutero, Erasmo e Melanchthon.

Também a obra de Gil Vicente não ficou imune às actividades dos censores Portugueses. Em 1551, no primeiro índice impresso de livros proibidos constam

sete autos de Gil Vicente: Auto de Dom Duardos, Auto da Lusitânia, Auto de Pedreanes,

Auto do Jubileu de Amores, Auto de Aderência do Passo, Auto da Vida do Paço, e Auto dos Físicos. O Índice de 1581 refere explicitamente que “Das obras de Gil Vicente, que

andam juntas em um corpo se hade riscar o prologo, até que se proveja na emenda

dos seus Autos, que têm necessidade de muita censura e reformação.” A censura

do prólogo, escrito pelo filho do autor, seria devida ao facto de o mesmo divulgar que D. Sebastião gostava de ouvir ler as obras de Gil Vicente quando tinha oito anos de idade. Segundo Carolina Michaelis,

a perseguição do autor pela

Inquisição teria sido motivada pela sua liberdade de expressão e pela audácia do seu pensamento. Esta perseguição, bem como a dos membros da sua Escola teria

consequências nefastas para o desenvolvimento do teatro em Portugal.


Os próprios Lusíadas de Luís de Camões não escaparam à censura. Na primeira edição, publicada em 1572, o censor Frei Bartolomeu Ferreira não alterou o texto

mas ressalvou existirem certos pontos de conflito entre o mesmo e a ortodoxia

vigente. Já a segunda edição, publicada em 1584, foi objecto de censura prévia pelo

mesmo Frei Bartolomeu Ferreira. As passagens mais alteradas dizem respeito à

mitologia e a sua censura é justificada de modo “a precaver os leitores contra os erros teológicos contidos na alegoria dos deuses pagãos e os perigos de os confundirem com

falsos deuses”. São também censurados alguns trechos do Episódio da Ilha dos Amores por serem considerados “sensuais e, portanto, desonestos”.

Retrato de Luís de Camões.

Folha de rosto da Compilação das Obras de Gil Vicente.


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A Censura Literária em Portugal e o Pensamento Iluminista Every burned book enlightens the world, every suppresed or expunged Word reverberates through the earth. Ralph Waldo Emerson

A legislação sobre liberdade de imprensa acompanhou sempre a ideologia política

dos governos no poder. Esta situação encontra-se especialmente patente na reforma do mecanismo de censura protagonizada pelo Marquês de Pombal. Pouco tempo

depois da expulsão dos jesuítas de Portugal em 1759, é criada a Real Mesa Censória em 1768 com o intuito de consolidar o poder régio. Esta instituição

transfere para o Estado o exercício da censura apesar de alguns dos seus membros continuarem a ter formação religiosa. A novidade das regras implementadas pela

nova instituição diz respeito à defesa intransigente do poder real tendo as mesmas

também como objectivo retirar a dependência da Igreja em relação Papa e transferi-la para a Realeza. Pretende-se ainda proibir expressamente os autores jesuítas, incluindo aqueles que até aí eram utilizados no ensino.

Uma das regras definidas em 1768 pela Real Mesa Censória é a proibição de livros

de todos os autores que “seguem e defendem as proposições dos iluminados”. Os editais sucedem-se proibindo os livros de vários pensadores

e ordenando

mesmo que alguns deles sejam queimados na Praça do Comércio: a Analyse de

Pierre Bayle, o Dictionaire Philosophique de Voltaire, as Lettres Turques e as Ouvres

Philosophiques de La Mettrie, e ainda o Recueil Necessaire e a Recherche sur l´origine du

Despotisme Oriental de Boulanger. A pena de fogo sobre estes livros foi executada

num sábado do mês de Outubro de 1770. Segue-se a proibição de obras de outros autores acusados de materialismo, ateísmo ou deísmo incluindo Hobbes, Voltaire, Mandeville, Rousseau e Diderot, entre outros.

Muitas das obras censuradas são emblemáticas do pensamento iluminista da

época. No âmbito do mesmo, as velhas certezas resistiam cada vez com maior


Pedro Berruguete, A prova de fogo.

Excerto de um manuscrito da Real Mesa Censória datado de 1769 onde as obras de Rousseau e de Diderot são censuradas.

Folha de rosto da obra Emile, ou de l´Éducation (1762) de Jean-Jacques Rousseau.

dificuldade aos assaltos da reflexão crítica e do cepticismo. Por outro lado, a análise

racionalista aplicada à tradição religiosa e à própria Bíblia começava a fazer vacilar de uma maneira ainda mais decisiva as certeza tradicionais herdadas do passado.

No entanto, apesar de no século XVIII se ter assistido a um reforço dos organismos repressivos, muita da literatura considerada perigosa e subversiva continuou a ser

lida e a ser difundida de modo secreto. Na realidade, durante todo este período, a actividade da imprensa clandestina foi vigorosa e, sem ela, não se poderia esperar

o surpreendente surto do iluminismo em Portugal na segunda metade do século

XVIII. É também de destacar o papel de livrarias estrangeiras na difusão de livros proibidos em Portugal. A lista oficial de livros proibidos servia, aliás, para muitos

intelectuais e estudantes fazerem encomendas. Outra forma de aceder a livros proibidos era através da sua compra durante viagens ao estrangeiro ou recorrendo aos serviços de algum marinheiro. Para além disso, um processo conhecido era o de

se encadernarem livros proibidos sob títulos diferentes. Havia ainda a possibilidade

de ler livros proibidos através de licenças especiais que podiam ser concedidas a membros da aristocracia ou do clero.

Bibliografia Artur Anselmo, Camões e a Censura Literária Inquisitorial. Braga: Barbosa & Xavier, 1982. Francisco Bethencourt, História das Inquisições, Portugal, Espanha e Itália, Lisboa: Temas e Debates, 1996. Graça Almeida Rodrigues, Breve História da Censura em Portugal. Lisboa: Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação e Ciência, 1980. Luís Filipe Barreto, Damião de Góis, Os Caminhos de um Humanista, Lisboa: CTT Correios, 2002. Maria Mercês M. Das Eiras, A Censura e o Impacto da Filosofia das Luzes na 2ª metade do século XVIII, Coimbra, 1989. Maria Teresa E. Payan Martins, A Censura Literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2005. Tânia Regina Eduardo Domingos, La Censura Inquisitorial de los Autos Vicentinos, estúdio del Léxico y del Pensamiento de Gil Vicente. Dissertação de Doutoramento, Universidade de Terragona, 1998.


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Ciência e Censura There it was that I found and visited the famous Galileo, grown old a prisioner of the Inquisition, for thinking in astronomy otherwise than the Franciscan and Domenican licenssers tought. John Milton

Na sua análise detalhada sobre o impacte da censura inquisitorial na produção

e circulação e livros científicos espanhóis nos séculos XVI e XVII, José Pardo

Tomás evidencia a eficácia do sistema de controle de livros no período estudado.

Embora a censura de obras científicas tenha representado apenas uma parte

menor da actividade censora em Espanha, o autor sublinha os seus prejuízos irreversíveis para o desenvolvimento da ciência moderna. Em relação ao caso

português, são escassos e breves os estudos referentes à censura de textos científicos.

Podemos dizer que o debate sobre o tema da ciência e censura tem orbitado em torno do impacte de obras e de autores defensores ou críticos do sistema

heliocêntrico. O livro de Copérnico, De revolutionibus orbium coelestium foi proibido pela Inquisição Romana pelo decreto de 5 de Março de 1616 até que fosse

corrigido. Este decreto declara que a doutrina do movimento da terra é falsa e

contrária à Bíblia, bem como uma ameaça ao catolicismo. A obra de Copérnico foi

retirada do Índice em 1620 pelo decreto XXI que esclareceu as correcções a efectuar.

Na lista de correcções, incluíam-se doze passagens contendo ou referencias religiosas ou que indicavam que Copérnico pensou o movimento da terra de um

modo literal. Ou seja, como uma descrição da realidade física e não apenas para fazer cálculos astronómicos e previsões. Existem em Portugal oito exemplares da

edição quinhentista da obra de Copérnico, nenhum dos quais apresenta as

Folha de rosto da obra De revolutionibus orbium coelestium (1543) de Nicolau Copérnico.

Mapa da Europa do século XVII onde se encontram assinalados os locais onde a obra de Copérnico foi mais censurada.


Parecer da Real Mesa Censória sobre as obras de Giodarno Bruno.

expurgações exigidas pelo decreto de 1620. Estes dados sugerem que não há fundamento para supor que o acesso a esta obra fosse difícil no nosso pais. Na

verdade, a censura da influente obra de Copérnico parece ter sido essencialmente

um fenómeno protagonizado pela Inquisição Romana.

O processo de Galileu conducente ao seu julgamento e à colocação no Índex da sua obra Dialogo sobre os dois máximos sistemas do Mundo, o Ptolomaico e o

Coperniciano (1632) é um dos mais estudados. Ele tornou-se mesmo num dos

episódios mais emblemáticos da colisão entre ciência e religião e do poder dos

mecanismos de censura religiosa. O processo de Galileu começou muito antes do seu julgamento em 1633 e os passos e argumentos subjacente ao mesmo são

demasiado complexos para poderem aqui ser devidamente explanados. Convém,

no entanto, realçar que é um mito dizer que Galileu foi condenado por ter descoberto a verdade. É de notar que os cálculos baseados na teoria de Copérnico

não eram proibidos e que os astrónomos e a própria Igreja aceitavam que o

modelo heliocêntrico fosse usado como ferramenta computacional e como postulado teórico. Por outro lado, Galileu não foi proibido de estudar, calcular e ensinar como hipótese matemática o modelo de Copérnico. O problema crucial

foi a sua defesa como realidade física. A controvérsia entre Galileu e a Igreja

envolveu questões científicas sobre os fenómenos naturais e sobre matérias astronómicas e cosmológicas bem como questões epistemológicas sobre a natureza

da verdade e o modo da pesquisar. Será que a realidade física pode ser directamente observável ou será que determinados fenómenos (por exemplo, o movimento da terra) podem ser verdadeiros mesmo quando os nossos sentidos não

os podem detectar? Será que os instrumentos artificiais como o telescópio podem

ter um papel legítimo na procura da verdade? Qual é o papel da Bíblia na pesquisa


O Processo de Galileu, Escola Italiana, século XVII.

científica. Terão as suas asserções sobre fenómenos naturais alguma autoridade? Galileu considerava o telescópio um legítimo instrumento de pesquisa da natureza

e tomou as suas observações da rugosidade da lua, dos satélites de Júpiter, das fases de Vénus, da alteração de brilho de Marte, e das manchas solares na

superfície do sol como uma forte evidência do sistema heliocêntrico. De um modo mais drástico Galileu acreditava e defendia que a Bíblia não tinha autoridade no que respeita a assuntos científicos mas apenas em termos de fé e de moral.

A censura de livros científicos não se restringiu a matérias relacionadas com

a astronomia e cosmologia. No Índex de 1581 encontra-se designadas as obras do

célebre

médico português Amatus Lusitanus: Na mesma página, é também

referenciado uma obra do célebre médico e naturalista Leonard Leonard Fuchs.

Pode afirmar-se que a medicina é uma das temáticas à qual estão atentos os censores. No século XVIII, o censor Padre Agostinho Macedo diz mesmo serem os livros de

Medicina, conjuntamente com os das Artes de governar o mundo, os que mais o

desassossegam

já que

poderiam facilmente acolher

e despoletar ideias

materialistas e ateístas fortemente condenadas pela Inquisição.


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Censura, Artes Divinatórias e Magia

Condenado da Inquisição, desenho satírico de Goya

O Índice de livros proibidos de 1561, declara a intenção de estabelecer um combate sistemático à astrologia judiciária (predições sobre o destino de indivíduos)

e a outras formas de artes divinatórias. Já o Catalogo dos livros que se prohibem

nestes Regnos e Senhorios de Portugal de 1581 explicita na sua nona regra a proibição de todos os livros e obras de Geomancia, Hidromancia, Aeromancia, Piromancia,

Onomancia, Quiromancia, Nigromancia, ou em que se contem sortes, feitiçarias,

agoiros, boas ditas,ou encantações da arte mágica. Contudo, deve realçar-se que,

no que se refere à astrologia judiciária, apenas alguns textos parecem ter sido

examinados quanto ao conteúdo e que, mesmo assim, são raríssimas as censuras que impossibilitam a leitura dos mesmos.

O estudo de Thimoty Walker sobre a repressão do tratamento mágico em Portugal

no século XVIII revela que neste período se assistiu em Portugal ao maior número

de processos inquisitoriais contra curandeiros que utilizavam remédios descritos como tendo propriedades mágicas para curar doenças comuns. Ao contrario de

outros países europeus nos quais as práticas mágicas se encontravam praticamente

erradicadas no século XVIII, os julgamentos sobre bruxaria e feitiçaria registam


Diagrama de ritos mágicos populares. Página do processo da Inquisição de um escravo acusado de crimes e curas supersticiosas em 1731.

Página censurada da obra de Jerónimo de Chaves, Chronographia (1576).

um pico em Portugal entre 1715 e 1760, sendo a grande maioria dos acusados destes crimes curandeiros. O autor mostra também que os médicos com treino

universitário e licença estatal desempenharam um papel fulcral na denúncia e no

julgamento dos mesmos. Havia um esforço evidente por parte da profissão médica em combater e, se possível, erradicar as práticas mágicas supersticiosas em

Portugal. Ao tomar esta atitude, os médicos estariam provavelmente a tentar

eliminar os seus competidores profissionais. No entanto, é também de crer que

seriam motivados por um esforço genuíno de reformar e racionalizar a prática médica em Portugal.

Bibliografia Henrique Leitão, O livro científico antigo, séculos XV e XVI, notas sobre a situação portuguesa. In O Livro Científico: Ciências Físico-Matemáticas na Biblioteca Nacional. Lisboa, Biblioteca Nacional, 2004. José Pardo Tomás, Ciência y Censura. La Inquisición Espãnola y los libros científicos de los siglos XVI y XVII. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1991 1991. Maurice A. Finocchiaro, The Galieo Affair: A Documentary History. Berkeley, Los Angeles, London: University of Califórnia Press, 1998. Timothy D. Walker, Doctors, Folk Medicine and the Inquisition: The Repression of Magical Healing in Portugal during the Enlightnment. Leiden, Bóston: Brill, 2005. Ugo Baldini, The Roman Inquisition´s Condenation of Astrology: Antecedents, Reasons and Consequences. In Gigliola Fragnito (ed.), Church, Censorship and Culture in Early Modern Italy, Cambridge: Cambridge University Press, 2001.


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Destruição de Livros e Bibliotecas nos séculos XX e XXI O H o l o c au s t o N azi Fascismo e Censura em Portugal


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Destruição de Livros e Bibliotecas nos séculos XX e XXI

O Séc. XX testemunhou algumas das piores destruições de Bibliotecas e Arquivos que ocorreram durante conflitos armados. Tribunais Ad-hoc, criados para julgar

crimes de guerra, têm feito progressos significativos, de modo a estabelecerem responsabilidade criminal individual sobre crimes cometidos contra património

cultural. Contudo, crimes que envolvem destruição de Bibliotecas e Arquivos não são ainda considerados como itens separados para prossecução judicial. Esta falha

leva a que estes processos destrutivos de legados documentais de inestimável valor

ainda ocorram hoje em dia.

Destruir pelo fogo é uma prática cerimonial de destruir livros e textos escritos. Em

tempos modernos, outras formas de media também têm sido destruídas tais como

Discos em vinil, CDs e Cassetes de Vídeo. Estas práticas cerimoniais, muitas vezes conduzidas em actos públicos e com grande aparato publicitário, são em geral

motivadas por razões morais, políticas e religiosas que objectam os conteúdos dos

materiais a serem destruídos.

As chamas devoram a verdade e a memória. Na nossa imaginação, uma biblioteca destruída pode

conter verdades escritas e aqueles que destroem colecções de livros minam as bases da civilização. James Raven, Lost Libraries


Algumas ocorrências: Grande Guerra – 1940

Os bombardeamentos e incêndios resultantes de ataques durante a segunda Guerra

Mundial resultaram na destruição de centenas de bibliotecas e seus conteúdos. Sérvia – 1941 – Biblioteca Nacional

Polónia – 1941 – Biblioteca Nacional Polaca – Varsóvia

Grã-Bretanha – 1942 – British Museum e University College of London China – Período da Revolução Cultural Tibete – 1959

Mosteiros que encerravam manuscritos e documentos únicos foram incendiados e destruídos em consequência da ocupação chinesa. Sarajevo – Agosto de 1992

Incêndio da Biblioteca de Vijecnica, Biblioteca Nacional e Universitária, na Bósnia. Mais de um milhão de livros, impressos e manuscritos, foram destruídos. Bagdad – Abril de 2003

O assalto das forças armadas americanas e inglesas ao Iraque causou milhares de vítimas militares e civis e destruiu grande parte do património cultural. Mais de 170.000 artigos foram saqueados da Biblioteca Nacional de Bagdad. A Biblioteca Nacional e a Biblioteca do Ministério de Assuntos Religiosos ficaram em ruínas. Em Mosul, a Biblioteca da Universidade foi completamente destruída.

Descendentes de Gengis Khan queimaram a cidade de Bagdad no séc. XIII e disse-se então que

o rio da cidade estava negro devido à tinta dos livros. Ontem, as cinzas de milhares de documentos antigos enchiam os céus do Iraque. Porquê? Robert Fisk, 15 Abril 2003


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O Holocausto Nazi Where they burn books, they will end in burning human beings. Heinrich Heine, Almansor, 1821

Um século depois os nazis faziam exactamente o que Heine tinha predito. Em 10 de Maio de 1933, em Berlim, os nazis destruíram pelo fogo, em praça pública, obras de autores judeus e outras obras consideradas “un-German”.

Estes actos ofensivos praticados na Alemanha sob o comando de Adolf Hitler representam formas de censura religiosa ou política.

A queima de livros é frequentemente associada à ideologia nazi.



3

Fascismo e Censura em Portugal A Censura no Estado Novo (…) existe sempre uma profunda unidade entre a liberdade de um povo e a liberdade do intelectual e do artista. (…) Sophia de Mello Breyner Andresen Assembleia Constituinte, 3 de Setembro de 1975

Durante cerca de 40 anos, Portugal viveu sob a égide do Estado Novo. As figuras proeminentes deste regime ditatorial foram António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano. Em Julho de 1932, Salazar assume a Presidência do Conselho.

Apercebendo-se da importância da manipulação da Informação no estabelecimento de um Estado forte e soberano, Salazar legaliza a Censura Prévia, uma medida

transitória imposta pela Ditadura Militar (1926-1933) resultante do golpe

de Estado de 28 de Maio de 1926, como “meio indispensável a uma obra de reconstrução e saneamento moral” 1 da Nação.

Cartaz de Almada Negreiros , para o Plebiscito Constitucional realizado em 19 de Março de 1933. A nova Constituição viria a consagrar o “Estado Novo” In Rosas, Fernando, “O Estado Novo” in História de Portugal, vol.VII, dir. José Mattoso, Círculo de Leitores

Em 11 Abril de 1933, é publicado o Decreto-Lei nº 22:469, através do qual “continuam sujeitas a censura prévia as publicações periódicas definidas na lei de

imprensa, e bem assim as folhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações, sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social”.

No mesmo dia, entra em vigor a nova Constituição, segundo a qual é garantida

“a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma” mas que “leis especiais” regularão o exercício da mesma, de forma a “impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social”. Em Junho do mesmo ano, é institucionalizada a Direcção-Geral dos Serviços de Censura (D.G.S.C.), existente desde 1931, através do Decreto-Lei nº 22:756.


Os moldes de actuação da Censura já haviam sido definidos através de uma

circular confidencial da D.G.S.C., em Agosto de 1931 mas, os seus contornos tornarse-iam mais precisos, com um conjunto de Instruções Gerais emitidas pela mesma

Direcção em Julho de 1932. Estavam indicadas as bases político-ideológicas do regime.

Em Outubro de 1933, é criado o Secretariado de Propaganda Nacional (S.P.N.), Instruções Gerais da Direcção-Geral dos Serviços de Censura de Julho de 1932 In Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, Legislação Repressiva e Antidemocrática do Regime Fascista, Lisboa, 1985

o aparelho repressivo e propagandístico do Estado Novo que, no final da 2ª Guerra

Mundial, dá lugar ao Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e

Turismo (S.N.I.), órgão directamente dependente da Presidência do Conselho. A sua

direcção é entregue ao político, jornalista e escritor, António Ferro. Em nome de uma “Política do Espírito”, que visava o saneamento moral da Nação e a exaltação

do nacionalismo, de forma a recuperar o passado glorioso e os valores tradicionais esquecidos como Deus, Pátria e Família, é levada a cabo uma acção de estetização

de todas as formas de expressão públicas, de modo a espelharem as características político-ideológicas do regime. O Teatro, a Literatura, o Cinema, a Rádio e, posteriormente, a Televisão são filtrados nas malhas da Censura, com o objectivo

de se eliminar o teor “subversivo e comunizante”. Através desta operação, é

retratada uma imagem fictícia do País mas que serve ao Poder instituído porque “politicamente só existe o que o público sabe que existe”2. Inicia-se então, o

período áureo do Estado Novo que culmina, em 1940, com a Exposição do Mundo Português,um dos expoentes máximos de propaganda deste regime.

Cartaz de Propaganda Política do Estado Novo Biblioteca Nacional

A Exposição do Mundo Português, realizada em 1940, no âmbito das comemorações do duplo centenário da nacionalidade (1140 e 1640) Arquivo Nacional de Fotografia, Instituto Português dos Museus


Entretanto, nos bastidores do palco onde o Estado Novo era encenado, travava-se

uma luta sem tréguas entre o aparelho censório e os artistas considerados desafectos ao regime, por defenderem o conceito da “arte pela arte”, segundo o

qual a arte deveria obedecer ao espírito criativo e não à “Política do Espírito”. A produção escrita foi particularmente lesada, por constituir um dos terrenos de

combate político. Foram várias, as obras esquartejadas pela acção implacável do Lápis Azul e esvaziadas da sua essência, ou mesmo proibidas. A proibição podia

exercer-se quer a nível de impressão, circulação ou representação das obras em questão, para além da sua referência na Imprensa.

Notícia sobre “Cartilha do Marialva” de José Cardoso Pires, censurada em 16 de Junho de 1967. In Pedrosa, Inês, José Cardoso Pires: Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999

Muitos escritores ficavam, desta forma, cobertos por um manto de esquecimento.

As denúncias e as acções de fiscalização da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (P.I.D.E.) contribuíam para isso.

Relatório da P.I.D.E sobre a apreensão do volume VIII do Diário de Miguel Torga Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo

As publicações estrangeiras também eram passíveis de constarem do índex censório, desde que não se enquadrassem nos preceitos defendidos pelo regime.

Auto de apreensão relativo ao livro “Lolita” de Vladimir Nabokov, efectuado pela delegação da P.I.D.E. em Moçambique, em 20 de Junho de 1966. Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo


O testemunho do escritor Ferreira de Castro reflecte bem a situação dramática que afectava o campo das letras em Portugal: “Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no que a censura proíbe, mas também no receio do

que ela pode proibir. Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa do trabalho – e essa invisível e incorpórea presença tira-nos toda

a espontaneidade, corta-nos todo o élan, obriga-nos a mascarar o pensamento, quando não abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: - Eles deixarão passar isto?” 3. Em Setembro de 1968, Marcello Caetano substitui Salazar na Presidência do

Conselho. A Censura Prévia passa a chamar-se Exame Prévio, com a agravante de

não ser permitido mencioná-lo nos textos censurados. E a P.I.D.E. dá lugar à Direcção-Geral de Segurança (D.G.S.).

Os frutos da “primavera marcelista” não foram os esperados.

1 Circular urgente da Direcção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa de 28/08/1931 in Legislação Repressiva e Antidemocrática do Regime Fascista, ed. pela Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, Lisboa, 1985

2 Discurso proferido por Salazar em 26 de Outubro de 1933 na inauguração do S.P.N. in S.N.I., Catorze Anos de Política do Espírito, Edições S.N.I., Lisboa, 1948 3 Castro, Ferreira de, in Eleições Legislativas – Subsídios para a História da Vida Portuguesa (1945/1973), Edições Delfos, Lisboa, 1973

Bibliografia Azevedo, Cândido de, Mutiladas e Proibidas: Para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo, Caminho, 1997 Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, Legislação Repressiva e Antidemocrática do Regime Fascista, Lisboa, 1985 Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, A política de Informação no Regime Fascista, Lisboa, 1980 Esteves, Henrique Nuno Heliodoro, Chicotes com Gatilho, Peixes-frades e Censura Literária no Estado Novo, Dissertação de Mestrado em Teoria da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2005 Ferro, António, Salazar, o Homem e a sua Obra, edições Fernando Pereira, Lisboa, 1982 Livros Proibidos no Estado Novo: Catálogo da Exposição, 2ªed., Assembleia da República, Lisboa, 2005 Pedrosa, Inês, José Cardoso Pires: Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999 Relação das Obras Cuja Circulação Esteve Proibida em Portugal Durante o Regime Salazar / Marcello Caetano, (coord.) José Mário de Mascarenhas, Câmara Municipal de Lisboa - Biblioteca Museu República e Resistência, 1996 Rodrigues, Graça Almeida, Breve História da Censura Literária em Portugal, “Biblioteca Breve”, 1ªed., Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980 Rosas, Fernando, “O Estado Novo” in História de Portugal, vol.VII, dir. José Mattoso, Círculo de Leitores S.N.I., Catorze Anos de Política do Espírito, Edições S.N.I., Lisboa, 1948


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Fascismo e Censura em Portugal A Anatomia da Censura

Chego a concordar que a Censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes sujeita ao livre arbítrio dos censores, às variantes do seu temperamento, às consequências do seu mau humor (…) Eu próprio já fui em tempos vítima da censura e confesso-lhe que me magoei, que me irritei, que cheguei a ter pensamentos revolucionários. António de Oliveira Salazar in Ferro, António, Salazar, o Homem e a sua Obra, edições Fernando Pereira, Lisboa, 1982

A Censura, apesar do seu carácter arbitrário e imprevisível, deixou vestígios que

permitem delinear os seus contornos. Os pareceres dos censores, as palavras

eliminadas pelo Lápis Azul e as obras proibidas revelam alguns dos temas considerados tabu pelo regime, nomeadamente a defesa da Democracia, a guerra

colonial, o socialismo, a religião, a pobreza, a sexualidade e a emancipação

feminina. No entanto, era possível escapar ao aparelho censório, abordando estes

assuntos através de uma linguagem cifrada com o predomínio de metáforas, ou

seja, escrevendo entrelinhas. As associações vulgarmente utilizadas eram Primavera / Revolução, Aurora / Socialismo, Camarada / Prisioneiro, Vampiro /

Polícia e Papoila / Vitória Popular. A outra opção era a auto-censura, cabendo

ao escritor contornar os temas polémicos ou mutilar a sua própria obra de forma a eliminar todo o conteúdo dito subversivo.

A perseguição intelectual protagonizada pela Censura teve consequências irreparáveis na literatura portuguesa. Escritores votados ao esquecimento. Livros, cuja única edição conhecida é a censurada. Pedaços da memória de um País rasurados.

Capa da 1ª edição de “O Príncipe com Orelhas de Burro” de José Régio. In José Régio e os mundos em que viveu: Catálogo da Exposição, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1999 Parecer do censor: “ (...) por mim ignoro se há alguma corte estrangeira que possa sentir-se mais ou menos visada no reino imaginário criado pelo autor, tanto mais que este nem sequer usa a declaração agora em moda – a de ser mera coincidência a semelhança com pessoas ou factos existentes.” (Autorizado em 1942)


Capa de “O Caminho Fica Longe” de Vergílio Ferreira In Livros Proibidos no Estado Novo: Catálogo da Exposição, 2ªed., Assembleia da República, Lisboa, 2005 Parecer do censor: “É um romance de puro realismo, literariamente bem escrito, com certas manifestações de política comunista que estão eliminadas, com muitas de carácter obsceno, igualmente cortadas (...) sobre o suicídio, admitindo a sua prática. (...) Com os cortes indicados, entendo não haver inconvenientes na autorização deste livro.” (Autorizado com cortes em 1943 e depois proibido no mesmo ano)

Capa da 1ª edição de “Histórias de Amor” de José Cardoso Pires Páginas do mesmo livro com o lápis azul da censura, In Pedrosa, Inês, José Cardoso Pires: Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999 Parecer do censor: “Imoral. Contos de misérias sociais e em que o aspecto sexual se revela indecorosamente. De proibir.” (Proibido em 1952)

Capa de “Novas Cartas Portuguesas” de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, In Costa, Ana Paula, Natália Correia: Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2005 Parecer do censor: “Este livro é constituído por uma série de textos (...) em que se preconiza sempre a emancipação da mulher em todos os seus aspectos (...). Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo crime.” (Proibido em 1972)

Bibliografia Azevedo, Cândido de, Mutiladas e Proibidas: Para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo, Caminho, 1997 Costa, Ana Paula, Natália Correia: Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2005 Esteves, Henrique Nuno Heliodoro, Chicotes com Gatilho, Peixes-frades e Censura Literária no Estado Novo, Dissertação de Mestrado em Teoria da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2005 Ferro, António, Salazar, o Homem e a sua Obra, edições Fernando Pereira, Lisboa, 1982 José Régio e os mundos em que viveu: Catálogo da Exposição, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1999 Livros Proibidos no Estado Novo: Catálogo da Exposição, 2ªed., Assembleia da República, Lisboa, 2005 Pedrosa, Inês, José Cardoso Pires: Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999


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Fascismo e Censura em Portugal Humor Sobre Azul Voltaire disse que o céu nos tinha dado duas coisas para equilibrar as numerosas desgraças da vida: a esperança e o sonho. Podia ter acrescentado o Riso. Emmanuel Kant

A Caricatura, inicialmente a “arte do exagero”, transformou-se com o tempo

numa arma poderosa de crítica social e política, utilizando uma abordagem humorística e satírica dos acontecimentos. A sua vertente política, por ser

temerária, foi objecto de repressão pelos vários aparelhos censórios ao longo da História. No entanto, a utilização de uma linguagem rica em subterfúgios permitia,

por vezes, ludibriar os censores que involuntariamente eram cúmplices na

ridicularização do poder instituído.

Durante o Estado Novo, a caricatura tornou-se num alvo a censurar por ser uma das formas privilegiadas de combate às limitações impostas à liberdade de expressão e do pensamento. O lápis do artista testemunhava e denunciava a acção

castradora do Lápis Azul. Criava um conjunto de representações iconográficas da

Censura, do qual faziam parte a Rolha, a Tesoura, o Lápis Azul e a D.Censura

(a Censura personificada numa velha bisbilhoteira), entre outras. A Imprensa era

o veículo mais utilizado por estes cronistas da realidade portuguesa. Criado em

1926, o “Sempre Fixe” foi um dos semanários que mais se destacou pelos ataques mordazes ao regime Salazarista, pela via do humor. Francisco Valença foi um dos seus mais emblemáticos embaixadores. Através dos seus traços , a revolta

embargada na voz do Povo era libertada.

Desenho de Francisco Valença, in “Sempre Fixe” de 25/10/1934. In Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência


Desenho de Francisco Valença, in “Sempre Fixe” de 19/04/1928, aludindo ao estabelecimento da Censura Prévia pela Ditadura Militar, resultante do Golpe de Estado de Maio de 1926. In Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência

Desenho de Francisco Valença, in “Sempre Fixe” de 06/07/1933, representando a D. Censura travestida de N. Sra. do Carmo (nos primeiros anos da ditadura, a sede dos Serviços de Censura era no Quartel da Guarda Nacional Republicana, ex-Convento do Carmo). In Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência

Desenho de Francisco Valença, in “Sempre Fixe” de 05/01/1933. In Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência. In Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência

Desenho de Francisco Valença, in “Sempre Fixe” de 14/3/1935, denunciando uma das normas da Censura Prévia, segundo a qual não eram permitidos espaços em branco após os cortes realizados. In Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência

Bibliografia Mascarenhas, João Mário (ed.), A Censura na Iconografia Portuguesa e na Caricatura, Museu da República e Resistência Francisco Valença: vida e obra, Câmara Municipal de Lisboa


Ficha Técnica da Exposição C ONCEPÇÃO

José J. G. Moura

Ana Alves Pereira

Palmira Fontes da Costa

Salima Sabasali Rehemtula I MAGEM G LOBAL , D ESIGN

E

D ESENVOLVIMENTO

Formiga Luminosa/Inês Vieira da Silva P RODUÇÃO

E

M ONTAGEM

Formiga Luminosa A POIO

FCT - UNL AGRADECIMENTOS

Henrique Leitão O UTUBRO

DE

2006


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