Alvor
2005/06
Por motivos técnicos, o artigo do Dr. Costa Diogo não pode constar, como deveria na Revista “Portugal Excelente”, editada e distribuida, no passado dia 27 de Maio, aquando a realização da 60ª Conferência do nosso Distrito, no jornal “Público”. Pela pertinência e qualidade do mesmo temos o prazer de o publicar neste encarte. Assim terminam as acções subordinadas ao lema da 60ª Conferência – “Os Descobrimentos Portugueses”.
Os Descobrimentos Os Descobrimentos. A alma e a edimensão A alma a dimensão universalidade portuguesa dadauniversalidade portuguesa
O
simples acto de atentar num mapa do mundo, concede a qualquer português, num misto de orgulho e espanto, a leitura da superlativa imensidão que constituiu a saga
imperial marítima do pequeno povo, predominantemente
agrário, de menos de dois milhões de pessoas (no final do Séc. XIV) situado da orla ocidental da Europa. Não raro se encontram cronistas, historiadores e analistas políticos de
outros países que colocam aquilo a que – eventualmente de forma pouco rigorosa – usualmente se designa por descobrimentos no patamar histórico que os mesmos exigem
e impõem; como referiu Adam Smith, citado por Boxer, “...
a descoberta da América e da passagem para as Índias
Orientais, através do cabo da Boa Esperança, são os dois maiores e mais importantes acontecimentos de que há notícia na história da humanidade”. Percebe-se porquê. Foram, de facto, os navegadores e os exploradores/conquistadores portugueses, desde bem mais cedo que os livros de história ensinam e cerca de século e meio antes do território castelhano ganhar a sua expressão definitiva, que iniciaram o processo que abriria a dogmática, turbulenta, inculta, e enclausurada Europa de então, acossada por lutas internas, pela pobreza, por vezes extrema, e engasgada pelas pressões crescentes das classes comerciais nascentes, a todos os povos e continentes naquele processo histórico que, pela primeira vez, tornou o mundo consciente da sua Humanidade, do seu multi-culturalismo e da sua verdade Luís Manuel Gomes da Costa Diogo JURISTA
geográfica. É do Mundo que nasceu então que tentaremos aduzir uma brevíssima reflexão. Não parece existir uma especial necessidade em salientar a notória vocação nacional resultante do seu geoposicionamento, bem como será escusado aduzir, como óbvio, que foram os portugueses que, muito antes de outros Estados europeus, instituíram o conceito de império marítimo, estabelecendo novos circuitos comerciais e depondo reinos
e monopólios anteriores, através da criação
históricas e arquitectónicas de evidência e
de uma rede marítima imensa e uma domi-
notoriedade acrescidas que parecem, até,
nação que se estendia desde os confins do
menorizar os trabalhos encomendados pelo
Mato Grosso até Malaca, e desde as Ilhas
novo marketing da Comunicação para ilus-
Atlânticas até ao Limpopo. Desde a viagem
trar, insistente e sucessivamente, os feitos de
de Lanzarotte da Franca às Canárias, em
outros povos, colocando-os, artificialmente,
1336, passando pelas cruzadas do norte de
num qualquer aspecto cimeiro da história
África a partir de 1415 com a conquista de
marítima.
Ceuta, até à entrega de Goa e dos territórios
Recorda Daniel Boorstin, a este mesmo
africanos e asiáticos já na segunda metade
propósito, que a aventura portuguesa cons-
do Séc. XX através de processos militares
titui um “empreendimento organizado de
e/ou revolucionários, confirma-se, de lon-
descobrimentos e longo prazo,... feito mais
ge, o maior processo marítimo da história
moderno, mais revolucionário, do que as lar-
(contínuo desde o início do Séc. XV), de mais
gamente celebradas proezas de Colombo... a
de seiscentos anos, todo ele baseado numa
coragem de Colombo consistiu em meter por
cultura extra-continental, multicultural e
uma passagem marítima directa para «terras
marítima. Entre algumas outras, a Bula Papal
conhecidas» numa direcção conhecida, mas
Romanus Pontifex, de Janeiro de 1455, define
sem saber precisamente qual seria a exten-
bem as origens, as legitimidades e a motiva-
são da passagem; pelo contrário, as viagens
ção do império português e resume a obra
dos portugueses à volta da África e, espera-
empreendida pela Nação Portuguesa através
va-se, para a Índia, baseavam-se em ideias
da visão abrangente do Infante D. Henrique e
especulativas arriscadas... para lugares onde
dos meios que soube criar e optimizar.
a geografia cristã ameaçava perigos mortais,
É absolutamente admirável, como aduz
lugares muito abaixo do Equador; por isso,
Elaine Sanceau, verificar que “Portugal
os descobrimentos portugueses exigiram um
descobriu dois terços da terra (...) basta
programa racional progressivo, sistemático,
olhar para um mapa para ver a maravilha
passo a passo, para se ir avançando através
de tal feito e reparar na pequena dimensão
do desconhecido... o feito dos portugueses
deste País localizado na periferia ocidental
foi o produto de um propósito claro, que
da Europa (...) cuja população andaria, em
exigiu forte apoio nacional; tratou-se de um
1500, por dois milhões de cidadãos (...)
grande protótipo de exploração moderna”.
que se estendeu por três continentes e dois
A erudição e verdade de tais palavras exige
oceanos, promoveu portos comerciais e cons-
bem uma adequada reflexão, bem como as
truiu fortalezas à volta de África, dominou
conjecturas que as mesmas induzem nas
o Oceano Índico desde Moçambique até às
futuras linhas, como País, que teremos que
Molucas, estabeleceu contactos com a China
saber desenhar, sobretudo na frente inter-
e o Japão e, no hemisfério ocidental, estava
nacional que teremos que, definitivamente,
colonizando os imensos espaços do Brasil:
assumir, na nova projecção do Estado e do
impossível, ter-se-á exclamado ao ouvir isto
saber português.
pela primeira vez: obviamente impossível
Portugal, à imagem da Europa, tem uma
– mas aconteceu”. Bem como traduz bem o
elevada taxa de maritimidade (relação dimen-
espírito da Alma Portuguesa, acrescenta-
são territorial/marítima). Geopoliticamente
mos nós, admirar as monumentais e belas
situado na extrema inferior ocidental do
obras deixadas desde a Igreja e convento
continente europeu, e projectando-se, com
jesuítas, de Diu, fortes e fortins da Velha Goa,
as áreas arquipelágicas, para o Atlântico,
até ao impressionante barroco das igrejas do
Portugal estruturou-se, fundamentalmente,
Brasil e a toda a linha de fortalezas defensivas
como um país euro-atlântico atendendo aos
deixadas ao longo das costas de África, provas
mais de seis séculos que já conta de processo
cultural extra-continental. Aliás, a política
do Norte e do Mediterrâneo, desenvolveram
de atlantização do País criou, como ensinou
um espírito marcada e progressivamente
Virgílio de Carvalho, uma unidade estratégica
voltado para o mar.
euro-atlântica que se mostrou capaz de se
A fusão de culturas diversas, nomeadamente
libertar da sua dimensão ibérica e europeia, e
nos grandes centros portuários e comerciais
criar um processo de independência firmada
e designadamente nos estuários dos princi-
face ao poder potencialmente centralizador
pais rios, Douro e Tejo, vocacionou e impeliu
que Castela, e posteriormente a Espanha,
o País para o comércio marítimo europeu,
sempre representou.
do qual nasceu uma burguesia marítima com
À imagem da realidade universal actual, que
enorme influência interna e externa, fulcral,
nos demonstra que cerca de 70% da popu-
aliás, na crise 1383-85 (à qual imbutiu um
lação vive e exerce actividades profissionais
papel de extraordinária relevância histórica
a menos de 50 Km dos litorais marítimos,
e sócio-económica), bem como nos desco-
2/3 da população portuguesa vive na zona
brimentos atlânticos. A universalização do
litoral e quase-litoral, nomeadamente nos
País, potenciando a sua intimidade terra-mar
dois grandes núcleos urbanos do País, o que
e o seu posicionamento “à esquina de dois
marca não só uma acentuada individualidade
mares”, tido como o foco geográfico
do Ser português, como também explica
dos descobrimentos atlânticos, lançaram as
opções (colectivas e individuais) estratégicas
bases culturais susceptíveis de proporcionar
e profissionais que foram sendo encontradas
a formação duma comunidade de interesses
ao longo de nove séculos de história. Como
comuns entre países e povos que falam a
vinca Jaime Cortesão, “Portugal nasce como
língua portuguesa, para o que concorreu
Estado, e afiança a sua independência, desde
a fusão da cultura e de etnias diversas,
que, aproveitando uma cultura herdada e as
promotora do que já foi designado como um
facilidades que lhe oferecia o mar, criou um
cosmopolitismo comercial-marítimo.
novo género de vida: o comércio marítimo
A saga atlântica e oceânica dos portugueses
à distância com base na agricultura foi a
impôs, também, a problemática respeitante
segunda apropriação humana das potencia-
à soberania/jurisdição/utilização livre dos
lidades humanas do território”.
mares, que viria a fomentar uma das mais
O sustento de tal afirmação encontra-se
prementes questões de direito internacional
na avaliação do (intenso) tráfego marítimo
de sempre – o mare clausum e mare liberum
que existia entre Portugal e o estrangeiro
–, e que teve como principais protagonistas
já no Séc. XIII, o que pressupunha uma
Hugo Grócio, holandês, o português Frei
coesão complementar entre a actividade
Serafim de Freitas e o inglês Jonh Selden,
agro-pecuária e a marítima: “o excedente
precisamente por alturas históricas do
da produção agrícola deveria ser canalizado
desenvolvimento da chamada navegação à
para os portos mais próximos os quais,
distância. Já nos Séc. XV e XVI, os Estados
quanto mais populosos e prósperos, mais
Ibéricos reclamavam o seu direito exclusivo
ampla actividade teriam: foi o que sucedeu
da navegação sobre os mares, até à Índia
com o Porto, que se tornou e manteve como
e América – ocorreria procedimento algo
um dos portos mais activos até ao Séc. XV”,
similar com a Inglaterra dos Stuart´s – em
sustentou Cortesão. Saliente-se, ainda, que
cujo processo argumentativo os portugueses
os mercadores nacionais foram os primei-
invocaram, a favor do seu império marítimo,
ros, de entre todos, a instalar as primeiras
como principais razões, a descoberta seguida
feitorias de comércio na Flandres (Bruges),
de posse.
além de que, as heranças fenícia, romana e
Portugal, num processo que tem tanto de
muçulmana, a segurança maior do litoral e a
complexo como de inacreditavelmente vasto e
atracção exercida pelos países mais próximos
longo, e desenvolvendo a cartografia náutica e
a navegação de alto-mar, abriu as vias comer-
tinentes e estende-se por quase 210 milhões
ciais europeias à opção atlântica, oceânica
de pessoas, tendo claras manifestações
e universal, confirmando alternativas aos
linguísticas paralelas na Galiza (onde se fala
circuitos mercantis do Oriente que angustia-
o galaico-português) e, consequentemente,
vam com a proximidade do império otomano o
em várias nações extra-Brasil da América
qual, no final do séc. XIV, já passava o Danú-
do Sul. É preciso assumir tal realidade e
bio. A forma como manteve tal imensidão de
afastar visões medíocres e miserabilistas.
territórios e de encaixes de povos, muitas das
Há que saber, e ousar, colocar a língua nas
vezes – sabemo-lo hoje – à custa de uma cruel
instâncias e nos fora internacionais a que
teia de domínios, imposições e de relações
pertence e no lugar que é o seu. Não é fácil,
com outras culturas que era muito própria
sabemo-lo, projectar poder num mundo com
dos séculos de quinhentos e seiscentos (e de
elevada exigência tecnológica e com neces-
uma específica cultura religiosa) solidificou,
sidades de celeridade comercial acrescida
na sua genética antropológica e cultural, todo
através de redes de organizações e processos
um novo sentir universal.
de geolocalicação empresarial que definem
Completar-se-ão, dentro de pouco mais de
novos sistemas de soberania e reformatadas
oito décadas, 1000 anos desde que se dese-
teias de lealdade. Contudo, a ausência de
nhou, pela primeira vez, em 1094, uma ideia
visibilidade dos Estados marca, de forma
autonómica da realidade portucalense.
definitiva, a sua subsistência internacional,
Não parecerá desusado, nem utópico, reacen-
e os espaços de tempo que vão passando
der a Alma Lusitana, solidificando o Ser
induzem, de forma irremediável, quem consta
Português sem demagogias e/ou plásticas
na primeira linha internacional das nações,
irrazoáveis e megalómanas. Esta velha
e quem a ela não pode aceder. Portugal
Nação de longas barbas cujos fios de cabelo
tem, hoje, essa luta de fundo para em
se estendem, em teia, ainda hoje, através da
empreender.
língua e do léxico de nomes e da toponímia
Nas Nações Unidas, na UNESCO, na Inter-
de localidades, a zonas limítrofes do Uruguai,
national Maritime Organization (IMO), entre
às mais recônditas selvas da Amazónia, a
outras instituições, deve ter-se a coragem, e
comunidades indianas, extremo-asiáticas e
a vontade, de instituir a língua portuguesa
timorenses, a vastos espaços de África e,
como língua oficial de estudos e debates,
por evolução das migrações, a todo o mundo
apostando em parcerias fortes e coopera-
conhecido – existindo, por exemplo, vastas
ções reforçadas, e confrontando os demais
comunidades desde o Canadá à Austrália
Estados com dados e argumentos com outras
–, deveria saber potenciar a morfologia dos
línguas de igual – ou próximo – pendor e
seus antigos saberes colhidos de fenícios,
divulgação.
romanos, árabes e berberes, godos, geno-
É preciso, pois, ousar; é exigível voltar à
veses e catalães, e a genética do seu multi-
génese da criatividade e do Ser Português,
culturalismo, projectando a sua presença e
adaptando-o às exponenciais exigências de
densificando a sua auto-estima.
um Séc. XXI onde o Conhecimento, a tecno-
Do pouco mais de milhão e meio de habitantes
logia e a sociedade da informação claramente
em finais do Séc. XIV, soubemos empreender,
impõem as suas regas, o que pressupõe, por
e potenciar, uma disseminação tal que, a
um lado, uma enorme proximidade entre
dados actuais, desde logo através da vastís-
Povos, Culturas, Economias e Saberes, em
sima presença brasileira, a sua existência
reconfiguradas formas de vizinhança social e,
corresponderá a cerca de 40% de toda a
por outro, debates (e conflitos) activos entre
América – dita latina – mas, de facto, Ibero-
processos políticos e diplomáticos.
americana. A língua portuguesa suplantou,
Afinal, o que resultou da antiga herança
por exemplo, o francês, vive nos cinco con-
Portuguesa. Há que a perceber.