ministério da cultura e bndes apresentam
curitiba literária bienal de curitiba 2016
ALGUMAS VOZES NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS ORGANIZAÇÃO:
Rogério Pereira
É inegável a força da literatura brasileira contemporânea. Basta percorrer as estantes de qualquer boa livraria para constatar a interessante profusão de autores, consagrados ou iniciantes, nos mais diversos gêneros. A pluralidade de temas e estilos se espraia em obras que surgem a todo momento. Entre os especialistas, poucos ousam identificar uma marca da atual literatura nacional, levandose em consideração sua riqueza e temática poliforme. Do novo romancista ao poeta consagrado, os enredos se multiplicam, se esgarçam em infinitas direções, e solidificam a nossa literatura como arte de força imprescindível na construção e crítica da história sociocultural brasileira. Este Algumas vozes — coletânea de contos e crônicas, fruto da realização da 1ª edição da Curitiba Literária, que trouxe grandes autores à capital paranaense no final de 2016 — é um recorte que comprova a vitalidade da nossa literatura. Ao reunir escritores de Curitiba e de várias regiões do país, possibilita ao leitor um passeio por paisagens diversas. É o contato com os já consolidados Milton Hatoum, Cristovão Tezza e Luiz Ruffato (para citar apenas três exemplos) e alguns que iniciam uma sólida caminhada (Giovana Madalosso e Julie Fank).
Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
Algumas vozes : narrativas contemporâneas / organização Rogério Pereira. - Curitiba, PR : Instituto Paranaense de Arte, 2017. 166 p. ; 21 cm. 1. Contos brasileiros. 2. Crônicas brasileiras. I. Pereira, Rogério. CDD ( 22ª ed.) B869.8
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ACADEMIA DE CULTURA DE CURITIBA ACCUR
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Realização
O Sesc Paraná e a literatura Desde sua criação, há quase 70 anos, o Sesc Paraná vem se dedicando ao desenvolvimento cultural do estado. A Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 integrou-se aos objetivos da nossa entidade, ao divulgar a literatura, abrindo espaço para a formação de leitores e para a disseminação das respectivas obras. Saiba sobre as outras ações realizadas pelo Sesc Paraná no mesmo período: Semana Literária & Feira do Livro A 35ª edição da Semana Literária & Feira do Livro foi realizada simultaneamente em Curitiba e em 20 cidades do Paraná, de 12 a 17 de setembro. O tema foi a “Representação do Brasil e do brasileiro na ficção literária”. Durante os seis dias de programação, foram realizados mais de 254 mil atendimentos – envolvendo 575 escolas paranaenses na programação. O evento reuniu ainda 63 livrarias e editoras universitárias, com a comercialização de mais de 42 mil livros, além de promover o encontro de escritores locais com autores de outros cantos do Brasil. Na programação, mesas -redondas, palestras, bate-papos, oficinas e narração de histórias. Sesc Literário: Coletânea de Contos Infantis A “Coletânea de Contos Infantis” é uma iniciativa do Sesc Paraná com objetivo de estimular a criação literária no público infantil e contribuir para revelar novos autores e narrativas inéditas, representando diferentes nuances da cultura paranaense. No
livro, com dez histórias ilustradas, foram reunidos contos de autores de Apucarana, Campo Largo, Cascavel, Curitiba, Guarapuava, Londrina, Tomazina e Umuarama. O lançamento aconteceu na programação da Semana Literária, reunindo os autores para sessão de autógrafos. O livro também está disponível na rede de salas de leitura do Sesc Paraná. Clube de Leitura Sesc Projeto voltado para a formação de leitores e incentivo ao hábito da leitura literária. O projeto tem três frentes de atuação: alunos da rede pública municipal e estadual, formação continuada e comunidade. A iniciativa foi desenvolvida no interior do estado e em cinco unidades do Sesc em Curitiba: Água Verde, Centro, Esquina, Paço e Portão, de março a setembro, quando integrou-se à programação da Semana Literária, com roda de leitura, mediação literária, narração de histórias e palestras formativas. Curso de Criações Literárias (crônicas/contos) O curso de criação literária, realizado no Paço da Liberdade, teve como objetivos incentivar e aprimorar a escrita literária, com atividades práticas e leitura de obras, a fim de compreender as técnicas e refletir sobre a escrita. Os alunos produziram seus próprios textos durante as aulas e discutiram suas criações. Realizado durante os meses de maio e junho, com carga horária de 20 horas.
Pacote de Poesia Projeto do Sesc Paço da Liberdade realizado desde 2009 já contemplou a obra de grandes nomes da nossa literatura, como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Paulo Leminski, Helena Kolody e Arnaldo Antunes, entre muitos outros. São nove pacotes ao longo de cada ano, com diferentes poetas. Leia e Troque Serviço que promove a troca de livros e gibis, incentivando e conscientizando as pessoas para que após a leitura façam a obra circular. Assim outros leitores terão acesso. Esta ação de solidariedade e cooperação de livros faz com que muitos, após a leitura, doem seus livros, independente de troca. O programa permite a socialização do livro e o respeito ao meio ambiente.
SESC Paraná Serviço Social do Comércio
É com grande prazer que o Banco Nacional do Desenvolvimento marca presença na Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016, renovando sua parceria com um dos mais tradicionais eventos culturais do país. O BNDES é um dos maiores apoiadores da cultura brasileira, atuando em diversos segmentos, como cinema, música, produção editorial e preservação do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico do país. Com ações de patrocínio e financiamento, o Banco estimula a produção cultural e promove a consolidação da cultura como setor econômico capaz de gerar empregos, renda e transformação social. Com projetos nas mais diversas esferas artísticas, a Bienal de Curitiba reafirma com mais este evento sua importância na ampliação do acesso dos brasileiros à cultura. É por acreditar na cultura como fonte de transformação social e econômica do nosso país que o BNDES patrocina eventos como a Bienal e reforça, mais uma vez, o seu compromisso com o desenvolvimento sustentável do Brasil.
BNDES o Banco Nacional do Desenvolvimento
A Sanepar apoia a Bienal de Curitiba em mais uma edição Apoiar a Bienal de Curitiba é motivo de orgulho para a Sanepar. Investir em cultura, fomentar a leitura e incentivar atividades que contribuam para a disseminação do conhecimento é também uma das vocações desta grande empresa. A Sanepar acredita que acesso ao conhecimento é primordial para a formação e para o desenvolvimento de cidadãos mais conscientes e preocupados com o futuro do planeta. E pensar no futuro do planeta é a missão mais importante desta companhia de saneamento. A Sanepar cuida dos nossos mananciais com muita responsabilidade, mas é preciso envolver toda a sociedade nessa nobre missão. A Sanepar investe em educação ambiental nas localidades onde atua porque sabe que o futuro depende de todos nós. Acreditamos num futuro construído por pessoas conscientes de seus compromissos com o planeta. E a consciência acontece quando as pessoas têm acesso ao conhecimento e são estimuladas a buscá-lo. O conhecimento está nos livros, está na leitura, está no compartilhamento de experiências que tornem o mundo um lugar cada vez mais humano, justo e sustentável.
É por isso que a Sanepar faz questão de investir em eventos como a Bienal de Curitiba, que leva conhecimento para as mais diversas regiões da cidade e atinge milhares de pessoas a cada nova edição. E neste ano, não tem como ser diferente. Mais uma vez a Sanepar tem orgulho em patrocinar este evento, que é fundamental para levar a literatura para perto de toda a população da capital paranaense. O estado do Paraná e a cidade de Curitiba são destaques no mundo por causa das iniciativas inovadoras. Na área da cultura não é diferente. Não é a toa que um evento do porte da Bienal acontece aqui, em terras paranaenses. E a Sanepar, mais uma vez, tem a honra de fazer parte desta história.
Sanepar Companhia de Saneamento do Paraná
De Temístocles à luz do conhecimento A Companhia Paranaense de Energia leva, há mais de 60 anos, energia e conforto para milhões de pessoas. Estamos todos os dias nas casas de praticamente todos os paranaenses; garantimos a infraestrutura de energia para o Estado crescer e se desenvolver. Nesta trajetória, atingimos o posto de maior empresa do Paraná, entre públicas e privadas. É um orgulho e uma responsabilidade enorme ter uma missão tão nobre, de levar nosso importante serviço à população. Em cada rincão deste Estado, nossos funcionários, nossos eletricistas, são tratados com carinho e respeito pelos moradores. Nos últimos seis anos, quatro vezes fomos eleitos por nossos consumidores a Melhor Distribuidora da América Latina. Chegamos a um ponto que somente fornecer energia não nos basta, queremos estar cada vez mais presentes na vida das pessoas, retribuir cada vez mais o reconhecimento que nos é dado. Uma das formas de aproximação é colaborar para o desenvolvimento social do Estado, apoiando ações, projetos e programas sociais, esportivos, culturais e ambientais que melhorem a qualidade de vida dos paranaenses. A Copel é hoje a empresa que mais apoia o esporte e a cultura no Paraná. Uma dessas parcerias de sucesso é com a Bienal de Curitiba, que há mais de 20 anos surgiu para revolucionar o cenário cultural em Curitiba e hoje, da mesma maneira que a Copel, tem reconhecimento internacional pelo seu profissionalismo e qualidade. Estivemos juntos em diversas edições da Bienal de Curitiba e, mais recentemente, da Curitiba Literária, como esta que em 2016 e 2017 encanta a população com suas atrações, debates, exposições e publicações.
Assim como a Copel, a literatura tornou-se uma grande marca em Curitiba. Aliás, acredito que muitas pessoas desconhecem que o primeiro presidente da Copel foi Temístocles Linhares, um dos mais notáveis críticos literários que o Paraná já teve, falecido em 1993. Advogado e historiador, Temístocles ocupou em 1955 a presidência da então Companhia Paranaense de Energia Elétrica, implantada no ano anterior. Além de dirigir a Copel por mais de um ano, Temístocles foi um dos pioneiros do cenário intelectual e literário do Estado, que depois revelou nomes e publicações como Wilson Martins, Dalton Trevisan, Manoel Carlos Karam, Cristóvão Tezza, revista Joaquim e jornais Nicolau, Cândido e Rascunho, entre outros. A Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 dá continuidade a esse movimento corajoso e inovador na arte das letras, e que virou tradição da capital paranaense. Trazendo escritores renomados do Brasil e de nosso Estado, o evento fomenta a discussão e a difusão do conhecimento, tornando a literatura acessível ao cidadão. A essência do bom trabalho da Copel está na formação e no conhecimento, que enfatizamos na contratação e na qualificação permanente de nossos empregados, os melhores do setor elétrico brasileiro. Dessa forma, também apoiamos as iniciativas que colaboram para a formação e aprimoramento cultural dos paranaenses, retribuindolhes a confiança na Copel depositada. Conhecimento é vida. Para a Copel, incentivar a arte é iluminar a vida.
Luiz Fernando Leone Vianna Presidente da Copel
A Bienal de Curitiba 2016 A Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016, realizada de novembro de 2016 a fevereiro de 2017, cumpre um papel central no desenvolvimento da literatura brasileira. A Bienal é uma realização do Ministério da Cultura, do Museu Oscar Niemeyer e da Secretaria de Estado da Cultura do Governo do Paraná, com apresentação e patrocínio indispensável do BNDES. Conta também com patrocínio da Copel e Sanepar, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, e com curadoria do jornalista e escritor Rogério Pereira, Diretor da Biblioteca Pública do Paraná. A Bienal leva a diversos espaços de Curitiba grandes nomes da literatura brasileira, paranaense e curitibana para um debate contínuo com o público. Partindo de um breve histórico, a Bienal de Curitiba nasceu em 1993 e, a partir de 2007, traz a literatura como um de seus focos de programação e divulgação. A inspiração para a realização de atividades e exposições que valorizassem a literatura em sua programação veio de dentro da própria cidade, primeiramente através do projeto Farol do Saber. Realizado durante a primeira gestão do prefeito Rafael Greca, o projeto consistiu na construção de bibliotecas com arquitetura motivada pelo Farol de Alexandria, no Egito Antigo. É uma iniciativa que incentiva a democratização do conhecimento e da cultura. Outro projeto que inspirou o envolvimento da literatura na programação da Bienal foi o Paiol Literário. Idealizado por Rogério Pereira, durante a gestão do ex-prefeito e atual governador do Estado do Paraná, Beto Richa, o Paiol Literário foi
a grande fonte de inspiração para a realização das mesas literárias promovidas pela Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016. Além disso, um grande influenciador para a realização da Bienal de Curitiba | Curitiba Literária 2016 foi o Mês da Literatura, iniciativa do Secretário de Estado da Cultura, João Luiz Fiani. A programação de literatura do Sesc Paraná, com a Feira do Livro & Semana Literária, também foi uma fonte de motivação para o evento. A escritora Rachel Liberato Meyer, minha querida avó, apaixonada pela leitura, e que publicou o livro Uma Menina de Itajaí, lançado em 1961 - com segunda edição publicada em 1999 -, foi um nome marcante para inspirar o projeto e conscientizar quanto à importância de ações que incentivem a literatura. Inspirada por essas iniciativas de aproximação da literatura com o público, a Bienal de Curitiba realizou, em 2013, o projeto A Literatura e a Cidade, que obteve grande interesse do público participante. O projeto contemplou também a leitura de textos em ônibus biarticulados e a publicação da antologia Fantas ma Civil, sob curadoria de Ricardo Corona, com textos sobre Curitiba escritos por 42 autores. A publicação foi disponibilizada nas Tubotecas da capital e distribuída em bibliotecas de cidades do Paraná. Então, em 2016, a Bienal decide fortalecer esse cenário e colocar a literatura como o foco principal do evento, propondo que todas as atenções se voltem para a arte literária, através da realização de mesas literárias, lançamentos de livro, oficinas de poesia, saraus literários, exposições de poesia visual e muito mais. Através de sua programação, a Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 ocupa museus, galerias de arte, livrarias, bibliotecas, auditórios, escolas e espaços culturais em toda a cidade. Assim, a Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 não
somente aproxima a literatura do público, mas também a apresenta como arte, estética, exposição, interferência urbana, movimento social, cultura, audiovisual e, em sua mais bruta forma, palavra. A Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 contou com a co-realização de entidades literárias históricas na capital paranaense. Graças ao Centro de Letras do Paraná, ao Centro Paranaense Feminino de Cultura e à Academia Paranaense da Poesia, a Curitiba Literária chegou até espaços que representam os pilares fundamentais da literatura paranaense, enriquecendo sua programação e envolvendo em sua realização personalidades tradicionalmente envolvidas com a história da literatura no Paraná. Selecionados pelo curador Rogério Pereira, agradeço aos autores que integram esta antologia, intitulada Algumas Vozes – Narrativas Contemporâneas, que será distribuída em bibliotecas públicas, universidades e escolas do Paraná e do Brasil. É o resultado de uma intensa programação cultural, sendo ainda um instrumento de divulgação da produção literária brasileira, de grande valor artístico. A antologia é um legado da Bienal, por ser um produto cultural de expansivo alcance e a memória de acontecimentos da Curitiba Literária. A realização de um projeto tão importante não se daria sem a valiosa contribuição do presidente do Conselho Superior da Bienal de Curitiba, Rodrigo Rocha Loures, bem como todos os conselheiros, os quais agradeço imensamente A Bienal contou ainda com trabalho de uma equipe dedicada e apaixonada por literatura. Agradeço à equipe
realizadora da Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 pela dedicação e pela paixão com que trabalharam para organizar e realizar o evento. Especialmente Luciana Casagrande Pereira, presidente da Bienal de Curitiba; Carolina Loch, coordenadora da Curitiba Literária; Fernanda Rios, produtora; João Marcos de Almeida, coordenador administrativo e financeiro; Claudio Gonçalves, designer; e Ana Letícia Sowinski, comunicação institucional, o meu muito obrigado. Agradeço imensamente aos ex-governadores do Paraná, Mario Pereira e Jaime Lerner; ao atual governador, Beto Richa; ao Secretário de Estado da Cultura (SEEC), João Luiz Fiani, e sua equipe; a diretora-presidente do Museu Oscar Niemeyer, Juliana Vosnika, e sua equipe. Aos corealizadores da Bienal, o Centro de Letras do Paraná, presidido por Ney Fernando Perracini de Azevedo, o Centro Paranaense Feminino de Cultura, presidido por Chloris Casagrande Justen, e a Academia Paranaense da Poesia, presidida por Lilia Souza, e seus associados. Agradeço também à imprensa, em especial a Gazeta do Povo, a RPC, a Mundo Livre FM e a e-Paraná, além de todos os veículos que colaboraram com a divulgação da Bienal. Deixo um agradecimento especial ao mecenas da Bienal de Curitiba, Rodrigo Araújo Ferreira, em nome de todos que apoiaram o projeto desde seu início; a Angela Ceccatto, que participou de reuniões preparatórias com os curadores fundadores da Bienal, a partir de 1991, e foi diretora geral da segunda edição do evento; e a todos que colaboraram para que a realização da mesma seria impossível. Luiz Ernesto Meyer Pereira Diretor geral da Curitiba Literária
Curitiba Literária | Bienal de Curitiba 2016 Conselho de Honra
Alfredo Meyer, Antônio Pereira da Silva e Oliveira, Ernesto Meyer Filho, Guilmar Maria Vieira Silva, Idelfonso Pereira Correia, Jorge Hermano Meyer, Lívio Abramo, Raquel Liberato Meyer, Túlio Vargas Conselho Superior Presidente de Honra em Memória
Miguel Briante Presidente
Rodrigo Rocha Loures Membros
Ana Amélia Filiziola, André Caldeira, Claude Bélanger, Denize Corrêa Araujo, Eduardo Fausti, Erlon Caramuru Tomasi, Guido M. do Amaral Garcia, Jayme Bernardo, João Luiz Felix, Luiz Fernando Casagrande Pereira, Mario Pereira, Michele Moura, Rodrigo de Araújo Pinheiro, Sandra Meyer Nunes Presidente
Luciana Casagrande Pereira Vice-Presidente
Luiz Carlos Brugnera Diretora Secretária
Ana Luisa Pernetta Caron Diretor Geral
Luiz Ernesto Meyer Pereira Diretor Administrativo-Financeiro
Luis Gustavo Tortatto
Coordenação Administrativa e Financeira
João Marcos Almeida Design Gráfico
Claudio Gonçalves
Assistência
Deocélia Costa Martins Conselho Fiscal Presidente
André Carnascialli Membros
Geni Aparecida Motin, José Otávio Panek CURADORIA
Rogério Pereira Coordenadora de Produção
Carolina Valentim Loch
Assistente de Produção
Fernanda Rios, Maria Alice Rocha Egg, Mariana Souza Bernal, Yara Talita Braga Museografia
Rodrigo Domaredzky Comunicação e Conteúdo
Fernanda Rios
Comunicação Institucional
Ana Letícia Sowinski
Assessoria de Imprensa
Dani Brito Site
Aristeu Araújo LIVRO
Algumas vozes Organização
Rogério Pereira Capa e projeto gráfico
Thapcom.com
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63
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Tudo que não é Alberto Puppi
[n o m e]
Embaraço
103 Julie Fank
Assionara Souza
Liga Luci Collin
Uma história de amor
Sabiá de guerra
O dia em que encontrei meu pai
Finalmente hoje
Meu olho e eu
Um artista em Shanghai
Elvira Vigna
O companheiro
A maior de todas as metáforas
B. Kucinski
Voando para mim Bernardo Carvalho
109
111 Luís Henrique Pellanda 115 Luiz Ruffato
Sozinho Caetano w. Galindo
121 Marcio Renato dos Santos
Zulu Cíntia Moscovich
127 Miguel Sanches Neto
Um dia ruim Cristovão Tezza
153 Milton Hatoum
Perdendo your religion
157 Rachel Liberato Meyer
Os fetiches
Giovana Madalosso
159 Tércia Montenegro
A distância de Lagos
O Macunaemo
José Castello
165 Xico Sá
Tudo que não é Alberto Puppi
Narciso acha feio tudo que não é A. Narciso acha feio tudo que não é H. Narciso acha feio tudo que não é I. Narciso acha feio tudo que não é M. Narciso acha feio tudo que não é O. Narciso acha feio tudo que não é T. Narciso acha feio tudo que não é U. Narciso acha feio tudo que não é V. Narciso acha feio tudo que não é X. Narciso acha feio tudo que não é UAU, tudo que não é zero a zero: OXO, OVO, OTO, OMO... Narciso acha feio tudo que não é AIA, tudo que não é AVA, tudo que não é MIM. Narciso acha feio tudo que não ATA. Narciso acha feio tudo que não AMA. Narciso acha feio tudo que não AMIMA. Narciso acha feio tudo que não AVIVA. 23
Narciso acha feio tudo que não é MUTUM. Narciso acha feio tudo que não é REVER, Augusto. Narciso acha feio tudo que não é STAR RATS, Décio. Narciso acha feio tudo que não é LUZ AZUL, Julio. Narciso acha feio tudo que não é OLHO : ILHA, Josely, tudo que não é AMOR | HUMOR, Oswald, tudo que não é à prova dos 69, José. Narciso acha feio tudo que não é SOCORRAM-ME, SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS, Marcelo. Narciso acha feio tudo que não é A GRAMA É AMARGA, Millôr. Narciso acha feio tudo que não é mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
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algumas vozes | narrativas contemporâneas
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Narciso acha feio tudo que nĂŁo ĂŠ
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algumas vozes | narrativas contemporâneas
[n o m e]
Assionara Souza
Começo. Um aqui meio entrecortado. Começo pela metade. Isso não é experimentalismo. Se um faz, o outro tenta e segue. A partir do que já se fez. Daqui de ontem ainda é hoje. Um daqueles em que o menino louco é que opera a partida. O estômago cheio desse depois e escapando. Você se lembra de flores? Se se lembrasse de flores não seria nada disso. Um mar de coisas vindo desde cima até embaixo. Olhar e pensar subverte a memória. Abrir e ver e sentir é o que vale aos sentidos. O suficiente sentir. Não deixe que nenhuma frase seja a última. Existe uma busca e embora surja muito barulho e tumulto no percurso, o que se quer é silêncio e certeza. Escrever tudo para que reste somente o silêncio. Lá fora um sol. Lá fora a vida é coisa que pulsa. Coisa que puxa. Coisa que existe e vai existindo dentro de um grande moinho. Os dedos longos. Os dedos cheios de veias que sobressaem. Por dentro, o sangue. Já fazia um tempo que estava ali. Não seria produtiva essa obsessão se não fizesse sentido insistir. Mas o sentido se faz a cada segundo como um oroboro passando do grito para a mudez absoluta. Prosseguir. A lista de nomes. A foto do homem com o pau gigante. O livro diz tanto sobre organizar. É sério mesmo 27
isso? Só porque falou “buceta”. Falou buceta e disparou esse silêncio todo em torno da sala? Óbvio que não. Não é um silêncio. É apenas mudez. E essa mudez não tem exatamente nada a ver com isso. É uma mudez de cansaço. De ter que repetir alguns gestos já gastos pra garantir o sustento. Sempre isso. E não pensar assegura que adiante o sonho se faça de fato algo passível de ver e tocar e dizer: isto. Repito. Por uma palavra essa mudez? Vou ouvir de novo. Vou brincar novamente com esses fragmentos disponíveis. Espera. Primeiro cumprimentou, pois é uma pessoa educada. Decidiu que não ia dizer devagar. Ia dizer tudo de uma vez. Disse. Queria te dizer que eu acordei pensando em ti. Acordar e pensar. Tem isso de manhã. Isso de acordar e pensar e não parar nunca até dormir mais uma vez e sonhar. Entrar pela câmara do sonho. Mas acordou e pensou. Pensou em quê? Buceta. Ouvindo agora me pareceu tão infantil. Uma coisa que faz rir a quem não conheça e não entenda. Um episódio ridículo. Então fique sabendo que foi proposital. Disse. Isso acontece quase sempre. Isso de acordar e pensar. Mas não especificamente na coisa. Essa seletividade natural. Acordar. E pensar em buceta. Acordar e pensar. Não pensar em agenda, no que deveria fazer. Era justamente do que estava fugindo. Desse protocolo. Não pensar que aquele seria o dia de se entregar pra polícia por cometer o crime de existir. Entende que aquele era o dia em que o bandido se entregaria à polícia? Entende? Eu adorei dizer. E ouvir de novo. Achei que a voz não era de alguém que quer agredir. “Vou gravar por aqui pra te dizer que eu acordei pensando em ti.” Tem isso de manhã. Esse sintoma. Acorda e já vai pensando em buceta... Não, caralho. É óbvio que não é isso, porra. Você percebe? Falei caralho e falei porra. E não deu nada. Nenhum problema. A buceta é 28
algumas vozes | narrativas contemporâneas
uma palavra que é impedida de ser falada. Se eu dissesse, acordei e pensei nos teus olhos. Você entende que quem diz “Acordei e pensei nos teus olhos” está na verdade pensando em buceta? O corpo sempre nessa guerra aflita com as palavras. Talvez não fizesse nada. Um soldadinho que fica se enrolando pra se apresentar pra guerra. Fica escrevendo cartas de amor. Fica escutando canções em meio às bombas. Lembrando de formas e fragrâncias. E de vez em quando se lembra da guerra. Lembra-se de que tem que se apresentar. E começar a atirar. Pow! Fique tranquila. É apenas uma palavra. É só substituir por outra e fica tudo bem. Acordei pensando em teus olhos. No gosto que eles têm quando mastigo um e outro bem devagar. Ficando apenas a parte dura da pupila. Penso no cheiro que eles têm. Os cílios em volta. A cor da íris. O jeito que eles me olham e como eu passo minha língua dentro deles. E fico mexendo assim. Lá dentro. O sabor inusitado dos olhos e de tudo o que eles já viram. A maciez. Gosto. Acordei pensando em teu nariz. No gosto que ele tem. No cheiro. As narinas abertas sorvendo tudo. Os pelinhos dentro filtrando quando o ar entra. Gosto do jeito que elas acessam o mundo. O jeito que o teu nariz me fareja. E como eu passo a minha língua dentro dele, lá dentro. Gosto. Acordei pensando na tua boca. Gosto da tua boca. Do formato que ela tem. Teus lábios. A cor dos lábios. Gosto de encontrar minha língua na tua língua. As duas ficam se reconhecendo. Sem pensar nenhuma palavra. Os olhos fechados. Meu nariz sorvendo o cheiro da tua pele e o teu nariz levando o ar pra dentro do corpo e aspirando enquanto a gente se beija. Gosto dessa dança de rosto. Agarro tua cabeça e danço minha boca comendo tua boca. Danço meus olhos perto dos teus olhos. Danço tua au29
sência de pensamento. Danço minha ausência de pensamento. O tempo girando em torno de nós e nos mordendo como um terceiro elemento. O tempo ciumento. Gosto. Gosto da tua buceta. Do cheiro que tem. Do gosto que tem. Gosto de descer da curva da tua boca pelo teu pescoço abrindo as roupas que vestem teu corpo como um mar se abrisse a um barco. As velas soltas e as ondas subindo e descendo; minha cabeça barco deslizando pelo teu corpo mar. O rosto em brasa. As mãos vertendo flores invisíveis que se dissolvem no ar como um canto. Seus ombros delicados. As rosas dos seios abertas, eu beijo. E beijo outra vez. A ponta da língua endurece nessa conversa passeio com os teus seios. Se eu morder bem de leve esse botão o dorso todo se arca e alteiam-se vales macios. Meus cabelos se espalham. E desço. Desço mais fundo até o umbigo. Creio no mundo. Creio nas coisas do mundo. Leio teu corpo. Cada curva como um verso e desses versos estrofes inteiras nesse ritmo sem pressa. Esse credo aberto. Só tenho diante de mim a realidade. A realidade do teu corpo. A realidade do meu corpo. É isso que colho. Os cheiros do desejo pedem todos os jeitos de serem provados. Provocados. Saboreados inteiros. Posso fazer mais. Posso desafiar esse fim. Desfiar esse fim. Se existir um caminho. Uma senda. E não é exatamente de um único que se fala aqui. Mas de qualquer um. Uma qualquer. O desejo é que fala por mim. O desejo por qualquer ínfima sugestão que se apresente, que se exponha. Ainda há muito disso dentro do corpo. Não percebe? Não percebe que venho desfiando a palavra por esses dias? Desafiando o modo como a palavra cravada em algum lugar, pedra, papel, água, pétala se desmancha e esvai-se com o fluxo do tempo em torno 30
algumas vozes | narrativas contemporâneas
da cálida matéria. Como que ela chega. Como que atinge esse outro corpo disperso no mundo. Não há nisso nenhum espetáculo. Nenhum vício. Nada que ouse usurpar o território alheio. Não há exibicionismos. Nenhum tipo de quebra de um pacto já estabelecido. Persigo a palavra como o vento do outono sabe das folhas nas árvores o tempo em que elas decidirão descolar-se do galho. E é isso. Essa palavra que habita o lado de dentro do corpo, a água que corre nos veios da terra e muito depois, clara e cristalina se liberta e segue talvez até sem lembrança do tanto de escuro até atingir um descanso de luz. Palavra apenas. Nem nada.
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algumas vozes | narrativas contemporâneas
Uma história de amor B. Kucinski
1. O retrato Apoiada na amurada, Judith contempla as espumas desfazendose entre os sulcos deixados pelas hélices. A noite está escura e sem estrelas. O mar está calmo. As duas colunas de fumaça, que sobem densas das chaminés, parecem fundir-se com as nuvens baixas. Navegam faz dez dias. Mais quinze e estarão em Buenos Aires. A popa balança ao sabor do vento irregular. Judith se distrai repassando mentalmente, mais uma vez, as peças de seu parco enxoval, as duas camisolas, o vestido longo, os panos de mesa, o pequeno candelabro de prata, protegido no fundo do baú pelo edredom de penas de ganso. No saquinho junto ao seio, mantém zelosamente o endereço e o retrato do noivo a quem fora prometida. Algo na fotografia a inquieta, seriam os seus olhos, opacos? Seria o sorriso, que agora lhe parece forçado? Não sabe. Desde ontem sente-se intranquila. Desde que travou conhecimento com a passageira, da cabine vizinha à sua. Também ela viaja só. Também ela viera da Polônia e embarcara em Gênova. Chama-se Lea. É uma moça bonita, de rosto oval e cabelos loiros em trança. Simpática. É estranho, só terem se en33
contrado após tantos dias de viagem, ela disse à outra. Eu quase não saio da cabine nem vou ao refeitório porque sinto muito enjoo, a outra respondera. Trocaram algumas palavras em polonês, logo descobriram pelo sotaque que eram ambas judias e passaram ao iídiche. Então a conversa se soltou. Foi quando ela puxou fora a bolsinha de pano e mostrou à outra a fotografia e lhe falou do noivo que a espera em Buenos Aires. A outra fitou o retrato longamente e disse: É bem apessoado, e tem bom gosto, a gravata tem um riscado muito bonito. Depois se calou, pediu licença e retornou à cabine. Agora, ela repassa o encontro e tenta entender por que a outra se retirou inopinadamente. Hoje não a viu, nem à tardinha, nem na mesa do jantar. Então se lembrou de que a outra sente enjoo. Por isso não a vê às refeições. Viajam na terceira classe. A comida é servida apressadamente, em tigelas, como se estivessem num quartel. Judith fala um pouco de francês, mas os garçons são grosseiros, fazem que não entendem. Pode ser que não entendam mesmo. Pelos olhinhos miúdos e repuxados, devem ser chineses. O navio vapor é velho e chacoalha continuamente. Há sempre muitos lugares vazios na longa mesa. Judith ergue o olhar em direção à linha do horizonte. O mar imenso parece guardar segredos. Súbito a porta do passadiço se abre e uma mulher de meia idade e andar inseguro alcança apressadamente a amurada, debruça-se e vomita. Enojada, Judith retorna ao interior do navio. Volta a pensar na Lea. Será que está mal? Antes de entrar na sua cabine, bate na porta da outra. Lea, sou eu a Judith! Você está bem? Passam-se alguns segundos. Ela eleva a voz: Lea, sou eu a Judith sua vizinha de cabine, posso entrar?! Então a porta se abre e ela depara com a outra sentada na beirada do beliche soluçando.Você está 34
algumas vozes | narrativas contemporâneas
chorando? O que aconteceu? A outra lhe estende uma fotografia. Esse é meu noivo, que está me esperando em Buenos Aires, ela diz. Judith fita o retrato e empalidece. 2. O viúvo Zacarias Zacarias perscruta o horizonte, ansioso. Em dois dias aportarão em Belém do Pará. Tinha tanta pressa de chegar e agora quer que o navio perca o rumo ou sofra uma avaria e demore alguns dias mais. A rapariga esbelta, de cabelos negros e olhos azuis rutilantes não lhe sai da cabeça. Ontem, à mesa, seus olhares novamente se encontraram; depois a avistou na amurada da popa, mas quando se aproximou, todo decidido, surgiu aquela velha vomitando e a moça se retirou apressada. Zacarias não é um tímido, contudo, depois da morte da esposa, retraíra-se. Os filhos não gostariam de o ver com outra, exceto o menorzinho, o Bruno, que com cinco anos logo se acostumaria. Porém a Raquel já tem dez e Daniel, oito. Nunca aceitariam. A Raquel não esquece a mãe. Mas essa mulher de olhos azuis mexeu com ele. Como é bonita! E parece tão delicada. Senta-se à mesa como uma princesa! E com que suavidade se move! Pela primeira vez desde a morte de Halima, sente-se perturbado por uma mulher. Será que está apaixonado? Uma mulher que ele nem conhece, com quem nunca falou? De quem nem sabe o nome? Deve ser o momento, raciocina, a solidão da travessia, tão demorada, esse mar imenso, deixando tudo para trás, os tios, a irmã casada, a farmácia em Casablanca. Poderia ser outra mulher e de certo aconteceria o mesmo. Depois da faculdade em Marselha Zacarias nunca mais saiu do Marrocos. Quem iria imaginar que as arruaças chegariam a tal ponto? Quando soube que no Brasil farmacêuticos eram respeitados como se 35
fossem médicos e que poucos tinham diploma de verdade, ele se decidiu. Escolheu Belém do Pará por causa das histórias que ouvia dos avós sobre uns tios que haviam emigrado para o Amazonas muito tempo antes e enriqueceram no comércio da pimenta do reino. E também por causa da ópera. Em Belém do Pará tem ópera. Em Marselha, nos seu tempo de estudante não perdia uma montagem. Podia não ter dinheiro, mas para a ópera sempre dava um jeito. Belém do Pará era uma Paris das Américas, assim se falava, o dinheiro jorrando da produção da borracha, mais ainda do que na época da pimenta. Ah... Essa mulher de cabelos negros e olhos azuis não me sai da cabeça. Tenho que tentar. Não vou me perdoar se não tentar. O imediato já informou que sou o único passageiro da terceira classe que desembarca em Belém, então ela segue e eu vou perder a oportunidade. Deve seguir até o Rio de Janeiro ou quem sabe até Buenos Aires... Zacarias pondera. O que fazer? Não posso ofendê-la. Ela parece tão delicada! Mas o que ele tem a perder? Se for rejeitado pelo menos vai saber que tentou. E se der certo, que Deus me ouça, estudo um jeito de explicar às crianças. Vai ser difícil com a Raquel, temo que nunca aceite. Mas que coisa, nem cheguei perto da moça e já penso em como convencer os filhos. Devo estar delirando. Não devo abordá-la de modo abrupto, isso nunca. Notei que ela se dirigiu em francês a um dos garçons. Vou perguntar educadamente, parlez vous français, mademoiselle? Sim, vou dizer mademoiselle. Notei que não leva aliança. Sim, é um bom começo, um bom pretexto, afinal dois viajantes solitários que falam a mesma língua já têm algo em comum. Est-ce-que vous êtes de Maroc? Je suis de Casablanca. Claro que ela não é do Marrocos, se fosse teria embarcado em Marselha, como ele. Mas é um modo de iniciar a conversa36
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ção, e também saber um pouco sobre ela. Ele recorda vivamente que ela já estava a bordo quando ele embarcou. Observou-a na amurada do convés ao subir a rampa com as crianças, os cabelos esvoaçando, e seus olhares se encontraram por alguns segundos. Depois, no refeitório fitou seus olhos e ela baixou os dela, como que envergonhada, entretanto nos dias seguintes trocaram muitos olhares rápidos e alguns longos. Zacarias se recolhe à cabine ainda ensaiando frases. As crianças dormem. Ele deita-se, porém custa a fechar os olhos. Não para de pensar na mulher de cabelos negros e olhos azuis que fala francês. Finalmente adormece. É despertado por Raquel. Papai está na hora do café, já estamos vestidos. Esperem um pouco lá fora, ele diz. Elas saem e ele se veste para o café. No refeitório todos se mostram mais apressados que de hábito. Na manhã seguinte devem atracar em Belém. É sempre assim quando se aproximam de um porto. Ele hesita. Avista a mulher de seus pensamentos no extremo da longa mesa, de blusa banca e os cabelos amarrados para trás. Senta-se com as crianças próximo a ela, do lado oposto. Examina-a furtivamente. Evita encará-la. Súbito ela levanta os olhos e o fita demoradamente. Os olhos tão azuis parecem avermelhados, como se tivesse chorado. Ela sorri vagamente. Ele inclina a cabeça como que cumprimentando. Sont-ils votre fils? Ela pergunta. Oui, madame, ele diz. Ela corrige, mademoiselle. Pardon, ele diz. Ensaiou tanto e no momento decisivo errou. É o nervosismo, pensou. Súbito ela se ergue. Excusez moi. E se retira apressada. Seu olhar a acompanha, apreensivo, seu coração bate acelerado. Raquel tudo observa, atenta. Estende a mão, envolve o braço do pai e diz: papai por que você não se casa? Chega de ficar viúvo. 37
3. O encontro Uma borrasca na altura do Equador atrasou a chegada do Aquitânia a Belém do Pará. Atracaria só no final da manhã do dia seguinte. À boca pequena correu que houve imperícia do copiloto. Teria se deixado surpreender e manobrado mal. Zacarias não é religioso, contudo tomou a providencial tempestade como um sinal de aprovação dos céus. E a fala da Raquel o animara sobremaneira. Sim, chega de ficar viúvo. Pois não deixou tudo para trás? Então estava na hora de deixar a viuvez também para trás. Porém, na mesa do almoço não encontrou a mulher de seu anseio. Ficou aflito. No jantar, ao entrar no refeitório percebeu que ela acabara de sair. Foi encontrá-la na amurada, fitando o céu, no mesmo lugar da popa em que a vira da outra vez. A borrasca já se desfizera; o céu estava coalhado de estrelas, num espetáculo deslumbrante. O mar, antes encapelado, estava calmo. O vento também amainara. Zacarias aproximou-se e apoiou-se na amurada, a pequena distância da mulher que o atraía de modo tão irresistível. Deixou passar meio minuto, voltou-se para ela e disse: C’est une belle nuit! Oui, ela respondeu: Très belle. E assim ficaram, trocando poucas palavras, depois muitas. Ele contou a sua história, a perda da Halima, os distúrbios no Marrocos, os ataques às sinagogas, a decisão de emigrar para o Brasil; ela se mostrou reticente, disse apenas que era polonesa, vinha de uma cidadezinha muito pequena e muito pobre, para se encontrar com o noivo que a esperava em Buenos Aires. Judith era o seu nome. Ao falar no noivo sua voz se tornara quase inaudível. Súbito ela estremeceu, como se sentisse um calafrio. Ele desfezse do seu paletó e cobriu seus ombros. Suas mãos se tocaram de raspão. Então ele a atraiu para si, delicadamente como a prote38
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gê-la do vento e assim ficaram abraçados por um longo minuto. Inesperadamente ela se desvencilhou, devolveu o casaco e se retirou apressada. Antes fitou-o com olhar intenso. Nessa noite Zacarias não dormiu. Sentia ainda no seu corpo a quentura do corpo da Judith. E tentava interpretar aquele olhar, que lhe pareceu de despedida. Ou seria de súplica? No café da manhã não a encontrou no refeitório e sentiuse agoniado. Seu coração disparou. Seus olhos a procuravam em meio ao azáfama da chegada a Belém. O vapor atracaria em poucas horas. O prático já estava a bordo. Grumetes desfaziam rolos de cordoalha preparando a amarração. Embora, de toda a terceira classe apenas ele desembarcaria, os demais passageiros aproveitariam para passar o dia em terra firme, passear e comprar lembranças. O vapor atraca pouco depois do meio-dia. O molhe está coalhado de batéis a descarregar fardos e balaios. O cais fervilha de gente de todo tipo, cocheiros com suas charretes, estivadores, agentes marítimos, marinheiros, e bandos de garotos oferecendo castanhas do Pará, doces de banana e cocadas. Zacarias desce o pranchão de desembarque de coração pesado. Dois carregadores vão à frente com seus baús. As crianças seguem atrás. A cada três passos, desolado, Zacarias volta os olhos para a amurada do convés da terceira classe. Retarda a descida o mais que pode e outros passageiros o ultrapassam com passadas impacientes. Em terra, Zacarias procura se orientar em meio à multidão, enquanto Raquel, conforme ele ordenara, mantém as crianças juntinhas, perto de si. É quando Zacarias sente alguém segurando seu braço com firmeza incomum. Ele se volta. É Judith. Vous ne continuez pas dans Buenos Aires? Ele pergunta, sur39
preso. Non, j’ai changé des plans, je reste ici. E ela acrescenta: avec toi. Zacarias é tomado por intenso júbilo. E votre baggage? Je ne necessite pas. Ele quer abraçá-la, mas ela não lhe dá tempo; puxa-o rapidamente com uma das mãos e envolve as crianças com a outra, para que saiam logo do cais, como se alguém a estivesse vigiando.
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Voando para mim Bernardo Carvalho
Descobri, no meio da vida, que tinha um homônimo. Não pode haver pior descoberta no meio da vida, quando trocar de nome acarreta problemas que seriam insignificantes no começo da vida. Quando eu fazia leituras públicas, eram os livros do homônimo que estavam expostos nas vitrines das livrarias e que os leitores me pediam para autografar. Passei a dar declarações vergonhosas para ver se o homônimo, envergonhado, trocava de nome. Adotei um comportamento dos mais estranhos com a mesma finalidade. Passei a escrever livros horríveis, para denegrir sua imagem. Mas nada demovia o homônimo, que continuava a escrever seus livros horríveis, com o meu nome. Me tornei um escritor ridículo. Passei a me vestir de palhaço. E só quando, por meio de uma fotografia no jornal, entendi que o homônimo fazia o mesmo, foi que decidi tomar um avião para convencê-lo pessoalmente a deixar meu nome em paz. Não havia voos diretos para onde vivia o homônimo. Em cada aeroporto onde fiz escala, aproveitei para comprar uma lembrancinha para ele. Os aeroportos se tornaram shopping centers. É normal. É preciso dar uma utilidade às horas de espera 41
cada vez mais longas entre as chegadas e as partidas cada vez mais numerosas. Os presentes não podiam fazer mal. É uma tradição desde que os brancos estabeleceram contato com os indígenas. Ao contrário dos brancos, entretanto, eu não escondia segundas intenções; os presentes só mostravam a minha boa vontade. Eu mesmo seria capaz de usar aquelas roupas. Nas livrarias dos aeroportos, eu via os livros do homônimo e tentava me controlar para não perguntar por que não vendiam também os meus. Ter um homônimo já é humilhação suficiente. Terminei comprando um livro dele para ler no avião. Era tão mais ridículo que os meus já tão ridículos. Eu ria alto, de vergonha, enquanto os passageiros me lançavam olhares de reprovação. Eu virava as páginas com desenvoltura e ria da desenvoltura dele. Como é que tinha coragem? Como é que uma pessoa pode escrever uma coisa dessas? E ficava tão mais admirado por eu nunca ter pensado, mesmo quando quis ser mais ridículo, em escrever nada que lhe chegasse aos pés. Afinal, a aeromoça veio me pedir para rir mais baixo. Eu estava atrapalhando a leitura dos outros passageiros. Ninguém ria a bordo. Preferi não perguntar o que estavam lendo. Qual não foi a minha surpresa, quando finalmente cheguei ao meu destino e, ao desembarcar do avião, carregado de pacotes e sacolas com os presentes para o homônimo, avistei-o do outro lado da parede de vidro que separava a sala de embarque do corredor de desembarque por onde eu avançava com o resto dos passageiros do meu voo. O homônimo estava sentado, esperando para tomar o mesmo avião de volta para o lugar de onde eu vinha. Não adiantava gritar. Bati no vidro, agitei os braços, tentando chamar a atenção dele. Mas ele não me via. Estava 42
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demasiado absorto, lendo um livro que eu havia escrito. Ria e punha a mão na boca. Balançava a cabeça, incrédulo. Imaginei que, se estava sem pacotes e sem sacolas, é porque tinha deixado para comprar os meus presentes nas várias escalas que ainda teria que fazer para chegar a mim.
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Sozinho
Caetano W. Galindo
Era um dia lindo. Não havia mais o que se dizer ali. Céu azul, poucas nuvens brancas, bem brancas, que pareciam estar ali só para compor a aparência do céu. Deixar mais azul o azul. Sol claro, indo já perto de se pôr. Um dia lindo a menos. Na vida. Cinco da tarde, inverno, o sol tinha rodado mais perto do horizonte e a luz agora era a felicidade de qualquer fotógrafo, ou de qualquer um que tivesse olhos abertos e pudesse ainda ver o mundo. * Os olhos tendem a afundar nas órbitas. É parte do mesmo processo de ressecamento do cadáver, ou desidratação, que explica a retração percebida nas pontas dos dedos e no couro cabeludo, responsável pela (ilusória) noção de que cabelos e unhas continuam a crescer. Depois de morto, você está morto. Nada mais cresce. Crescem, sim, coisas em você. 45
Vermes, gases que inflam a cavidade abdominal. Hoje a arte e ciência da tanatopraxia, o cuidado com a aparência do corpo que será exibido no velório, atingiu um ponto de grande refinamento. Você... ... de verdade, eu garanto que você não sabe o quanto deve a esses técnicos. O quanto a tua memória, as imagens de velórios e enterros com que você convive pelo resto da vida seriam diferentes se você tivesse visto, em vez do que de fato viu, um corpo no estado em que eles (corpos) tendem a chegar à funerária. E não é necessário nem mesmo falar em acidentes horrendos e deformadores. Mencionar mutilações. (Apesar de que mesmo nesses casos há hoje muito que se pode fazer para garantir um velório com caixão aberto.) Até nas situações hoje em dia mais típicas, de morte hospitalar, o processo, como que o ato de morrer parece deixar marcas no corpo que resta. Marcas do caminho da vida à morte. E se mesmo nos mais pacíficos dos falecimentos, aqueles que antigamente se dizia terem ocorrido “em odor de santidade”, os primeiros fenômenos fisiológicos (como aquele ressecamento) já teriam que ser combatidos para que nós, devidamente protegidos dos dentes da morte, pudéssemos ver nossos entes queridos, amigos, de maneira menos ameaçadora naquele último momento, o que dizer dos casos, necessariamente mais numerosos, em que mesmo sem que tenha havido, digamos, atropelamento e amputação, o falecido (a falecida?) ostenta inequivocamente no rosto os estertores por que passou nos momentos finais. A falta de ar. A angústia. 46
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A congestão sanguínea. Quando o corpo tem gravado nos olhos, fechados, o que terá visto naqueles segundos finais... A esses olhos, não nos basta a proteção das pálpebras, não nos basta que estejam fechados. Precisamos nos proteger mais definitivamente deles. Para esse fim, os tanatopraxistas de hoje colocam sob as pálpebras do cadáver pequenas peças côncavas de plástico que mantêm o formato da pálpebra inalterado mesmo que o globo recue e mingue. Mesmo que dentro dos olhos nos sumam os olhos da cara. Essas capinhas têm também pequenas ranhuras que se agarram à face interna das pálpebras e assim as mantêm fechadas, como que à força, evitando outro tipo de “acidente” extremamente desagradável durante a vigília em torno do cadáver. Mesmo que seja esse o teu desejo, não vale a pena tentar usar o dedo para abrir aquele olho e enxergá-lo de novo, uma vez mais. Ele está preso. Morto duas vezes. O volume que você percebe por trás da pele, ali no caixão, não apenas é incapaz de te enxergar. Antes ainda de ser comido pela terra, aquilo nem é mais um olho. * Naquele dia lindo, por ser já fim de tarde, começava a algazarra de passarinhos que se recolhiam. Imensa sensação de paz. Brisa leve. De algum lugar, provavelmente só da memória de algum dos presentes, vinha uma canção alemã do século anterior, que falava justamente de um dia como esses, de uma sensação de tranquilidade como essa. 47
Descanso em meio à grama verdejante E longamente lanço ao alto o olhar, Cercado pelo som sem fim dos grilos, Envolto inteiro pelo azul do céu. As lindas nuvens brancas vogam vagas No azul profundo, como sonhos mudos; Parece que faz tempo que estou morto, Feliz navego pelo espaço eterno. Difícil acreditar na presença da canção naquele momento. Muito pouco provável. Mas parece adequado. Parecia. Pareceu a alguém. * É extremamente importante, para o conforto de familiares e amigos, que o rosto todo do falecido pareça denotar essa mesma paz. Acredite você na vida após a morte, ou não, o fato é que simplesmente não basta apagar as marcas do eventual sofrimento pelo qual a pessoa teria passado in articulo mortis, ou mesmo nos dias, semanas ou meses que a levaram até seu último segundo. A ausência de sofrimento naquele rosto é somente um primeiro passo. E se apenas por ter evitado que você contemplasse a lembrança dessas dores você já teria muito que agradecer ao funcionário anônimo que no meio da madrugada passou horas manuseando o corpo que agora você contempla, ainda mais motivos de agradecimento ele lhe dá ao fornecer àquele 48
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rosto uma expressão de… como dizer… não apenas de paz, mas quase de satisfação. É isso. Como se a pessoa estivesse bem. Feliz, quase. Essa expressão é obtida graças a um trabalho de massagem e manipulação do rosto que combate os primeiros sinais do enrijecimento dos tecidos musculares devido inicialmente ao corte do suprimento constante de íons de cálcio, que tende a se manifestar cerca de três horas depois da morte, normalmente muito antes da chegada do cadáver à funerária, portanto. Essa massagem também busca ativamente desenhar naquele rosto a expressão mais neutra, estática e reconfortante possível. Criar a paz. A isso se segue um trabalho de maquiagem delicado e importantíssimo (para homens e mulheres). Afinal, entre o que os antigos consideravam como sinais clássicos da morte estavam não apenas a rigidez cadavérica, mas também a palidez e frio, o que se chamava de livor e de algor mortis. Pois a perda do tom mais “vivo” da pele, que tende a se fazer manifesta graças ao corte da circulação sanguínea já na primeira hora após o falecimento, é apenas a primeira mostra da cessação das funções orgânicas que mantinham o organismo como uma máquina térmica funcional: o corpo morto tende a esfriar cerca de um grau por hora, e normalmente já está frio ao toque (de quem ousar tocá-lo) quando deixa o hospital. * Num canto da capela, escondida dos raios do sol que, inclinados, parecem querer tocar até mesmo a parede oposta à 49
porta, uma mulher sem absolutamente nenhuma expressão, marca nenhuma de um sentimento definitivo no rosto, tem grudada ao peito uma criança que parece quase grande demais para ainda estar sendo amamentada, e que na verdade, se você olhar melhor, dorme profundamente no colo da mulher de preto, que não olha nem para o caixão nem para o sol. A mulher parece apenas morder os lábios. Segurar entre os dentes os dois lábios tensos. * Um velório, além de servir como ritual que permite que as pessoas que se sentiram mais diretamente tocadas por aquela morte tenham uma chance última de ver a pessoa falecida e, mais do que tudo, de encontrar umas às outras e encontrar umas nas outras a empatia, a similaridade de sentimentos e o apoio de que precisam para poder lidar com aquilo... ...um velório serve também, e em certo sentido principalmente, como forma legal de se estabelecer a morte. Não é apenas para os suicidas de facto, afinal, que a morte pode parecer uma saída para o que reste de irresolvível na vida. No caso elementar de uma pessoa pesadamente endividada, por exemplo, que ao morrer deixa repentinamente todos os credores na mão, é claro que não poucas vezes poderia surgir alguma dúvida quanto a ser real ou forjada aquela morte. Poderia aparecer a suspeita de que alguém encenou seu próprio falecimento, com o auxílio de médicos, funerárias, ou não, apenas como forma de começar de novo, em outro lugar, com outra identidade. 50
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Vida, sim, após a morte. Ao se expor o corpo de maneira pública, aberta, durante um período pré-determinado, gerava-se como que a oportunidade de “ver para crer”. Estabelecia-se consuetudinária e juridicamente a morte do falecido. Agora morto também aos olhos do mundo. Morto após a morte. Sem sombra de dúvida. Na infância de Ermelino, toda ela cercada por histórias grotescas de pessoas que acordaram dentro do caixão, toda ela assombrada pela mera palavra catalepsia e pela ideia tão violentamente repulsiva de despertar preso no túmulo, tão profundamente violenta que na verdade era quase que a sombra de uma ideia que no fundo ele evitava contemplar... ...na infância de Ermelino sempre lhe pareceu que no fundo, e na impossibilidade de se retomar o que lhe parecia o costume muito mais louvável e seguro (e que na sua infância de alguma maneira parecia ter sido algo realmente existente como que uma geração antes) de se enfiar de alguma maneira uma estaca no coração do morto, sempre lhe pareceu que o velório era apenas uma forma de ficarmos todos de mãos dadas, torcendo (ou não) para que o cadáver acordasse (ou não). Acordasse ainda antes de se ver sozinho, numa caixa escura e sem ar. Para sempre. * Depois de acertar os traços e aquietar a expressão (e não antes, como poderia parecer… racional?), o tanatopraxista 51
abre com cuidado a boca do cadáver e, com um aparelho que se assemelha a uma seringa, ou na verdade mais a uma pistola de agulhas, passa um cabo através suas gengivas, por entre as raízes dos incisivos. Essa agulha acaba costurando, pregando, dessa maneira, a mandíbula inferior à superior (por vezes o técnico pode escolher também passar o cabo pelo septo nasal). A ideia, claro, é evitar que a boca se abra ou que a maxila inferior se desloque para o lado, conforme a posição do corpo no caixão tanto durante a exposição quanto durante o transporte. Além disso, uma boca firmemente selada garante (junto com o fato de que o nariz, o reto e, no caso das mulheres, a vagina, são bloqueados com algodão) que odores e fluidos internos não acabem escapando do corpo ainda durante o velório. * Ermelino estava morto havia nove horas quando o velório foi aberto. Naquele dia lindo, 5 de julho. * Hoje, a ideia de um cadáver simplesmente se pondo de pé durante o velório pode parecer muito mais adequada à comédia do que a qualquer expectativa (infantil?) mais trágica. A bem da verdade, além do mero fato de serem absolutamente exageradas as histórias populares em torno da catalepsia e das pessoas cujos caixões, ao serem reabertos (e por que teriam sido reabertos?), ostentavam desesperadas marcas de unhas, esses mesmos processos tanatopráxicos basicamente garantem a impossibilida52
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de de uma pessoa “despertar” durante o velório. O que dizer então da possibilidade de ela ser de fato “enterrada viva”? É bem verdade que a morte é um estado em certo sentido liminar. Pode-se, medicamente, estar “mais ou menos” morto. Sabe-se que quando o coração para de bater, na ausência de estimulação externa, a circulação sanguínea se interrompe imediatamente e, com ela, cessa o aporte de oxigênio a todas as células do corpo, que, das mais frágeis às mais robustas, numa ordem mais ou menos conhecida, morrem com uma velocidade também conhecida. Mas sabe-se também que certos medicamentos (como a atrofina, possível responsável pela “morte aparente” do queniano Paul Mutora, que acordou dentro de um saco na morgue, quinze horas depois de ter sido declarado morto por envenenamento em 2014) podem alterar esses processos e essas velocidades. E sabe-se que, paradoxalmente, a diminuição da temperatura corporal (aquele algor mortis), potencializada ainda pelo resfriamento forçado nas morgues, pode também aumentar a resistência celular à morte e à decomposição, numa espécie de congelamento do corpo, em tudo e por tudo similar ao que garante por vezes a sobrevida de esquiadores soterrados por avalanches (talvez a versão branca do pesadelo cataléptico). Acima de tudo sabe-se que o corpo humano é estranho, e que improbabilidades continuam longe de significar impossibilidades. Mas a chance de que alguém falsamente dado por morto sobreviva ao processo tanatopráxico atual é ainda menor do que a de alguém sobreviver aos “testes” a que por vezes eram submetidos os cadáveres durante o século dezenove. Em que se compara, afinal, ter agulhas enfiadas sob as unhas ao fato de se ter o 53
umbigo perfurado pela agulha de cinquenta centímetros de um aspirador a vácuo que suga todo o conteúdo dos intestinos num movimento circular de varredura? E o que dizer da troca do sangue do cadáver por um fluido de embalsamamento? A tanatopraxia moderna, em sua necessidade de dar ao corpo morto o máximo possível da aparência de uma pessoa viva em repouso, e em sua obsessão por garantir que acidentes (vazamentos) não ocorram antes da hora, como que sublinhando a organicidade do processo [...] em sua busca algo quimérica (conquanto bem sucedida) por eliminar a aparência da morte, ela acaba na verdade sendo a maior garantia da morte. Todo o processo de “embelezamento” e “higienização” do cadáver acaba no fundo matando qualquer chance de vida.1 * Edgar Alan Poe pode ter sido responsável por muito do folclore em torno da catalepsia e da ideia do enterrado vivo. O próprio Poe, que acabaria morrendo de maneira talvez mais trágica, e não menos misteriosa, passou toda sua vida com medo dessa possibilidade. Ermelino não conhecia os contos de Poe. Ermelino também não leu nem em versões adaptadas (adulteradas?) os contos infantis de Hans Christian Andersen. Nunca soube das instabilidades e fobias do autor daquelas histórias, que ia dormir toda noite tendo ao seu lado, no criado 1 FELDEINSAMKEIT, apud FISCHER-DIESKAU, 2012, p. 63 (tradução minha) 54
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-mudo, um bilhete que dizia: Jeg kun sover; ikke begrave mig. Estou apenas dormindo; não me enterrem. * No velório de Ermelino, que morreu num hospital, da maneira mais próxima a do “odor de santidade” que em vida teria ousado imaginar, havia não muitas pessoas, não tanta tristeza, nenhuma angústia. Sua morte próxima era tida como certa por quase todos, depois de anos de uma saúde progressivamente mais frágil. Ermelino parecia progressivamente mais morto a cada ano vivo. Se seu medo de ser dado por morto antes da hora continuava ali: mal podia ele saber que, de certa forma, era exatamente isso que, aos olhos dos outros, estava acontecendo com ele há pelo menos cinco anos. O velório de Ermelino, cuja morte se deu à noite, cobriu de luto, para poucos, uma parte não tão grande de um dia de um sol esplendoroso… * Hoje, a ciência tem meios razoavelmente confiáveis de descrever o que acontece após a morte. Não, claro, num sentido religioso, ou de qualquer maneira místico. Ela, para isso, continua respondendo: nada. Mas quanto aos segundos que se seguem imediatamente à parada da circulação sanguínea, sim, há o que se saber. Há como saber o que acontece com uma pessoa enquanto ela 55
morre. Enquanto deixa de ser e laboriosamente se encaminha para ser aquele nada. * O medo de ter sido enterrado vivo foi a maior e mais clara sensação de Ermelino no momento em que acordou, minutos antes de morrer, com uma sensação de que algo tinha chegado. Foi esse mesmo medo que o levou, no hospital, gélido, imóvel e suando, a tentativamente chamar Lucília, antes mesmo de tentar dobrar um braço que já receava que fosse roçar na madeira da tampa do caixão. O medo só passou porque Lucília veio do banheiro e logo depois já mandava buscarem a irmã, que infelizmente não conseguiu chegar a tempo. Quando Ermelino abriu os olhos (naquele momento) estava tudo escuro (ela acendeu a luz ao sair do banheiro. Sozinho (não: ela saiu do banheiro e acendeu a luz ao vir a ele). Ermelino ficou até surpreso por perceber que aquele medo de morrer em vida, ou de reviver na morte, continuava ali com ele; quando acordou e se viu sozinho, ou achou que estava sozinho no hospital (que não entendeu que fosse o hospital) seu pânico não era o de ter percebido a iminência da morte, como depois seria narrado por anos a fio pelas filhas (ou ao menos por Lucília, diante sempre de um silêncio pétreo da irmã): seu horror vinha de achar que já tinha morrido, ou que tinham achado que ele já tinha morrido: menos do que se julgar perdendo a vida, o que o deixou lívido foi o medo de estar recobrando a vida, dentro do caixão... 56
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Quando Lucília, vindo do banheiro, segurou a mão que ele não ousava tentar erguer, quando ele percebeu que estava vivo entre os vivos, Ermelino quase quis rir de seu medo de criança. Foi tomado de uma imensa leveza. Estar prestes a morrer era muito melhor do que já ter morrido sem saber. Para Ermelino, a morte em vida, a morte da vida durou aqueles minutos finais. Não os anos que viram os outros. Mas, numa intensificação progressiva, aqueles minutos finais entre acordar desesperado, chamar no silêncio, temer a vida, a morte e o abandono e ser atendido, querer estender a mão no escuro e, pouco tempo depois (mas quase demais para ele), sentir a mão fresca da filha. Entre acordar e dormir. Entre sair do escuro e apagar. * Primeiro partes da rede neural começam a desligar por falta de oxigênio. Algumas regiões do cérebro podem funcionar de maneira descontrolada, numa espécie de espasmo de ação, graças ao fato de que outras, cuja responsabilidade era inclusive inibir esse funcionamento excessivo, desligaram antes delas. Outras regiões, e logo depois o cérebro todo, tendem a passar rapidamente por um estado de choque, de suspensão, e a entrar num modo de funcionamento muito parecido com o da euforia, na medida em que o corpo libera todas as enzimas e íons possíveis numa espécie de tentativa de reiniciar “no tranco” o funcionamento encefálico. Os pontos do encéfalo em que surgem esses “lampejos” 57
são aleatórios, mas na medida em que acionam áreas específicas e na medida em que o que resta de funcionamento nas funções neurais superiores tenta dar algum sentido ao que está acontecendo e busca alguma coerência naqueles dados disparatados (mais ou menos como num sonho, onde tentamos impor uma narrativa às imagens algo desprovidas de sentido que o cérebro nos oferece), lembranças, visões podem disparar de maneira muito vívida diante daqueles olhos já apagados. Não raro, e não necessariamente para diminuir o sofrimento (esse é apenas um efeito colateral), mas para tentar fornecer ao organismo moribundo alguma energia e lucidez para tentar, mais uma vez, um esforço final para sobreviver, em caso de ferimentos ou traumas graves, por exemplo, descargas de hormônios como a endorfina dão início a essas quase alucinações ainda antes da morte, já nos momentos que antecedem a parada cardíaca definitiva. Quando a pessoa, em seus momentos finais, aparenta felicidade, parece rever pessoas do seu passado, ela no fundo está sob influência de algo não quimicamente diferente dos opiáceos. Está drogada. A endorfina, afinal, foi batizada como versão endógena da morfina. Quando a pessoa, em seus momentos finais, logo antes e (invisivelmente, para nós) também logo depois de cessarem seus batimentos cardíacos, aparenta felicidade, é apenas, pura e simplesmente, porque seu corpo percebe que chegou ao fim. * Os segundos finais da vida de Ermelino foram, num certo sentido, os únicos momentos em que ele deixou de ter 58
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medo de ser enterrado vivo. Ali, na cama onde estava havia dias no hospital, cercado pelas filhas e por todo um imenso cortejo de parentes e de amigos que não via havia anos, depois do pasmo de ter despertado como que ciente da vida recuperada na morte, depois do choque de ter despertado no que lhe parecia uma caixa minúscula, escura e solitária, ali ele foi feliz. Estava apenas vivo, e estava apenas morrendo. Sem horror. * O último sentido, consciente, a desligar será a audição. Na medida em que, em termos de QI, vamos retrocedendo a estados cada vez mais primais, menos primatas e mais “reptilianos”, nossa visão por fim também desaparece depois de perdermos o olfato, as sensações táteis, o paladar e mesmo a propriocepção, a nossa percepção da posição relativa do corpo no ambiente, a nossa noção de sermos um corpo. Nossa última imagem do mundo será um som. Tomara que uma voz...? * Arminda sim, ela viu o pai na pequena morgue do hospital, antes de ele ser encaminhado para a funerária para quaisquer serviços tanatopráxicos que pudessem lhe ser dispensados. Porque Ermelino morreu em 1933, naquele dia de sol exuberante. Cem anos depois de nascer o autor da canção que estava ou não estava soando em seu velório. Ermelino morreu num tempo em que em vez de um 59
cabo cirúrgico por dentro das gengivas, o que cerrava a boca dos defuntos nos velórios era uma faixa de tecido branco amarrada do queixo ao alto da cabeça. Ermelino morreu, e morreu em paz, esquecido dos medos de toda uma vida no meio de uma enxurrada de íons e moléculas complexas, muito antes da tanatopraxia moderna e de suas garantias de morte. Mesmo assim a visão que tiveram as pessoas no seu velório foi completamente diferente do que viu Arminda ali na morgue improvisada da Santa Casa. Ela nunca ia poder esquecer. Por que é que decidiu entrar ali? Foi no fundo o mesmo instinto que leva os outros a irem ao velório. Ver o pai (no caso dela) uma vez mais. Não se conformar com sua ida. Com sua prospectiva (e já presente) ausência. Mas não queria ter visto. Queria ter não visto. Não queria ter passado os minutos que passou ao sair daquela morgue, certa de que estava prestes a perder o juízo, pela primeira vez na vida. Desesperada no sentido mais pleno do termo. Depois de ter passado talvez menos de três minutos na pequena morgue do hospital, onde duas das três macas estavam ocupadas: uma por um corpo gordo coberto por um lençol branco, outra pelo magro cadáver do pai, cujo rosto tinha ficado à mostra depois que ela comunicou às enfermeiras que queria vê-lo. O rosto magro do cadáver do pai. Nariz proeminente, pele que de indiada, como se dizia naquele tempo, agora parecia verde, cinza... boca revirada para baixo, ressecada, com marcas de saliva seca nas comissuras labiais, olhos quase fechados, cílios que se projetam como pequenos seres vivos que quisessem fugir dali. E a expressão. 60
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A sensação imediata do frio naquela pele. Da morte daquele rosto que, depois desses talvez três minutos que lhe pareceram meia hora, ela finalmente se convenceu (o que lhe parecia como que necessário, para dar algum sentido àquela experiência de que se arrependeu imediatamente) a tocar com dois dedos, na altura da testa. Mas não a beijar. Seu pai morto de verdade. ... Arminda ficou chocada, e mais do que a palavra “agradecida” pode comunicar, ao ver de novo o pai já no velório. Ao pensar que seria esta, e não aquela, a imagem que os outros guardariam dele. Não o medo. * O dia se manteve lindo da abertura do velório ao fim da tarde. As nuvens surgiram pelo meio da manhã e só aumentaram a beleza do azul. A sensação de paz, de harmonia… A brisa leve chegou depois das duas, um frescor, certa umidade que parecia, se você quisesse pensar assim, prenunciar que a noite seria fria, feia, seria ruim. Mas durante a tarde toda aquela canção continuava soando apesar de não soar em lugar algum. Continuava como que no ar inclusive no momento em que o coveiro, sozinho, já sob um céu que mostrava os primeiros sinais do anoitecer, terminava de lacrar com tijolos a gaveta do jazigo da família Flores, que teve a bondade de ceder 61
aquele espaço para Ermelino, que não tinha túmulo. A gaveta podia ser liberada. A tia Mindinha, enterrada ali em 1911... ...o que restava do corpo da tia Mindinha foi removido do caixão já semidecomposto ele também e transferido para um saco preto, que então foi enfiado no fundo daquela caixa de tijolos, abrindo espaço para outro caixão. O coveiro, aquele mesmo que agora fechava a entrada com tijolos, cuidou de tudo, só pediu que uma pessoa da família testemunhasse que o procedimento se dava todo dentro do maior respeito e da maior consideração. * Arminda, que estava lá quando abriram o túmulo mas não estava presente nos últimos minutos, nunca pôde deixar de pensar no dia em que o pai morreu de verdade. Porque quando Ermelino abriu os olhos estava tudo escuro. Sozinho.
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Zulu
Cíntia Moscovich
Para Abner de Irrawady of Chatquirit Foi a vizinha da casa ao lado de nosso prédio, Dona Alcione, que me veio, pelo final da manhã, com a novidade. Trouxe -a com o gosto antigo de quem sabe amar coisa nascida de outra. Ao abrir a porta, percebi que o rosto gordo e lustroso tinha a expressão afobada, os olhos aguados de expectativa. Junto ao peito, entre os braços fofos, trazia alguma coisa envolta numa toalha. Ela disse olha aqui o que me deixaram em casa. Desembrulhou lentamente a trouxinha, e de dentro dela emergiu. Um gatinho. Os imensos olhos amarelos lhe tomavam toda a cara, contrastando com a cor negra do pelo; a boca era só um furo na cabeça triangular. As orelhas moviam-se, curiosas. Eu, diante da cena, constrangida, não sabia bem o que fazer: protegia-me atrás da folha da porta, como se me defrontasse com grossa ameaça. Não tinha palavra que coubesse naquela situação. Lá de dentro, da sala, veio a pergunta xereta de Anabel: que é, mãe? Como não lhe respondesse, passou por mim, forçou a 63
porta para abri-la mais um pouco e olhou a vizinha. Claro, logo percebeu que Dona Alcione não estava só e, pondo-se na ponta dos pés, pediu deixa ver. A outra, com sabedoria aliciante, abaixou os braços. Os dois serezinhos se olharam. Tive exata ciência de que a graça do gato pegou minha filha em flagrante, e vice-versa, crianças e bichos têm disso. Anabel estendeu as mãos, queria pegá-lo. Mas Dona Alcione, ciosa de seu papel, observou que talvez fosse melhor colocar a criaturinha no chão. Às vezes, a bondade me deixa ríspida e severa; às vezes, como naquele momento, me intimida a ponto de provocar um mutismo involuntário. Eu, mesmo sem querer, mesmo sem concordar, mesmo que intimamente me faltasse a habilidade de ser boa naquela hora, aquiescia no meu silêncio. O filhote foi posto sobre o tapete da sala de estar. Era uma coisa trêmula de passos incertos e periclitantes. Dona Alcione suspirou, jogando a toalha por cima do ombro: — Coitadinho. Não deve ter nem dois meses e já foi enjeitado. As palavras, pronunciadas daquela forma de tamanho pesar, me desmancharam. Eu já tinha dado à minha filha peixes, tartarugas e até um coelho de grandes olhos vermelhos e de pelo alvo feito algodão de farmácia. Mas, pouco tempo viveram os animais sob os cuidados de Anabel: o peixe não resistiu a um banho com sabonete, a tartaruga não sobreviveu a uma viagem à praia, e o coelho conseguiu a proeza de cair do parapeito da nossa janela, sétimo andar — fato que me fez, alarmada, instalar redes de proteção. Nunca me havia ocorrido a ideia de um gato ou um cachorro, criaturas que se parecem demais com os humanos. Minha filha acocorou-se, sentando sobre os calcanha64
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res, e percorreu de leve o corpo peludo com a ponta dos dedos. O gato estremeceu, alongou as quatro patinhas, roçando o dorso de um negror ruço contra as pernas de Anabel. Pronto, o desastre estava feito. Contra todas minhas precauções anteriores, ela viera ao mundo não para cuidar de peixes, tartarugas ou coelhos albinos: viera ao mundo para ser a protetora da natureza aprisionada daquele gato. Por isso, e só por isso, emudeci em resignação quando me indagou se eu deixava que ele morasse conosco. Quando me voltou o tino, como a pergunta se repetisse, ela já puxando a barra de meu vestido — deixa, mãe? deixa? —, respondi que estava bem, poderíamos tentar. Alertei, antes que me tomasse por alguém que se dobra facilmente, que nem todas as tentativas davam certo. Dona Alcione lembrou que tinha de ir-se, acabar a arrumação da casa e fazer compras no mercado. Como não havia volta atrás, como me parecesse mais do que injusto romper a corrente de faceirice de minha filha, abri a porta para a vizinha. Não sabia se era momento de agradecer ou de enchê-la de impropérios. Antes de tomar o elevador, palpitou que era um macho. Certeza, certeza mesmo, ela só tinha uma: — Está cheio de pulgas. Pulgas. Então, de repente, assim de uma hora para outra, eu tinha sobre o tapete da sala de estar um bicho sugado por parasitas. Só então, mas daí já era tarde demais, pensei no que diria meu marido, quando chegasse para a janta, ao ver o novo morador da casa. Mas sempre havia a esperança de que ele compreendesse que o gato e Anabel se pertenciam, os vínculos inegáveis a que devem ceder pai e mãe. Olhei para o bichano, que ainda caminhava, incerto, sobre as flores do tapete. Anabel foi 65
impiedosa: e agora o que é que a gente faz, mãe? E como eu deveria saber? O olhar de minha filha aguardava com esperança o meu primeiro gesto de amor eficaz: eu era a mãe, a mim tocava amar e criar. Não sem certo receio, aproximei-me. Ele ergueu a cabeça. Miou. Ah, a dor do miado de um filhotinho. Depressa, soube que tinha de alimentá-lo, tirar-lhe as pulgas — como? —, vaciná -lo, arranjar uma caminha e um lugar para que fizesse xixi e cocô. Com todo o cuidado, com extrema delicadeza, fiz o que minha filha esperava que eu fizesse: peguei o filhote entre os braços. Era uma coisinha de corpo morno e de pelos ásperos, levíssima, bem mais leve do que se poderia supor e que se acomodava à feição de meus contornos com uma ternura de olhos lentos, como se olhos pudessem suspirar de prazer. Levei-o até a cozinha e coloquei-o no chão de ladrilhos. Custou a equilibrarse sobre o piso frio, mas quando lhe alcancei o pires com leite, atirou-se feito um fidalgo à comida. Lambia o leite dentro do prazer a que tinha direito: havia pago de antemão com o sofrimento da espera. Nós duas assistíamos àquele repasto sofrido. O leite era amor entre estranhos. Um pouco antes de sentar-se à mesa do almoço, minha filha perguntou se podia chamar o bichano de Zulu. Por quê?, indaguei. Minha filha, mãos na cintura, quase brava por eu não ter reparado na obviedade, explicou: — Porque ele é todo preto. Concordei, numa interjeição em que assumia minha mais profunda burrice. Durante a tarde, seguiu-se uma romaria: veterinária perto de casa, minucioso exame — sim, era um macho —, remé66
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dio contra pulgas, vermífugos, vacinas, ração. A conta me pareceu extraordinária para um bichinho tão pequeno e de origem tão obscura. E eu, ainda por cima de tudo, teria de justificar mais essa despesa. À tardinha, quando meu marido chegou em casa, os alicerces do edifício tremeram: mas como eu tinha cometido uma irresponsabilidade daquelas? E passou a enumerar pestes, doenças, fungos, vírus, bactérias, sujeiras e imundícies aterradoras. Anabel tranquilizou-o, sentando-se em seu colo: não se preocupasse, o gato estava limpinho, vacinado, ela iria cuidar bem dele, que se chamava Zulu, porque era preto. Acho que meu marido teve a mesma sensação que eu tive. Nada podia ser feito, o destino dos dois estava selado. Não fosse pelo muito sincero entusiasmo de Anabel, ele já teria encerrado por ali mesmo o sentimento e seu desconforto. Considerei-o à nocaute quando se interessou pelo gatinho, afinal bicho movendo-se por si próprio desperta a suavíssima curiosidade. Quando voltei da cozinha para colocar a janta na mesa, deparei com a cena: Anabel no colo de meu marido, e, no colo de Anabel, Zulu. Pareciam felizes. À noite, o bichano deveria dormir na área de serviço, numa cesta que antes acomodava frutas. Apaguei as luzes, fechei a porta, fui até o quarto de minha filha e dei-lhe um beijo de boanoite. Anabel tentou a barganha, queria que o gatinho dormisse com ela. Respondi que não, nem pensar em tal coisa. No entanto, atendendo sabem os anjos a qual apelo, voltei à área de serviço e deixei a porta entreaberta. Zulu amanheceu enrodilhado aos pés da cama de minha pequena. O gatinho, pelas nossas contas, já ia para oito meses de 67
vida. Crescera, tornara-se corpulento e musculoso, um ser ronronante, cheio de substância e de viçosa altivez. Era um gato feliz, não só porque Anabel o amava: sua felicidade vinha da graça de saber-se gato. Os dias, passava-os languidamente dormitando no sofá da sala, o corpo tremendo ao sabor de algum sonho mais agitado. Os olhos ganharam uma tonalidade dourada e translúcida e tinham o vagar de quem dispõe de todo o tempo e paciência do mundo. Comia em seu prato, ao lado do fogão, em beliscadas ocasionais. Aprendeu, sem custo, a usar a caixinha com areia que eu colocara na área de serviço, e a maior diversão de Anabel era o espetáculo de ver Zulu fazendo xixi. De fato, parecia nobre mesmo em suas necessidades mais primárias. Lá, num sábado de manhã, Anabel entrou esbaforida na cozinha: — Mãe, Zulu está doente. Eu bem reparara que ele andava miando mais do que de hábito, mas creditei o fato às muitas denguices do bichano. Disparei para a sala, secando as mãos no avental, e vi que Zulu rolava no chão, contorcendo-se muito. De imediato, envolvi-o em uma toalha e corri à veterinária. A médica não precisou examiná-lo muito para chegar a um diagnóstico. Antes de nos esclarecer qualquer coisa, falou que estava mais habituada a tratar cachorros, gatos eram raros em seu consultório, equívocos acontecem a torto e a direito. Anabel estava quase às lágrimas e ouvia tudo sem entender nada. Eu tampouco. Pedi para ela me dizer que doença tinha Zulu. A veterinária, coradíssima, afirmou que nosso mimoso não estava doente. O que ele tem?, quase gritei. Ela abaixou a cabeça, a voz saiu-lhe débil: 68
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— Zulu é uma fêmea. — Ato contínuo, corando mais ainda, coisa que parecia impossível, disparou o tiro de misericórdia: — E está no cio. A vida se duplica e se encadeia, isso queríamos ensinar para Anabel quando decidimos o que fazer. Antes, claro, conversamos com a veterinária, que nos auxiliou no mínimo necessário. Zilá passa bem, é mãe extremada e amorosa, lindo de vê-la amamentando. Anabel gasta horas a fio observando os sete nenês, rosto entre as mãos, enternecida com aqueles serezinhos que ela viu nascer em seu próprio quarto. Também já flagrei meu marido, sentado no chão, apreciando a magnífica cena, fazendo de conta que ralha com os mais apressadinhos que pisam nos irmãos para conseguir a teta mais gorda. Cheguei a pensar que, quando os filhotes completassem dois meses, iria de visita a Dona Alcione, ela sempre soube o que fazer nesses casos. Descartei a possibilidade maldosa: na verdade, toda a família continuará mais tempo por aqui. Tenho aprendido muito com Anabel. Como, por exemplo, o instinto dócil e novo de amar coisa nascida de outra.
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Um dia ruim Cristovão Tezza
Um dia ruim desde o começo, ela diria depois ao refazê-lo passo a passo ao policial gentil. Começou com uma falsa boa notícia — alguém lhe deixou na portaria uma dissertação de mestrado para ser revisada, e que ela desse um preço pelo serviço. Uma obra de engenharia, o texto e a correção, Beatriz diria azeda ao relembrar — tudo sobre concreto armado, e as frases eram vigas tortas e intermináveis. Para aproveitar o dia, tomou do lápis e começou a reescrever tudo, quebrando sentenças a golpes de pontos e vírgulas, colocando sujeitos onde não havia, ligando verbos a substantivos, plurais a plurais — ainda bem, lembrou, que aquilo estava impresso em espaço dois, com uma boa faixa de escape, a letra firme e redonda se espiralando miúda em colchetes aqui e ali, encaixes acolá, uma troca de adjetivo, uma concordância adiante, um adendo à margem. Já estava na página 27 quando ergueu o telefone para ouvir a voz do dono, um engenheiro apressado que foi direto ao assunto: Quanto custa? Ela deu o preço, o dobro que o normal, mas o texto exigia, frase a frase — o que talvez o engenheiro não percebesse é que ao fim de tudo ele seria Mestre, autor de um belo trabalho de cálculo sobre pedras, vergalhões, 71
cimento e areia, mais a contrapartida do solo, tudo de modo que seres humanos letrados conseguiriam ler, mas Beatriz ficou inibida, como sempre, para proclamar as próprias qualidades, que afinal ele já devia saber pelos outros ou não teria deixado aquilo com ela. Não, é muito caro. Talvez sentindo que estava sendo rude, um homem tenso esmagado pela pós-graduação, de saco cheio do orientador e em pânico diante da banca que se aproximava, ele refez a frase: Eu não posso pagar esse preço, uma frase subitamente engraçada, como um filme dublado. Mas não quis conversa, aliás nem ela — eu passo aí e pego de volta na portaria. — Tudo bem — e ela bateu o fone. As pessoas mal-amadas vão se tornando irremediavelmente mesquinhas, Beatriz pensou, rancorosa, entregando-se com algum prazer ao preconceito, sujeitinho pão-duro, idiota, o filho da mãe é engenheiro, essa revisão não tem preço; e restava-lhe agora um problema ético: já havia corrigido por conta própria 27 páginas — não podia cobrar, porque o bilhete do homem deixava claro que ligaria antes para saber do orçamento. Devolver com a parte corrigida para aquele jegue ver o que perdeu? Sentir a diferença entre um texto estropiado e um texto bem escrito, nítido, conciso, luminoso? Ou apagar tudo com a borracha, para que aquilo voltasse ao seu lugar no mundo, a escuridão intocada do texto ruim e de seus sentidos secretos e inescrutáveis, lá no fundo da caverna do que ele quis dizer? — ela escreveu mentalmente, vingativa, gostando da imagem. Chegou a pegar a borracha, mas desistiu, cristã — ele que ficasse com as 27 páginas corrigidas, e as duas horas e meia, de graça, e mais a graça de se ver melhor no próprio texto. Um tapa de luvas. Mas isso foi só o começo, como o senhor sabe, e o policial sorriu. Mal saiu do banho, outro telefonema, este promissor. Um 72
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velho senhor de sotaque carregado (polaco? alemão? holandês?) praticamente a convocava a revisar sua obra — A senhora tenha a certeza de que eu preciso muito!, insistia o homem, arrastando os erres, dramático. Ao fundo, dava para ouvir um cachorro latindo, e ela teve um mau pressentimento, a que não deu atenção, ainda o resíduo do engenheiro na cabeça. O homem respirava mal, ela percebeu, talvez asmático. É um trabalho de sociologia, história — aqui ele acrescentou algo como “etnografia”, “etografia”, não deu para entender — e antropologia. Um sábio, ela pensou, um velho sábio perdido em Curitiba com uma obra monumental que só precisa de uns retoques, como o homem disse, repetindo três vezes, uns retoques, eu não domino bem o vernáculo, ele dizia, e ela matutou se ele saberia exatamente o sentido dessa palavra, no caso de ele ser estrangeiro, mas talvez não — quem sabe filho de estrangeiros. Eu moro longe, mas eu pago o táxi para a senhora. Não estou bom de saúde. Eu pago tudo. Só preciso de uma boa leitura, e o quanto antes. A senhora está livre hoje? Eu pago o táxi, o homem repetia, era um cidadão agitado, doente mas correto, ela avaliou, vou lá antes que ele morra, e ela riu sozinha desligando o telefone e tentando entender o caminho da roça, verdadeiramente o caminho da roça que ela foi anotando, Sabe Almirante Tamandaré?, e assim ela teria de pegar a Mateus Leme e daí em diante havia uma sequência difícil de referências — o motorista de táxi conhece, não é complicado — tudo terminando no beco da Torta, na verdade uma estradinha de terra, passa um haras, não é bem um haras, tem uns cavalinhos no campo, e a velha nostalgia rural de todo brasileiro (e ela riu da ideia) tocou fundo na sua alma. Embarcou no táxi como quem tira umas férias, o mapa à mão. O motorista não disse nem sim nem não quando 73
ela perguntou se ele sabia o rumo a tomar, apenas foi avançando lacônico e Beatriz enfim se tranquilizou. Passar uma tarde no campo. Aos poucos foi se sentindo como alguém que se transporta a uma outra dimensão do espaço, súbito em uma cidade desconhecida, uma Curitiba que nunca viu e que estava ali ao lado, como eu sou ignorante, ela pensou, meu mundo começa na José de Alencar e termina na pracinha do Batel, e agora estou aqui, o asfalto roto sem calçadas, cheio de curvas, pessoas, burros, carroças, tudo meio que devagar se atravancando, oficinas, barracos, pobreza, aquela sujeira gráfica de placas, postes, fios atravessados, outdoors coloridos com mulheraças gigantescas mostrando pernas maravilhosas, e ali no poste a tabuleta inverossímil vende frango-se, a seta vermelha com a tinta escorrida, e ela olhou o taxímetro com o canto dos olhos, tudo vai bem, eu pago o táxi, ela ainda ouvia a voz metálica do velho asmático, os erres ríspidos, e súbito o motorista para numa esquina, o vidro abrindo-se a uma passante: — A senhora sabe onde é o beco da Torta? A mulher se aproximou. Ela tem cara de sortista, Beatriz pensou. Antes de falar, conferiu a passageira no banco de trás, tentando adivinhar uma biografia completa, imaginou Beatriz — quem é, de onde vem, para onde vai. — É logo adiante. Vocês vão no velho Rodolfo? Cuidado com o cachorro. Não era exatamente um tom cordial, e a menção ao cachorro deu-lhe um frio na barriga, mas não teve tempo de se preocupar — outras duas ou três curvas e chegavam a um fim de caminho, mato cerrado adiante, e ela se surpreendeu agora ao contrário, como é pequena essa cidade, acaba aqui. O táxi parou 74
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diante de uma velha casa de madeira de cor indefinível, lambrequins desdentados numa varanda em ruínas, o telhado agudo, como se nevasse em Curitiba. Ela saiu do carro e no mesmo instante um cachorro enlouquecido jogou-se latindo contra a cerca alta de metal trançado, encimada por uma faixa densa de arame farpado — um cão furioso, insaciável, de uma agressividade limítrofe, um desespero antes da morte (ela pensaria depois, numa ilação absurda). Mas quem abriu o portão?, perguntou o policial gentil, na boa viagem de volta. O latido irritante tinha o poder de uma serra elétrica para suspender a vida — ela pagou o taxista tentando organizar a cabeça, mas os latidos não deixavam; esqueceu do recibo e esqueceu também de pedir que ele esperasse um minuto até ela se certificar de que o homem estaria mesmo em casa, sabe-se lá. Bastou sair do carro e avaliar num segundo aquela casa esquecida no fim do mundo, iluminada por um sol forte de começo de tarde, para o táxi sumir; assim que se voltou, o carro já virava a curva adiante numa nuvem de poeira. Viu-se completamente só diante do portão do que teria sido um espaço de garagem e que agora era uma quadra de mato mal aparado. O cachorro, incansável, latia e pulava diante de Beatriz, arremetendo furioso contra o portão. Paralisada, lembrou súbito que esquecera o celular (ficou na mesa da sala, na hora em que fui pegar a bolsa, que desgraça, ela contou aflita ao policial, como se o detalhe fosse importante), ao surgir a ideia de que deveria telefonar ao homem para lembrá -lo de que ela já estava plantada em frente da casa dele; o velho, quem sabe surdo, estaria tranquilo lendo um tratado de sociologia na cozinha, enquanto ferve água para o café com que vai recepcionar a revisora, completamente distraído, sem saber que ela estava ali suando frio diante daquele Cérbero feio como o peca75
do. Em torno, nada, e Beatriz irritou-se com o peso de mais uma burrice cometida, o velho que levasse a ela o livro a revisar, e não o contrário, mas, como sempre, agora é tarde. Resolveu bater palmas, o que era ridiculamente inútil, mas atiçou ainda mais a fera que agora uivava de ódio em seus saltos homicidas contra o portão. Beatriz já começava a desistir, antevendo a longa caminhada de volta até achar um táxi ou um ponto de ônibus, quando uma cabeça pequena, uma face descarnada, um halo de cabelos brancos, uma efígie pálida enfim apareceu à janela dos fundos para desaparecer em seguida, como um cuco. Será que ele me viu? O animal parou por alguns segundos, abanando o toco do rabo, à espera talvez de um chamado, que não veio, o que foi o argumento para voltar a latir sempre furioso, e enfim a porta da varanda se abriu — Réss! Réss! — gritava agora o homem magro de bermudas, meias e chinelos, a velha camiseta, os braços brancos e secos, ainda sem olhar para a visitante, ocupado integralmente com o cão, indócil também com ele. Réss! — Será “Réss” mesmo o que ele diz? Ou Rex?, Beatriz especulava, um pouco mais tranquila, não perdi a viagem, sonhou, sem dúvida era o homem do telefonema que agora avançava resoluto para o animal agarrando-lhe a coleira com a mão esquerda e ossuda e suspendendo-o como quem enforca; o cachorro gania, sem se acalmar, debaixo de uma sequência ininteligível de ordens em que só o “Réss” se entendia. Em vez de levá-lo a algum lugar e prendê-lo, como Beatriz queria que ele fizesse, o homem tirou do bolso uma chave e avançou ao portão — a mão direita, trêmula, tentava encaixar a chave no cadeado, enquanto o cachorro, a duras penas controlado pelo outro braço, contorcia-se no esforço demoníaco de livrar-se do velho, e em meio a gritos e latidos o portão enfim se abriu, com o cadeado 76
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indo ao chão. Junta para mim, ganiu o homem, arrastando o bicho dois passos para trás, que agora voltava a desejar Beatriz, tão próxima — e ela entrou no terreno e obedeceu, recolocando o cadeado no portão e fechando-o com um clac! Do que se arrependeu no mesmo instante, como explicou ao policial; agora ela estava sem rota de fuga. O homem arrastava o monstro até a porta, seguido por uma Beatriz vacilante que tentava adivinhar o passo seguinte, do homem e de Rex, ou Réss. A mão livre do velho tremia fazendo sinais irritadiços para que ela entrasse em casa enquanto mantinha o bicho seguro ao seu lado, e Beatriz olhava hipnotizada para aquela velha coleira que talvez se rompesse, firme nos dedos brancos do velho, mas o que ele vai fazer, levar o cachorro para dentro de casa? Não, ele abriu um espaço para que ela passasse, enquanto mantinha o sempre indócil Réss, ou Rex, no cabresto, e ela afinal subiu os dois degraus de madeira podre da varanda e praticamente correu para dentro. O homem entrou em seguida — era uma verdadeira operação de guerra, ela relembrava depois, recontando cada detalhe, o coração na boca, quando o policial gentil disse que ela já podia ficar calma, tudo bem, está tudo bem, foi como nos filmes ela disse mais uma vez, agora rindo um riso nervoso — o velho não entrou em casa, ele foi se infiltrando no espaço mínimo que a porta mal aberta lhe dava, ainda bem que ele era magro, o braço estendido para manter o monstro do lado de fora, até que o soltou no mundo, batendo a porta, enfim em segurança, e ambos escutaram o choque do animal arremetendo contra eles, o ganido interminável. Agora seguros do lado de dentro, o homem ainda foi à janela e gritou mais algumas coisas ao Réss, um tipo de código secreto que parecia alemão mas não era, ela calculou, mas também o Réss não enten77
dia, porque continuava latindo. Enfim o senhor Rodolfo se voltou para Beatriz, ofegante — muito ofegante, ela explicou ao policial, ele tinha a boca aberta, dava para ver um dente de prata logo atrás do canino, mas isso ela não achou necessário dizer, ficou só a imagem fixa na memória, um dente de prata. — Você é muito nova, ele disse, e estendeu a mão ossuda que ela apertou com uma sensação ruim, também ela ofegante, não de cansaço, mas de terror. Tenho problema com cachorros, pânico de infância, eu devia ter avisado antes, e parecia que a sua vida inteira era uma sequência de devias que, se realizados, fariam dela outra pessoa, outro ser, outra existência; o fato é que não disse nada, corpo e alma mudos, e o homem, com uma sombra de desconfiança, perguntou se ela era italiana, ou alemã, o olhar escrutinador, e Beatriz meio que sorriu, eu sou brasileira, mas nem isso disse, porque mais uma vez o senhor Rodolfo não lhe deu tempo, puxando uma velha cadeira de palha e intimando-a a sentar diante daquela mesa surrada por onde teriam passado duas ou três gerações de almoços e jantas, Beatriz imaginou, fantasiando o momento para dele escapar, e olhou em torno, uma casa rústica que em algum momento do passado foi boa, agora à beira da ruína final, mas ainda sustentável, ou consertável, ela pensou, nas paredes algumas fotos antigas de família, uma meia dúzia de livros velhos e sem lombada, uma coleira velha pendurada num prego, uma antiga máquina de costura transformada em mesinha de canto, uma cristaleira de antiquário com taças e copos disparatados, tudo sob o fundo musical de Réss — acho que é Réss mesmo, talvez Hess, ela tentou adivinhar, sabe-se lá, e o velho desapareceu por um batente e de longe veio a voz, vou levar um café e então conversamos, o cão rosnando próximo, atrás da porta talvez, ela pressen78
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tiu, mas a voz do homem estava realmente esquisita, ele parece doente, e quando reapareceu segundos depois, sem o café, o rosto estava vermelho como a cabeça de um galo e a mão trêmula depositou um volume diante dela, fique lendo enquanto trago o café, acho que preciso de um comprimido, ele ainda disse. — Você viu ele tomar o comprimido?, o policial perguntou, e ela disse que não, o que era verdade. Apenas abriu a pasta ensebada onde jazia uma pilha de folhas amarradas com barbante nos dois furos da margem esquerda e viu o título de letras falhadas marteladas por uma velha máquina de escrever, ela imaginou, a fita preta-evermelha quase sem tinta: PORQUÊ HITLER PERDEU A GUERRA DA PROPAGANDA, e ela sentiu um frio no estômago enquanto os olhos acompanhavam o enorme subtítulo em espaço um, Estudo cientifico, moral, racial e sociológico dos acontecimentos mundiais da derrocada do “Terceiro Reich” que se seguiu no fim da SEGUNDA GRANDE GUERRA MUNDIAL onde o pôvo germânico perdeu o contrôle. Beatriz fechou os olhos, o suor brotando no pescoço — é o efeito retardado do estresse do portão, ela interpretou. Só agora estou voltando ao normal. Abriu os olhos e releu: era isso mesmo. Talvez o homem seja apenas analfabeto, ou simplesmente alguém da velha ortografia; não é uma questão de ideias. Abriu a página seguinte. CAPÍTULO PRIMEIRO. Nuremberg: verdades e mentiras. Porquê o julgamento não refléte a verdade. O que aconteceu. — Eu tenho o Réss — o homem disse de repente lá na entrada do que seria a cozinha e Beatriz fechou instintivamente o livro, como alguém pego em flagrante — por causa da vizinhança. Já me roubaram muito aqui. Não estou bem — ele disse, exatamente 79
no mesmo tom e no mesmo volume de voz, o tempo passado e o tempo presente como partes da mesma frase, e desapareceu. Ela abriu de novo o volume ao acaso e viu aquela mancha em espaço um, uma datilografia compacta e praticamente sem divisão de parágrafos o dinheiro judeu assossiado ao capital internacional e abriu outra página mais para o fim comandante das “SS” e abriu outra página raças misturadas no Brasil e outra PORQUÊ A VIOLÊNCIA SÓ TÊM SOLUÇÃO VIOLENTA — os motivos etológicos da decadência do Ocidente em dezasseis argumentos e outra O momento da solução — e a voz súbita do velho de novo na porta como que despertou Réss, que latiu furioso e mais uma vez se lançou contra a porta fechada. — Eu deixo o Réss solto porque se eu prendo ele eles me roubam. Eles pensam que eu sou indefeso, que eu sou um velho gagá, é o que eles dizem, esses vagabundos dizem que eu sou um velho gagá, aquelas crianças vêm ali na cerca, ficam zombando, e o Réss fica nervoso — a voz estava anormalmente alta, e Beatriz de novo fechou o livro, tentando resistir ao terror que começava a escancarar as portas de sua alma. — Mas eu tenho um modo de assustar eles, além do Réss, eu tenho medo que eles envenenem ele, e então eu pego a minha luger, está aqui — e sempre gritando, pela surdez um homem sem noção de volume de voz, ela imaginou, o velho avançou até o armário, abriu uma porta e depois uma gaveta, já de joelhos no chão; o velho inteiro tremia. Beatriz levantou-se — O senhor não precisa me mostrar, eu... — mas ele se virou, aquela magreza frágil teimando em se manter em pé, o rosto inteiro congestionado agora, e Beatriz sentiu o vazio do pânico, o homem estava tendo algum ataque, não de fúria, embora a impressão fosse exatamente essa. 80
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— Ele se ergueu assim, com o revólver na mão, o braço meio estendido, e o corpo começou a dobrar — e ela imitava o gesto, ela também tremendo e ainda sem controlar totalmente o choro. — O braço nessa direção? — perguntou o policial gentil, tocando a mão dela, refazendo o gesto, e olhando para a janela com o vidro estilhaçado. Sim, ela disse, e relembrou o rosto do velho inteiro manchado de vermelho, o pescoço espichando-se para fora da camiseta, a boca aberta buscando um ar inexistente, sentindo o vácuo que haveria de derrubá-lo. Ele ainda estendeu o braço com a luger apontando não exatamente para ela, mas muito próximo, de modo que ela olhou para trás assustada como se um inimigo se aproximasse para matá-los e o velho apenas se defendesse, mas não havia ninguém, e ela ouviu o estampido pavoroso do revólver estilhaçando a vidraça da frente; deu um grito, e ao se voltar o velho já estava no chão, abatido — na verdade, morto, boca e olhos abertos, a luger ainda encaixada nos seus dedos. Pela brutalidade do susto, Beatriz chegou a pensar o contrário, que alguém de fora matara o velho através da janela, mas não: ali estava o homem imóvel, olhando idiotizado para ela. Ela chegou a se agachar para tocá-lo, mas por alguma repugnância instintiva não conseguia; enfim estendeu o braço vacilante e tocou o pescoço com a ponta dos dedos, sentindo a aspereza daquela pele enrugada e inerte; aproximou a cabeça da cabeça do homem, como quem quer ouvir alguma última mensagem antes da morte, um último sopro, mas também isso não havia mais. Um homem morto: o primeiro que ela via morrer, e num átimo se lembrou de seus pais mortos, sim, eles morreram de desastre, ela explicou ao policial gentil, na viagem de volta, já anoitecendo. 81
E outro pânico sobrevinha ao primeiro — Réss, talvez pressentindo a morte do dono, redobrava a fúria e ela podia vê-lo saltar diante da janela para em seguida raspar a porta como quem sabe exatamente o que quer. Ela ainda pensava no que fazer — massagem torácica, talvez, ressuscitar esse velho, respiração boca a boca, chegou a imaginar, mas a invencível repugnância voltava-lhe, o dente de prata brilhando na boca aberta, aquilo era um cadáver, ela tentava se justificar, temendo que o policial lhe perguntasse o que ela fez para salvá-lo, mas isso ele felizmente não perguntou. Beatriz ainda estendeu as mãos para pressionar o tórax do homem, mas ao tocá-lo como que foi demovida pelo gelo que sentiu, e retirou as mãos, ele já está morto. Pensou ainda em virá-lo, deixá-lo mais confortável, ela pensou sem atinar no absurdo da ideia, um homem desconfortável até na morte, mas ao estender mecanicamente os braços para a tarefa lembrou-se do seriado da televisão e recuou — jamais mexa na cena do crime, não toque em nada, mas que crime?, ela se perguntou, esse homem morreu sozinho, eu estava ali, a cinco passos, Beatriz imaginou-se contando mais tarde, o tom dramático para tornar o fato mais convincente ainda, como se o pressuposto de tudo na sua vida fosse sempre a mentira, e o tempo todo o cachorro latindo, o que criou outra onda de terror: afinal perceber que estava ilhada numa casa, sem celular, com um homem morto no chão, e guardada por um cachorro demoníaco que só deixaria ela sair dali quando morresse de fome; e o vizinho mais próximo estaria a uns quinhentos metros de distância, sendo que o beco da Torta é uma rua sem saída e que só chegará alguém aqui se — E então Beatriz tateou o caminho de volta à cadeira de palha, onde sentou para pensar, mas não conseguiu — levantou82
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se em seguida e, enfim surgiu uma ideia nítida: vou atrás de um telefone, deve haver um aqui, e avançando para os fundos com o maldito cão acompanhando seus passos aos urros e roncos pelo lado de fora, atravessou uma saleta vazia e chegou à cozinha, um degrau abaixo, de piso de pedra; no velho fogão a gás, ao lado de um fogão a lenha desativado que agora servia de balcão, um resto de água ainda fervia na chaleira e ela correu para desligar a boca, dessa vez sem susto, sentindo-se momentaneamente útil, quase como alguém que pelo simples gesto de desligar o fogo voltasse à normalidade cotidiana, vou fazer café; o animal agora rosnava atrás da porta dos fundos, raspando impaciente a pata na madeira, e ela conferiu a maçaneta e o trinco, de uma solidez antiga, com uma chave enorme: estou segura, ela pensou — eu posso sobreviver alguns dias aqui, fantasiou, olhando as prateleiras em torno, café, feijão, arroz, farinha, batatas. Voltou para a saleta e entrou num dos quartos, às escuras, e sentiu o cheiro e a aura da velhice, corpo e alma entranhados nas coisas; procurou inutilmente um interruptor (com medo de abrir a janela, o cão latindo) e pelo tato e pelas sombras foi descobrindo cômoda, cadeira, cama; estendendo o braço, chegou à mesinha do outro lado e enfim ao telefone, daqueles de filme, ela lembraria depois, negro, pesado, clássico, o cordão de tecido grosso em caracol; Beatriz ergueu o fone com dificuldade, derrubando frascos de remédio e um copo vazio que se espatifou. Percebeu agora a fraqueza que sentia, alguém esmagado pelo medo, os dedos tremendo para girar com dificuldade os três números que ela também adivinhava pelo tato, polícia, por favor, polícia! — Era mesmo necessário matar o cachorro? — ela ainda perguntou ao policial, depois de alguns segundos em que ficaram 83
em silêncio, a viatura parada num sinal vermelho. — Bem, do modo como nos passaram a ocorrência, era uma questão de vida ou morte, e não tinha nenhum veterinário ali com uma rede para cuidar daquele bicho louco. Imagino o que você sofreu dentro daquela casa. Ela ouviu dois ou três tiros e foi à janela — portão escancarado, quatro ou cinco homens avançaram em trajes civis, e só então ela viu o animal morto, a cabeça ensanguentada, o corpo inesperadamente pequeno quase oculto no mato. Sentiu a mão do homem tocando-lhe o braço, o mesmo policial que agora lhe dava a carona de volta. — Você está bem? — Um ataque fulminante do coração, sem dúvida — decretou um outro homem, talvez médico, agachado diante do antigo senhor Rodolfo. — Digam pra esse povo ficar longe da casa — alguém ordenou, e Beatriz olhou para a rua onde uma pequena multidão vinda do nada começava a se aglomerar. Você conhece ele?, alguém lhe perguntava, não, vim aqui fazer um trabalho de revisão, e mais uma camada de medo pousou na sua alma, e se eles imaginam que eu também sou nazista, o calhamaço ali em cima da mesa, eu nunca vi esse homem, ele telefonou, eu acho que ele era meio... assim, meio transtornado, ela evitou a palavra “louco”, que lhe pareceu inadequada. — Mas ele tentou matar você?! — e ela quase disse sim, o que não era exatamente uma mentira, não, não!, ele só quis me mostrar a arma, que tirou daquela gaveta. Alguém acabou fazendo finalmente o café, e uma xícara apareceu diante dela; Beatriz agradeceu. Cochichavam alguma coisa entre eles, ela ainda ouviu palavras avul84
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sas, tiro acidental, uma demonstração, ela teve sorte. Uma outra voz disse Porra, essa luger é da primeira guerra, e está azeitada. Calibre sete meia cinco, cano 120. Conservadinha. Um deles abriu o calhamaço ao acaso e foi soltando as páginas como cartas de baralho, sem se deter em nada — O velho era escritor então, e largou o pacote na mesa sem comentários, um suspiro definitivo. Está cheio de remédio aqui, disse alguém do quarto, anota aí. E tem documento do homem na gaveta. — Eu levo você em casa — ofereceu enfim o policial gentil, todos os trâmites aparentemente resolvidos. — Você garante que está bem mesmo?! — ele ainda perguntou. — Tome um calmante e durma bem essa noite, que você está precisando. Amanhã você faz o depoimento, se for o caso, não sei ainda, trocando em miúdos foi só um ataque do coração — e ela gostou de ouvir isso. Ao sair da casa, viu-se objeto de reverência da pequena multidão de crianças e adultos desocupados que abriram um caminho respeitoso para ela até a viatura fazendo um súbito silêncio — Mas ela não está algemada?, Beatriz ouviu nitidamente a criança e segurou um riso nervoso. Uma caminhonete do IML chegava naquele instante e dispersava a plateia sem muita paciência, aceleradas potentes, avançando para o portão aberto. — Então você faz revisão de textos e dá aulas particulares?! — o homem perguntou, como recapitulação, já quase diante do prédio de Beatriz. — Isso é muito interessante — e balançava a cabeça. — Minha filha vai estudar agronomia — ele disse em seguida, como se as duas observações estivessem interligadas. Belisário, o nome do policial gentil, ela releu no cartão; um nome vagamente conhecido, que por um segundo Bea85
triz tentou inutilmente lembrar. Se precisar de alguma coisa, é só dizer, ele insistiu, saindo do carro e abrindo a porta para ela. Uma face rústica e um começo de barriga, e o conjunto tinha uma aura de simpatia, ela avaliou. Policiais também podem ser boas pessoas, é claro. Entrou ainda trêmula no prédio; antes de chegar ao elevador, o porteiro lhe estendeu o envelope da manhã, a dissertação que ela deixara para devolver ao engenheiro. — O homem escreveu um bilhete e disse para lhe entregar de volta. Elevador subindo, conferiu: Prezada Beatriz, me desculpe por hoje de manhã, eu estava nervozo, pode fazer a revisão sim, obrigado pela comprensão, vamos praticar aquele preço que você falou mesmo, amanhã eu telefono na sua casa, Belisário. Finalmente conseguiu rir, entrando em casa — um dia não tão ruim assim, calculou. Coincidências são bons augúrios.
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Perdendo your religion Elvira Vigna
Ele põe o CD no aparelho de som e isso já é um espanto porque, na casa, as duas não têm o hábito de mexer no aparelho de som a não ser quando vem visita, e nunca vem. Mas se viesse, elas então poriam um CD, depois de oferecer as bebidas, na espera que pinte algum papo mesmo que seja o de sempre, você viu o, você soube da, você nem imagina que eu. Na espera de que alguma dessas frases renda algo mais do que um primeiro comentário solitário e depois outra vez o silêncio (quer dizer a música), mais um gole, e a música lá, cumprindo seu papel, que é o de que se possa dizer, que música boa essa, gosto muito do. Ou ainda, e isso é o pior, quem é esse cara que está cantando? — quando então, já se sabe, a música tocará inútil até o final, depois de alguém (Izildinha), se levantar para baixar um pouco o som, nem se pode conversar com, e uma rápida e desanimada olhada para o resto dos CDs, quem sabe algum outro. E era para isso, o aparelho de som, Casas Bahia, cinco vezes no cartão. 87
Os CDs guardados em um porta-CDs, cada um em um dos vãos, faziam uma escada, um edifício de apartamento, uma construção de tijolos inúteis, um currículo, um discurso. Os CDs cansavam o ouvido depois de duas vezes, no máximo três, de escutados. Mas ele punha o CD, um dos dele, tirado da sacola grande que o acompanhava, comprei, olha aqui, conhece? E Izildinha balançava a cabeça, maravilhada, não. Ou então fingia, ah, sim, o. E ele punha o CD mal acordava, dez da manhã, onze, outro espanto, como alguém acorda a essa hora, Izildinha, com ou sem trabalho, acordando como sempre às seis, só para ficar, banquinho da cozinha, copo de café já vazio na mão, olhando em torno e procurando o dia que ia ser, nos vãos dos móveis, na luz dura que vinha pela cortina mal fechada da janela. E ele punha o CD e, já virando de costas para o aparelho de som, começava a marcar o ritmo que ainda nem começara — com o corpo, dobrando os joelhos, no rosto um ar confiante que Izildinha não via há, há, desde que chegara. Fazia muito, cinco anos, cinco séculos. E ele saía por entre os móveis apertados do apartamento pequeno, os móveis que eram da moça com quem Izildinha dividia o aluguel. E que se somavam a mais alguns que Izildinha tinha comprado para ela, já para ir acumulando para o dia em que. A vida não ia ser sempre aquela porcaria. Um dia melhora. E eu já vou comprando então, para acumular e ter. Bom resumo esse, a vida que será sempre alguma coisa que vai acontecer algum dia e que será sempre, então, um acúmulo das coisas que se atulharam durante a espera por esse dia. 88
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Ele saía dançando, os joelhos dobrando no ritmo da música, e cantava. Ele não acumulava nada, na pouca bagagem e no pouco corpo que ia gastando, gastadeiro, nos requebros aéreos de quem nem notava que a sala era atulhada. Ouou, life is bigger. E era de fato. Oh no, I’ve said too much, I set it up. Ele ligava o aparelho de som nesta música, sempre nesta mesma música, assim que acordava, a camiseta cavada, that’s me in the corner, e a imagem vinha inteira, doída, doída, ele com os dois braços levantados, juntava assim as mãos em frente ao rosto que virava um pouco assim para o lado (o lado dela) e fechava os olhos, franzia as sobrancelhas, os joelhos dobrados e o corpo que balançava como Izildinha nunca vira alguém (homem) balançar. Ela não falava inglês bem, mas um dia de tarde, sozinha, Izildinha foi conferir a letra, impressa na capa do CD, e cantou baixinho, tentando repetir a entonação, sozinha no apartamento que já ficava escuro, e dobrou os joelhos, não sentindo, mas pela primeira vez intuindo, que existiria uma liberdade que ela nem imaginava como era. Porque naquela frase, that’s me in the corner, ele virava o rosto assim um pouco para o lado, as sobrancelhas franzidas e aumentava um pouco a voz, os olhos fechados, perdidos em algum ponto dentro dele. E os movimentos da dança ficavam, parecia, ainda mais soltos dentro da camiseta sem manga, os braços bem torneados, a axila raspada. Laranja a camiseta. O tempo todo daquela primeira fase, ele no apartamento dela e da colega, como hóspede, ele só usava preto ou laranja, às vezes com um desenho, umas letras fosforescentes, brilhantes, um toque de verde ou amarelo, com um desenho em alto relevo, o nome de alguma 89
banda, algum nome, qualquer um, no mesmo inglês da música, that’s me in the spotlight. Losing my religion. E depois das primeiras vezes, quando ele punha a música e Izildinha o via sair dançando em direção à cozinha, ela também balançava a cabeça, primeiro porque queria mostrar que estava junto, que sim, sim, que compartilhava, que, sim, ououou. Depois, porque simplesmente não podia mais ouvir a música sem que seu corpo todo tentasse dançar, agora sem que ela pudesse impedir, a vontade de simplesmente sair dançando e cantando e largando tudo, jogando tudo pela janela, para o alto ou no lixo mesmo, aqui um bibelô, ali um carnê, e mais a lista das compras, sabão em pó, e o comprimido que emagrecia. E isso a cada vez que o braço se levantava mostrando, o braço, independente dela, como as pernas também pareciam independentes, braços e pernas e o resto mostrando como ela toda estava com vontade de largar tudo a cada levantada, mexida, virada, ida, sacudida, tinha de ser forte, a sacudida, e era. E depois daquelas primeiras vezes, enquanto ele cantava que oh no, I’ve said too much, ela já sabia que ele de fato tinha dito mais do que pretendia e então ela sorria, os olhos molhados. E pálida, os olhos fixos nele, tentava passar a mensagem que não, que nunca, jamais, não importava o que fosse, ela não iria deixar de gostar dele. Mas ele não a olhava, os olhos sempre meio fechados. Nunca a olhou enquanto dizia I thought that I heard you laughing. Era para ele mesmo, a coisa. Ou para os outros rapazes iguais que às vezes ele apresentava. Até que um dia de manhã, quase meio-dia na verdade, aló, que era o seu bom-dia. 90
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Mas ela não responde o aló, alongando, como sempre, o ó aberto, um dos elos entre eles. Sem falar nada, ela passa a ponta do dedo, de leve, por toda a extensão do seu braço ainda quente do sofá-cama e ele para, faz cara brincalhona de quem imita, caricato, uma cara de espanto e diz, que é isso, menina? Mas ela olha sério para ele. E chega perto e começa um beijo que ele acaba por corresponder, o ombro dele no meio, atrapalhando. E aí ficaram de mãos dadas, sem assunto.
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A maior de todas as metáforas Giovana Madalosso
Ainda estou sofrendo com o fora que levei. Ando pela rua tentando me convencer de que ele é um babaca, um não merecedor do meu sentimento, mas quanto mais me esforço para provar que ele não presta, mais óbvia fica a extensão do meu amor, e todos os meus tiros saem, uma saraivada de balas vãs, pela culatra. Talvez para parar de pensar nele, interrompo o fluxo automático dos meus passos e entro numa praça, numa passarela que logo dá num parquinho. Três babás ocupam o único banco disponível, de forma que sento numa gangorra, numa tábua de madeira pintada de um vermelho já não tão vermelho assim. A menina aparece, não sei de onde. Senta na outra ponta da gangorra e, com os pés suspensos, faz força para baixo, me obrigando a gangorrear com ela. Deve ter uns seis, sete anos. Uma figura simpática, de sardas e franja. Mas eu estou na fossa, eu não quero exercitar as minhas pernas dessa maneira. Depois de subir e descer umas cinco vezes, aponto em volta para outras crianças que correm para lá e para cá e digo para a menina: por 93
que você não brinca com eles? Pega-pega é legal. Ela dá mais um impulso para cima e diz: porque não posso correr. Faço uma vistoria rápida no seu corpo. Tem dois braços, duas pernas, uma cabeça. Qual o problema? Como adivinhando a minha pergunta, ou apenas querendo manter a dinâmica verbal e mecânica agora estabelecida entre nós, ela continua: eu uso marca-passo. Paro por um segundo, me pergunto se a menina está brincando. Ela continua: tenho uma doença congênita. E agora tenho certeza de que ela não está brincando, que outra criança falaria essa palavra com a naturalidade de quem fala bola, vassoura, sabão? Ela continua: meu coração bate fraco, pode parar a qualquer hora. Me assusto com a informação. Imagino a menina parando de funcionar na minha frente, como um daqueles soldadinhos que gastam a pilha e estancam no meio do movimento, um braço a meio caminho, o sorriso congelado no rosto. Mas ela segue se mexendo, os pés impulsionando-se contra os pedriscos, a existência teimando em existir, um pequeno resumo do que somos nos pés impulsionando-se sem parar contra os pedriscos, e então reparo que as sapatilhas que ela usa têm corações, um estampado na ponta de cada pé. Ela percebe para onde olho e diz: tem coração em tudo que é lugar. Você nunca reparou? Nunca, digo, e paro um pouco para pensar, e nessa hora (e depois) me vem à cabeça coração em capa de caderno, em camiseta, em almofada, em cartão de aniversário, em papel de presente, em peito de Nossa Senhora, em neon de sex shop, em pote de margarina, em pichação de muro, em abertura de novela, em logomarca de seguro, em embalagem de camisinha, em pano de prato, em bíceps tatuado, em árvore talhada, em expressões como coração despedaçado, coração de mãe, meu coração saiu pela boca, em 94
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não sei quantas letras de música. Me dou conta de que essa é a metáfora mais usada de todas (talvez nem tudo esteja perdido enquanto a metáfora mais usada de todas for relativa ao amor). Depois impulsiono a gangorra de novo e digo para ela: Meu avô também usa marca-passo. E ele não acha ruim não poder correr? Acho que não, digo sorrindo. Percebo que ela fica intrigada, certamente pensando em como meu avô não se importa com algo tão relevante. Logo depois uma outra menina aparece e chama a sardenta para ir com ela ao balanço. Eu fico mais um pouco por ali, observando as duas, me sentindo ridícula por choramingar por causa de um homem que não me quer, enquanto esse serzinho tão mais novo do que eu se debate com um problema tão mais importante. Mas assim que saio do parque meu peito volta a apertar, de dentro desse lugar do qual nunca escaparemos, meu peito volta a apertar, como uma folha de plástico se retorcendo perto da chama de um isqueiro. Será apenas uma metáfora?
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A distância de Lagos José Castello
Quando chamei um táxi, o violoncelista se aproximou e disse: “Para que um carro, se Lagos é logo ali?”. Olhei para o gerente, que também me olhava, mas sua expressão era indecifrável. Por isso continuei a ouvir o músico. Para chegar ao Jardim das Telhas, bastava descer a estrada em direção à represa, tomar a segunda ponte e atravessar uma pequena planície, ele detalhou. Um pouco mais à frente, eu encontraria uma igreja com um relógio invertido, em que os ponteiros giram ao contrário. Ali é o centro de Lagos, ele disse. O jardim, que guarda a mais bela coleção de cactos da província, começa logo depois. Em vinte minutos de caminhada lenta você estará lá, o violoncelista me garantiu. Para que um táxi, se pode fazer um pouco de exercício? Dispensei o carro e comecei minha caminhada rumo a Lagos, a vila histórica dos Entalhadores, local da chamada Revolta das Facas. Sou curioso a respeito de cidadezinhas perdidas, que os turistas costumam ignorar. Lendo os discursos de Plácido, aprendi a preferir o desprezo à grandiloquência. No Jardim das Telhas, você entenderá por que os entalhadores lutaram pela independência, o violoncelista me disse ainda. Se sair agora do 97
hotel, chegará em menos de uma hora. Não vale a pena? Andei durante meia hora, observando as iguanas que cruzavam o caminho, e não vi ponte alguma. Até porque, uns cinco minutos depois de minha partida, o rio se lançou para um lado e a estrada, inesperadamente, como se dele se esquivasse, deslizou para o outro. Mas só havia uma estrada, a rota menor que, depois de Lagos, se embrenha no deserto e ruma para o norte; em consequência, eu não podia estar na direção errada. Depois de se afastar do rio (mas não era na represa que o rio devia desaguar?), a estrada menor descia em ziguezague irregular, coberta de cactos com as folhas dentadas, e rumava, insegura, em direção à planície. Talvez no meio do trajeto ela retomasse seu curso, eu pensei, e enfim eu chegaria à represa. Não havia placas, ou qualquer sinalização, apenas uns postes escuros. Eles não tinham luminárias, de modo que, com aquelas curvas desprovidas de acostamento, seria quase impossível viajar durante a noite. Só que ainda era de manhã. Não devo me deixar tomar por pensamentos descabidos, pensei. E tratei de olhar para a frente e seguir. O violoncelista, que chamam apenas de Zuto, vive na Cidade de Quevedo, mas nasceu em Lagos. Além disso, passa grande parte do ano na região, recolhido em um sítio sem luz, onde trabalha em suas composições. Por que iria se enganar, ou me enganar? Talvez fosse um homem de hábitos atléticos e por isso considerasse a distância que nos separava da vila quase desprezível, eu pensei. Mas, com aquelas mamas femininas, retidas em um colete de cetim, e ainda com aqueles lábios de glutão, ele tinha, ao contrário, a aparência de um sujeito indolente. Uma hora, ele disse: mas eu já andava há quase duas. E olha que eu 98
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caminhava rápido, com passadas cada vez mais largas, usando o fôlego que acumulei praticando Tue Wu. Que estúpido fui, por que não chamei um táxi? Por que confiei nas palavras do músico? Ia pensando coisas assim quando avistei, bem na borda da estrada, um vendedor de galinhas. As aves, muito nervosas, se jogavam contra a armação de arame que sustentava os caixotes, como se desejassem dançar. Sobre a mesa, havia uma balança, um facão de açougueiro e uma tigela cheia de sangue. Eram garnisés, brigonas e tagarelas; mas, quando me aproximei mais um pouco, talvez temendo a sombra desconhecida de meu corpo, elas silenciaram. Parece que gostaram de você, o vendedor de galinhas comentou, sem muito entusiasmo. Pouco entusiasmado eu também com o elogio, perguntei quanto tempo faltava para chegar a Lagos. Uma bobagem, ele respondeu. Está vendo aquela árvore alta, de copa arrebitada, que se destaca na paisagem? Pois é logo depois. E falou com tanta convicção que preferi mudar de assunto. O senhor vende muitas galinhas? — perguntei então. Aqui ninguém se interessa por galinhas, ele respondeu. Agachou-se, escolheu uma ave mais gorda, que lembrava uma coruja, e a pegou no colo. Não desista, ele me disse ainda, enquanto acariciava a garnisé. Você logo chegará. E beijou a galinha no bico. Pois continuei a andar e nada. A vegetação, é verdade, foi se adensando, o que contrariava a descrição que me fora oferecida pelo guia turístico oficial da Província de Quevedo. Já não parecia mais um deserto. Talvez eu já estivesse no jardim, pensei, só que aquilo também não parecia um jardim. Em vez de subir, como ele dissera, a estrada continuava a descer. Logo depois da tal árvore, que deveria me servir de marca, havia uma infinidade 99
de outras árvores, muito semelhantes entre si. Não demarcavam coisa alguma. Ao contrário, repetidas e iguais, dispostas de modo desordenado na paisagem, anulavam qualquer sentido de direção. Voltei a procurar por alguma placa que indicasse o caminho para Lagos. Mas era uma estrada antiga, quase abandonada depois da construção da perimetral norte, e além de tudo muito feia. Atrás de mim, ainda ouvi a zoeira das garnisés que, sem a minha presença, recomeçaram a gritar. À minha frente, depois das árvores em fila indiana, só uma vegetação muito seca, na qual a estrada menor, num traçado inseguro, se enfiava. Talvez fosse melhor voltar para o hotel, pensei. Amanhã tomo uma charrete emprestada e venho. Mas, contrariando esses pensamentos, meus pés continuavam a marchar. E eu os segui. No meio desses pensamentos, um trovão espocou no horizonte. Vi quando nuvens grossas, como travesseiros, se enfileiraram ao longo das copas, bem na direção de Lagos, ou onde Lagos deveria estar. Ainda essa, pensei. E, se chover, não terei como me proteger. É verdade que a terra seca não confirmava a possibilidade de chuvas. Em Lagos, me disseram, a população vivia em grandes dificuldades, os poços vazios, as flores murchas, as caixas d’água transformadas em dormitórios para cabras. Não ia chover, me acalmei. Eram só raios perdidos, a estourar a muitos quilômetros de distância. Até que uma bala passou bem a meu lado. Foi por pouco. Ouvi quando alguém gritou: “Agora para o norte!”. Ouvi galopes de cavalos, mas fui tragado por uma nuvem de poeira e nada mais pude ver. Outras balas cruzaram o espaço que me separava da vila. Ainda não disse que, antes de ter esses pensamentos, joguei-me no chão, a cabeça protegida pelos braços em cruz, o gosto de areia na boca. “Vamos avançar!”, outra voz orde100
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nou, mas eu nada via. Ouvia os galopes, ouvia os gritos, sentia a proximidade do desastre, nada mais. Vou morrer pisoteado pelos cavalos, pensei. Mas logo os gritos vigorosos silenciaram. Quando dei por mim, estava deitado no chão quente, os braços e as pernas esparramados, a pose de nadador em meio a um mergulho no nada. Custei a me erguer, não por fraqueza, mas por medo. Andei mais um bom tempo até encontrar o Casal Silva. Assim, como dois seres acoplados, eles são conhecidos nas imediações da represa. O Casal Silva tem muitos filhos, todos sujos, magros e com barrigas desproporcionais. Só comem farinha e macarrão. “Pobre homem”, a senhora Silva comentou antes de me oferecer uma concha de água barrenta. Amparando-me, o Sr. Silva me levou para seu casebre e me estirou numa cama. Dizem que dormi mais de doze horas. Quando acordei, já amanhecia. Só então, com uma xícara de café nas mãos, relatei meu encontro com a cavalaria. Os Silva me ouviram em silêncio. Depois, dirigindo-se ao marido, como se eu não estivesse mais ali, a mulher se limitou a dizer: “Coitado do moço. Mas é melhor não dizer nada”. Não sou moço, já passo dos sessenta anos. Sim, pobre de mim, eu pensei, voltando a fechar os olhos. Por que preferiam o silêncio? E agora que estou de volta, estirado em uma espreguiçadeira, à beira da piscina do hotel, posso pensar que tive muita sorte. O ônibus para a Cidade de Quevedo parte amanhã, ainda de madrugada. Não devo perdê-lo. De Quevedo, tomarei um avião para Trujillo. Não posso mais me arriscar, não por tão pouco. Foi um sonho, eu bem que tentei realizá-lo, mas não consegui. Não se consegue tudo. A viagem de volta para casa será rápida e confortável, não levará mais que quarenta minutos, pensei ainda — mas este pensamento me encheu de aflição. 101
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Embaraço Julie Fank
Nunca vi ônibus com termômetro no banheiro, eu precisava era tirar aquilo da parede e colocar debaixo do braço, apesar de saber muito bem em que lugar do corpo a temperatura beirava o caos. Faz um frio lá fora, a fronteira passou faz tempo, Assunção não devia ser longe e a dor tinha que parar até lá, já fazia 3 dias, no quarto, dizem que para. Não para. Mentira do maldito que vendeu essa merda de cytotec, maldita merda necessária, sabia que o homem tem menos dificuldade de comprar o remédio?, dois na boca, quatro na vagina, mas tem que deixar lá, o mais fundo possível, avisaram, tô aqui, o mais fundo possível no ônibus, segurando o grito. Essas contrações na velocidade do motorista. Que dor é essa? Lavo minhas mãos compulsivamente. Não podem encontrar nem resquício do remédio. Não vão encontrar, faz três dias, digo a mim mesma. No quarto dia, nem a vagina te incrimina. Mas não para de sair sangue, não para. Ali, sozinha, naquele lugar que não parava de balançar, só pensava nele e no que seria 103
capaz de fazer para não perdê-lo. Já sabia até como ia chamar o filho, esse ser despedaçado na minha barriga. Ia se chamar Jonas. Parece ironia depois que descobri de onde veio, os hebreus sabiam o que diziam. Faz décadas que eu tô aqui, o ônibus já deve ter chegado a Assunção e voltado. Ninguém bateu na porta, ainda bem. Não comi nada. Ou comi? Tem um vazio aqui. Lembro vagamente que antes de entrar neste buraco chamado banheiro uma senhora nativa entrou com uma cesta de chipa. Eu e os meus nem dois reais fomos completados pelo senhor do lado, ainda aceitavam real naquele tempo da estrada. Um saquinho e mais nada. Três horas de viagem já foram, no mínimo, não é possível. Essa dor, essa dor, e esse tempo que não passa. O oco aqui no fundo, o banheiro desabitado, e eu preenchendo esse cubículo inteiro. Acho que o útero é o porão da gente lotado de vozes da consciência pesada. Não sei quando sento ou fico em pé. Nem sinal do último resquício, só a sensação e o quase. O quase. Nosso corpo avisa. Sei que, mais hora, menos hora, desce um coágulo. Ou qualquer coisa com um pedaço de víscera. A gente se coagula às vezes na vida e se esquece de olhar para frente. Um coágulo. Deve ser viscoso que nem saliva. Morno? Tomara que seja o último, três dias cuspindo coisas por baixo de mim, não aguento. Não sois digno de que entrei em minha morada, era o que eu entendia da missa. Mas agora não adianta rezar, a desobediência veio antes, três dias antes, o tempo dentro da baleia. Não consigo nem me mexer aqui. Se decido lavar as mãos, levanto. Se decido obedecer aos impulsos do corpo, sento. 104
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Nunca quis isso. Ainda nem aprendi a morar em mim e já tenho que dividir apartamento. E se eu sair justamente na hora do sangue escorrendo?, e se eu ficar e a polícia parar o carro e baterem na porta e todo esse sangue aqui?, essa dor. Essa dor. Levanto. Lavo a mão. Não vai sobrar um resquício desse remédio, ô, saco. A essa hora, minha bolsa já deve ter sido revirada por algum nativo que acha que tô aqui dentro me… ¡Chica! ¿Hace tiempo que estás en el baño, necesita algo? Apoiou-se na pia, não havia espaço para cair, os cabelos já estavam molhados de suor, tanto quanto estariam em um parto ou numa corrida. A corrida, ela gostava de correr, gostava porque era um esporte solitário. E o esporte nem era parte de sua lista de prioridades, mas como sentia falta. Um ano nessa vida desajeitada, vontades arrastadas para dentro do futuro que deixaria de acontecer. Havia abandonado a si mesma, nenhum vestígio de quem era ou quem planejava ter sido. Como se soubesse. Como se se soubesse. Abandonaria a carreira, mas ele, não. E ela, emendada nessa vida sem se desatar, cedeu. Mais um nó. Sem saber como voltar, em silêncio. Esmagada pelos sonhos dos outros e calcificada, sem chance de palpite. Seguia para o lado oposto. Nesta hora, ele já devia estar no litoral. Na corrida, não há risco de um problema de comunicação afetar o time, é você com você mesma. Não há como ser interrompida se você fala sozin… ¡Jovencita! ¡Estoy bién, un rato y libero el baño!, grito sem convencer. Ouço qualquer cochicho do outro lado da porta e entendo que há pelo menos dois homens do lado de lá irritados com o monopólio do banheiro e tentando adi105
vinhar o que acontece aqui. Não acontece nada, esse é o problema. Emparedada, não sei se faço força ou seguro. Como deve ser o parto? Tem mãe que acho que segura só para ter o filho mais um pouco ali dentro. O que era para ter sido um Jonas ficou três dias saindo de mim, agora não posso mais. Não sou nem serei mãe, terei que lidar com isso, sou aquela mulher que vai morrer crua, sem pedaços espalhados por aí, mas em pedaços por abrir mão de alguma coisa que ainda não sabia o que era. É o que ele quer para mim, eu também quero — talvez. Só há redenção no espaço do mito. Na vida real, teria sido mais fácil remover com o aspirador. E o medo de médico? Fico velha e não perco. Agora essa dor, essa dor. Essa porra de dor. É tudo egoísmo, eu sei, não posso ser descoberta. Aquelas clínicas todas registram seus dados para te chantagear depois se o médico for pego. A pena para a mãe existe também. E aqui, e se me pararem e verem isso? As coisas só são permitidas nas ruas labirínticas, duas quadras para dentro da avenida principal, de Ciudad del Este. Lá onde um menino te carrega pela mão por alguns dólares, te deixa na porta da loja de cobertores com estoque de farmácia e desaparece sem deixar vestígio. Tenho que aprender com aqueles moleques. Aqui, mais para dentro, deve ter lei. Preciso sair, eu sei. Mesmo sabendo que está quase. Quase. Essa dor. Já não tenho mais parâmetro para a velocidade de fora ou de dentro. Para onde será que vão as coisas depois que puxam a descarga de um banheiro de ônibus? Onde fica acumulada toda essa sujeira? Desisto. Aperto um botão já sem fôlego que murcha e não empurra nada para baixo. E todo esse sangue? O papel acabou. ¡Por favor, el baño! ¡Un rato, un ratito!, mais aflita e menos convincente. Esse sangue, essa dor, esse ônibus e daqui a pouco eles aparecem com a polícia. Vou 106
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sair como se nada tivesse acontecido. A mulher não tem paz nem mesmo quando precisa lidar com um corpo temperamental. O coágulo! O coágulo vindo e eu sei que não é um coágulo, que é mais que isso, que é um punhado de resto de células, que é você, Jonas, se escorrendo pelo que resta de você. É você, quebrado e fluido, pedaço por pedaço. Tua vantagem é que você nunca foi um sonho. A gente se adapta. Sento. Ele sai. Mãe, eu me des [colo. Não tenho muito tempo e o que faço com isso?, a janela emperrada. O ônibus para. Malditos paraguaios. Ligo a torneira e um fio de água. Um fio de água. Ele escorre. Não consigo nem tirar as manchas do meio das pernas. Se eu fechar minha mão e sair carregando, ninguém vai desconfiar. Vai, sim, vai pingar. Cada gota é mais um rastro, não vão acreditar na minha desculpa feminina de todos os meses. Já deixei rastros demais. Fazia tempo 107
que não viajava. Lembro que a embalagem do remédio tá na bolsa com um comprimido para enfiar no caso de… ¡Pronto, basta! Mais uma batida, agora impaciente. Engulo — sem mastigar. É, sim, morno, desconfiava. Meu estômago, teu túmulo. Isso é só mais um resto. Por dentro, um berro. Abro a porta. O senhor que gritava me pergunta se ¿todo bién?. Faço que sim com a cabeça e coloco a mão no estômago para sinalizar que a culpa vem dali. O outro senhor não se convence. Respiro, passo os dois, me dirijo à poltrona, sento e agradeço pela bolsa intacta, aquele cheiro de banheiro impregnado em mim.
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Liga
Luci Collin
Ano de 94. 1994. Você tomando o cafezinho às pressas. Foi por isso que nos demos tão bem. Eu tomando aquele cappuccino bem devagar. Por isso nos demos tão bem, não? Você no balcão do café. Eu no balcão do café. Você na praça de alimentação daquele shopping. Nos demos tão bem no ano de 1994! Eu no mesmo shopping no mesmo balcão naquele mesmo dia do ano. Eu terminei o cappuccino. Você terminou o cafezinho. Foi por isso que nos demos tão bem naquele ano. E vai correndo pro banco. E eu vou devagar pro mesmo banco. Mas ainda nem sabe. Mas ainda nem sei. Você me olhou demorado. Eu olhei bem rapidinho. Foi por isso que nos demos tão bem no ano de 94. Eu reconheço você na mesma tarde. Você me reconhece. Não nos vimos hoje no shopping? Acho que nos vimos hoje mesmo no shopping, não? Não teríamos nos visto ainda hoje no shopping? Sim. Pode ser. Acredito que sim. Sim, de fato. Café? Cappuccino? Foi por isso que nos demos tão bem naquele dia. Você tinha filhos adolescentes. Por isso nos demos tão bem naquela tarde. Meus filhos eram adolescentes. E você não liga a mínima pras brigas. E eu não dou nem bola pras brigas. Foi por isso que nos demos tão bem naquele fim 109
de tarde. E você acha um absurdo aquela taxa de 2,5 ao ano. Eu também acho um incrível absurdo 2,5! Foi por isso que nos demos tão bem naquele começo de noite. Confessa que tem que chegar antes das 8 em casa. Eu tinha que chegar antes das 8 em casa. Foi por isso que nos demos tão bem! A minha mulher vasculha os meus bolsos, acredita? Jura? Por isso nos demos tão bem naquela noite. Acredita que o meu marido vasculha a minha bolsa? Ah, nos demos tão bem naquele bar. Só porque você gosta dos filmes do Hitchcock. E ela detesta. E eu gosto dos filmes do Almodóvar. E ele detesta. É o meu favorito! Eu adoro! Ela odeia. Ele detesta, consegue imaginar?! Foi por isso que nos demos tão bem naquela semana. Posso ligar mais tarde? Claro, ele vai sair pra jantar na mãe esta noite. Toda quarta. Ela vai na hidroginástica. Toda terça e quinta. Foi por isso que nos demos tão bem naquele mês inteiro. No ano de 94. Ah o ano de 1994! Com pouco açúcar. Pra mim com mais açúcar. Foi por isso talvez que nos dávamos tão bem naquelas noites. Gosto do verde. Prefiro o cinza. Gosto do branco. Gosto do tinto. Gosto da amarela. Mas já viu a alaranjada? Foi por isso que nos demos tão bem naquela cama. Eu tenho que contar um segredo. Eu quero contar um segredo pra você. Sonho com algo secreto. Eu vou contar pra você uma fantasia. Promete que não ri de mim? Vai rir de mim se eu contar? Foi por isso que nos demos tão bem em todas as outras camas. Faz? Faz? De novo? Fez? Fiz. Faço? Eu faria de novo. Mais? Claro. Foi por isso que nos demos tão bem no ano de 1994. Eu vou ser transferido pro norte de Antares. Eu vou ser transferida pro sul de Andrômeda. Liga de vez em quando? Ligo sempre. Jura. Juro. Vai me visitar? Já pensou que loucura? Já pensou que delícia? (sussurra algo). Que loucura. É, que delícia. Foi por isso que nos demos tão bem no ano de 1995. 110
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Sabiá de guerra Luís Henrique Pellanda
Era tão comum menino matar passarinho. Hoje vocês vão dizer que não, mas era. Entre meninos e passarinhos parecia haver certa atração ancestral, uma inveja recíproca, uma dor que vinha de longe e com tanta força que não podia ser relevada. Não sei, era como se disputassem um mesmo trono na natureza, a criança e a ave, o canto de um sabiá pela manhã lembrando um chamado de guerra, uma convocação ao combate. Os meninos o ouviam e já saltavam apanhar a setra, botar no ombro a espingarda de pressão, os chumbinhos esquentando no bolso. Corriam sondar a arapuca armada na tarde de ontem, aquele pequeno prisioneiro na neblina. O que fazer com ele, soltá-lo ou submetê-lo? Não, os meninos não tinham o céu, mas decidiam que destino dar aos pássaros. Hoje vocês vão dizer que não, e realmente as coisas mudaram, o convívio entre crianças e passarinhos se tornou raro, são mínimas as chances de confronto. Por isso me espantei ao encontrar, semana passada, na Pracinha do Amor, um menino debruçado sobre o cadáver de um laranjeira. Já tinha visto o piá por ali antes, andando de bicicleta ou jogando bola sozinho, praticando embaixadas, driblando uma zaga de vento. Devia ter dez anos, 111
não mais que isso e, quando nos cruzamos, sustentamos o olhar por uns quatro, cinco segundos, uma eternidade para a concentração infantil. Eu estava curioso e ele, logo vi, ansioso para falar comigo, revelar algum prodígio. Oi, eu o cumprimentei, e ele me respondeu, circunspecto, oi. Era óbvio que vivia um momento solene, e fazia questão de demonstrá-lo, era fácil ler em seu rosto o respeito que sentia pela morte estendida diante de nós. Perguntei o que tinha acontecido com o passarinho e, sem rodeios, ele falou: — Morreu. Fiquei quieto, e me mantive assim por um bom tempo, na esperança de que ele me explicasse como e por que o bicho havia morrido. Queria que me apontasse um culpado, me contasse a história de um crime, pois aquele também parecia ser o seu desejo. O menino entendeu o meu silêncio e as minhas intenções, mas tudo que disse foi: — Não fui eu. Continuei na minha, embora tivesse mais perguntas engatilhadas. Por exemplo, o que o menino planejava fazer com o sabiá, enterrá-lo? Ele me ouviu sem olhar para mim. Puxou do bolso uma fita vermelha, bem fina e cacheada, dessas de enfeitar presente. Com a fita, enlaçou uma das pernas do animal. Enquanto dava o nó, com delicadeza, respondeu: — Não, não vou enterrar. Levantou-se, limpou a calça gasta, o pó dos joelhos, apanhou o sabiá amolecido, aquele pescoço pendurado e tão triste, e o escondeu dentro da jaqueta de náilon. Depois assoprou a penugem presa entre seus dedos e anunciou, muito sério e seguro: 112
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— Vou pra casa, ressuscitar esse passarinho. Consegui disfarçar a minha surpresa, mas não a minha incredulidade. Quis saber como ele faria aquilo. É segredo, rebateu o menino. Mas me pediu atenção: se nos próximos dias eu avistasse algum sabiá laranjeira voando pelo Centro de Curitiba, com uma fita vermelha na perna, eu saberia que o procedimento tinha dado certo. Não sei se funcionou, e repasso a vocês a minha expectativa. Duvidei dos poderes do menino, confesso, mas isso não significa que eu não esteja torcendo por ele. É um milagre que espero sem ansiedade, sem fé, sem preocupação. Mas com sinceridade. E torço para que, na madrugada de amanhã, ou depois, ou ainda mais tarde, daqui a mil anos, tanto faz, aquele mesmo sabiá me acorde no meio da noite, com o seu doce canto de guerra, sua voz de flauta prenunciando novas luzes e lutas, num mundo onde os meninos ressuscitam passarinhos.
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O dia em que encontrei meu pai Luiz Ruffato
Para Marieta Boimel Minha mãe não acreditou quando eu disse que havia encontrado com meu pai. Primeiro, ela riu nervosa, esfregando o dedão esquerdo com a mão direita, jeito dela de mostrar aborrecimento. Depois, como insistisse, ficou brava, o rosto vermelho, me agarrou pelo braço e apontando o fura-bolo na minha cara começou a gritar que não fora assim que me criara, não devia mentir, ainda mais sobre um assunto daqueles, e, como continuasse a insistir, passou a me chacoalhar, descontrolada, achei que ia me bater, ela, que nunca me dera nem mesmo um beliscão. De repente, me abraçou forte, chorando, e perguntou, baixinho, entre soluços, Onde, meu filho, onde tu viste ele? Onde encontraste teu pai? O problema é que minha mãe sempre me achou invencioneiro. Essa palavra só ela usava, invencioneiro. Minha mãe chegava do grupo escolar onde dava aulas de manhã, requentava a comida e me esperava para almoçarmos juntos. Quase sempre 115
quieta, me interrogava olhando o relógio, e saía afadigada para dar aulas particulares, emendando com um curso na PUC à noite. Eu gostava de ler gibis deitado no chão da sala, de bunda para cima, esquecido de tudo, ou então de pegar régua, lápis e borracha e, esparramado na mesma posição, traçar ruas e avenidas de cidades imaginárias em enormes folhas de cartolina branca. Nem percebia o cômodo aos poucos ficando menor, na medida em que esvaziava da luz do sol. No edifício onde morávamos, um prédio velho de cinco andares, não conversávamos com ninguém, só mesmo bom dia, boa tarde, boa noite. Minha mãe dizia ser aquilo um ninho de mexeriqueiros, palavra que também só ela usava, mexeriqueiro. Quando me indagavam sobre meu pai, respondia, como ela ensinara, que ele tinha morrido, mas se quisesse saber mais, minha mãe desconversava, eu percebia as lágrimas, mas fingia que não. Nem meus avós paternos, vivendo no interior de Minas, nem meus avós maternos, em Porto Alegre, tocavam no nome dele, quando eu passava as férias com uns ou outros — eles me revezavam, cheios de ciúmes. Mas do que morreu seu pai?, a molecada da rua cismava. Como não sabia, imaginava, pois de nada adiantava teimar com minha mãe, ela sempre respondia, De doença, e ponto. Inventei então uma história, alongada a cada vez que contava: meu pai viajou à África para caçar leões (eu adorava gatos, embora fosse alérgico ao pelo deles). Estavam todos acampados na savana, mas uns, sem juízo, resolveram entrar na floresta e sumiram. Porque era o mais corajoso, escalaram meu pai para procurá-los. Ele apanhou uma canoa e remou rio acima numa região infestada de crocodilos e mosquitos gigantes, e não mais foi visto. Por isso, não 116
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dava para dizer, com certeza, se ele tinha morrido, menos ainda do quê. Pode ser até que estivesse abrigado em alguma aldeia, enfermo, juntando forças para voltar à civilização. Mesmo assombrados, meus colegas nunca me convidavam para a casa deles, nem para festas de aniversário. Nosso convívio se limitava ao campinho de futebol, um terreno largo entre dois sobrados, quatro quadras acima do meu prédio, onde eu era fundamental, pois, jogando como meia-armador, me igualavam ao Gerson, o Canhotinha de Ouro: sério, de cabeça erguida lançava a bola nos pés de quem desejasse, sem um passe errado, e todo mundo comentava, Esse é craque! A parede do quarto coberta de pôsteres: o time do Flamengo de 1972, a seleção brasileira campeã do Sesquicentenário da Independência, uma página arrancada da revista Placar, Paulo César, camisa rubro-negra, número 11 às costas, comemora a conquista da Taça Guanabara, o cartaz do filme Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, já colado ali quando minha mãe alugou a casa, conforme explicou, impaciente. Toda noite, ao chegar da PUC, ela entrava pé ante pé no quarto, ajeitava a coberta sobre meu corpo magricelo e me beijava, sussurrando, Te amo, meu curumim, antes de encostar a porta. Muito bonita, falava orgulhosa que a avó, ou bisavó, tinha sido pega no laço, por isso os cabelos escorridos e pretos, os olhos ajaboticabados, e passava a mão nos meus cabelos, pretos e escorridos, porque descendente de missioneiros, e chorava. Minha mãe chorava muito nesta época... Mas a beleza dela me incomodava, porque na rua os meninos sempre mencionavam isso, o que me deixava furioso, obrigando a sair no tapa com eles, bando de idiotas, e voltava para casa todo estropiado. No entanto, mesmo muito bonita, arrastava uma tristeza larga e 117
comprida. Nos fins de semana, quando assistíamos à televisão ou nas poucas vezes que passeávamos pelo bairro, ela murchava invejando a felicidade dos casais abraçados, das famílias reunidas. Eu temia que, conhecendo alguém, ela me abandonasse, ansiava permanecêssemos para sempre juntos, à espera do meu pai, porque não acreditava que ele estivesse morto, para mim ele se achava apenas impossibilitado de fazer contato, quem sabe perdido solitário no coração da África... A cara ossuda da Dona Dulce apareceu na fresta da porta entreaberta. Dona Imaculada interrompeu a aula, saiu e elas ficaram cochichando no corredor. Minha professora voltou, mandou que sossegássemos o facho, falou para eu juntar as coisas e acompanhar a Dona Dulce. Minhas pernas tremeram, era a segunda vez naquela semana que não fazia o dever de casa, pura distração, e pensei que seria colocado de castigo — o castigo consistia em ouvir sermão da diretora, na presença da mãe, uma vergonha. Peguei o caderno, a cartilha, a tabuada, o lápis, a borracha, o apontador, a régua e, em meio ao silêncio especulativo dos colegas, joguei tudo dentro da pasta. Driblando as carteiras duplas, os pés de ferro, avancei apreensivo, e ao mesmo tempo assoberbado, de alguma maneira aquele imprevisto me destacava momentaneamente do restante da turma. Altivo, alinhei meus passos ao andar desencantado da Dona Dulce, alta e magra, cabelos presos num lenço estampado, até a sala da diretoria. Dona Dulce empurrou a porta, e um homem de uniforme levantou da cadeira, de imediato. Ela contornou a ampla mesa de madeira escura, e, sob o olhar azul e carrancudo do Presidente da República, disse, solene e constrangida, Meu filho, acompanhe o tenente, ele vai te levar para ver seu pai. Minha cabeça ro118
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dou, achei que ia desmaiar. Quer dizer que eu estava certo todo o tempo!? Meu pai não havia morrido coisa nenhuma!? Satisfeito, enchi o peito com o ar gelado de junho e contemplei confiante o homem de uniforme. Ele colocou o quepe, pegou minha mão direita e seguimos em direção à saída da escola. No fim da escada, estacionado no meio-fio, um jipe verde, sem capota, aguardava. Quando nos aproximamos, o soldado perfilou batendo continência, e o tenente perguntou se eu queria ir na frente, ao lado do motorista. Respondi sim, dei a volta, entrei no carro e por quase uma hora circulamos por lugares desconhecidos, o vento bagunçando meus cabelos de índio guarani. Paramos em frente a uma enorme casa pintada de azul claro. O soldado desceu, enfiou as mãos grandes por debaixo do meu sovaco e me colocou de pé na calçada. O tenente puxou o portão de ferro, e atravessamos o caminho ladeado por jardins. Um cachorro preto reparava curioso o movimento, amarrado na árvore. Penetramos uma nuvem de fumaça de cigarro, pessoas sentadas num sofá vendo televisão, o volume alto, outras jogando dominó no canto da sala, outras, de pé, conversando encostadas na estante cheia de livros. O tenente cumprimentou a todos, com um único gesto, e nos enfiamos pelo corredor úmido. Eu estava ansioso para rever meu pai, cujo rosto nem recordava mais, como lembrança apenas a música que ele assobiava quando alegre e o cheiro de pasta Kolynos que exalava da sua boca. Escancarou uma porta, deixando entrever o quarto pequeno, escuro, apesar do sol lá fora, impregnado de um cheiro horrível, mistura de mofo, suor, mijo, bosta, remédio, deu vontade de vomitar. Deitado na cama, sob um cobertor sebento, o corpo, longa barba voltada para a parede. 119
O tenente disse, Osmar, aqui, seu filho. Estranhei, porque meu pai não chamava Osmar. O homem virou para o meu lado e só então notei que estava bastante machucado, devia ter caído de algum lugar bem alto, tinha dificuldade até mesmo para abrir os olhos. Cumprimente seu pai, menino, o tenente mandou. Assustado e com nojo, pensei em explicar que aquele barbudo, sujo e fedorento, não podia ser meu pai, porque meu pai tinha cheiro bom de pasta Kolynos e minha mãe contava que ele era o sujeito mais bonito do mundo, mas fiquei com pena e estendi a mão. Ele, no entanto, permaneceu imóvel, ofegante, parecendo apavorado. O tenente disse, Alfredo, não piore as coisas, nós só queremos proteger sua família. Quando ele falou Alfredo, mergulhei na dúvida, meu pai chamava Alfredo. Me enchi de coragem e perguntei, incrédulo, O senhor é meu pai mesmo? O homem reabriu os olhos ensanguentados, tentou mover os lábios roxos e inchados, onde se destacavam vários dentes quebrados, girou o corpo para a parede e começou a chorar.
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Finalmente hoje Marcio Renato dos Santos
De um segundo para o outro, um som, aparentemente do ambiente externo, invade o interior do teatro. Não é possível dizer, ao certo, qual a fonte do ruído. Fernando M apresenta o seu repertório autoral para sete pessoas, em um espaço com trezentas poltronas. Alguns minutos antes do início do show, o diretor do teatro, Ronaldo F, disse para Fernando M que foram vendidos cinco ingressos, além de duas cortesias. O artista falou que a apresentação estava cancelada. Fernando M alegou que era inviável entrar no palco com menos de cinquenta pagantes. Mas Ronaldo F comentou que Jonas X, um jornalista, recebeu um ingresso e estava curioso para conhecer as canções de Fernando M. Foi por causa da presença de Jonas X e de um outro motivo, transcendental, que o show aconteceu. Sentado em um banco, Fernando M cumprimentou o público, e com o violão e a sua voz deu início à apresentação. Entre a terceira e a quarta música, apertou o botão de uma garrafa térmica e uma bebida escura começou a cair dentro de um copo de plástico. Ele bebeu um gole, talvez fosse café, e ficou alguns segundos em silêncio. Nesse breve intervalo, foi possível escutar 121
vozes, fora do teatro, cantando “Pais e filhos”, da Legião Urbana. O artista sorriu e começou a cantar mais uma canção, que disse ser inédita. No intervalo seguinte, antes de Fernando M apresentar a quinta canção, novamente o som daquelas vozes entrou no teatro. Cantavam “Será”, outro sucesso da Legião. Aquele som de vozes cantando Legião Urbana ainda invadiu o teatro na primeira hora da apresentação — o show deve ter durado pouco mais de duas horas. O diretor do teatro levantou da poltrona três vezes, caminhando até a saída da sala de espetáculos. E, a partir do momento em que retornou, pela terceira vez, o coro externo deixou de incomodar o público e Fernando M, quando o artista, entre uma e outra música, aparentemente descansava a voz bebendo o líquido negro que estava dentro da garrafa térmica. Eu ficaria sabendo, depois do fim do show, que o diretor do teatro conversou com aqueles doze ou treze meninos e meninas que estavam do lado de fora do teatro cantando o repertório da Legião Urbana. Inicialmente, pediu que respeitassem o artista e o público. Depois, perguntou se eles gostariam de conferir, sem pagar ingresso, o show de Fernando M, mas não quiseram. Por fim, em seu terceiro contato, foi obrigado a dizer que, se não fizessem silêncio, seria obrigado a chamar a polícia. Bom, faço esta narrativa e ainda nem me apresentei. Meu nome é, ou melhor, podem me chamar de Helena C, muito prazer. Fui amante do Jonas X e viajei com ele para aquela cidade do interior, onde fomos convidados para o show do Fernando M. Naquele período, já faz alguns anos, quando o Jonas X 122
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viajava, sempre que possível eu seguia com ele. Conheci dezenas de cidades. Mas, apesar de ter me apresentado como ex, prefiro pensar que ainda sou amante dele. Afinal, este texto trata, recupera e até recria uma apresentação de Fernando M e, não me envergonho de confessar, gostaria que aquele show ainda estivesse acontecendo, agora, nesse instante. O repertório do Fernando M é formado principalmente por canções de protesto. Ouço uma, duas, três, quatro canções e tenho a impressão de que elas parecem muito com as do Raul Seixas, seja no texto e também por causa do jeito de cantar. Não sei se são boas, não sei mesmo, mas são agradáveis e eu gosto. O artista apresentou outras canções, uma delas me lembrou um sucesso do Zeca Baleiro, outra até pensei que fosse do Zé Ramalho, mas Fernando M comentou que eram composições de sua autoria. Depois do fim do show, fomos até um bar. E, bebendo cerveja, Fernando M conversava, principalmente, com o Jonas X, o meu Jonas X. Quase não falei, apenas bebi e sorri. Já o diretor do teatro, Ronaldo F, aproveitava qualquer brecha, segundos em que Jonas X e Fernando M respiravam, para contar que, na região, Fernando M era conhecido e respeitado, e que a ausência de público devia ter explicação. Quase não falei nada, já disse isso, e realmente fiquei ouvindo, com atenção, aquela conversa que seguiu por horas. Fernando M contava para Jonas X sobre a sua carreira, dizia ser amigo de compositores conhecidos em todo o país e comentou, mais de uma vez, que por pouco, em diversas situações, quase as123
sinou contrato com grandes gravadoras. O diretor do teatro, Ronaldo F, também tentava impressionar, inclusive contando piadas e, enfim, queria atenção do Jonas X, o meu Jonas X. Mas o Jonas X está afastado, há alguns anos, da imprensa. Ele se tornou conhecido, pelo menos entre alguns colegas de profissão, por atuar em cadernos de cultura. Trabalhou em cinco jornais e em duas revistas, sempre na cobertura dos lançamentos da indústria da música popular. Ganhava álbuns, ingressos para shows, viajava para festivais, era cortejado. Atualmente diz, pelo menos para mim, que era manipulado por produtores, assessores e artistas em início de carreira. Havia um aparente glamour em sua atividade, mas o salário nunca foi suficiente. Enquanto estava nos segundos cadernos, morava com a família e se vestia como se fosse roadie de uma banda de rock. Até que, para a surpresa de alguns colegas, Jonas X abandonou o jornalismo. Tornou-se assessor de imprensa e, em menos de uma década, já passou pela iniciativa pública, por uma fábrica de automóveis, uma cooperativa agrícola, uma perfumaria e, atualmente, trabalha no setor de comunicação de um shopping. Comprou apartamento, carro, conseguiu casar, descasou, casou outra vez e, pelo menos enquanto acontece este relato, ele é o meu amante. Jonas X disse, mais de uma vez, que já não trabalhava em jornal e, apesar disso, Fernando M e Ronaldo F continuaram pedindo divulgação. Em algum momento da madrugada, comecei a bocejar. Escutava a conversa bebendo cerveja. Mais bebia que escutava. Então, comentei que havia gostado, em especial, de duas ou três canções, no meu entendimento, espirituais. Numa delas, Fernan124
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do M dizia que quanto mais ficava em silêncio, mais se aproximava da verdadeira comunicação, com os homens e com o sobrenatural. Todos ficaram em silêncio. Nós, ao redor daquela mesa, e as outras pessoas que estavam no bar. Pelo menos essa foi a minha impressão, apesar de que, naquele momento, eu, como já contei, havia bebido muita cerveja, me sentia tonta, com uma leve dor de cabeça. Talvez o silêncio tenha acontecido apenas pra mim, não sei ao certo. Jonas X levanta, segue em direção ao banheiro e, antes de entrar, me olha de um jeito que nem precisa falar, eu entendo. Me agradeceu por eu ter interrompido uma conversa que, pra ele, já não dava mais nada. Então, Fernando M diz ser espírita e Ronaldo F comenta que também é. Eles continuam falando, Fernando M conta que a cidade é espiritualizada pelo fato de, no passado, terem acontecido incidentes violentos. Ronaldo F completa a frase do artista, acrescentando que nada é por acaso, nada, nem mesmo este encontro. Os dois pareciam dizer um texto decorado, um deles começava, o outro seguia, e assim se fez um discurso a respeito de questões transcendentais. Fernando M, então, fala que é importante se apresentar diante de cadeiras vazias. Ronaldo F comenta que no teatro há trezentas poltronas e hoje havia apenas sete pessoas na plateia. Mas, acrescentou Fernando M, as outras duzentas e noventa e três poltronas vagas estavam ocupadas por espíritos. Ele continuou falando que as cadeiras vazias sempre são ocupadas por espíritos e, por isso, um artista não pode dei125
xar de se apresentar quando, por exemplo, são vendidos apenas poucos ingressos. Comecei a me sentir ainda mais tonta, tudo parecia rodar, o som diminuiu, as luzes apagaram, não lembro como saí daquele bar e voltei para o hotel, sabe, as coisas foram seguindo, seguindo até que chego aqui, diante de você, veja só, finalmente hoje.
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Meu olho e eu Miguel Sanches Neto
1. Tudo culpa de meu olho. A solidão em que me encontro, a falta de prazer com a criação de cachorros, o desconforto de morar nesta casa, a revolta com meu rosto, a raiva de meu jardim, o tédio que me causam as figuras humanas. Meu olho me prende em casa, não me deixa conversar com os amigos, me faz esquecer os prazeres da jardinagem. É perverso, com requintes de velho ciumento. Poderia furá-lo, mas pouco adiantaria. O outro já está contaminado e ocuparia o lugar deste que me martiriza, estragando o livro que todos dizem ser bom, amargando na boca o bife suculento, fazendo com que a goiaba madura me repugne. E ninguém consegue viver com ele, minha mulher já desistiu há bastante tempo, meu filho não aguenta mais do que a visita de meia hora, apenas para cumprir a obrigação, e os amigos, esses me cumprimentam de longe, tentando fugir de um olho impiedoso que se esforça para me deixar ainda mais distante de quem já nem se detém para falar comigo. Meu olho me isola, mas não me consola. Gosta de me provocar, me maltrata e sei que tenho que suportá-lo, aceitando suas agressões, pois afinal fui eu que o ensi127
nei a estudar as coisas com a avidez do detalhe. E não há nada que faça o olho gostar de mim, e isso me deixa ainda mais sozinho, sem ao menos o conforto de me ver pelas minhas qualidades. Sei que tenho qualidades, mas não consigo convencer meu olho. Ele me cega para tantas coisas e não me deixa sentir o sabor de tudo que é prezado pelas pessoas. E não me revolto contra ele, o que faz com que se sinta mais poderoso e aumente seu desprezo por mim. Mas disfarcemos que o olho nos espia. 2. Não sei ao certo quando foi o começo da servidão. Sempre é mais difícil definir uma coisa no passado da gente do que no dos outros. Lembro-me, no entanto, de uma viagem para ver uma tia de minha mãe. Viagem de ônibus pelo interior, o sol nas vidraças. A mãe está com o menino que se distrai olhando os passageiros, mas o tempo vai mais devagar do que o velho ônibus que para a cada instante para pegar ou largar pessoas como um peixe lerdo respirando pelas guelras. A paisagem de pastos se confunde com um grande lago. O menino vai criando essas ficções e logo se imagina num cenário de faroeste. Quer ser como o herói dos filmes, arma na cinta e o olhar de quem não tem amigos nem erra a pontaria. Na rodoviária da cidade da tia, ele chora por não ter uma arma. A mãe não se comove, está com pouco dinheiro e não vai gastá-lo à toa. Mas o menino é um herói e os heróis nunca saem perdendo. Chora mais alto, empaca, faz biquinho. E logo estão na loja de brinquedos. O revólver de espoleta é preto como o dos heróis e faz 128
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barulho, liberando cheiro de pólvora e fumaça. Na chácara da tia, gasta a munição toda — muitos são os bandidos: o galo que deu um carreirão na galinha; o porco que insiste em entrar na sala; e a sabiá que come minhocas e detritos no rego de água do tanque. O tio quer experimentar a arma e mete o polegar no gatilho, afrouxando a mola. O revólver é bonito, preto e reluzente. O cabo de plástico imita osso. Mas isso o menino não enxerga, vê apenas o gatilho mole, porque o revólver é só o que nele se danificou. Não quer mais brincar, tão insuportável é o defeito. O herói foi vencido, sua arma imprestável vai pro meio do rio, nunca mais vê-la, que fique longe com sua maquinaria avariada. A mãe diz que poderiam consertar, só que isso não convence o menino, o imprestável é para sempre. E o mocinho se retira de cena, solitário como no fim dos filmes de Kung Fu, caminhando por uma estrada vermelha de poeira e poente. 3. Todos têm os grandes amigos da infância, pontos de referência na história pessoal. Nas fotos, eles aparecem sorrindo, envelhecendo de ano para ano, mas juntos por longos períodos. Percorro meus álbuns e só vejo caras novas. Poucas se repetem, como nas fotos de políticos, cada dia um novo grupo, uma cidade diferente, com pessoas de partidos adversários. Tento encontrar os grandes amigos nas fotos, mas de alguns mal me lembro do nome. Pelo menos um grande amigo, que marcou minha adolescência, eu devo ter tido. Todo mundo teve. Faço um esforço de memória. 129
O Ariovaldo poderia ter sido este companheiro, mas tinha uma mania estúpida de caminhar que me irritava. Parecia um pato gordo e doméstico tentando correr para levantar voo. Mexia demais com os braços, imaginando-os asas. Nas tardes em que saíamos pela avenida principal, ele sempre andando rápido, falando de pressa, asas gesticulantes, eu chegava a sentir seu cheiro de pato e tinha vontade de deixá-lo sozinho. Um dia não quis mais andar com essa ave condenada ao chão. Carlinhos era quieto e magro e se mostrou uma recompensa. Agora tinha ao meu lado alguém que não chamava a atenção. Ficávamos em silêncio longos momentos; e a amizade é também isso, um não falar nada. Carlinhos teria sido o amigo perfeito se não tivesse a mania, cada vez mais insuportável, de mascar chicletes com a boca aberta, fazendo o barulho de quem pisa na lama. De manhã e de noite, ele sempre ruminando a goma barulhenta. Quando reclamei, disse que mascar chiclete era a sua maneira de não pensar. Não suportaria um silêncio em que tivesse que se ocupar com as coisas que iam em sua cabeça. O silêncio era sua maldição e eu queria alguém que o amasse. Rose era quieta, falava quase para dentro, e me beijava com a boca fechada. Comecei a amá-la desde o dia em que veio transferida para a nossa escola. Camisa branca quase transparente, calça azul marinho apertando coxas e nádegas firmes. Como os seios fossem grandes, abriam levemente os botões e eu me deliciava com suas penugens loiras quando nos sentávamos na grama do pátio sob o sol da manhã. Por mais que ficássemos de mãos dadas durante as horas quentes do dia, elas nunca transpiravam. Mãos secas, olhos úmidos, beijo casto. Amei Rose, para quem escrevi enlouquecidos poemas de amor. Quando foi passar as férias 130
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com os parentes de uma cidade distante, pensei que não suportaria. Um mês sem seus lábios, sem a imagem de seus seios redondos, sem a maciez de mãos que percorriam meu rosto. Como o combinado, trocaríamos cartas. Logo no dia seguinte, escrevo a primeira, com um poema que fala de mel, trigo maduro, romã partida e suculenta fatia de abacaxi. Escrevo várias na primeira semana, numa paixão fortalecida pela distância. Com Rose me casarei. Ela tem um corpo comunicativo, não precisa falar para se impor. O seu corpo fala por ela, enche todos os espaços. Mas agora que estava distante, queria também suas palavras. A primeira carta chegou uma semana depois. O coração lia, comovido, suas declarações sinceras de amor, mas a mão ia circulando com caneta vermelha os erros de ortografia, de conjugação e de pontuação. Mais insuportáveis ainda eram as frases incoerentes. O coração queria a verdade e a doçura das palavras; a mão, o domínio do idioma. Venceu a mão, que se recusou a responder as cartas. Depois da desilusão, nunca mais escrevi nenhuma, mas continuava anotando os erros das que chegavam. Rose queria saber a razão do silêncio. O coração desejava falar tudo, mas a mão é que comanda o ofício de escrever. Quando Rose retornou, um mês depois, a mão já tinha convencido o coração. Nós nos separamos sem explicações. De vez em quando me dava vontade de procurá-la, mas daí a mão tirava da gaveta do guarda-roupa as cartas cheias de rasuras vermelhas. 4. Poucos da turma entraram na universidade. Fui um deles. Fazer Direito, para seguir a carreira de juiz. Sempre soube 131
muito bem minha vocação. Os poemas agora não eram apaixonados, tinha renunciado aos sentimentos amorosos. Só escrevia poemas cívicos. Melhorar a humanidade, o país, o povo. Estava morando em Curitiba e subia as escadas do velho prédio da Praça Santos Andrade com orgulho. A melhor universidade do estado e os melhores docentes. Nas primeiras aulas, o entusiasmo venceu. Mas logo já não suportava os professores do primeiro semestre. Matava as aulas para assistir às dos períodos mais avançados. Descobri um grande professor que lecionava português. Depois da aula, saímos pelos bares para conversar sobre literatura — a namorada do professor junto. Havia sempre amigos circunstanciais, que o encontravam por acaso e se uniam ao grupo. Ao invés de ler os livros que os advogados exigiam, comecei a me dedicar exclusivamente à leitura literária. Foi nos bares que fiz minha faculdade de Letras, embora estivesse matriculado no curso de Direito — logo abandonado. Minha família não sabia de nada, achava que em breve teria um advogado e um futuro juiz. Eu aproveitava o tempo para ler, orientado pelo professor Valentino, que me cedia livros, franqueando-me seu apartamento. Ainda jovem, ele vivia num prédio na esquina rua XV com a Mariano Torres. Em algumas noites, eu dormia lá, num colchonete improvisado na biblioteca de estantes feitas de caixotes de madeira ou tijolos de seis furos. A rusticidade das estantes contrastava com a riqueza dos volumes. Valentino gastava boa parte do salário e todo o seu tempo livre com livros. Ia me guiando no mundo da literatura, indicando autores, me ensinando a melhor maneira de avaliar uma obra. Em muitos momentos ele se trancava em seu quarto. Eu ficava pela casa lendo, muitas vezes dormia ali mesmo. O 132
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Professor (passei a chamá-lo assim) se recolhia cedo e se levantava tarde, resguardando, com certo mistério, uma parcela de sua vida, que era tão simples quanto escancarada, sem nenhuma perversão. Gostava de dizer que quem está viciado em literatura não precisa de outros aditivos. Sônia, sua namorada, ficava à noite comigo, íamos ao cinema, jantávamos em algum restaurante barato e logo começamos a dormir juntos, sem ao menos fechar a biblioteca. O Professor não saía de seu quarto depois das dez da noite e nem antes das dez da manhã. Sônia tinha as pernas longas e rijas, um sexo escuro e de pelugem macia. Como um urso, eu buscava o oco de seu tronco atrás do mel silvestre, fresco e aromático. Não tínhamos remorso algum, porque não havia traição. Durante o dia, ela era do Professor e não havia qualquer malícia em nossos olhares. Muitas vezes, para deixá-los a sós, eu saía sem destino certo. Na volta, eles já estavam no tapete da sala, sobre as almofadas, Sônia com uma revista qualquer, o Professor com um romance. Eu pegava o que tinha deixado na mesa da cozinha ou em outro lugar e procurava uma almofada disponível. Passávamos assim as tardes. Uma ou outra vez eu os surpreendia ainda nus. Ele se levantava sem nenhum constrangimento e atirava a roupa para Sônia, que punha uma tanguinha para cobrir o que eu já conhecia e, depois de se enfiar em uma camiseta branca, continuava lendo. Valentino ia ao banheiro para o sonoro jato de urina contra a louça, retornando com um calção de futebol, o sexo ligeiramente inchado. Eu tinha enfim encontrado amigos e era grato à literatura. Agora podia conviver com as pessoas, sem cobrar nada delas. Não exigia que Sônia fosse apenas minha. E era mais ou menos 133
normal que eu tivesse um turno com ela e o Professor outro. Ele também não exigia fidelidade, o que era um exemplo. Estávamos unidos pelos livros, que passavam de mão em mão. Os meus ficavam na biblioteca em comum. Quando eu ia ler um destes volumes, encontrava-o cheio de anotações de Valentino. Edições bonitas eram totalmente rasuradas, as folhas de rosto traziam vários parágrafos de divagações sobre a obra. Com prazer, eu percorria o livro já amaciado por Valentino. Ao invés de me irritar, me enternecia aquela semidestruição do volume. Quando entusiasmado, o Professor escrevia sobre a mancha tipográfica, tornando alguns trechos ilegíveis. Percorrer aqueles livros era uma experiência agradável por representar um estreitamento de amizade com o autor das rasuras. Quanto mais eu gostava destas leituras, mais eu me sentia confortável nos encontros com Sônia. Sônia era uma mulher ligeiramente desengonçada, por causa de suas pernas longas. Mas nunca uma mulher me atraiu tanto. Uma atração estranha. Podíamos passar horas juntos sem nem olhar um para o outro, mas soava um sinal e logo estávamos rolando no colchonete. Eu procurava as marcas do Professor na sua pele, mas não havia anotações, apenas o jeito agressivamente meigo com que ela reagia a meus carinhos. 5. Não eram ainda dez horas e estávamos nus no colchonete. O sol indiscreto lambia meu sexo cansado, deixando uma fina camada branca e ressequida sobre ele. Não ouvi o barulho da porta, mas identifiquei vozes no início do corredor. Enquanto tentava acordar Sônia, Valentino entrou na biblioteca com um pacote nas mãos. Chegou alheio a tudo. Quero que você seja o 134
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primeiro a ver, me disse, abrindo o envelope com um livro finamente editado que trazia, na capa, o seu nome. Entendi tudo. As longas horas de exílio no quarto, o segredo do desaparecimento dos dicionários da estante. Valentino ficara trabalhando em surdina em um romance. O título soava estranho: Três. Achei na hora que era uma referência ao triângulo amoroso, mas ele já explicava tratar-se de um truque estrutural. A mesma história contada de três pontos de vista diferentes. Só que não havia três narradores distintos. Apenas um. No primeiro capítulo, ele é jovem e se recorda do assassinato de sua primeira mulher. Está muito assustado e narra tudo de forma tumultuada, sendo difícil, para o leitor, entender ao certo quem é o culpado. No segundo capítulo, o narrador já é um próspero empresário, que conta à sua segunda mulher uma versão que o inocenta. No terceiro, está velho e sozinho. A nova companheira o abandonou e ele reconstitui, para uso próprio, como tudo de fato aconteceu. O romance acaba com o personagem se olhando no espelho. Tudo isso só fiquei sabendo depois, quando li o romance. Na hora, apenas festejamos a novidade de ter um romancista em casa. Sônia já estava folheando o livro, ainda nua e com odor de fêmea amada. Combinamos ir imediatamente a um restaurante. E o Professor mandou que antes tomássemos banho enquanto ele lia alguns trechos. Nunca tínhamos tomado banho juntos. Sônia ligou o registro da banheira, fechamos a porta. Ninguém pensou em lavar o corpo. Antes que o nível da água chegasse ao meio já estávamos novamente fodendo para comemorar o livro. Era uma nova fase. Agora ele era escritor e nós amantes, pois eu estava quebrando a regra do turno. Quem devia estar com Sônia era Valentino. Isso 135
não me preocupava, apenas me dava mais vontade de prolongar o banho. A excitação fez com que eu precipitasse o gozo. Achei melhor sair e me enxugar. Ela continuou na banheira e, quando eu estava saindo, o Professor entrou, já nu, o sexo meio hasteado, indo direto para a nossa namorada. Não fechou a porta. Fiquei ouvindo os ruídos. Sônia gemia alto, o que nunca fazia comigo. Liguei o rádio da biblioteca a todo volume. 6. O almoço foi alegre. O Professor contou como ficara meses trabalhando no texto, as várias modificações e os acertos com a editora do Rio. Eu em silêncio. Sônia pedia detalhes, a comida abandonada no prato, atrás de outro alimento. Voltamos para casa já no fim da tarde e Valentino nos levou ao quarto para mostrar o novo original em que trabalhava. Eu peguei o romance, fui para a sala e fiquei lendo durante a noite toda. Sônia não dormiu comigo, Valentino decretara feriado. Algo se partira. Não poderíamos viver o mesmo idílio. Antes éramos apenas três leitores, agora um de nós se tornara escritor. E o escritor não era eu. Tinha que arrumar um novo papel para mim. Quando, na manhã seguinte, acabei a leitura, o livro realmente guardava grandes qualidades, fiquei mais triste ainda. Passava das sete horas da manhã, o casal só acordaria às dez, havia muito tempo livre e nenhum sono. Peguei a máquina para escrever uma carta a Valentino. Elogiei com dificuldade o que merecia ser elogiado, mas exagerei os defeitos. Muitos dos diálogos eram vazios e não desempenhavam função narrativa. Ele não tinha conseguido marcar a diferença entre a linguagem do personagem nas 136
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três fases de vida. A cena do assassinato era inverossímil. E terminei a carta dizendo que, apesar do romance descambar para o rocambole, tinha lá o seu valor, ainda mais em se tratando de um livro de estreia. Não mostrei a carta a ninguém. Saí antes das dez, fui para o meu quarto de pensão e arrumei as malas. Faltavam pouco mais de seis meses para minha formatura, isto é, para a formatura da turma com a qual ingressei na universidade. Meus pais já tinham dito que estavam se preparando para a grande data. Restava apenas seis meses para resolver esta situação e eu não queria que descobrissem tudo na véspera. O melhor era voltar para casa e dizer que estava abandonando o curso. Na última hora, tinha percebido que não era isso que eu queria. A desistência seria mais fácil de ser explicada do que a longa traição. 7. Minha mãe quase chorou de alegria ao me ver. Desde que deixei minha cidade, não tinha voltado. Via meus pais apenas quando eles me visitavam. Nada contra eles, é que nunca gostei do caminho de volta. À noite, na hora da janta, todos reunidos, comunico minha decisão de interromper o curso. A mãe começa a chorar. O pai se levanta, quieto, e vai para a sala de tevê. Depois de uma ausência tão longa, percebo a sordidez daquele lar. Nenhum livro, todos os móveis convencionais, uma mãe cheirando a gordura, autoritária, e um pai vencido. A mãe fica se descabelando pela casa, o pai me olha com uns olhos tristes, meio que dizendo “se não é esse o teu destino, tudo bem”. Vou para meu antigo quarto e durmo. 137
No outro dia, a mãe tenta me convencer, mas o pai me leva para pescar. Seguimos de carro por uma estrada que é só poeira e paramos numa ponte. A manhã inteira em silêncio, pescando uns lambaris que insistem em ser fisgados. Quando estamos voltando, diz: “por mim, tudo bem, filho”. Ao invés de me alegrar, esta passividade me entristece. À tarde, coloco a carta a Valentino no correio e já começo a esperar a resposta. Ela não chega durante o mês que fico em casa, suportando as brigas da mãe. Quero voltar a Curitiba, mas não tenho do que viver e agora seria vergonhoso receber mesada do pai. Ele resolve a situação. Conhece o gerente de uma construtora que está fazendo vários prédios em Curitiba. Vamos juntos ao escritório e o pai conta que sou quase advogado e que posso ajudar bastante. Alguns telefonemas e logo me encontro empregado. Vou selecionar operários para as obras. O pai se enche de orgulho, não por meu emprego, mas por ter sido ele o responsável pela contratação. A mãe fica ainda mais envergonhada. Um filho lidando com peões, quando podia estar no meio de doutores. Não dou atenção a essas reclamações. Quero ir para Curitiba, alugar um apartamento (o pai vai me emprestar algum dinheiro) num bairro distante e recomeçar. 8. O serviço na construtora é fácil. Entrevisto as pessoas, vejo a documentação, checo os antecedentes e aposto no meu instinto. Sei quando um servente é bêbado ou preguiçoso. A vocação para julgar as pessoas vai melhorando. Também aprendo a 138
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legislação trabalhista, o que me ajuda bastante. Estou morando no Juvevê e faço longas caminhadas pelo bairro. Em casa, gasto o tempo lendo, sem nenhum interesse em fazer amizades. Mesmo na construtora, não me relaciono bem. Um jornalzinho do bairro, para onde eu tinha mandado uma ou duas matérias, me convida para escrever crítica literária e passo a assinar uma coluna semanal, onde trato basicamente de lançamentos. Faço apenas crítica negativa. Como há muito livro para se ler, tanto mais útil será o crítico quanto mais defeitos encontrar nas obras. Ele assim libera o leitor para que este possa ler os textos essenciais. Talvez por isso comece a fazer sucesso e logo estou escrevendo no maior jornal do Estado, com fama de irritadiço. Ninguém me manda livro, mas eu acabo comprando um ou outro título de autores locais para fazer minhas restrições. Sou sempre impiedoso, e isso alegra os leitores ressentidos — ou seja, a maioria. 9. A solidão estava completa e produtiva quando por um descuido autorizo a contratação de uma nova secretária para a construtora. Moça pequena, seios médios, discreta, cabelos escuros, com um português admirável, Rosana conseguiu confundir meus sentidos e não pude encontrar defeitos que a tomassem inadequada para a função. Ainda fiz inúmeras gentilezas, mostrei todo o prédio, recomendei-a ao chefe e ofereci-lhe, no fim do primeiro dia, carona para casa. Não aceitou. O que fez com que eu a admirasse ainda mais. Depois de um mês de trabalho, e de muita meiguice de minha parte, o que virou motivo de piada na construtora, estáva139
mos namorando. Mas ela nunca quis ir ao apartamento onde eu morava com um mínimo de móveis e uma quantidade já considerável de livros, todos espalhados pelo chão. Eu tinha tentado seguir o estilo do apartamento do Professor. Na sala havia apenas tapete, almofadas e uma mesinha de centro. No meu quarto, um guarda-roupa comprado numa espelunca de móveis usados da rua 13 de Maio e um colchão importado. No outro quarto, uma mesa feita com uma porta sobre um cavalete e uma máquina de escrever Remington, também usada. Neste cômodo ficava a cadeira de praia onde lia. No começo, tinha projetado transformar um dos quartos em biblioteca, mas então tive a ideia de espalhar os livros pela casa. No meu quarto, encostados nos rodapés, ficavam várias fileiras de volumes de poema. Antes de dormir, gosto de ler trechos de algum poeta e, como durmo no chão, é prático ter essas obras ao alcance do braço. Na sala, deixei, também enfileiradas no assoalho, contra a parede, as coletâneas de contos e crônicas. No estúdio, os romances, livros de história, de crítica e dicionários. Este era o cômodo mais congestionado. Assim, minha leitura estava relacionada ao lugar que eu escolhia para passar meu tempo livre. Tudo isso figurava, para mim, como um grande luxo. Mas para Rosana pareceria uma loja de bugigangas. Alegrava-me por ela não aceitar meus convites para ir à Construção. Desde que comecei a morar neste apartamento, dei-lhe o nome de Construção, referência a um conto de Kafka, espécie de esconderijo de uma toupeira que não suporta a presença humana. Isso me permitia fazer brincadeiras no serviço. No final do dia, gostava de provocar, dizendo que ia para a Construção. E logo se espalhou que eu morava num prédio inacabado. Uma 140
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esquisitice que se casava com minha personalidade hostil. No início de nosso namoro, Rosana quis se certificar disso e sustentei que realmente morava numa construção, mas que era bastante habitável. Ri e ela percebeu a brincadeira. Mas ficou o medo de me acompanhar ao apartamento e encontrar um edifício ocupado, desses invadidos por mutuários cansados de esperar o fim de obras embargadas. Depois que comecei a trabalhar na construtora, diminuiu bastante o número de funcionários problemáticos. O meu faro para os defeitos alheios estava dando lucro à empresa. Como recompensa, me elevaram a chefe do Departamento Pessoal. Meu salário deu um salto e, como eu não tinha maiores gastos, logo pude comprar um terreno em uma região arborizada. Rosana ainda não havia ido ao meu apartamento e nosso namoro era mais decoroso do que o de pessoas de nossa idade. Encontrávamo-nos na casa dos pais dela, íamos aos cinemas como adolescentes e no mais era planejar a casa, que logo começou a ser erguida. Antes de colocar a laje, resolvemos nos casar. Casamento no civil, sem avisar nem meus pais. Se fossem alertados, minha mãe ia querer transformar o casamento na festa de formatura que nunca houve. Passamos a lua de mel no apartamento, que Rosana achou original. Para os parentes, ao invés de convite, seguiu um telegrama comunicando nosso endereço. Todo o dinheiro ia para a casa que, aos poucos, tomava forma. Uma casa simples, com três quartos e um jardinzinho na frente. Em menos de um ano, estávamos morando no que era nosso. Os fins de semanas eram gastos cultivando as plantas e acertando um ou outro detalhe de decoração. Agora eu tinha uma biblioteca, com direito a estante, mesa e poltrona de leitura. Para 141
minha alegria, Rosana começou a ler. Entraram vários eletrodomésticos em casa, mas o aparelho de tevê ficou de fora. Antes do casamento, cada um pôde fazer uma exigência. Rosana disse que jamais lavaria uma peça de roupa minha. Concordei e tratei logo de comprar uma máquina de lavar. Eu exigi que nunca tivéssemos tevê em casa. Ela concordou. Minhas roupas não apresentaram mudança depois que me casei. Continuei usando camisas de colarinho encardido, calças manchadas, casacos cheirando a suor. Cada um era responsável por suas peças. E eu cuidava displicentemente das minhas, para sobrar mais tempo para a leitura. Rosana trocou o hábito de assistir à tevê pelo convívio com os livros, como se desde sempre tivesse sido leitora. E nosso casamento conheceu alguns anos de alegria discreta. Não queríamos filhos. Mas um filho nos quis. Um menino que nasceu forte sem que tivéssemos definido quem seria o responsável pelas roupas dele, pelas fraudas sujas de cocô, pela mamadeira de madrugada, pelo colo na hora do choro. Contratamos então uma empregada, que passou a dividir com ele o quarto de visitas. Com o filho, parei de escrever críticas. O crítico saiu de cena, para alegria dos autores locais. No meu lugar, colocaram um professor universitário, que falava de teorias e outras incógnitas, levando o jornal a suspender o espaço que eu ocupara por anos. Como já não tinha mais o que criticar, desviei minha atenção para os problemas da casa. Via roupa pelo chão, encontrava brinquedos na pia do banheiro, livros espalhados pela sala. Num sábado, Rosana chegou com um aparelho de tevê e achei bom, o menino agora precisava de distração. 142
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Com mais tempo sem ter o que fazer — ler de que forma com aquela confusão em casa? —, acabava ficando pelo quintal. Diante de uma haste de tiririca, que me irritava, tentando em vão arrancá-la com a mão, até que, com o auxílio de uma chave de fenda, passei a desenvolver uma técnica para extrair a planta inteira. Se esses afazeres me entretinham, eles também me mostravam que tudo estava permanentemente sendo invadido por uma força destruidora. O que mais me intrigava eram as pequenas rachaduras do reboco. Eu não conseguia passar perto da parede sem olhar para esses sinais do tempo. Mesmo sabendo que elas não traziam risco nenhum para a estrutura, comecei a odiar a casa. Não suportava mais ficar do lado de fora porque o meu olhar se fixava apenas nos defeitos da parede, ampliando-os. E ver tantas rachaduras faz mal à alma da gente. Quando ia fazer sexo com Rosana, ficava observando suas estrias. Era como se eu estivesse vendo as paredes da casa. Além de aprender a olhar as estrias de Rosana, descobri varizes subterrâneas. Em sua pele morena, as pequenas veias ficavam disfarçadas. Mas mal via minha mulher nua, já começava o inventário de seus defeitos, o que me levava a pensar na casa, no desgaste de tudo e logo estava dormindo sozinho na biblioteca. 10. A casa continuava seu processo de deterioração. Mandei passar massa corrida nas trincas e pintar, mas elas voltavam, vistosas, na parede colorida. No jardim, não via as flores, mas o mato que crescia de um dia para outro. Contratei jardineiro e parei de ficar no quintal, embora dentro de casa tudo também conspirasse contra mim: os azulejos encardidos, a madeira do assoa143
lho exibindo riscos, o sofá me oferecendo braços engordurados... Eu sentava na sala e não conseguia tirar o olho de uma rachadura na laje. Ficava sobre a estante e só com esforço eu a enxergava. Mas não tinha como ver outra coisa que não fosse aquela rachadura, que me perseguia até em sonhos. Era sempre por ela que principiava o desmoronamento da casa. Passei a me trancar na biblioteca, com luzes apagadas e cortinas cerradas. A vida doméstica se tornou um tormento e eu não via a hora de ir para a construtora, cada mês mais próspera. Tinha orgulho disso, fora um dos responsáveis pela melhoria da mão de obra. No final do expediente, todos saíam, inclusive Rosana, a quem me dirigia com neutralidade profissional, e eu ficava até tarde, organizando papéis, revendo tarefas feitas por meus auxiliares, apenas para surpreendê-los em deslizes, que seriam censurados no dia seguinte. Uma noite, ao chegar tarde, não encontrei Rosana, nem meu filho nem os móveis. Ela deixara apenas a mobília da biblioteca. E o vazio me expunha ainda mais aos defeitos da construção — não havia parede que não exibisse uma rachadura avançada. O assoalho era só risco. Não pude dormir aquela noite. Na construtora, continuamos nos tratando com distanciamento e jamais tentei esclarecer nada. Nosso casamento tinha desmoronado antes da casa. Eu herdara uma construção em ruínas. Quando ela se demitiu da construtora, tratei de depositar em sua conta, todos os meses, uma pensão. E cada um teve que suportar sozinho suas misérias.
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11. Só voltei a ver meu filho quando ele já estava com dez anos. Chegou meio sem jeito, num táxi. Disse quem era. Cumprimentei-o formalmente, chamando-o para entrar. Tudo ainda se encontrava do mesmo jeito. Não tinha trazido nenhum móvel para casa. Na cozinha, apenas a pia, nem mesmo uma geladeira. Fazia as refeições em restaurante, a casa servindo apenas para dormir e abrigar os livros. Estes, sim, aumentaram. Agora estavam pelos quartos vazios e pela sala. Amontoados sem nenhum critério. Não precisaria de nenhum deles. Eu comprava o volume na esperança de algumas horas de distração. Mas já nas primeiras páginas descobria defeitos e o atirava num canto, revoltado com a imperfeição de tudo. Recebi meu filho no meio dos volumes. Sentamos nas velhas poltronas da biblioteca e ficamos nos olhando. E como não dissesse nada, falei que ele era um menino bonito, mas tinha um nariz avantajado. Meu filho encheu os olhos de lágrimas e chamou um táxi. O carro chegou logo e ele se foi, com um aspecto triste, tentando disfarçar o nariz de Pinóquio, que de perfil ficava bem maior. 12. A casa estava com goteira, o jardim era só mato, o gradil não tinha mais onde abrigar ferrugem. Havia, há muito tempo, desistido de lutar contra a deterioração. Se me perguntassem se era mais feliz assim, aceitando, como meu pai, passivamente as
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coisas, não saberia dizer. Com certeza era menos infeliz, pois já não queria impor nada. Que as coisas seguissem seu curso. Poderia ter ido para um apartamento novo ou morar num flat, mas não tinha ânimo para fugir à condição defeituosa da existência. O mundo é esta grande máquina que não para de dar problemas; o conforto e a segurança que vêm do sentimento de que ele está funcionando bem não passam de ilusão. Logo teremos que consertá-lo. Eu apenas desisti. Nas boates, onde procuro algum alívio, escolho sempre as mulheres mais velhas e as possuo rapidamente, num misto de desejo e repugnância. Se o que nos espera no futuro é a flacidez da carne, quero experimentá-la agora. 13. Não sei bem quando comecei a me interessar por cachorro. É um animal que suporta bem a solidão, pode ficar muito tempo sozinho, desde que haja um pouco de comida e água. Fiz construir no fundo do terreno um canil grande, mas, de início, comprei apenas uma fêmea da raça Dobermann, para ver se tínhamos alguma afinidade. Para criar um ambiente agradável para Lady, voltei a cuidar do jardim. O beiral da casa estava caindo, havia telhas quebradas na cobertura. Nas frestas das calçadas crescia mato. Tudo podia se dissolver, mas mandei trocar a grama do quintal, podar as heras dos muros, cuidar de um plátano que logo no início da construção havíamos plantado. Contratei novamente um jardineiro e ficava pelo quintal com Lady. Ela tem um corpo esbelto, cabeça perfeita, orelhas em pé. Se fosse gente, seria uma manequim, desfilando com roupas experimentais.
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Lady se tornou o centro de minha vida. A vantagem de ser solitário é que você encontra sentido em qualquer coisa. Em um animal, em um canteiro de cravos, em uma coleção de parafusos. Com Lady eu me sentia bem. Animal de pelagem luzidia, de olhar severo, sua presença me reconfortava. Não corríamos pelo jardim. Ela ficava ao meu lado, enquanto eu apontava uma madeira com um canivete suíço, apenas para passar o tempo. No primeiro cio de Lady, o veterinário aplicou uma injeção inibidora. Assim também foi feito no segundo. Apenas no terceiro arrumei um cachorro. Um Dobermann de origem confiável, que passou alguns dias em nosso canil. Pai prestativo, eu ficava vendo os dois em cópulas agressivas. E era tomado por uma nostalgia do tempo em que amava. Uma nostalgia que durou até o momento em que Lady, depois de uma gestação tranquila, deu cria a quatro filhotes. À primeira vista, me afeiçoei ao mais viçoso, que tinha todas as características da mãe, embora mais corpulento, por ser macho. Vendi os outros três e fiquei com este. Quando estava com quatro meses e meio, comecei a notar que ele tinha uma orelha torta. Eu não podia acreditar que um animal como aquele apresentasse defeito tão visível. Tentamos uma operação, que apenas acentuou a deformidade. Toda vez que via Apolo, meus olhos esbarravam na bendita orelha. Aquilo me estragou o prazer de ficar com Lady pelo quintal. Não confiava mais em seu útero, que guardava surpresas desagradáveis. Quando ela entrava no cio, o veterinário providenciava a injeção. Já Apolo, este cresceu meio surdo, não sei se efeito da operação ou degenerescência natural, transformando-
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se em um cachorro abobado, que se desnorteava, correndo sem rumo quando alguém fazia barulho na frente de casa. Talvez influenciado pela operação que fiz em Apolo, meu filho chegou com um nariz novo. O tamanho diminuíra, mas as cavidades ganharam entradas enormes. A cirurgia apenas tinha mudado a natureza da feiura de seu nariz. Antes era feio por ser imenso e pontudo. Agora, por ser pitoco e arreganhado. Eu não falei a ele que tinha ficado indecente, mas também fui incapaz de ignorar a mudança. Ao fim de nosso encontro, saiu abatido como das outras vezes, porque não desviei minha atenção de suas narinas. 14. Tudo culpa de meu olho, que me separara de todos, transformando-me num inimigo. As mães com crianças novas não passam na calçada de minha casa, porque sabem que eu encaro as pequenas imperfeições de seus filhos. As mulheres fogem de mim, eu só consigo olhar para as partes mais feias de seus corpos. Se uma tem os seios exageradamente grandes, motivo de vergonhas silenciosas, eu me fixo na deformidade das mamas. Se outra, moça bonita, possui pés de travesti, enormes e ossudos, fico obcecado pela imagem daquelas patas descomunais e não presto atenção em seu rosto perfeito. Isso ofende as pessoas de uma forma que eu fui descobrindo ser monstruosa. Cada um convive intimamente com seus defeitos e quando alguém tem o dom de notá-los no primeiro encontro, a pessoa se sente nua, desprotegida diante do grande avaliador. Eu percebo o ódio das pessoas por mim e não posso censurá-las. Sei quanto é perversa a minha obsessão. 148
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Como já não possuo quase nenhum amigo, meu olho se virou contra mim. Sem ter em quem buscar as deformidades, ele as rastreia em meu corpo. No banho, vê como o meu ventre inchou, mal dá para enxergar a cabeça de meu sexo. Um sexo enrugado e escuro que me envergonha profundamente. Na hora de fazer a barba, não suporto mais a visão da pele flácida, descolada dos ossos. Passei a me barbear no chuveiro, mas o contato com a courama me traz à memória a imagem de meu rosto. É o olho interior que não me perdoaria mesmo se eu ficasse cego. 15. Numa de minhas idas ao mercado, reencontro Sônia pela primeira vez depois de nossa separação. Está uma senhora bem cuidada, com uma jovialidade madura e discreta. Conversamos um pouco e resolvemos deixar de lado as compras e sair para um lanche. — Você sabia que o Professor nunca mais escreveu nada? — Por causa de minha carta? — Não, propriamente. Ele conhecia suas limitações, sabia dos problemas do livro. Apenas se sentiu sem forças. — Todos nós nos sentimos assim. E apenas aceitamos. — Foi o que ele fez. Aceitou ser um escritor de segunda categoria. Mas você sabe que ele só amava os grandes escritores. Por isso desistiu de escrever. — Também desisti de fazer crítica. No fundo, somos todos covardes. — O Professor acompanhou durante anos a sua coluna. Ele tinha orgulho de ter sido seu amigo. — Como ele morreu? — Para os médicos, enfarto. Estava preparando uma 149
aula e caiu sobre os livros. Eu tinha saído. Quando voltei, já não havia jeito... Mas, para mim, a morte dele foi lenta, durou anos. Depois da publicação do Três, dedicou todo o seu tempo ao magistério. Para um escritor, dar aulas é a pior coisa que existe. Quanto melhor professor se tornava, e todos o adoravam, mais rápido ia morrendo. — Nunca mais escreveu ficção? — Nunca. — Você acha que fui eu quem o matou? — Não, sua carta apenas precipitou uma autodescoberta. — O exercício da crítica foi para mim uma maldição. Eu queria ter sido um criador e fui um demolidor. — Mas a crítica pode ser também um poema de amor. — Para isso, é preciso estar apaixonado. — Eu sempre estive. — O Professor merecia. — Eu sempre estive apaixonada por vocês dois. Tomo um gole de meu suco e mordo o sanduíche que estava esfriando na mesa. Sônia procura minha mão como uma adolescente tímida. A cena é ridícula. Um senhor de cara caída, cinquenta e tantos anos, ao lado de uma senhora ainda apresentável, mas visivelmente envelhecida, fazendo o papel de casalzinho adolescente. — Nando (meu deus, há quanto tempo eu não ouvia este apelido!), agora somos apenas dois. Ficamos em silêncio até o fim do lanche. Saímos abraçados. O sol da manhã é animador. Pego o carro no estacionamento do mercado e a levo para minha casa. Ela não estranha a bagunça e a desolação de tudo. Mas também não se conforma. 150
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Começa organizando os livros e exigindo minha participação. Trabalhamos o resto do dia apenas para arrumar a sala. Todos os volumes postos em ordem alfabética. Paramos, de vez em quando, para ler algumas páginas. Dormimos juntos, mas de roupa, depois de uma pizza que mando vir. Não há mesa e comemos sentados no degrau da cozinha. Pela manhã, ela acorda disposta, dizendo que mandaria pintar a casa, mas antes contrataria uma empresa para fazer pequenos reparos. E rimos ao mesmo tempo. — Podíamos fazer nós mesmos. Não importa que não fique muito bom. — Se você pensa assim... — ela me diz, enquanto se aproxima para um beijo. Organizamos os livros dos quartos e da biblioteca durante os dois dias que ficamos presos, comendo pizza. Ela joga fora o colchão e as roupas de cama, de mesa e de banho, que estavam nojentas. Saímos para comprar o que falta. Um colchão novo, pacotes de toalhas, lençóis e colchas, duas cadeiras de descanso, fogão, geladeira, uma mesa de fórmica, panelas. Com uma semana a casa está habitável de novo. Nas horas de descanso, brincamos com os cachorros. Quase não conversamos, mas sempre que um descobre passagens bonitas nos livros, lê para o outro, sem comentários. O outro tem apenas que ouvir e depois voltar ao serviço. Troco todo o telhado, conserto o beiral e começamos a pintar a casa, primeiro por fora. O cheiro de tinta toma conta de tudo, purificando-nos. O importante não é se as paredes ficaram ou não bem pintadas, mas o apetite trazido pela tinta. Envoltos por esta fragrância, nos despimos sobre o colchão novo. 151
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Um artista em Shanghai Milton Hatoum
Para May Zarif Muita gente sonha em conhecer Paris, Roma, Barcelona, Londres, Cairo... Eu, desde menina, sonhava em conhecer Shanghai... Minha mãe falava muito de um artista chinês que encantou a cidade com seus desenhos e aquarelas. Ele morou uns anos em Manaus e ganhava a vida com sua arte de aquarelista. Perguntava a uma pessoa o nome de um parente morto, pedia que lhe contasse alguma coisa sobre o finado, depois pintava com aquarela manchas coloridas, e dessas manchas surgia um rosto. O rosto do parente. Minha mãe dizia que esse chinês, além de artista, era bruxo. Por isso ficou conhecido como “O bruxo de Shanghai”. Eu tinha nove anos quando vi o desenho do rosto da minha finada avó, uma aquarela do artista chinês. Minha mãe me mostrou fotografias dessa avó que não conheci, eu fiquei impressionada com a semelhança entre as fotos e a aquarela. 153
Quando eu ia completar treze anos, aconteceu uma tragédia. Minha mãe foi me apanhar na Escola Normal... Na praça São Sebastião, paramos no lugar onde o chinês trabalhava. “Ele ficava aqui, ao lado desse barco de bronze onde está escrito Ásia”, disse minha mãe. Observei o monumento, o barco, imaginei o artista com seus pincéis, tintas, folhas brancas, e perguntei por onde ele andava. “Não sei”, ela disse. “Morou aqui nos anos 1950. O chinês ainda estava em Manaus quando tu nasceste, mas um dia ele sumiu. Era um artista muito querido.” Entramos em casa depois de meio-dia, minha mãe murmurou que não queria almoçar, estava indisposta e foi deitar na rede. Almocei com meu pai, conversamos sobre a Escola Normal e sobre um navio inglês, atracado no Manaus Harbour. Antes de fazer a sesta, meu pai perguntou à minha mãe se ela se sentia melhor. Ela não respondeu. Estava morta. Morreu deitada, dormindo. Sim, uma coisa terrível… Quando me lembrava dela, recordava também o pintor de Shanghai, porque as últimas palavras que ouvi de minha mãe falavam do artista e do lugar onde ele costumava desenhar. Aí passei anos com a ideia de visitar a China... Meu pai dizia que isso era besteira, ou loucura. Mas não desisti de visitar Shanghai. Meu pai morreu muito velho, em 1996... Eu já estudava mandarim com um chinês que trabalhava numa fábrica em Manaus. Quando meu professor envelheceu, eu já falava mandarim, mas não conhecia o dialeto falado na região de Shanghai. Há dois anos viajei à Ásia... Shanghai, como tu sabes, é o maior porto do mundo, a 154
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cidade é enorme, mas essa metrópole tentacular não me intimidou. Visitei o museu de Belas-Artes, o Centro de Escultura de Shanghai, o maravilhoso Lu Xun... Saía sozinha, sem intérprete: o nome e endereço do hotel bastavam. Mas fui com um guia até as ilhas Yangshan. Para quem conhece a China, o Ocidente é um diminutivo. Dois dias antes de voltar para o Brasil, escrevi o nome do artista e perguntei ao guia se ele conhecia alguém com esse nome. Ele me levou a um bairro distante do centro, um bairro situado no coração de Puxi, a oeste do rio Huangpu. Paramos diante de um pequeno sobrado, uma arquitetura arte déco, resquício da colonização francesa. “Esta é a casa do artista”, disse o guia. “Morreu em Shanghai, em 1978. Sei por que você se interessou por ele.” “Por quê?” “Porque ele morou nove anos na Amazônia.” Entramos na casa. As paredes das salas estavam cobertas por desenhos e aquarelas de rios, igapós, furos, sementes, frutas, uma enorme variedade de plantas e árvores. E também aquarelas de horizontes, em que a floresta e o céu eram desenhados em vários momentos do dia. Não vi nenhum desenho de pessoas, nem de animais, peixes, insetos. Lembrei a aquarela do rosto da minha avó e pensei: ele desenhava o rosto dos mortos para sobreviver. Era um artista apaixonado pela natureza. Perguntei ao guia quanto tempo o artista tinha morado naquela casa. “Quase vinte anos”, respondeu. “Mas ele só ocupava um quartinho do andar superior. Quando ele morreu, os outros moradores tiveram que sair daqui. A prefeitura fez esse pequeno museu.” 155
Quis visitar o quarto. Era de fato pequeno, mal cabiam uma cama, uma cadeira e uma mesinha. Reparei nos pincéis de vários tamanhos e formas, nos delicados estojos de tintas, na roupa dobrada, arrumada sobre o assento da cadeira. Um quartinho modesto, ou mesmo pobre, que contrastava com a riqueza e o luxo que eu tinha visto em Pudong. Mas não senti pena dele. Por que sentiria pena de um artista talentoso e corajoso? Na mesinha, uma fotografia ao lado de um caderno chamou minha atenção. Na capa do caderno estava escrito em mandarim: “Passagem por Manaus”. Nas páginas do caderno não tinha nada anotado, nenhum ideograma ou desenho. Depois, quando observei a foto, vi o artista ainda jovem abraçado a uma moça. Reconheci o rosto de minha mãe. Não sei se a foto era anterior ao meu nascimento. Sei que minha mãe parecia uma moça feliz. E o sorriso no rosto dela foi a melhor lembrança de Shanghai.
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O companheiro
Rachel Liberato Meyer
Findada a guerra do Paraguai. Assunção parecia terra de ninguém; os habitantes fugiram, as casas estavam todas vazias, as ruas cheias de mato e invadidas pela soldadesca. Tudo era abandono e desolação. O navio do qual meu avô João do Canto era capitão estava no porto, e ele desembarcou para dar umas voltas; olhava para tudo entristecido com as cenas que via, quando de repente reparou num menino que chorava caído sobre as calçadas, tão fraco que mal podia falar. Morria de fome, no maior abandono; meu avô não pôde ficar insensível a tanta desgraça e chamando um marinheiro mandou que ele pegasse o menino no colo e o levasse para bordo. E a si mesmo prometeu que cuidaria dele e o encaminharia para o bem. Continuou a andar e passando por uma igreja viu alguns marinheiros do seu navio andando de um lado para o outro dentro do templo, ficou curioso e entrou para ver o que faziam ali. Eles estavam tirando o que achavam que tinha valor; tinham bebido, e nada respeitavam. 157
Aproximaram-se do altar-mor e um deles ia pegar no crucifixo quando meu avô dando-lhe um empurrão disse indignado: — Afasta-se, bruto, aqui não tocarás! E pegando a imagem com respeito e carinho levou-a consigo. Quando chegou no Rio de Janeiro foi para casa levando numa caixa envernizada o precioso crucifixo, e entregando a minha avó disse comovido: — Emilia, trago-te aqui um companheiro para a nossa vida.
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Os fetiches Tércia Montenegro
Quando ele chegou, o automóvel já aguardava, na esquina do motel. Deu uma buzinada rápida e passou devagar, só para conferir se era ela. Então seguiu na frente. Pegaria a chave com uma atendente camuflada atrás de um vidro fumê. Velocidade mínima, para que o outro carro pudesse seguir; em minutos, ambos estacionavam na garagem do quarto 33. Naquele dia, ela iria contar sobre a primeira intenção, o gesto disparador. Vários anos antes, numa defesa de tese de uma amiga em comum, ele sentara-se ao seu lado. A sala era apertada, mas isso não significou nenhum arrepio imediato. Apenas no instante em que ele pôs a própria mão sobre a coxa esquerda — e começou a massageá-la em idas e vindas — ela foi lançada à imagem irresistível. Lembrou-se de como as mãos de um homem eram importantes. As mãos e os olhos, que ela sempre avaliava. Depois, vinha a boca. Ela já havia registrado o belo sorriso e o amendoado azul — mas fizera isso como se catalogasse um perfil estrangeiro, tão distante ele parecia. Agora, com a mão que se fechava em dedos firmes e logo se expandia, deslizando sobre o tecido da calça, de propósito arranhando um pouco, para em se159
guida voltar aberta e lenta como uma estrela marítima — agora, com aquela mão, ela o sentia próximo. E mais: quase podia dizer que se sentia tocada. Fisicamente notou, sob o vestido, uma febre deixada pela massagem imaginária. Muito tempo depois, eles continuavam se encontrando em eventos profissionais; havia abraços que talvez não durassem muito, mas ainda assim ela os recebia como se fossem descargas elétricas bem quentes. Era o modo como tentava explicar a si mesma: uma sensação de mergulhar num tanque cheio de enguias. Mas então na água haveria a frieza do choque; na experiência do abraço, ao contrário, o tremor trazia aquecimento. Ele nunca soube das suas imagens do peixe elétrico, mas acabou lhe sugerindo outras cenas atrativas, na ocasião em que, por coincidência, descobriram-se lendo o mesmo texto de Isaac Bábel. Diante de várias passagens sublinhadas, ela tentou adivinhar quais correspondiam a um fetiche secreto, enquanto folheava o exemplar esquecido por ele na mesa do escritório. Um dos fragmentos era relativo a uma mulher que se movia devagar, mas que “durante o amor, talvez se revirasse com uma agilidade furiosa”. Havia algo possivelmente atiçado pelo “risinho sonolento e gracioso” das mulheres que tiravam o juízo dos oficiais da guarnição — ou quem sabe uma tara estética motivada pela cena em que uma dama escuta “com a cabeça inclinada e os lábios pintados entreabertos”. Ela seguiu os movimentos de Raíssa Mikháilovna como se acompanhasse uma rival, memorizando seus encantos para reprisá-los. Haveria algo de erótico em traduzir Maupassant num estado de embriaguez? Ela poderia experimentar — sobretudo se punha um rosto no outro personagem da história, o homem que 160
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beija essa mulher, e em seguida deixa cair 29 livros sobre um tapete, sobre o qual fazem amor. Quando o viu entrar nesse momento, comentou em voz baixa que derrubaria com prazer uma biblioteca, se aquela fosse uma condição. Acrescentou também que, em sua opinião, eles mereciam pelo menos uma vez estarem nus, ao alcance um do outro — falou isso e se retirou, em parte porque sabia que ficariam igualmente mudos de constrangimento. A outra parte foi mera fuga, vontade de desmaiar, ser engolida pela terra. O tipo de medo que antecede um prazer. Nos meses seguintes o silêncio foi recebido com tristeza, embora na justa medida. Não se tratava de um desejo diário — era mais um esbraseado súbito, como um rubor que sobe ao rosto, incontrolável. Às vezes acontecia quando ela estava sozinha e direcionava o pensamento para a lembrança das mãos ou do abraço. Mas podiam se passar semanas completamente vazias. Então, à custa de se sentir opaca, ela fantasiava com vontade. Via-se, por exemplo, numa leitura de quiromancia particular: o corpo dele disponível e ela detendo-se ali, naquelas extremidades de exploração que todos podiam ver ou apertar, em cumprimentos distraídos. Começava pelas unhas, que eram como fragmentos de conchas, restos de mar na ponta dos dedos. E depois, os nós dos dedos: anéis no tronco de uma planta, os cinco ramos dessa copa aberta. Cada falange com suas dobras, a costura visível exposta nos interstícios. Os tendões sobressaindo como o mecanismo de um piano, se o indicador ou o anular se levantam. E os poros criando desenhos de colmeia, losangos ínfimos a se transformar em estrelas, triângulos, riscos violentos mais perto da curva 161
que antecede a palma — agora sim, os traços se expressam, no palimpsesto que Alguém escreveu, enigmático e sorrateiro, sem crer que um dia afinal nos interessamos em saber — parar e saber (sobretudo parar). Mas ela queria conhecer as suas linhas, a letra eme sugerida, ou serão duas jangadas que se emparelham? E ele respondia que jangadas carregava ela. Em suas mãos havia dois picos de uma cordilheira. Nessa altura, ela sorria dentro da cena construída: “Quero chegar aqui” — apontava — “neste alto”. “Já estás lá” — ele dizia. — “Não vês? Já estás”. *** Ele não era um homem livre, e ela própria tinha um namoro estável. Isso significava tão pouco, entretanto — bastava que ela pensasse em conceitos que oscilavam da filosofia a uma cósmica ideia da insignificância. Queria levá-lo a refletir sobre essa incerteza e finitude humana, para que pudessem simplificar os passos. Bastava seguir adiante. O impulso era o mesmo de quando o encontrou num bar, em certa noite de quarta-feira com jazz. Ela estava no espaço coberto, bem em frente ao palco; percebeu a chuva repentina somente porque os outros clientes começaram a se aglomerar ao redor, ensopados. As mesas ao ar livre tamborilavam com faíscas prateadas, e ela desejou um banho súbito — mas de repente o viu. Tão diferente de como aparecia no escritório: mais leve, a camisa com estampa de palmeiras; ele se confirmou com o olhar e o sorriso. E veio cumprimentá-la. A textura da barba molhada, o rosto cintilando com reflexos da lâmpada sobre a pele úmida — um milésimo de segundo antes do abraço-enguia. Ela sentiu o efeito sobre o corpo inteiro, exce162
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to talvez as pernas. As pernas foram as únicas que escaparam do choque, porque não encostaram nele. Curiosamente, depois ele iria lembrar aquela noite, observando que ela usava uma saia que lhe despertou o seu maior fetiche. Disse aquilo com amplas reticências, quase como se gaguejasse. Então eram as pernas o seu ponto de fascínio. Para ela, existiam múltiplos — mas começaria pelas mãos. Ou pelos lábios? Panturrilhas fortes, nuas: havia uma passagem grifada a respeito no conto do Bábel, mas ela não tinha reparado, em meio às outras marcações. De qualquer modo, decidiu que daquele instante não podia mais passar. Estavam na mesma sala em que lhe havia falado a respeito de uma necessária nudez. Não devia repetir-se, sobretudo não devia falar, porque provavelmente teria de novo ânsias de fugir. Precisava, entretanto, de algum instrumento, algo que pinçasse o tema em que jamais tornaria a insistir. Se daquela vez continuassem sem uma atitude prática, ela desistiria de todas as fantasias. Procurou com pressa uma página específica do livro que ambos leram. A edição dele continuava ali, e inicialmente ela se confundiu com os trechos, mas continuou buscando a parte que sua memória localizava no canto superior de uma página ímpar. Ele pensou que ela se distraía com outro assunto e já fazia menção de sair, mas ouviu “Espere” — e imediatamente teve sob os olhos estas duas frases que ela acabava de sublinhar com caneta azul: O segredo está numa virada quase imperceptível. A chave deve ficar na mão, ser aquecida. Ele disse “Sim”. E ela suspirou.
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O Macunaemo Xico Sá
(De uma conversa com o amigo Ortton, cantor e compositor pernambucano) Com vocês, o Macunaemo! — típico brasileiro metropolitano dos nossos dias. Metade preguiçoso qual Macunaíma, o herói sem nenhum caráter do escritor Mário de Andrade — metade chorão, cordial e sensível como um globalizado roqueiro emo de qualquer parte do planeta. Tomado de tristeza — cool! — e preguiça, Macunaemo despediu-se das índias icamiabas e dos punks de periferia e partiu rumo à Rua Augusta. Na Avenida Paulista, o primeiro susto com o processo civilizatório: uma guangue homofóbica suspeitou dos seus trejeitos delicados. Passo liso, ileso, malaco. Ufa! Na Vitrine, pizzaria & churrascaria, calor dos infernos, já descendo a Augusta propriamente dita, beijos e abraços nos jovens que representam a sua metade sensível. Uma festa. Por inteiro, pensou, por um segundo, em catar uma 165
mina. Profissional ou amadora. Melhor não, deu preguiça, prevaleceu a outra parte. Deixa quieto. Pansexual por natureza, sentiu tesão por um fortinho jeca. Preguiça. Esquece. Agora está no Bar da Galega, também conhecido por Ecléticos, madruga. Cobiça Rapha Iggy Pop, a transex, mas também não pega no tranco o falível motorzinho da testosterona. Preguiça da dramaturgia do sexo. Vai ao Pescador jogar uma sinuca, agora tomado por uma bicha lúdica com um parque de diversões na cabeça. Donde encontra o Pereio, porra. E joga de dupla. Duas tacadas. Na terceira, o gaúcho de Alegrete, ator, macho e poeta, dispensa o pobre Macunaemo. Nosso herói cafuzo chora de saudade da sua icamiaba predileta. Se soubesse, teria ficado na tribo. Nem teria vindo para São Paulo de Piratininga. Culpa até o Bilhete Único pelo avanço, pelo democrático direito de ir e vir etc. Na ressaca moral, lhe parece maléfico ter deixado inclusive a saudosa maloca da Sapopemba.
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algumas vozes | narrativas contemporâneas
Os Autores
Alberto Puppi É autor de Demão amão, Riah: um choro feliz, Os primeiros dias de paupéria e Antilira. É professor adjunto do Departamento de Design da UFPR desde 1993. Tem interesse e experiência profissional na criação de produtos de design, artes visuais e de poesia. Assionara Souza Nasceu em Caicó (RN) e está radicada em Curitiba. Publicou os volumes de contos Cecília não é um cachimbo, Amanhã. Com sorvete!, Os hábitos e os monges e Na rua: a caminho do circo. Sua obra tem sido publicada no México pela Calygramma. Na dramaturgia, assina a peça Das mulheres de antes, com a Inominável Companhia de Teatro. B. Kucinski Nasceu em São Paulo (SP), em 1937. Publicou obras sobre economia, política e jornalismo e foi assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. Sua estreia na ficção com K: Relato de uma busca aconteceu quando já tinha 74 anos. É autor, entre outros, de Os visitantes, Alice e Você vai voltar pra mim. Bernardo Carvalho Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1960. É escritor, jornalista, dramaturgo e tradutor. Publicou, entre outros, os romances Nove noites, Reprodução e Simpatia pelo demônio, todos pela Companhia das Letras. Já recebeu os prêmios Jabuti, APCA e Portugal Telecom. Tem livros publicados na França, Estados Unidos, Espanha, Portugal, Itália, entre outros países. Caetano w. Galindo Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É professor da UFPR e pesquisador do CNPq. Com a tradução de Ulysses, de James Joyce, ganhou o prêmio Jabuti em 2013. No mesmo ano, venceu o prêmio Paraná de Literatura, na categoria contos, com Ensaio sobre o entendimento humano.
Cíntia Moscovich Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1958. Sua obra está publicada na Itália, Portugal, Espanha e Estados Unidos. É autora de Duas iguais, Arquitetura do arco-íris, Essa coisa brilhante que é a chuva, entre outros. Já venceu os prêmios Bravo!, Portugal Telecom e Jabuti. Cristovão Tezza Nasceu em Lages (SC), em 1952. Considerado um dos principais romancistas brasileiros contemporâneos, é autor de Trapo, A suavidade do vento, O filho eterno, O professor e A tradutora, entre outros. Sua obra está traduzida na Itália, Inglaterra, Portugal, França, Holanda, Espanha, México, Estados Unidos, Austrália, China, Eslovênia, entre outros países. O romance O filho eterno recebeu os principais prêmios literários brasileiros. Elvira Vigna Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1947. É escritora, jornalista e ilustradora. Formada em literatura pela Universidade de Nancy, na França, é também mestre em comunicação pela UFRJ. Publicou, entre outros, os romances A um passo, Deixei ele lá e vim, Nada a dizer, Por escrito e Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. Sua obra já recebeu os prêmios Oceanos e APCA. Giovana Madalosso Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É formada em Jornalismo pela UFPR. Durante dezesseis anos, trabalhou como redatora publicitária. Além de literatura, também escreve roteiros para TV. É autora da coletânea de contos A teta racional. José Castello Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1951. Escritor e jornalista, é autor Vinicius de Moraes: o poeta da paixão, Na cobertura de Rubem Braga, O inventário das sombras, A literatura na poltrona e do romance Ribamar, ganhador do prêmio Jabuti em 2011.
Julie Fank É escritora, artista visual e diretora-fundadora da Esc. Escola de Escrita. É doutoranda em Escrita Criativa pela PUC-RS. Tem contos e poemas publicados em periódicos como RelevO, Arte & Letra: Estórias, Escriva e Raimunda. Luci Collin Nasceu em Curitiba (PR), em 1964. Poeta e ficcionista, tem 16 livros publicados, entre os quais Querer falar (finalista do Prêmio Oceanos), Nossa Senhora D’Aqui e A árvore todas (contos, 2015). Participou de antologias nacionais (como Geração 90 – os transgressores e 25 Mulheres que estão fazendo a literatura brasileira) e internacionais (nos Estados Unidos, Alemanha, França, Uruguai, Argentina, Peru e México). Luís Henrique Pellanda Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. Escritor e jornalista, é autor dos livros O macaco ornamental, Nós passaremos em branco (finalista do Prêmio Jabuti), Asa de sereia (finalista do Prêmio Portugal Telecom) e Detetive à deriva. Organizou os dois volumes da antologia As melhores entrevistas do Rascunho. É cronista da Gazeta do Povo. Foi editor e idealizador do site de crônicas Vida Breve e subeditor do jornal literário Rascunho. Luiz Ruffato Nasceu em Cataguases (MG), em 1961. É autor, entre outros, de Eles eram muitos cavalos, Estive em Lisboa e lembrei de você, Flores artificias, De mim já nem se lembra e Inferno provisório. Seus livros estão publicados em Portugal, França, Itália, Alemanha, Finlândia, Macedônia, Estados Unidos, México, Cuba, Colômbia e Argentina. Recebeu o Prêmio Internacional Hermann Hesse, na Alemanha, em 2016. Marcio Renato dos Santos Nasceu em Curitiba (PR), em 1974. É autor dos livros de contos Minda-au, Golegolegolegolegah!, 2,99, Mais laiquis e Finalmente hoje. A convite da Casarão do Verbo, escreveu o Dicionário amoroso de Curitiba, com verbetes sobre a capital paranaense.
Miguel Sanches Neto Nasceu em Bela Vista do Paraíso (PR), em 1965. Romancista, contista, poeta e crítico literário, é autor de Chove sobre minha infância, Chá das cinco com o vampiro, A segunda pátria e A Bíblia do Che, entre outros. Dedicase também à literatura infantojuvenil com livros como De pai para filho, A guerra do chiclete e O rinoceronte ri. Milton Hatoum Nasceu em Manaus (AM), em 1952. Foi professor de literatura da Universidade Federal do Amazonas e professor visitante da Universidade da California (Berkeley). É autor dos romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado. Seus livros ganharam vários prêmios e já foram traduzidos em 14 línguas. Em 2011, recebeu nos Estados Unidos o Brazilian International Press Award. Rachel Liberato Meyer Nasceu em Itajaí (SC), em 1895. Autora do livro de crônicas Uma menina de Itajaí, lançado em 1961, com uma segunda edição da Fundação Catarinense de Cultura em 1999. Faleceu em Florianópolis (SC), em 24 de março de 1959. Seu interesse pela literatura inspirou a criação da Curitiba Literária da Bienal. Tércia Montenegro Nasceu em Fortaleza (CE), em 1970. É autora, entre outros, do livro de contos O tempo em estado sólido (finalista do Jabuti e do Portugal Telecom). Seu romance Turismo para cegos foi contemplado pelo Petrobras Cultural e recebeu o prêmio Machado de Assis como o melhor romance brasileiro de 2015. Xico Sá Nasceu no Crato (CE), em 1962. Jornalista e escritor, é autor do romance Big Jato e das coletâneas de crônicas Chabadabadá, Os machões dançaram, O livro das mulheres extraordinárias, entre outros. Em 2016, foi lançado o filme Big Jato, dirigido por Cláudio Assis, baseado no seu livro homônimo. Integra o programa Papo de segunda, no canal GNT.
algumas vozes foi composto em tipo bodoni sobre Pรณlen Soft 80g/m2, em Curitiba (PR).
Da narrativa experimental de Alberto Puppi, que abre a coletânea, à irreverente crônica de Xico Sá, são vinte potentes vozes que muito têm a dizer no silêncio da leitura. Cabe ao leitor percorrer estas histórias, descobrir autores, eleger seus preferidos. Algumas vozes é uma fresta que abrimos para descobertas. Estas vozes pertencem agora ao leitor. E que sejam ampliadas em novas leituras, em novos livros, em infinitos passeios pelo fascinante mundo da literatura.
ROGÉRIO PEREIRA Nasceu em Galvão (SC), em 1973. É jornalista, editor e escritor. Em 2000, fundou em Curitiba o jornal de literatura Rascunho. Desde janeiro de 2011, é diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, Alemanha, França e Finlândia. É autor do romance Na escuridão, amanhã, finalista do prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no Prêmio Casa de Las Américas (Cuba), e traduzido na Colômbia.
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