Colecionáveis binåh - Devaneios - Livretos 08, 09 e 10

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devaneios

TERRITÓRIO DEVANEIOS

aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres - dobras, desvios e rachaduras

LIVRETO 08


, lugar de invenção, lugar de imaginação, lugar de criação, lugar de experimentação, lugar de educação, lugar de lugar de acolhimento, lugar de desafios, lugar de formação, lugar de experimentação, lugar de educação, lugar de compreensão, lugar de fazer perguntas, lugar de investigação, lugar de possibilidades, lugar de compartilhamento, lugar de intenção, lugar de aprendizagem, lugar de trocas, lugar de observação, lugar de imaginação, lugar de saberes, lugar de leitura, lugar de projeção, lugar de escolhas, lugar de conexão, lugar de diversidade, lugar de indagação, lugar de emoção, lugar de contatos afetivos, lugar de percursos, lugar de interação, lugar de ativação mútua, lugar de entrecruzamento, lugar de expressão, lugar de acontecimentos, lugar de projeção, lugar de escuta, lugar de curiosidades, lugar de indagação, lugar de referência, lugar de agenciamento, lugar de problematização, lugar de fazer perguntas, lugar de investigação, lugar de escuta, lugar de possibilidades, lugar de compartilhamento, lugar de intenção, lugar de aprendizagem, lugar de trocas, lugar de observação, lugar de imaginação, lugar de saberes, lugar de leitura, lugar de projeção, lugar de escolhas, lugar de conexão, lugar de devaneio, lugar de arte, lugar de ciência, lugar de literatura, lugar de alquimia, lugar do corpo, lugar de diversidade, lugar de indagação, lugar de emoção, lugar de contatos afetivos, lugar de percursos, lugar de interação, lugar de ativação mútua, lugar de entrecruzamento, lugar de expressão, lugar de narrativas, lugar de projeção, lugar de invenção, lugar de curiosidades, lugar de indagação, lugar de referência, lugar de mediação, lugar de problematização, lugar de extensão, lugar de fruição, lugar de interpretação, lugar de produção, lugar de diálogo, lugar de percepção, lugar de atravessamentos, lugar de colaboração, lugar de emoção, lugar de deslocamentos, lugar de reflexão, lugar de pensamento, lugar de construção, lugar de movimento, lugar de aberturas, lugar de pertencimento, lugar de descoberta, lugar de transformação, lugar de experiências com e a partir da arte,


devaneios

TERRITÓRIO EDUCAÇÃO

aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres - dobras, desvios e rachaduras

LIVRETO 08


Colecionáveis binåh Livreto 01 - Espaço, tempo e materialidade Livreto 02 - Lugar de desenhar Livreto 03 - Lugar de construir Livreto 04 - Lugar de narrar Livreto 05 - Lugar de cor/ luz/ sombra Livreto 06 - Lugar de transformação Livreto 07 - Berilimbau - a construção dos lugares coletivos/comuns Livreto 08 - Devaneios – aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres dobras, desvios e rachaduras Livreto 09 - Devaneios – cambalhota cósmica educação para além da sala de aula caldo da experiência Livreto 10 - Devaneios – narrativas do agora - casa nômade

Ficha técnica Esta publicação digital foi realizada através da Campanha Viva binåh, de colaboração coletiva, Concepção editorial e texto: que contou com apoio espontâneo de diversas Stela Barbieri pessoas que, em troca, receberam acesso aos Edição e revisão de textos: colecionáveis binåh. Essa ação garantiu a Josca Ailine Baroukh continuadade de nossas atividades, em conjunto Assistência de edição de textos: com organizações sociais e escolas públicas. Flora Pappalardo Este material tem seus direitos autorais Transcrições: reservados, sendo vetada a reprodução ou Renata Miyuki Kotaira disseminação de qualquer parte do material sem a prévia autorização dos autores. Projeto gráfico: Caso tenha interesse em utilizar este conteúdo Fernando Vilela por favor entre em contato através do email: Ilustração da capa: contato@binahespacodearte.com.br Stela Barbieri Diagramação: STACCHINI Editorial Fotos: Flora Pappalardo, Guga Szabzon, Júlia Souza, Laila Kontic, Mariana Galender, Michele Mifano, Nádia Bosque, Nina B. Lucato, Rayssa Fleury, Stela Barbieri Equipe binåh: Carina Tiyoda, Felipe Leonidas, Fernando Vilela, Flora Pappalardo, Gilson Pereira, Pedro Campanha, Romeu Loreto, Roselane Silva, Stela Barbieri Educadores que trabalharam no binåh entre 2014 e 2020 cujas documentações são apresentadas nessas publicações: Blenda Souto Maior, Clara Rocca, Daniele Silva, Erica Rapu, Fábio Caiana, Flora Pappalardo, Guga Szabzon, Isadora Kalil Godoi, Julia Souza, Laura Gorski, Letícia Zero, Maria Fernanda Bento, Mariana Galender, Nádia Bosque, Nina Lucato, Otávio Vidoz, Roselane Silva, Thais Pontes Moreira, Tomaz Volpi

binåh espaço de arte Rua Bento Vieira Barros, 181 (entrada pela rua Jamil Safady) 05046-040 - São Paulo – SP Fone: (11) 3467-4387 www.binahespacodearte.com.br


apresentação

binåh espaço de arte é um lugar de invenção, investigação e imaginação. Um lugar de encontros e experiências com e a partir da arte, que foi construído no ateliê de Stela Barbieri e Fernando Vilela. Conta com uma equipe de profissionais diversos (cineastas, designers, artistas, escritores, educadores, músicos e cientistas) e realiza cursos, oficinas, grupos de estudos, assessorias, encontros, visitas, ateliês e festivais para adultos e crianças.

APRESENTAÇÃO

O binåh dialoga com as inquietações, urgências e questões de pes­soas, escolas e organizações, instaurando um lugar estético, ético e político de deslocamento, para construção de outros olhares que integram o pensar e o fazer. A arte e a educação são os principais campos de sustentação das investigações deste lugar de encontros e entrelaçamentos entre as experiências singulares, as diversas áreas do conhecimento e diferentes linguagens, que se articulam em torno de questões contemporâneas criando um território de partilha.

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Vivemos um complexo momento social, político, ambiental: a pandemia. Momento crítico, que nos deixa atabalhoados, a cada dia mais pressionados, aturdidos com tudo o que está acontecendo. Precisamos pensar em outras perspectivas, inventar caminhos juntos, porque sabemos que sozinhos não vamos a lugar algum. Devaneios binåh, abre espaços para o diálogo com profissionais de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes lugares do país (inclusive de outros países) que estão enfrentando esse momento criando movimentos de invenção. Este livreto conta com a participação de Josiane Pareja, no devaneio A casa e seus “entres”, e Paulo Fochi, no devaneio A casa, suas dobras, desvios e rachaduras. Todos os devaneios são mediados por Stela Barbieri. Josiane Pareja é educadora e atuou em diversas escolas de São Paulo. Em 2007, aproximou-se da abordagem de Reggio Emilia e, desde então, aprofunda seus conhecimentos sobre a abordagem italiana, que coloca a criança no centro do currículo e o professor da infância como pesquisador. Em 2014, abriu o Ateliê Centro de Pesquisa e Documentação Pedagógica e o Ateliê Carambola Escola de Infância, quando seu trabalho pedagógico ganha força na direção de uma infância narrada e compartilhada. Tornar visível como as crianças pensam se torna seu grande objetivo. Paulo Fochi é pedagogo, Especialista em Educação Infantil (Unisinos), Mestre em Educação na linha Estudos da Infância (UFRGS), Doutor em Educação na linha de Didática e Formação de Professores (USP). É professor da Unisinos e coordena o Observatório da Cultura Infantil (OBECI). É membro da Associação Criança (Braga, Portugal) dos Grupos de Trabalho sobre Educação de 0-3 anos e Pedagogias Participativas e Investigação Praxiológica da Associação Europeia de Pesquisa em Educação Infantil (Europen Early Childhood Education Research Association - EECERA). Já atuou em diversos trabalhos junto ao Ministério da Educação, dentre eles, como um dos consultores para a elaboração da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil. Também atuou na pesquisa e

INTRODUÇÃO

introdução

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desenvolvimento de espetáculos para bebês, como Cuco - A linguagem dos bebês no teatro, e Chuá - Descobertas na água, da CIA Caixa do Elefante. É colunista do Portal Lunetas e tem publicado no campo da Pedagogia da Infância, Educação Infantil, Bebês, Documentação Pedagógica e Formação de Professores. Stela Barbieri é artista, educadora, escritora e contadora de histórias. Atualmente é diretora do Bináh Espaço de Arte. Foi curadora do Educativo da Bienal de Artes de São Paulo e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake, assessora de artes da educação infantil e ensino fundamental na escola Vera Cruz e prestou assessoria em diversas escolas. Stela fez parte do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência, em Lisboa, Portugal, e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ela também coordenou o curso de Pós-Graduação em Museus e Instituições Culturais, no Instituto Singularidades. Contadora de histórias, Stela é autora de 27 livros infanto-juvenis.

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a casa e seus “entres”

Stela Barbieri: Bachelard (1996, p. 10)1 diz que o devaneio é “um pouco da matéria noturna esquecida na claridade do dia”. Acredito que estamos vivendo uma noite escura da humanidade; por outro lado, sinto que o movimento de ficar em casa por conta do isolamento social, de nos colocarmos em estado de suspensão de nossos afazeres da cidade, nos traz outro estado para pensar, que abre novos caminhos para nossos pensamentos. Eu queria começar perguntando como é a questão do devaneio para você. Josiane Pareja: Sem os devaneios e sem as derivas, acho que enlouqueceríamos. Vivemos um momento em que usamos os devaneios como possibilidades de imaginar algo, tanto para o melhor como para o pior. O devaneio é uma estrutura que me ajuda a imaginar, a pensar em contextos nunca vistos – e pensar que isso é possível. Stela Barbieri: Os grandes dramas da humanidade que estavam escondidos, estão postos à luz do dia. O que você acha que está vindo à tona nessa pandemia? Quais estão sendo os lugares de encontro? Como criamos derivas, devaneios nos lugares de encontros? Josiane Pareja: Acho que é a essência humana que está vindo à tona: as mazelas, as angústias. O humano desintegrado que se desconectou da natureza. Por exemplo, no lugar em que trabalho, a pandemia colocou em xeque as relações das famílias. Muitas famílias estão se conhecendo na pandemia, o que é um ponto muito positivo. As memórias que as crianças vão construir em suas casas é a memória do que vai ser feito, com afeto ou desafeto. Pode ser que elas nem lembrem muito bem da pandemia, mas vão lembrar do bolo que fizeram juntos, da cabana que foi montada na sala. Hoje é muito claro para mim, após trabalhar com famílias e crianças por anos, que não existe qualidade sem tempo. Tempo, hoje, é a unidade de medida que melhor nos define como humanos, pois não vivemos sem tempo. 1 BACHELARD, Gaston. A Stela Barbieri: No bináh, conversapoética do devaneio. São Paulo: mos muito sobre a casa que, durante o Martins Fontes, 1988.

A CASA E SEUS “ENTES”

devaneios de Josiane Pereja e Stela Barbieri

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isolamento social, tem sido núcleo central da nossa vida. Para aqueles de nós que trabalhamos muito, muitas vezes nossa casa era uma casa dormitório: estávamos ali de passagem, dormíamos, acordávamos, tomávamos café, saíamos e só voltávamos à noite. Agora, estamos acordando a casa. Como você vê a relação dos pais, das crianças, da escola em relação à casa? Como está sendo acordá-las? O que estão sendo os “entres”? Os entres são lugares de passagem, que podem ser lugares de encontros fortuitos, não institucionalizados. Muitas vezes, as crianças não querem ir para o pátio brincar – querem ficar em um lugar mais recluso, em uma intimidade maior com o amigo, ou desenhando, concentradas. Elas vão para o corredor, para a porta da sala, para lugares que frequentemente não são habitados institucionalmente, não têm uma função prescrita. Nesse momento, estamos dando uma sacolejada na casa, porque ela virou lugar de trabalho, de brincar, de aprender, de viver, de comer, de limpar. Como é esse acordar a casa e em que “entres” nós estamos? O que você acha que as famílias estão vivendo? Josiane Pareja: Para mim, a casa é o lugar simbólico do resgate das relações. Tenho atendido várias famílias do Carambola remotamente e, quando as crianças me veem, correm para pegar brinquedos, livros, querem mostrar a casa. Quando você fala do “entre”, penso que o devaneio está ali. Acredito que as pessoas estão resgatando a casa como objeto simbólico da constituição humana. A primeira casa em que moramos é a barriga, o corpo feminino é nossa primeira morada para chegarmos ao planeta, um apertar de afeto, quase como o ovo, quente macio, tem o ruído, o som das vozes. Temos sugerido às famílias que ocupem suas casas, que permitam que as crianças construam intimidade – um processo que precisa de tempo, de continuidade. Como ocupar a casa que acorda? Acordar a casa para as texturas, os espaços, os esconderijos, suas janelas. No Carambola, não estamos mandando tarefas para as crianças, mas temos proposto para as famílias: “olhem pela janela, sintam o vento, olhem para as nuvens”. A casa é a metáfora de um grande útero, um útero em que cabe uma família toda, sendo gestada e reconstruída em seus valores, suas crenças. Muitas famílias do Carambola foram para fora de São Paulo e mandam fotos das crianças conectadas com a natureza. A natureza é a casa, porque a casa para mim é o planeta. Stela Barbieri: Temos pensado muito sobre como os seres vivos se manifestam. Perdemos a relação da complexidade do planeta e seus seres vivos. Muitas vezes, esperamos que as crianças tenham uma investigação muito rica do planeta, mas nós mesmos não o conhecemos, não investigamos seu funcionamento. Estamos em uma malha emaranhada de vidas, e o trabalho que fazemos na escola precisa ter sentido para todo mundo, não só para as crianças. Ter sentido para os professores, os colaboradores,

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as famílias, ou seja, o entrelaçamento precisa ser feito por todos nós, pois o planeta é feito por todos nós. Nesse momento da pandemia, como você está criando sentidos nesse sistema que é a escola, entre os professores, as crianças e as famílias? Josiane Pareja: Carambola trabalha com a documentação pedagógica, que é mostrar o “entre”. A documentação tem um compromisso ético e estético com o “entre”, com dar visibilidade à infância bem vivida. A essência do Carambola é as crianças poderem viver uma boa infância. Temos mandado documentos para as famílias, fruto de 2 meses de trabalho presencial. No Carambola, os registos fotográficos e os vídeos são uma prática recorrente, é o jeito que entendemos e compartilhamos esses momentos que são muito rápidos, mas muito potentes: mostrar como as crianças se relacionam, brincam. Stela Barbieri: A intenção desse documento é as professoras estudarem mais a própria realidade e a partilharem com os pais? Josiane Pareja: É um trabalho que acontece no cotidiano do Carambola, documentamos todo o processo. Atualmente, é como que se tivéssemos feito uma pausa para mergulharmos nesse documento. Não sei se sem pandemia conseguiríamos fazer um mergulho tão profundo e com trocas tão ricas entre as pessoas. Temos uma sala que foi construída para que as crianças trabalhassem em pequenos grupos, pois acreditamos que as crianças aprendem entre elas. Não temos aulas em que todos param para olhar para o mesmo lugar, buscamos agir sem um “adultocentrismo”. Há lugares que são fixos e que permanecem por um tempo e, em determinados momentos, são reconfigurados. Os espaços são fixos porque temos a intenção de que as crianças os habitem de forma autônoma. Para isso, um espaço que se modifica permanentemente não é bom, mas existem modificações que acontecem de acordo com os indícios dos projetos. Temos um projeto institucional com a linguagem musical, uma investigação institucional sobre a gênese da música de 0 a 5 anos, a faixa etária que atendemos. É um espaço hoje de exploração de objetos musicais: instrumentos, pesquisas sonoras. Ele tanto é fixo, quanto é móvel, dependendo do momento em que os projetos estão acontecendo. Entendemos a linguagem musical como a primeira linguagem humana: no útero a escuta é um dos sentidos que primeiro se aguça. Trazemos a música como linguagem, que comunica. É uma linguagem que deve ser fortalecida, pois faz parte da nossa identidade brasileira: o Brasil é um dos países que têm mais gêneros musicais e exploramos pouco a música nas escolas de infância, para além do professor especialista. No Carambola, não temos professores especialistas, as linguagens são contextos permanentes na equipe. É muito importante que o profissional da infância domine as linguagens da arte, e cada ano elegemos uma linguagem para nos aprofundarmos.


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Stela Barbieri: Muitas vezes, os professores chegam ao bináh sem terem lidado com tintas, com argila, nem com o próprio corpo. Não têm intimidade com as materialidades, com a potência dos materiais para lidar com eles e com as crianças. Como você faz a formação dos seus professores? Josiane Pareja: A Carambola nasceu em 2014 e o centro de pesquisa um pouco antes dela. As pessoas que trabalham ali sabem que farão os cursos, pois aqueles cursos que são abertos para gente de fora, são aqueles que proponho para minha equipe. Na carga horária dos profissionais, existem 2 horas diárias de formação em serviço, uma decisão estratégica para promover a qualidade e o nível de reflexão que construímos. Trabalhar com a documentação não é simples. Pressupõe organizar fotos, selecioná-las, refletir. Há uma escolha e o conceito de continuidade, que se ligam à temática do “entre”. A documentação pedagógica estabelece um diálogo entre a reflexão e a prática, e a teoria do professor é seu grande motor. Ela estabelece uma tríade da escola com as famílias e com a própria criança, sob o compromisso de entender seu processo na construção da própria aprendizagem. Há outra tríade no pequeno grupo: o professor com o professor, o professor com o atelierista e o atelierista com a coordenação – são três pessoas que discutem o material. Não fazemos documentação pedagógica sozinhos, ela é, por princípio, um documento dialógico que precisa do outro para ser construída. Stela Barbieri: Você pode falar um pouco sobre avaliação? Josiane Pareja: A avaliação na educação infantil está muito mais ligada às propostas, aos espaços, aos materiais, à forma como as crianças são agrupadas, à maneira como o cotidiano é organizado, de modo a garantir o bem-estar das crianças. A documentação malaguzziana é uma forma de avaliação, mas não uma avaliação para classificar, julgar, excluir, rotular a criança. É uma forma de compartilhar os processos, o “entre” que não é o produto final, mas é a qualidade da experiência. O nome Ateliê Carambola tem um sentido: ateliê, como palavra que valida a infância com experiência. Produzimos um documento individual que as famílias recebem uma vez por ano, e outro, coletivo. Assim, temos o individual e o coletivo em diálogo, que é a maneira como entendemos os processos de desenvolvimento, das relações, do conhecimento das crianças. Existem momentos de partilha com os professores e reuniões formativas, quando compartilhamos com os pais os indícios dos projetos, assim, contamos com o envolvimento das famílias no processo. As famílias da Carambola querem uma infância diferente, com tempo para ser criança, em que a linguagem do brincar seja de verdade. É uma abordagem que valida a subjetividade como um direito, pois ninguém se constitui internamente se não houver pequenos espaços de intimidade; ninguém se subjetiva no coletivo o tempo todo. Precisa haver o vai e vem do coletivo ao individual, e do individual ao coletivo.

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Pergunta do público que assistiu o Devaneio: Pensando nos “entre espaços”, seria desejável o arquiteto unir-se à criança para a construção de uma linguagem expressiva de desenhos dos espaços? Stela Barbieri: Há alguns arquitetos que trabalham com as escolas, pensando com elas, ouvindo as crianças. Trabalho de arquitetura em escola não é decoração, não basta por mesinha e cadeira de madeira, tem que se relacionar com a pedagogia. Fiz um projeto para o Colégio Renascença no qual ouvimos as crianças, as famílias, a comunidade, os professores, a coordenação, e trabalhamos com os arquitetos, em um diálogo múltiplo. Isso faz muita diferença! Às vezes, o arquiteto pode fazer uma obra linda que não contempla o funcionamento da escola, nem as necessidades pedagógicas e investigativas. Pode pensar que o espaço amplo e vazio, é mal aproveitado, mas pelo contrário, as crianças precisam do espaço vazio para a imaginação, para ocupá-lo. Precisamos ouvir as crianças e todos os colaboradores da escola, as pessoas que varrem, as pessoas que cuidam da porta, pois elas entendem o fluxo dos deslocamentos, os entres, já que estão lá o tempo todo. Quero falar também do artista na escola. Conhecendo algumas das linguagens com profundidade, o artista pode encontrar novos caminhos, seguir por derivas, sugerir o uso de outros materiais ou de outras imagens, fazer perguntas que ampliem o pensamento pela invenção. Ele pode trazer deslocamentos muito interessantes, trazer muita potência para a confrontação com o pedagogo, com o professor de sala, com o coordenador, com o orientador. Os artistas têm um papel disruptivo, têm essa potência. Conversar e estudar com profissionais de diversas áreas do conhecimento também é importante: ouvirmos cientistas, biólogos, cozinheiros, jardineiros, marceneiros, entre outros, e estudarmos com eles. A Josiane nos trouxe a visão de que nossa maneira de pensar, nossas concepções de ensino precisam estar relacionadas com a maneira de a escola funcionar. É preciso fazer um trabalho de construção com as pessoas em que sejamos ativos, envolvê-las em um trabalho processual onde aprendemos o tempo todo, com isso, vamos transformando a escola.

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a casa e suas dobras, desvios e rachaduras

Stela Barbieri: Paulo e eu nos encontramos em um curso de coordenador pedagógico em Reggio Emilia e, desde então, fomentamos o desejo de fazer coisas juntos. Partilhamos de muitos sonhos, utopias e propósitos. Quero começar essa conversa perguntando sobre devaneio. Paulo Fochi: Devaneio é quando vejo uma criança brincando, fingindo o que ela não é, ser a possibilidade de ser. A possibilidade da experiência e do não certo, daquilo que talvez não pode ser. Morin2 fala do conceito “a iniciação à lucidez”, que se dá a partir de testemunhos contraditórios a respeito de um mesmo acontecimento e é inseparável da onipresença do problema do erro. Ele termina sua reflexão dizendo que seria preciso demonstrar que a aprendizagem da compreensão e da lucidez, além de nunca ser concluída, deve ser continuamente recomeçada, regenerada. Para Morin, compreensão é diferente de explicar, porque explicar está na ordem do objetivo e compreensão está na abertura ao sofrimento, da dor e da alegria do humano. Fiquei pensando que isso seja uma ideia de devaneio. Stela Barbieri: Às vezes, as pessoas têm preconceito com o devaneio, parece que a pessoa está com a atenção ligada a algo que não tem a menor importância ou a menor relação com o cotidiano ou com problemas sérios. Preparando esse encontro, eu me deparei com um relato de experiência meu sobre “atenção”, em que falava da atenção imersa na distração. Muitas vezes temos insights, questionamentos, problematizações fecundas quando estamos lavando louça ou olhando a natureza. São momentos em que também entramos em contato com a angústia de estarmos vivos, de vivermos num mundo com tantos problemas, discrepâncias sociais, problemas básicos de sustentabilidade das pessoas, questões econômicas, políticas, além de nossas questões pessoais. Quando estamos com a aten2 MORIN, Edgar. A cabeça ção aberta, parece que os pensamentos se bem-feita. Rio de Janeiro: libertam dos modos já controlados. Bertrand Brasil, 2000.

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devaneios de Paulo Fochi e Stela Barbieri

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O sentido que você traz para o devaneio é muito contundente. O que neste momento está nos mobilizando? Estamos vivendo uma grande pausa, uma grande rachadura, uma grande dobra temporal em que tivemos que suspender tudo por causa de uma pandemia. Eu queria que você falasse sobre o que tem pensado sobre essa pausa. Paulo Fochi: Antes da pandemia, eu estava muito acelerado, viajando muito, e as primeiras duas semanas de isolamento me puseram num abismo, me deixaram apavorado. Temos uma ilusão de futuro, vivemos o tempo inteiro com ela, mas quando começou a pandemia, tive a sensação de perder meu futuro. Cada vez que eu tinha que tomar uma decisão sobre minha agenda, não sabia se reagendava uma palestra, se deixava em suspensão, o que me deixava mais angustiado. Onde eu poderia projetar o futuro? Passadas as duas semanas, a pausa se iniciou, comecei a me acalmar, a achar possibilidade de estar em casa e me reinventar, descobrir o que eu ia fazer. Por isso me lembrei de Morin quando fala sobre “a iniciação à lucidez”, por essa visão contraditória, do sofrimento e da alegria, da possibilidade, da descontinuidade, da incerteza. Minha invenção de futuro começou com a relação com as plantas, já que antes da pandemia nem cactos sobreviviam em minha casa, o que de mais concreto eu tinha: “não sei quando consigo reagendar as coisas, mas sei que posso cuidar de uma planta agora, porque estou em casa 24 horas”. Estou há 60 dias com uma horta que cresceu: tem tomilho, orégano, ganhei plantas surpresas. Foi pensando na projeção de futuro que comecei a encarar o coronavírus como outra possibilidade, sem amenizar a gravidade do que está acontecendo. Ele é um vírus lanterninha, tudo aquilo que não tínhamos tempo para olhar, ele colocou em foco, como que dizendo: olhem, olhem como a sociedade asiática é obediente, mas obediência não é bom; olhem como o europeu é eurocêntrico; vejam a perversidade do capitalismo norte-americano; vejam a desigualdade que existe aqui no Brasil. Terei que lidar com isso. Esse tempo de pausa tem me mobilizado a cuidar das plantas, a fazer projetos, a ficar em silêncio, a entrar em contato com meu medo, com minha vulnerabilidade. Stela Barbieri: Essa lanterninha que está iluminando e mostrando a realidade é cruel, está exacerbando os problemas que temos. Sabemos que uma grande recessão virá, nos perguntamos o que vai ser das escolas, das crianças, dos nossos trabalhos, enfim, estamos vivendo no “entre”: entre algo que conhecemos e vivemos, e algo que é imponderável. Esses “entre espaços” mexem também com nosso ritmo, com nossas emoções. Estávamos vivendo numa velocidade muito acelerada, o que impacta em nossas relações com as outras pessoas, com o espaço, com nosso modo de olhar a educação. Acredito que essa pausa nos


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ajuda a pensar na velocidade. Quando Deleuze3 fala dos “entre espaços”, ele diz que a velocidade e a lentidão fazem com que deslizemos pelos lugares, de modo que vamos nos relacionando com as coisas de outra maneira. Esse momento nos leva a pensar no que não queremos mais, no que efetivamente queremos mudar e como vamos abraçar outros ritmos, como vamos nos introduzir de outra maneira nesse “entre”. O que você pensa disso? Paulo Fochi: Há uma mudança de tempo, uma ideia de tempo também alargada, não só do antes, agora e depois. O filósofo Walter Omar Kohan trata da relação do tempo, no sentido do entre, do tempo que não cabe no ponteiro do relógio. Às vezes uma conversa voa, outras, ela não acaba nunca. Kohan (2005)4 escreve: “[...] diversos trabalhos contemporâneos afirmam outros conceitos e outros lugares para a infância. Dentre eles G. Agamben mostra como a infância é, antes de uma etapa, uma condição da experiência humana”. Ele faz uma epígrafe de Agamben5 (2001, p. 79-80): Por isso, um adulto não pode aprender a falar; foram crianças e não adultos os que acessaram pela primeira vez a linguagem e, apesar dos quarenta milênios da espécie homo sapiens, a mais humana de suas características, precisamente - a aprendizagem da linguagem - permaneceu tenazmente ligada a uma condição infantil e a uma exterioridade: quem acredita num destino específico não pode verdadeiramente falar.

Kohan comenta a epígrafe,

3 DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. Documentário de 1989.

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4 KOHAN, W. O. A infância na educação: o conceito devir-criança. In Lugares da infância: filosofia. DP&A, 2004. Disponível em : https:// educacaopublica.cecierj.edu. br/artigos/2/1/a-infanciada-educacao-o-conceitodevir-crianca. (Acesso em 11.11.2020).

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5 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

Agamben esclarece que ela indica uma condição: infância é tanto ausência, quanto busca de linguagem; só um infante se constitui em sujeito da linguagem e é na infância que se dá essa descontinuidade especificamente humana entre o dado e o adquirido, entre a natureza e a cultura. O ser humano é o único animal que aprende a falar, e não poderia fazê-lo sem infância. Notemos que a infância não é apenas uma questão cronológica: a infância é uma condição da experiência. É preciso ampliar os horizontes da temporalidade. Os gregos, aqui também, podem nos ajudar. Em grego clássico há mais de uma palavra para referir-se ao tempo.


A mais conhecida entre nós é chrónos, que designa a continuidade de um tempo sucessivo. Aristóteles define chrónos como “o número do movimento segundo o antes e o depois”, na Física (IV, 220a); percebemos o movimento, o numeramos e a essa numeração ordenada damos o nome de chrónos. O tempo é, nesta concepção, a soma do passado, presente e futuro, sendo o presente um limite entre o que já foi e não é mais (o passado) e o que ainda não foi e, portanto, também não é mas será (o futuro).

Será agora um tempo kairós? Um tempo crítico? Eu tenho memórias da minha infância sobre o escape do tempo kronos. Quando eu era criança, houve um momento em que eu odiava tomar banho e, quando minha mãe conseguia que eu entrasse no chuveiro, eu me perdia: fazia piscininha tapando o ralo, cantava. Quando já estava com os dedos enrugados, minha mãe me chamava e eu respondia: mas eu acabei de entrar! Essa é minha lembrança de tempo aiônico, porque o tempo não cabia nos ponteiros do relógio. A experiência de suspensão em casa – não só no sentido de parar, mas uma suspensão do kairós, crítica, de oportunidade, de abertura, de dizer: “algumas coisas não cabem mais aqui”. Kairós é o acordo com o tempo da intensidade e da horizontalidade, do antes, agora e depois. Stela Barbieri: Há uma relação despótica com o tempo, que não nos deixa perceber o que estamos sentindo em nosso corpo. Que tipo de impacto tudo isso está tendo em nosso corpo? A cidade fica inscrita em nós quando estamos andando por ela, nós fazemos paisagem, mas a cidade também faz uma ocupação em nós. Como é dar aula dentro de casa, sem os materiais? O que a casa nos traz enquanto campo de investigação? Como o corpo é impactado por essa outra velocidade, outra duração, outra intensidade? Paulo Fochi: Moro sozinho num apartamento minúsculo, tenho ausência de conflito. Queria alguém para brigar de vez em quando, para me irritar, para abraçar e ser abraçado, porque nossa noção ontológica relacional de pele me faz muita falta. O estresse, a emoção são corporais. Dançar foi minha primeira linguagem, acho que dancei antes de falar, quando

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Mesmo que chrónos tenha sido a palavra mais bem-sucedida e comum entre nós, não é a única para designar o tempo. Outra é Kairós, que significa ‘medida’, ‘proporção’, e, em relação com o tempo, ‘momento crítico’, ‘temporada’, oportunidade (Liddell; Scott, 1966, p. 859). Uma terceira palavra é Aión que designa, já em seus usos mais antigos, a intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva (Liddell; Scott, 1966, p. 45).

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A CASA E SUAS DOBRAS, DESVIOS E RACHADURAS

escrevo um parágrafo de que eu gosto muito, eu danço. Termino minhas aulas muito excitado, eufórico, com ideias e tenho que elaborar alguma coisa. Primeiro tenho que dançar e depois vou ler para me acalmar. Quando fui professor de bebês, eu reconhecia na primeira linguagem deles, a linguagem do corpo, minha linguagem primeira. Tive uma iluminação divina antes da pandemia: li um livro maravilhoso de Monica Guerra, “Le più piccole cose. L’esplorazione come esperienza educativa” – a exploração como experiência educativa. Ela se remete ao livro “Como ser um explorador do mundo. Museu da (Arte) vida portátil”, de Keri Smith. Isso foi minha salvação! Antes da pandemia, dei duas semanas de aula presencial e disse aos meus alunos: “confiem em mim, sei que às vezes é difícil, mas vamos fazer uma aventura juntos, vamos começar a fazer uma coisa semanalmente que parece não ter sentido nenhum com a disciplina, mas em algum momento vai ter sentido”. Comecei a fazer os ensaios que a Keri Smith propõe com eles. Quando veio a pandemia, segui fazendo as propostas no início das aulas. Uma das explorações era mapear as rachaduras da casa; a outra era fazer uma lista enciclopédica das ações cotidianas. As alunas estão tendo que fazer os exercícios, documentá-los e criar alguma plataforma para expô-los. Para mim, o conteúdo é secundário à exploração, mas percebo que estou cumprindo melhor o conteúdo, porque minhas alunas olham para a vida que acontece. Sugiro dois livros instigantes: “Curiosidade e prazer de aprender”, de Hugo Assmann, em que o autor faz uma recuperação sobre a curiosidade epistemológica de Paulo Freire, que é uma das coisas mais incríveis para pensarmos a construção do conhecimento. O outro é “Educar na curiosidade”, de Catherine Lecuyer, em que a autora faz uma reflexão sobre o tema. Nos exercícios com minhas alunas, o mais difícil foi recuperar o ímpeto interno de ser curiosa, de entender que estar numa aula remotamente era um espaço para exercitarmos a curiosidade. Stela Barbieri: O que essas proposições estão mudando em você? Paulo Fochi: É uma aventura nova, e não imaginei fazê-la no meio de outra aventura, que é ser professor de aula remota. O livro de Mónica Guerra, no qual ela discute o conceito de exploração, me tocou muito, me fez me perguntar se meu jeito de ser professor universitário fomentava o exercício criativo em minhas alunas, o exercício curioso com a vida. Teresa Godal, minha supervisora do doutorado sanduíche na Espanha, dizia “a gente não dá conta de uma reflexão em seis meses. Meu compromisso, depois de tantos anos sendo professora universitária, é que as alunas consigam mudar algumas atitudes”. Essa semana, minhas alunas disseram que houve uma mudança de chave, e elas começaram a sentir prazer na exploração. Então, comecei a entender o que Teresa estava me dizendo, da possibilidade de mudança de postura.

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Uma das coisas interessantes que está acontecendo nos exercícios com minhas alunas é que, nas primeiras duas ou três explorações, elas perguntavam: está certo? Nas proposições, existe uma ausência de certo e errado, o que é bem difícil, porque fomos educados nesse binarismo. Tem sido um exercício de abertura ao mundo, da abertura que precisamos quando trabalhamos com as crianças, pois somos a tradição e elas são a inovação, como dizia Arendt. Ela falava de que as crianças são portadoras do inédito, elas têm que ser inscritas na cultura, mas também podem mudar o mundo, porque elas são a novidade. Mas qual é nossa abertura para a novidade, se já estamos definidos pelo certo e pelo errado? Stela Barbieri: Como vamos construir uma nova utopia nesse mundo tão incerto? Paulo Fochi: Essa é uma frase do Morin (2000), que amarra bem nossa discussão: “conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza”.

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Josiane Pareja e Paulo Fochi nos devaneios binåh.



BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. Documentário de 1989. KOHAN, W. O. A infância na educação: o conceito devir-criança. In Lugares da infância: filosofia. DP&A, 2004. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/2/1/a-infancia-da-educacao-o-conceito-devir-crianca. (Acesso em 11.11.2020).

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MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

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Os colecionáveis binåh são uma série de publicações digitais voltadas à celebração do vivo em um momento ímpar: o isolamento social. Apresentam as investigações realizadas por Stela Barbieri e a equipe binåh, bem como o diálogo com seus convidados. Elas trazem as cartografias das experiências, as marcas dos movimentos de corpos, os pensamentos, invenções, ebulições, transbordamentos e fagulhas dos encontros no binåh em estado de ateliê. Livreto 01 - espaço, tempo e materialidade Livreto 02 - lugar de desenhar Livreto 03 - lugar de construir Livreto 04 - lugar de narrar Livreto 05 - lugar de cor/ luz/ sombra Livreto 06 - lugar de transformação Livreto 07 - berilimbau - a construção dos lugares coletivos/comuns Livreto 08 - devaneios – aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres - dobras, desvios e rachaduras Livreto 09 - devaneios – cambalhota cósmica - educação para além da sala de aula - caldo da experiência Livreto 10 - devaneios – narrativas do agora - casa nômade Conheça os outros livretos dessa coleção acessando o site do binåh ou pelo QR CODE abaixo:

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devaneios cambalhota cósmica -

TERRITÓRIO DEVANEIOS

educação para além da sala de aula - caldo da experiência

LIVRETO 09


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TERRITÓRIO EDUCAÇÃO

educação para além da sala de aula – caldo da experiência

LIVRETO 09


Colecionáveis binåh Livreto 01 - Espaço, tempo e materialidade Livreto 02 - Lugar de desenhar Livreto 03 - Lugar de construir Livreto 04 - Lugar de narrar Livreto 05 - Lugar de cor/ luz/ sombra Livreto 06 - Lugar de transformação Livreto 07 - Berilimbau - a construção dos lugares coletivos/comuns Livreto 08 - Devaneios – aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres dobras, desvios e rachaduras Livreto 09 - Devaneios – cambalhota cósmica educação para além da sala de aula caldo da experiência Livreto 10 - Devaneios – narrativas do agora - casa nômade

Ficha técnica Esta publicação digital foi realizada através da Campanha Viva binåh, de colaboração coletiva, Concepção editorial e texto: que contou com apoio espontâneo de diversas Stela Barbieri pessoas que, em troca, receberam acesso aos Edição e revisão de textos: colecionáveis binåh. Essa ação garantiu a Josca Ailine Baroukh continuadade de nossas atividades, em conjunto Assistência de edição de textos: com organizações sociais e escolas públicas. Flora Pappalardo Este material tem seus direitos autorais Transcrições: reservados, sendo vetada a reprodução ou Renata Miyuki Kotaira disseminação de qualquer parte do material sem a prévia autorização dos autores. Projeto gráfico: Caso tenha interesse em utilizar este conteúdo Fernando Vilela por favor entre em contato através do email: Ilustração da capa: contato@binahespacodearte.com.br Stela Barbieri Diagramação: STACCHINI Editorial Fotos: Flora Pappalardo, Guga Szabzon, Júlia Souza, Laila Kontic, Mariana Galender, Michele Mifano, Nádia Bosque, Nina B. Lucato, Rayssa Fleury, Stela Barbieri Equipe binåh: Carina Tiyoda, Felipe Leonidas, Fernando Vilela, Flora Pappalardo, Gilson Pereira, Pedro Campanha, Romeu Loreto, Roselane Silva, Stela Barbieri Educadores que trabalharam no binåh entre 2014 e 2020 cujas documentações são apresentadas nessas publicações: Blenda Souto Maior, Clara Rocca, Daniele Silva, Erica Rapu, Fábio Caiana, Flora Pappalardo, Guga Szabzon, Isadora Kalil Godoi, Julia Souza, Laura Gorski, Letícia Zero, Maria Fernanda Bento, Mariana Galender, Nádia Bosque, Nina Lucato, Otávio Vidoz, Roselane Silva, Thais Pontes Moreira, Tomaz Volpi

binåh espaço de arte Rua Bento Vieira Barros, 181 (entrada pela rua Jamil Safady) 05046-040 - São Paulo – SP Fone: (11) 3467-4387 www.binahespacodearte.com.br


apresentação

binåh espaço de arte é um lugar de invenção, investigação e imaginação. Um lugar de encontros e experiências com e a partir da arte, que foi construído no ateliê de Stela Barbieri e Fernando Vilela. Conta com uma equipe de profissionais diversos (cineastas, designers, artistas, escritores, educadores, músicos e cientistas) e realiza cursos, oficinas, grupos de estudos, assessorias, encontros, visitas, ateliês e festivais para adultos e crianças.

APRESENTAÇÃO

O binåh dialoga com as inquietações, urgências e questões de pes­soas, escolas e organizações, instaurando um lugar estético, ético e político de deslocamento, para construção de outros olhares que integram o pensar e o fazer. A arte e a educação são os principais campos de sustentação das investigações deste lugar de encontros e entrelaçamentos entre as experiências singulares, as diversas áreas do conhecimento e diferentes linguagens, que se articulam em torno de questões contemporâneas criando um território de partilha.

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introdução

Vivemos um complexo momento social, político, ambiental: a pandemia. Momento crítico, que nos deixa atabalhoados, a cada dia mais pressionados, aturdidos com tudo o que está acontecendo. Precisamos pensar em outras perspectivas, inventar caminhos juntos, porque sabemos que sozinhos não vamos a lugar algum. Devaneios binåh, abre espaços para o diálogo com profissionais de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes lugares do país (inclusive de outros países) que estão enfrentando esse momento criando movimentos de invenção. Todos os devaneios são mediados por Stela Barbieri. Este livreto conta com a participação de Ednéia Gonçalves, Mariana Galender e Virgínia Kastrup, no devaneio sobre educação para além da sala de aula. Bia Jabor, Luiz Guilherme Vergara e Vírgínia Kastrup, no devaneio cambalhotas cósmicas. Arthur Iraçu Fuscaldo, Cleide Terzi, Graciene Silveira, Nydia Negromonte e Sandra Lima, no devaneio caldo de experiência.

Bia Jabor é artista, educadora, curadora educacional, com mais de 20 anos de experiência na área, educação infantil, programas de formação e consultorias. Foi diretora da Divisão de Arte e Educação do MAC/Niterói e Gerente de Arte e Educação da Casa Daros, entre outras instituições culturais onde atuou e implementou projetos educativos. Em 2018 abriu um espaço independente de arte, educação e movimento no Rio de Janeiro, a Casa 38.

INTRODUÇÃO

Arthur Iraçu Fuscaldo é professor do Curso de Pedagogia da UEMG – Ituiutaba, coordenador e professor do curso de Pós-Graduação Histórias e Culturas Afro-Brasileiras e Indígenas na Educação, em A Casa Tombada – FACON – SP. É músico na DasDuas Cia. de Teatro e Integrante do Grupo de Pesquisa Arte e formação de educadores – UNESP – CNPQ. Autor do livro “Rowapari’nho’re: Sonhar e Pegar Cantos no Xamanismo A’uwẽ_Xavante”.

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Cleide Terzi é pedagoga e mestre em Supervisão e Currículo – Especialista em Educação. Foi docente nos Cursos de Pedagogia da PUC/SP (1985-1987) e da Faculdade Tibiriçá (1983-1988). Elaborou a organização Curricular das Escolas de Magistério da Secretaria de Educação do Estado de Tocantins (1995). Foi consultora na Fundação Vanzoline – Secretaria de Educação do Estado de São Paulo – PEC – Formação Universitária (2001/2002) e coordenadora de grupo de formação de educadores de escolas particulares e públicas. Autora dos livros: “A Prova Operatória”, “A Aula Operatória” e “O Pensamento parece uma coisa à-toa” e co-autora de mais de 4 livros. Atualmente, é diretora da Ronca e Terzi Serviços e Treinamentos. Ednéia Gonçalves é socióloga, com longa experiência na elaboração e avaliação de projetos sociais e educacionais, e formadora de equipes gestoras e docentes, principalmente da Educação de Jovens e Adultos. Atua desde 2004 como formadora e coordenadora de projetos de cooperação técnica internacional em países africanos lusófonos e é coordenadora da “Ação Educativa”. Graciene Silveira é médica formada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, especialista em pediatria e homeopatia. Trabalhou no Ministério da Saúde no Departamento de Atenção Básica, na Secretaria de Saúde do Distrito Federal e atualmente na rede privada e como voluntária em creches públicas no Distrito Federal. Luiz Guilherme Vergara é doutor em Arte Educação pela Universidade de Nova Iorque (NYU) e Professor Associado do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense. É coordenador do Grupo de Pesquisa (registrado no CNPq): Interfluxos Contemporâneos - Arte e Sociedade, explorando as práticas curatoriais, os processos artísticos, ambientais e pedagógicos da arte contemporânea.

DEVANEIOS

Mariana Galender é artista visual e educadora, professora coordenadora de artes na educação infantil da Escola Vera Cruz e foi educadora do Museu da Casa Brasileira.

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Nydia Negromonte é artista visual, graduada pela Escola de Belas Artes da UFMG, com pós-graduação em gravura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona, Espanha. Trabalha com desenho, escultura, instalação, fotografia, vídeo e intervenções in situ. Participou de importantes mostras individuais e coletivas no exterior e no Brasil, dentre as quais destacam-se a 30ª Bienal de São Paulo, “A iminência das poéticas” e a Mostra Individual no Museu de Arte da Pampulha, ambas em 2012.


Sandra Lima é pedagoga pela Faculdade de Educação da USP, educadora da Rede Municipal de São Paulo desde 2008, diretora da Escola Municipal de Educação Infantil Carlos de Laet, na Diretoria Regional de Educação do Campo Limpo, desde 2017. Stela Barbieri é artista, educadora, escritora e contadora de histórias. Atualmente é diretora do Bináh Espaço de Arte. Foi curadora do Educativo da Bienal de Artes de São Paulo e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake, assessora de artes da educação infantil e ensino fundamental na escola Vera Cruz e prestou assessoria em diversas escolas. Stela fez parte do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência, em Lisboa, Portugal, e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ela também coordenou o curso de Pós-Graduação em Museus e Instituições Culturais, no Instituto Singularidades. Contadora de histórias, Stela é autora de 27 livros infanto-juvenis.

INTRODUÇÃO

Virgínia Kastrup é Doutora em Psicologia Clínica, professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza pesquisas na área de Psicologia Cognitiva, investigando principalmente os seguintes temas: invenção, aprendizagem, atenção, arte, deficiência visual e método da cartografia. Tem vários livros e artigos publicados.

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educação para além da sala de aula

Virgínia Kastrup: Vamos falar da educação para além da sala de aula, educação em tempos de pandemia. Fomos lançados no desafio do ensino remoto, caracterizado como trabalho temporário, do dia para a noite, desde a educação infantil até a universidade. Estamos desterritorializados, sem sala de aula, sem escola, sem corpo presente, sem as trocas de afeto. Sem a experiência que chamamos de atenção conjunta, trocas no plano da atenção que envolve tanto trocas cognitivas, quanto afetivas. Está posta a importância do presencial na educação entendida não apenas como transmissão de informação, mas como experiência de partilha, de cuidado, de composição com aqueles para quem estamos ensinando, o que implica em aprendizagem para alunos e professores. Nesse encontro, resolvemos focar no professor, em sua experiência. Muitas vezes, suas aulas são assistidas pelos pais, o que gera um dispositivo de controle e de interferência que pode ser positivo ou negativo. Outra questão é a tendência de se fazer um trabalho pedagógico baseado na transmissão de informação, deixando de pensar a escola como território de educação. Existe, ainda, a individualização da aprendizagem, que se perde no trabalho online; como ficam o grupo, a aprendizagem coletiva, as trocas atencionais, entre tantas outras questões que a educação envolve? Um dos desafios que se coloca é: como cativar a atenção do aluno que está em casa? Um aluno atento requer um professor atencioso também. Será que o professor presta atenção no aluno? Será que ele dá a sua atenção, quando reclama que o aluno não está prestando atenção? O trabalho de sintonia afetiva e cognitiva, que responde muito pelo processo de ensino e aprendizagem, ficou muito diferente no ensino remoto. O desafio é construir outro território, fincando os pés no presente e tentando ver que

Mariana Galender, Edneia Gonçalves e Virginia Kastrup no devaneio “Escola para além da sala de aula”.

EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA SALA DE AULA

DEVANEIOS DE EDNÉIA GONÇALVES, MARIANA GALENDER, VIRGÍNIA KASTRUP E STELA BARBIERI

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forças ele consegue mobilizar para fazermos nosso trabalho. Precisamos da construção de novos territórios educativos.

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Ednéia Gonçalves: Tenho muita experiência em escolas públicas, por isso falarei de políticas públicas e de minha experiência de cooperação internacional com países africanos, lusófonos e francófonos, realizada desde 2004. Meu maior aprendizado decorrente da pandemia é o tamanho da desigualdade social no Brasil. É incontornável tratarmos de seu sentido e significado quando pensamos no presente e no futuro da nossa educação. A função social da escola é articular os conhecimentos do território, das culturas, dos atores e das diferentes presenças que passam por ela, com o conhecimento sistematizado pela ciência, construído ao longo da história. A escola tem o poder de sintetizar e propiciar diálogos, oferecer informações diferenciadas, abrir possibilidades mil através de diferentes linguagens, de modo que o conhecimento faça parte da vida das pessoas. A articulação do conhecimento do território que as comunidades, os estudantes e os profissionais que circulam na escola produzem com o conhecimento acadêmico, permite construirmos conhecimento significativo para todos os atores envolvidos. No contato com os professores e os gestores, tenho percebido certa distância dos conhecimentos a respeito das comunidades, dos territórios. Se não os conhecemos, como vamos articulá-los? Se os conhecemos, como vamos construir ferramentas que tenham sentidos para isso na pandemia? Precisamos pensar a quantas anda nosso projeto político pedagógico e o acesso aos atores, aos conhecimentos, à história e à cultura local, o que tem sido uma grande dificuldade. Outro aspecto a ser considerado é quem são os estudantes, como a escola entra e atravessa suas vidas e qual seu sentido para eles. Se pensarmos que a escola é apenas um tempo de passagem, e não de invenção, teremos pouco a acrescentar durante o distanciamento social. Tenho me interessado muito pelos novos letramentos, os multiletramentos. Se considerarmos que a escola tem como função também construir uso crítico das tecnologias digitais, teremos mais possibilidades de construir coletivamente as melhores formas de contato, de acolhimento e de produção de conhecimento coletivo, apesar da distância. Caso contrário, podemos cair no risco de propor soluções homogêneas em um ambiente totalmente heterogêneo e desigual. Partir do homogêneo é construir uma política pública fadada ao fracasso. Reconhecer a desigualdade pode levar a soluções que deem conta das necessidades de aprendizagem diferenciadas, um conhecimento que nós, educadores, professores e gestores, não temos. A educação que funciona é aquela em que nós sabemos que nossos interlocutores têm um conhecimento que nós não temos e nosso trabalho é fazê-lo emergir. Para isso, precisamos pensar tanto nas inovações das tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC), como nas outras tecnologias: a palavra, a leitura,


Mariana Galender: Miguel, meu filho, me disse: “mãe, os adultos têm muito mais respostas que perguntas”, e eu respondi “mas, Miguel, neste momento estou com tantas perguntas!”. Este é o momento de conversar sobre elas. Escolhi começar pela imagem da mesa da minha sala, pois é nela que tudo

EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA SALA DE AULA

a troca, sobretudo, as ferramentas que estão disponíveis no ambiente. Para que isso aconteça, precisamos conhecer, escutar. Quando falamos em educação, a escuta é ampla. Tenho visto alguns trabalhos muito interessantes: mapas colaborativos, roteiros de afetos que uma escola está construindo a distância. A partir de um grande fórum, os professores propõem, por exemplo, em uma escola localizada na Vila Clara: “Quais são os lugares de afeto da Vila Clara? Quais os lugares que te despertam carinho, que você queria estar agora e não pode?”. Alunos, professores, famílias foram dando seus endereços, criando lugares ícones, e fizeram um mapa. Outro exemplo: uma escola disponibilizou a foto de sua fachada como uma tela. As crianças desenharam, plantaram árvores no desenho e criaram outra escola. São possibilidades de construir a partir do que é real para o outro, do solo que ele pisa, do sentimento que ele nutre por aquele espaço que é a escola. Quando pensamos em produção de conhecimento durante a pandemia, temos que aceitar que não vamos reproduzir a rotina escolar, porque produziremos estresse, sofrimento e frustração. Qual é o espaço de estudar que as pessoas têm em casa? Se não houver mesa ou computador? É função da escola construir as possibilidades de acesso ao conhecimento para quem está distante. Se a escola não tem participação na vida do território, o trabalho agora é acessar esse ambiente para conhecê-lo: saber quais são os conhecimentos, as culturas, as linguagens. Sabemos que, nas escolas da periferia, esse momento não é só de descoberta, mas também é de luto, de extrema violência, principalmente quando pensamos na juventude negra. É um momento de luta por sobrevivência física e simbólica, porque não estar na rua significa não ter dinheiro para alimentação. A primeira lição pós-pandemia é abrir um grande fórum de escuta nas escolas para que possamos saber como as comunidades sobreviveram. Vou terminar com uma história. Conheci em São Tomé e Príncipe, o Soya, que tem a função de guardar as memórias das pessoas comuns. Ele vive na comunidade aprendendo a vida das pessoas e, quando alguém morre, na cerimônia fúnebre, ele conta aquela vida para toda a comunidade de forma épica. Ele assim o faz para que o falecido saiba que sua história foi importante e acabou, e que ele pode seguir em frente epicamente. Precisamos aprender sobre as vidas das pessoas comuns, prestar atenção no outro, escutá-lo, ser Soya das comunidades em que nos encontramos. Quem me contou essa história foi dona Alda Espírito Santo, uma poeta maravilhosa de São Tomé e Príncipe que faleceu em 2006.

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Diário de um abacate construído por Mariana Galender com seus filhos Miguel e Helena.

EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA SALA DE AULA

acontece. É na mesa que meu filho faz a lição de matemática contando feijão; dou minhas aulas e gravo vídeos; eu como com as crianças; faço faxina; as crianças acampam. Ou seja, é uma situação de muitas camadas. Quando pensamos a casa como território de investigação, é uma casa com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, com um acúmulo. A experiência que quero compartilhar diz respeito aos abacates que estão sobre a mesa. Eu tinha dois caroços e sempre achei maravilhoso o processo de uma semente brotar, um processo muito potente em relação à vida, ao movimento, à criação. No primeiro dia de quarentena, eu abri um novo abacate e as crianças e eu resolvemos fazer um diário sobre ele. Foi assim que começou a prática de nos sentarmos à mesa e olharmos para ele. A criação desse diário está sendo um processo de escrita compartilhada: as crianças falam, eu escrevo e vamos conversando sobre a vida do caroço. Vou ler um trecho: “Esse é o meu primeiro dia, que eu saí do abacate, da barriga da minha mãe, eu tenho uma irmã que chama Lulu Cabeluda, ela é bem mais velha, ela também é um caroço de abacate. Eu acabei de nascer e não tenho folhas, a minha irmã tem bastante folhas, porque ela nasceu antes de mim. Quando eu crescer vou ter folhas. [...]”. A escrita é do ponto de vista do abacate, que em outro momento traz relatos sobre a pandemia “[...] está tendo uma epidemia de uma coisa que se chama coronavírus, ninguém está gostando, porque é uma doença, lá no mercado e na padoca também estavam falando disso, é uma gripe muito forte e eu não quero pegar [...]” Fui percebendo que a construção desse texto era uma forma das crianças elaborarem suas experiências, de vida e da própria quarentena: ao mesmo tempo que brincavam de ser abacate, elas falavam de si mesmas. Recentemente, eu achei um desenho do caroço e estava escrito “eu abacate”, como se o abacate fosse uma pessoa. Fazemos desenhos de observação e acompanhamos a transformação da raiz, do brotamento. “[...] Quando eu crescer quero virar uma árvore bem grande, ter filhos abacates, netos carocinhos de abacates e aí, para eles eu vou contar a minha história [...]”. Aqui, eles estavam contando a experiência com os avós, com quem tinham convívio diário. De uma hora para a outra, foram apartados da convivência com a avó, que lhes contava sua história recorrentemente. Achei tão lindo quando eles falaram “e vou contar para os meus netos a minha história”: uma narrativa dá espaço para os afetos, para experiências vividas significativas. Até hoje fazemos a prática de olhar para o abacate. Sou professora de artes de duas turmas de 1º ano e duas de 2º ano em uma escola particular na qual os alunos têm o privilégio de ter acesso à internet e a uma plataforma digital. Na pandemia, o ateliê saiu da escola e foi para dentro de casa. Nosso foco era pensar no que era essencial para mantermos vivo o sentido de estarmos juntos. A primeira pergunta que fizemos, por meio de um PowerPoint enviado por e-mail para as famílias, foi: “Será que dá para descobrir algo dentro da nossa própria casa?”. Recuperei algu-

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mas fotos da escola e perguntei: “O que é possível encontrar dentro da casa, que vocês nunca viram?”. Surgiu de tudo: um amendoim como elemento de decoração, uma bolsa, o interior de uma tomada, pedra, sótão, uma aranha, várias descobertas. Com base em minha experiência com os caroços de abacate, propus um desdobramento: “Será que essas descobertas podem ser personagens de uma história?”. Começamos a criar narrativas: o enfeite de amendoim se transformou em uma família inteira de amendoins, cada um com sua personalidade. Uma das crianças trouxe a marca do gato no muro, que se transformou na Chiquinha da Parede. O próximo passo foi: “e se a gente passar a ser esse personagem? Será que dá para ser uma marca de gato na parede? Será que dá para ser, com o corpo, uma aranha?”. Começamos a perceber que o material não estava só falando com as crianças, pois eram os pais que iam lê-lo para elas. Assim, os pais faziam parte de toda a construção. No final, uma criança deu a ideia de transformarmos os personagens em figurinhas. Os ateliês passaram a ser encontros onde todos traziam seu material de desenho e desenhávamos juntos. Compartilhávamos a tela com os desenhos de observação dos personagens dos amigos que eles iam fazendo, de forma que todo mundo foi construindo sua coleção com o desenho de todos os amigos. Tenho feito exercícios muito importantes, até com os meus filhos, de conversas em que eles anunciam caminhos possíveis de pensar o que está acontecendo. Outro dia, Miguel falou “mãe o que eu sinto mais falta é de brincar com os meus amigos, é o que mais está pegando”. Eu respondi: “puxa Mi, você sabe que quando voltarmos, não vamos voltar a brincar junto como era antes. Não sabemos como vai ser. Será que vai ser possível brincar junto, estando longe do outro, do corpo do outro?” e ele começou a imaginar várias formas de se brincar junto mesmo estando longe, mostrando com o corpo no espaço. é importante irmos desenhando possibilidades com as crianças. Escutá-las e junto com elas imaginar mundo.

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Stela Barbieri: Mari, você traz para sua prática, a escuta dos seus alunos, e vai ao encontro do que faz sentido para eles: uma escuta para a fantasia, a imaginação, um jeito de brincar o mundo. Ednéia, Virgínia e Mariana trazem a importância da escuta e da invenção, muito conectadas com o que cada um está vivendo. Ednéia falou que todas as vidas importam, porque todas as vidas são carregadas de potência, ricas na experiência de cada um no mundo, na sua experiência ética, estética e espiritual em sua realidade. Temos, sim, disparidades; temos, sim, realidades muito difíceis, muito duras, mas precisamos enfrentar todas elas, para transformá-las. Gostaria de agradecer e finalizar com uma fala da Virgínia que faz todo sentido para mim: “quando a gente aprende, a gente inventa a si e inventa o mundo”. Hoje é urgente que inventemos um mundo todos juntos, em um movimento de troca para repensar a vida.


cambalhotas cósmicas

DEVANEIOS DE STELA BARBIERI, BIA JABOR, VIRGÍNIA KASTRUP E LUIZ GUILHERME VERGARA

Bia Jabor: Minha contribuição hoje está muito centrada nas conversas e devaneios compartilhados com Stela, Guilherme e Virginia, nas nossas conversas sobre esse encontro, pois estamos passando por um momento de reflexão que é interno e externo ao mesmo tempo, por conta de estarmos dentro de nossas casas e isolados. Ficamos pensando nas potências e lugares da casa, e a casa como um lugar de descobertas e de invenção. Como eu tenho um filho de 4 anos, esse lugar para mim é muito presente, pois ele está o tempo todo em movimento, se reinventando, descobrindo, pensando, usando a casa de uma maneira muito viva. Bem diferente de nós, adultos, que a usamos nos seus devidos lugares. A criança entra em um movimento em que as coisas reviram, dão cambalhotas o tempo todo: banheiro, cozinha, quarto, sala, os espaços parecem que não têm “limites” e tudo vai sendo invadido. É curioso que meu filho foi direcionando o movimento da família na casa, nos momentos em que cada um estava com ele. Fiquei pensando nos lugares que a casa ocupa e nas reinvenções do meu filho, pois estava vivendo de forma exacerbada a convivência em casa e com ele. Pensei na ideia da “Casa- Escola” e nas infinitas possibilidades da casa, seus materiais, objeto e espaços, e sobre o porquê de as escolas estarem trazendo conteúdos tão distantes da realidade e dispersos, desconectados de uma vivência real dentro da casa, que poderia ser inventada.

CAMBALHOTAS CÓSMICAS

Stela Barbieri: Estamos vivendo muitas cambalhotas que não foram propostas por nós e, ao vivê-las, estamos descobrindo coisas difíceis, mas encontrando caminhos e faíscas para que transformações se deem. Cada um de nós foi encontrando movimentos singulares. É disso que vamos tratar. Que inversões são essas? Que giros são esses?

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Virginia Kastrup, Guilherme Vergara e Bia Jabor no devaneio “Cambalhotas cósmicas”.

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Apesar de meu filho ter 4 anos, ele estava fazendo aulas virtuais de ensino à distância e conteúdos estavam sendo passados. E com minha filha mais velha, de 12 anos, já um outro movimento e circunstância, mas também dentro de casa. Como a casa pode se tornar uma escola? Que escola é essa, que a gente pode oferecer para os nossos filhos nesses diferentes tempos, lugares e espaços que a casa propõe? Fiquei pensando nesses vários lugares possíveis de reinvenção da casa: a Casa-Escola, a Casa-Família, a Casa-Invenção, a Casa-Tempo, a Casa-Corpo, Eu-Casa. Começamos a perceber a luz ao longo de todo o dia e a mudança nos ambientes, percepção que não tínhamos antes, porque em geral saíamos de manhã e só voltávamos ao final do dia, e como a casa se transformava: é algo mágico, as sombras, as diferentes texturas, a luminosidade, as tonalidades, aspectos que quem trabalha com educação infantil, por exemplo, muitas vezes está acostumado a explorar, mas que talvez não tivéssemos essa percepção em nossas próprias casas. O tempo se tornou estendido, um outro tempo passou a coexistir no espaço da casa. A convivência na “Casa-Família” onde tudo passou a ser realizado em conjunto, pois nunca tivemos tanto tempo juntos. Como é o convívio, os lugares da família na casa? E a “Casa-Corpo”? Como perceber um corpo que antes estava em movimento, fazendo coisas, se deslocando, e que, de repente, ficou mais parado e passou a se deslocar apenas nos ambientes dentro de casa, que precisaram ser reinventados para novos usos? Passamos a viver a casa em cambalhota o tempo todo. A “Casa” mais complexa e transformadora para mim foi a “Eu-Casa”, essa cambalhota que tivemos que dar para dentro de nós mesmos, pois tudo ficou mais exposto, as nossas certezas e incertezas, nossas perdas, o medo da morte e da doença. Seguramente, essa foi a cambalhota mais difícil, dolorosa e transformadora e que ainda está em processo. E se permitir dar essa cambalhota para dentro de si mesmo talvez tenha sido o maior desafio. Depois de 3 meses em casa, em isolamento, pude perceber o processo de transformação dessa vivência, desses espaço-tempo estendido. Descobri estar vivendo algo totalmente novo: todos os meus eus ao mesmo tempo – eu profissional, eu mãe, eu mulher, eu dona de casa, eu cozinheira, eu faxineira. Depois desse processo, fiquei pensando quais foram as principais experiências que me permitiram chegar, hoje, em um lugar de certa tranquilidade. Primeiramente, foi viver o momento da infância junto com meu filho, propiciando essa reinvenção de mim mesma, do espaço e do cotidiano através da imaginação. E perceber a importância, mais ainda nesse momento, de viver um tempo estendido do momento presente, sem as angústias do passado ou as expectativas de um futuro incerto. Na infância, as crianças vivem o momento, e estar com meu filho me permitiu

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viver essa espessura do presente. A segunda vivência foi a prática da meditação e da ioga, que também me levaram para esse lugar do tempo presente, do tempo da respiração, do inspirar e do expirar conscientes, que é viver. E, por último, da arte. Venho há muitos anos trabalhando com arte e educação, sem desenvolver meu trabalho pessoal como artista. Senti uma necessidade tremenda de realizar algum projeto novo, o que aconteceu espontaneamente. Tinha o desejo de me comunicar com as pessoas, criar algo que elas pudessem receber de presente em suas casas. Como tenho muitas caixas e coisas das mais diversas guardadas (assim como muitos artistas), comecei a reunir objetos e materiais dentro dessas caixas, a partir de um trabalho que pesquiso e desenvolvo desde a época em que trabalhei no MAC com Guilherme Vergara – sobre os materiais e suas metáforas, e como diferentes objetos e materiais reunidos podem ganhar um sentido e significado diferente pelas relações estabelecidas por cada um. Comecei a fazer as caixas com a condição de não comprar nada, usando apenas materiais que eu tivesse em casa ou no meu ateliê. Estou realizando esse projeto – que ainda não terminou – em um processo muito lento, na medida que o tempo me permite: desse pensar, criar, do fazer com as mãos, reunindo as coisas, escolhendo para quem será aquela caixa, um tempo muito distinto do que já vivenciei anteriormente em outros trabalhos. Até agora só entreguei a primeira caixa, e a segunda, vou entregar hoje. O nome desse trabalho se transformou até me decidir por ‘Presentes do presente’, pois entendi como a criação dessas caixas é uma possibilidade de estar vivendo o momento presente, do fazer com as mãos e da minha relação com a materialidade das coisas. Enquanto preparava essa apresentação hoje, estava separando imagens relacionadas às questões que iria tratar e, ao mesmo tempo, pensando em como faria uma caixa para entregar de presente para pessoas que estariam comigo de forma virtual. Resolvi dar mais uma cambalhota, e decidi não utilizar as imagens durante minha fala, mas apenas reuni-las de forma meio aleatória, sem explicação, sem fala, em silêncio, e “entregar” ao final como se vocês estivessem recebendo e abrindo a caixa. E esse é o meu presente para vocês.

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Virgínia Kastrup: Estamos vivendo um tempo de parada, de suspensão de tudo. É a experiência da incerteza, um momento em que não estamos no controle de nossa vida, não podemos fazer planos ou projetos. Toda nossa organização de vida, nosso modo de organização do tempo e do espaço, está em questão. Vivemos uma situação em que o passado não serve muito e o futuro é imprevisível. Nós, que trabalhamos com invenção, com criação, com arte, com o experimental, amamos a incerteza, a imprevisibilidade, o não saber o

Caixas “Presentes do presente” preparadas por Bia Jabor.


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que vai acontecer. Nunca fomos da regra, do invariante, da vida fixa. Sempre foi uma alegria mudar, não saber o que vai acontecer, nos arriscar. Mas, agora é diferente, pois estamos sendo agredidos e afetados por afetos muito ruins despontencializantes: as ameaças a direitos que são agressões a nossos valores, à ética que cultivamos. É impossível não considerar a dimensão estética com a dimensão ético política. Frente a essa incerteza que nos acomete, se eu tivesse que propor uma cambalhota, seria a cambalhota de fincar nossos pés no presente, habitarmos ao máximo o presente sem a ansiedade de um futuro incerto, renunciando a um modo de viver já conhecido para nós. Habitar o presente é nossa cambalhota, nosso desafio. Tornar as pequenas práticas, como fazer a própria comida, limpar a casa, cuidar da roupa, conversar com uma criança, pausar uma atividade, fazer um desenho, ler uma poesia ou ouvir uma música, uma experiência mais de corpo presente. A criança expressa muito bem isso, pois ela é o puro presente: não está pensando no futuro e não tem um passado muito pesado. As crianças nos acolhem no presente. O neurocientista Alain Berthoz traz o conceito de simplexidade, que é a simplicidade na complexidade, uma espécie de hibridismo entre os dois conceitos. Por exemplo, pensamos que fazer uma comida é uma atividade muito simples, mas quando não se sabe fazê-la, torna-se uma atividade complexa. Acredito que temos cambalhotas a dar e a aprendizagem de viver o momento presente é uma riqueza que podemos tirar da experiência da pandemia, a simplexidade.

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Stela Barbieri: Fico pensando na dimensão que as crianças trazem ao viver o presente, como a subversão dos usos dos objetos. Eu estava assistindo uma palestra da Noemi Jaffe1 em que ela fala do estado de gratuidade, no sentido de agraciado, de benção, de grato. As crianças vivem o presente no presente com graça, no encontro com as pequenas coisas. Agora quero chamar para nossa conversa o Vergara, que nos trouxe de presente as cambalhotas cósmicas.

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Luiz Guilherme Vergara: Essa é uma maraca e, metaforicamente, podemos dizer que é uma mulher, um grande útero, uma mãe cósmica. A ideia de cambalhota surgiu ao ler um texto de 1967 do Mario Pedrosa, em que ele está desanimado, preocupado, vendo que as vanguardas estão cansadas, pois não há uma 1 #31 bienal (Ações educativas) Curso para transformação de produção de sentido. Ele diz Educadores: Noemi Jaffe. que os artistas estão quase dando uma cambaDisponível em https:// lhota sobre os umbigos deles, uma cambalhota www.youtube.com/ no cosmo. Nós deslocamos isso para uma camwatch?v=kmtXvvQTEgQ. Acesso em 14.12.2020. balhota cósmica, produzindo outros sentidos.


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No final da vida, o astrofísico George Gamov, que estudou a morte das estrelas e o buraco negro, recebeu a visita de outro astrofísico, que lhe perguntou o que estava estudando naquele momento. Gamov respondeu que estava estudando o movimento das galáxias e não conseguia ter uma percepção melhor de que elas se movem como crianças brincando. Pronto! As galáxias se movem como cambalhotas. [toca a maraca] Vocês podem imaginar o chacoalhar que faz um som. A maraca está cheia de sementes, de mundo, de tempos, cápsulas do tempo. A cambalhota é fascinante. Lembremos da expressão do Mario Pedrosa dos artistas que olham o umbigo e dão um giro. A cambalhota é também uma maneira de se mover como as crianças, em que a cabeça que está em cima vai para baixo e, então, se gira. Planetariamente, nós estamos vivendo um giro, não temos noção do que está acontecendo, mas estamos no planeta e ele está nos sacudindo, oferecendo uma possibilidade de mudarmos. O líder indígena Ailton Krenak diz que todas as mortes que estamos enfrentando não terão valido, se não mudarmos. É preciso mudar, não querer voltar ao que era. Que essa cambalhota seja para dar um giro e mexer com nossos valores, nossas dicotomias, nossos preconceitos. Atualmente, estou estudando uma palavra muito antiga, quiasma – do grego, significa cruz, vertical e horizontal. O termo aparece também no livro “O visível e o invisível”, de Merleau-Ponty. O que Merleau-Ponty faz com a palavra são verdadeiras cambalhotas. Um dos sentidos iniciais de que ele trata é: quiasma é entrelaçamento, reversibilidade, que é tornar o dentro fora e o fora dentro. Quiasma é a ideia de pertencimento mútuo – eu-mundo como por uma cambalhota subvertermos as relações analíticas de separação, para um sentido de transformação recíproca. É estarmos na completa troca eu-mundo que implica em colapso das separações que estamos vivendo. Ao final de sua vida, Merleau-Ponty estava repensando a relação eu-mundo em entrelaçamento como construção recíproca. É dessa cambalhota quiasmática que somos jogados diante da responsabilidade e abismos da co-existência e interdependência com todos os modos de existência – somos Natureza: que mundo queremos? Outra palavra que aparece nos escritos de Merleau-Ponty é “pertencimento”. Pertencer ao mundo e ele pertencer a nós é outra cambalhota de reciprocidade. Outra afirmação do autor: o corpo como ser tocante e ser tocado – é muito bonito quando encontramos alguém, somos tocados e tocamos. Estas últimas viradas de Ponty são extremamente atuais ao se discutir a hipótese de Gaia, ou os princípios pós-humanistas. Há, ainda, a questão do tempo zero, o tempo inaugural, tempo da procura de um devaneio ainda não feito, não uma repetição. Em 2019 fui a Chipre e conheci a palavra xarkis, que significa tempo inaugural.

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Outra expressão que apareceu em nossas conversas foi “a espessura do presente”, um desafio que atravessa milênios, através das indagações dos filósofos, dar carnatura ao presente. Na contramão desses esforços poéticos, pedagógicos e filosóficos que se acumularam no século XX, vivemos a completa alienação entre mente-corpo-espírito. Somos fruto da educação cartesiana que acompanhou nossa colonização e hoje, como colonialidade intrínseca aos nossos modos e hierarquias de produção de conhecimento, nos condenou a uma educação pela distância com a realidade. Uma educação com a fluidez e formas do tempo presente que rejeita qualquer primário da percepção, das sensações e do corpo, a desatenção com o tempo presente. Em contrapartida, temos artistas e educadores investindo na atenção expandida sobre o “acontecimento da existência” – a Existência como Acontecimento. Voltamos a integrar quiasma e xarkis. Esta é também a plenitude imanente – transcendente do estar poético e político na contínua inauguração eu-mundo. Outro autor que tenho estudado é Bakhtin, que, por volta de 1920, traz a palavra cronotopos, que equivale à forma do tempo. Vocês imaginam o que é a forma do tempo? Seria a forma do tempo uma espiral? Seria uma forma do tempo uma cambalhota? A cambalhota seria o modo que as galáxias brincam e se movem? Nesse sentido, Bakhtin explora, através da produção artística e literária, a espessura da criação-recepção como responsividade e arquitetura da concepção ética e estética. Em sua abordagem fenomenológica, traz a apreensão do ato, do instante, espessura e plenitude crítica não formalista para produzir algo que ainda não sabemos – acontecer do devir. Estas relações criação-recepção co-criativa da arte como inauguradora de sentidos atinge ainda hoje o que temos discutido, na universidade, que o ensino a distância impõe algumas questões. Precisamos repensar que não se trata mais de ensino e aprendizagem, mas de aprendizagem recíproca, aprendizagem experimental radical. Não se trata mais de um que viveu e que pode ensinar para o outro. Estamos diante de um tempo zero, diante da incerteza, mas que implica acolher e vivenciar a plenitude do tempo, do presente. Bakhtin propõe a existência como acontecimento, o acontecimento e, reciprocamente, o acontecimento da existência. O que pode oferecer uma importante aproximação entre educação e arte. No isolamento, a humanidade está recebendo uma lição planetária: nós somos interdependentes e estamos interconectados. Esse “quiasma eu-mundo” como aprendizagem existencial não é só entre humanos, mas todos os modos de existência passam a ser agentes da produção de conhecimento – eis aí o colapso da arrogância antropocêntrica. Precisamos repensar nossa condição nesse planeta. Temos que voltar para as


leituras dos povos originais: pensar o planeta como um super organismo vivo, um corpo de múltiplos corpos, um corpo de múltiplas consciências e de modos de existências, não só centrado no ser humano.

CAMBALHOTAS CÓSMICAS

Stela Barbieri: Estamos num tempo começando algo, mas no meio da existência. Acredito que estamos vivendo um mergulho interno, passando por um umbral, que não sabemos o que é. Estamos misturados com o imprevisível, com o indizível, com o imponderável que não sabemos onde vai dar.

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o caldo da experiência

Stela Barbieri: Estamos imersos em um caldo turbulento de muitos acontecimentos. Como lidamos com eles? Que caldo tem nos nutrido? O que temos vivido? O que se mostra e o que se esconde nos caldos? Qual o caldo da cultura, o caldo da arte, o caldo da aprendizagem? Líquido, quente, frio, caudaloso? Todo cuidado e parcerias são necessários nesse momento para não nos afogarmos em incertezas e codependências, mas para nos nutrimos delas. A primeira imagem de caldo que me vem à cabeça é de um caldo que minha mãe faz, de legumes onde ela cuidadosamente coloca bolinhas de queijo parmesão ralado. Então, quando tomávamos aquela sopinha, encontrávamos essas bolinhas no fundo do prato, esperando o momento de serem comidas, como se fossem um presente. Os primeiros momentos do fazer arte em minha vida aconteceram nos caldos das brincadeiras, triturando a terra, misturando com folhas e fazendo um caldo em recipientes. Ali foram os primeiros movimentos que identifico de estar fazendo arte, sensação do encontro de alguma coisa que nos impregna de interesse, vitalidade, desejo, envolvimento, presença. Esses caldos da infância nutriram minha vida adulta. Acredito que nesse momento, em que nossos problemas, conflitos e crises estão tão aparentes, estamos imersos em um caldo que nos afeta profundamente. É sobre isso que vamos conversar hoje, sobre esses atravessamentos, as crises que temos vivido, mas também sobre as invenções de novos caminhos, de outras maneiras de funcionar. Cleide Terzi: Cada um tem o caldo da sua experiência e quando vem para um grupo, traz seus ingredientes, aquilo que lhe pertence como re-

Cleide Terzi, Nydia Negromonte, Sandra Lima, Graciene Silveira, Stela Barbieri e Arthur Iraçu Fuscaldo no devaneio “O caldo da experiência”.

O CALDO DA EXPERIÊNCIA

DEVANEIOS DE ARTHUR IRAÇU FUSCALDO, CLEIDE TERZI, GRACIENE SILVEIRA SILVEIRA, NYDIA NEGROMONTE, SANDRA LIMA E STELA BARBIERI

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sultado e como resultante, com desejo de anunciar outras ideias, perguntas ou comentários. Nesses dias um caldo é sempre muito bem-vindo, acolhe a alma. O caldo traz raízes, mostra seus ingredientes, mas tem um mistério a ser desvelado. Precisamos da voz do outro para fazer o encontro de alguns dos ingredientes, dos pequeninos mistérios que ficam no sabor. A ideia de caldo e de experiência foi aquecendo também em mim, pois o caldo traz o restauro, a reposição de energias, por isso muitas vezes as mães mais antigas ofereciam seu caldinho para a parturiente, para revigorar suas energias físicas e emocionais. Muitas vezes, o doente recebe o caldo como um cuidado, um carinho, o desejo de boas energias, de restabelecimento. Aquecida pelo calor do caldo, mergulhei no caldo da minha experiência, visitando imagens e instantes de significações da infância. Em minhas raízes, visitei o aroma e o caldo preparado por minha avó portuguesa. Ela vivia uma alquimia em sua cozinha, não só quando preparava o caldo verde, mas especialmente quando o aroma do caldo de hortelã tomava a casa inteira. Ela como que dançava com as folhas de hortelã e eu, menina, ainda tenho seus gestos presentes. Enquanto colocava as folhas na água quente, com um dente de alho, ela contava historietas a respeito de cada folha: quem plantou, quem colheu, de que vasinho era. À medida que as colocava na água, minha vó cantava uma canção portuguesa ou fazia um gesto de dança, até que o caldo era arrumado em pratos e os pães cortados em cubinhos eram mergulhados nele. Desde que um humano conseguiu ferver a água e colocou algum ingrediente nela, nasceu o caldo. Cada caldo tem certa geometria, certa matemática, uma geografia, uma história. A geografia dá ao caldo nomes especiais: o caldo do Japão, o da Itália, o caldo espanhol. As narrativas também trazem caldos: histórias africanas, histórias indígenas me fazem procurar seus caldos. Por eles, é possível margear outras culturas, outras narrativas, que nos aquecem. Mesmo um caldo metafórico nos alimenta. O caldo traz a ideia de que não vale a pena tomá-lo sozinho, ele é sempre um convite para estar com outros. Imersos nos caldos turbulentos desses novos tempos, o que tem sido das nossas experiências, especialmente pensando na escola, nos professores, nas crianças, nas famílias – a casa está embebida de escola, a escola está dentro das casas. Os professores estão à frente desse tufão, mostrando o que é possível fazer com o que está difícil, que é limite, que se torna superação. Há um ganho que precisamos tornar visível: o esforço da superação. O que temos aprendido? Não pode ser só lamento, há que se buscar nos mistérios dos ingredientes do caldo, aquilo que nos sustenta. Certamente há diferença entre o caldo do antes e o de agora. O que queremos levar para o caldo do depois? O que nos tocou nesses tempos e queremos levar como uma nova oportunidade, outras possibilidades?


O conviver faz parte do caldo da experiência e isso é formação. Mergulhados no caldo, para não nos afogarmos, precisamos do outro, assim como o outro também precisa de nós. Tenho escutado relatos de professores que vão se abrindo aos outros com suas questões de uma forma bonita, assumindo que aquilo é um equívoco, que era tão bom antes e não dá mais. A troca de ofertas entre os professores nos diz que isso é formação. Nesse momento emergencial, os professores estão à frente, inventando, buscando fazer o possível diante de tantas limitações. Não percamos os mapas que estão sendo traçados entre os educadores, façamos deles oportunidades. Quando se faz o caldo das possibilidades? Quando vamos a cada cotidiano dando vigor ao coletivo, pois a escola é o lugar do coletivo. Não adianta tomar seu caldinho sozinho e achar que ele é o melhor do mundo; ele precisa estar incorporado ao caldo do outro, com sua ação, sua experiência. Quando o caldo é engrossado pela experiência dos outros e a sua, nós vivemos o que Paulo Freire chama de gesto de amorosidade, aí vale a pena um humano inteiro saudando esse lugar. Experiência não está separada de vida.

Nydia Negromonte: É bom ouvir a questão da soma, dos ingredientes, acho que estamos fazendo um belo caldo. Eu sempre brinco: “eu faço, logo penso”. Impulsionada pelo convite para falar sobre o caldo, fiz meu caldo de legumes. É um projeto antigo fazê-lo da maneira que o fiz hoje, mas ficava sempre no papel. Resolvi fazê-lo, pensando que poderia me nutrir de colaborações, para podermos conversar. É lindo quando começamos um caldo, em que todos os ingredientes ficam visíveis e contrastantes, cada elemento com sua integridade. Com a água e quando começa a ebulição, eles vão perdendo a cor. Meu projeto foi de clarificar o caldo. Você coloca a clara e à medida em que ela vai se solidificando vai somando todas as impurezas do caldo, daí você côa e fica transparente, com um adensamento no sabor, não na textura. Quando se faz um caldo, é importante que nenhum ingrediente sobressaia. A cozinha é um verdadeiro território de pesquisa e parte dela vai para meu trabalho de maneira natural. Fiquei dois dias muito envolvida com a construção desse caldo. Chamou-me a atenção uma conexão com meu trabalho “Casa das vitaminas”, uma instalação feita na rua, em que coloco seis liquidificadores, dois em cada mesa. São três mesas formando uma hélice e no centro tem as frutas. As pessoas vão fazendo suco com as fru-

O CALDO DA EXPERIÊNCIA

Stela Barbieri: Como Mariana Galender disse outro dia, isso é sair da denúncia e entrar no anúncio, olhando para o que podemos aprender com o que vivemos, nos fortalecendo uns aos outros em nossos direitos de estarmos vivos e sermos respeitados naquilo que somos.

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tas, sem a adição de água, liquidificando-as, em um movimento parecido com a construção do caldo, esse adensamento, a concentração a partir da parte líquida das frutas. Esse trabalho, além da extração do suco das frutas, tem o objetivo do encontro das pessoas, fazer com que as pessoas se comunicassem, conversassem. Vemos essa junção não só na construção do caldo, como na construção das vitaminas. Lembrei de um trabalho do artista espanhol Vincens Casassas e pedi a ele que me enviasse algumas imagens. Ele ficou 4 meses capinando e cuidando de um povoado abandonado perto de Barcelona. Nessa obra, ele fez uma escudella, sopa catalã com carne e legumes, em uma panela gigante, para 80 pessoas, e chamou o antigo prefeito, o padre, uma série de pessoas que habitaram esse lugar, e alguns artistas amigos. Um dia, ocupamos novamente esse lugar a partir da construção da escudella, e à noite fizemos uma fogueira. O que foi mágico neste dia? O que ele fez? Tendo como ponto de partida esse caldo, a escudella, ele reuniu as pessoas, tornando o povoado habitado, vivo novamente. Devido ao meu interesse pela cozinha, publiquei em meu livro2 uma receita que se chama “Água Fervida” e vou ler um trecho: Esta sopa ou infusão provençal tem extraordinárias virtudes. Nada resiste a ela: ressaca, doença, resguardo; não há convalescença sem “Água fervida”. O provérbio provençal diz: Aigo boulido sauova la vida (Água fervida salva a vida). Para 4 pessoas: 1 litro de água, sal, 12 a 15 dentes de alho, 1 ou 2 folhas de louro, 1 ou 2 ramos de sálvia, 4 colheres (sopa) de azeite, fatias de pão amanhecido, queijo ralado. (gruyère ou parmesão). (NEGROMONTE, 2017, p. 64)2

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Stela Barbieri: Nydia fiquei pensando no que você disse sobre clarear o caldo. Quando estamos no meio desse caldo turbulento, como depuramos, como achamos as essências do que estamos vivendo? O que não queremos repetir e o que realmente nos move? O que é essencial na vida de uma comunidade? Sua fala e a da Cleide se entrelaçaram, pelo caldo coletivo. Quando trabalhamos juntos, não sabemos mais qual ideia é nossa, qual é do outro, pois elas se misturam e o que importa é o caldo que conseguimos fazer juntos. Agora gostaria de chamar Graciene Silveira, que é médica, para engrossar este caldo.

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2 NEGROMONTE, Nydia. DUCTO. São Paulo: Autêntica, 2017.

Graciene Silveira: Eu desenvolvo um trabalho como pediatra em sete creches coordenadas pela Associação Cruz de Malta, em uma parceria com o Governo do Distrito Federal, e


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com a participação de voluntários e da comunidade. As crianças têm de 6 meses a 5 anos e as famílias são das mais variadas classes sociais, desde pessoas muito carentes a pessoas com condição financeira muito boa. Nesse caldo, faço meu trabalho. Nessa época de pandemia, as famílias, as crianças e os professores não estavam preparados para essa nova realidade. De repente foi preciso lidar com outras formas de relacionamento com as famílias e diferentes ferramentas de educação para a aprendizagem remota com as crianças, diante de uma grande desigualdade de acesso. Há pessoas com apenas um celular em casa e, se a mãe ou o pai sai com o aparelho, a criança fica em casa sem poder interagir com os professores. Estes, por sua vez, precisam cuidar e acompanhar seus filhos, que também não estão indo para a escola, fazer tarefas domésticas e cumprir com a carga horária e o conteúdo definidos pela Secretaria de Educação. Uma professora relatou que ligou para a mãe de um aluno e ela falou como está sua vida, que havia perdido um familiar, estava muito triste e não sabia o que fazer com o filho e se pôs a chorar. Então, a professora, ao desligar o telefone, também começou a chorar, pois não sabia como ajudar essa mãe. Eu disse que só o fato de ela a ter ouvido, já deve ter sido um alívio para essa mãe e isso foi sua grande ajuda. De um lado desse caldo, tenho os profissionais, as professoras, e do outro, as crianças e suas famílias. Aquelas que saem para trabalhar, outras trabalhando em sistema de home office e que precisam cumprir as atividades domésticas, acompanhar os filhos nas atividades pedagógicas, filhos de diferentes faixas etárias, diferentes horários de aula. Pais de crianças que precisam de acompanhamento educacional especializado, que precisam de mais atenção. Pais e mães que hoje estão assumindo uma educação doméstica que antes eles “empurravam” para a escola. Por outro lado, tem as crianças. A faixa etária que eu acompanho, crianças bem pequenas, de 6 meses a 5 anos, aprendem com interação, integração e brincadeiras. A interação com os colegas, com os professores, os voluntários, foi quebrada de uma hora para outra. As brincadeiras em casa algumas vezes não são nutritivas, seja por um tempo grande de tela, pouco espaço, enfim. Preocupo-me com o tempo de tela: uma criança em idade escolar, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, pode ter no máximo, 2 horas de tela por dia; uma criança menor, 1 hora de tela por dia. É importante ficar muito atento ao tempo de tela, especialmente ao bullying virtual. Os pais precisam ficar atentos e colocar as telas em lugares que possam acompanhar o que seu filho está vendo ali. Por falar em nutrição, com o afastamento da creche, essas crianças podem estar vivenciando um déficit nutricional, pois lá elas têm de 5 a 6 refeições por dia e há crianças que em casa não têm condições de ter uma alimentação adequada. O afastamento trouxe a diminuição do adoeci-

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mento físico, mas percebo que o adoecimento emocional e mental já está acontecendo. O que os pais, os cuidadores e os professores podem fazer é criar, respeitando a possibilidade de cada família, uma rotina semelhante à da escola em relação aos horários, às atividades e à alimentação. Criar dentro de casa um ambiente positivo, incentivador de aprendizagem, fortalecendo o momento de leitura, tendo momentos de conversa, de brincar junto, fazer atividade física, ficar atento à alimentação, ao sono, tomar sol; pois muitos pais não tinham tempo nem disponibilidade para brincar com os filhos. Este está sendo um momento de oportunidade. Stela Barbieri: Você traz várias camadas da saúde, nesse momento que estamos vivendo. Esse é um momento de parada para se ouvir e ouvir o outro, pois estamos percebendo que nossa não ação melhora o estado do planeta. Como potencializamos um mundo mais harmônico, em que as vitalidades possam retroalimentar? Ficar em casa tem o lado bom e o dolorido. O lado bom é que podemos respeitar outros tempos: de cuidar do próprio espaço, de sentar com o outro para conversar - a ultra aceleração do mundo é ditatorial, desrespeitosa com o que somos. O lado dolorido, todos conhecemos.

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Sandra Lima: Vou começar com um cordel sobre meu lugar de fala.

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Antes de mais nada, preciso aqui registrar, um agradecimento especial a toda equipe do bináh. Os devaneios da Stela de mãos dadas com o Fernando tornam as nossas vidas alegres e cheias de encanto. Sou a Sandra Lima, venho através dessa rima a vocês me apresentar, o caldo que corre nas minhas veias traz histórias daqui e de muitos lás. Sou filha de Eraldo da Silva, nordestino que me fez admirar, a sua honestidade e inteligência, para a vida poder enfrentar. A minha mãe é a Maria da Penha, carrega no nome o que não se desdenha, Rio de Janeiro é a sua terra natal, me ensinou que fazer o bem é melhor que fazer o mal, Ambos me deram o que podiam, mas uma coisa era essencial, O estudo em primeiro lugar, para eles era primordial. A vida de estudante desde o jardim ao colegial, me nutriu de um sonho especial, de um dia ser professora, esse era o meu ideal. Fui em busca desse sonho, numa luta desigual, Queria entrar na USP, mas não tinha capital para pagar um cursinho e ser aprovada na fase final. Mesmo assim não desisti do meu ideal,


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Na quinta tentativa na USP eu entrei, e tornei meu sonho real. No curso de pedagogia saiu um edital, Prestei o concurso para professora, na educação municipal, Consegui passar e ser chamada, dando o passo inicial. Em 2008 ser professora, saiu do sonho e vira real, O caldo começou a ter sabor, irresistível e sensacional. Comecei a acrescentar mais temperos, alguns toques foram certeiros, com um sabor sem igual. Coloquei no caldeirão a prática da educação, com sabor especial. Pitadas de Paulo Freire até o meu dom musical, Caldo frio, caldo quente, mas sempre com um sabor cultural. Em 2017 sai das salas de aulas, mas o caldo não estava sem sal, Precisei mudar o sabor, o caldo engrossou, mas não foi assim tão mal, Hoje estou como diretora e pretendo ficar até o final. Trago no caldo do meu sangue, aquela professora inicial, Esse caldo é que me sustenta e alimenta até hoje o meu ser educacional. E com isso, peço licença para começar a minha fala.

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Eu vou trazer um pouquinho do caldo de feijão com jabá, o melhor caldo que já comi na vida, o caldo que meu pai faz. Não vou chamar de caldo, porque lá em cima são chamados de sopa, pois caldo é muito fraco para o cidadão nordestino. Então, vou falar de sopa de feijão. Nessa sopa de feijão, vou contar minha experiência nessa pandemia. Trabalho na Prefeitura de São Paulo e em março, os problemas que me assolaram foram, do meu lado humano, o medo, a angústia, a preocupação, o cuidado, a insegurança. Do meu lado gestor, queria ser uma boa liderança. A escola fechou. Os professores em recesso, o quadro de apoio em teletrabalho, e as pessoas em grupo de risco em teletrabalho até o mês de abril. A equipe gestora e de apoio precisam garantir plantões na escola, mas o que vamos fazer? Nossa saúde não importa? Estamos imunes? Na minha casa, meu gato que passava o dia inteiro sozinho, começou a me estranhar e a me acompanhar. Comecei a ocupar espaços que eu mesma não conhecia. Na internet, lives, dicas para o que fazer em tempos de pandemia, exercícios físicos, meditação, pão. Fiz tudo isso, mas a música era o que chamava mais minha atenção, olhar para a vitrola, revirar os discos, ouvir bastante música. Está faltando ingrediente nessa sopa, vamos adicioná-lo. As professoras retornam do recesso e é momento de nos reunirmos novamente, agora pelas redes. Era início de abril, a água do caldo começou a borbulhar: o que vamos fazer? Cada uma despertando para o que estava sentindo: as pessoas adoecendo, mortes, como estão nossas crianças, como


Stela Barbieri: Sandra, você traz a referência de uma diretora, gestora de escola viva, que está sendo atravessada pelo mundo e por suas experiências, e as toma para si como tesouros. Acredito que, com o passar do tempo, nossa visão de democracia mudou: antes achávamos que democracia era oferecer o mesmo para todos, e agora sabemos que todas as necessidades de cada um precisam ser respeitadas. Agora gostaria de chamar o Arthur Iraçu para se apresentar.

O CALDO DA EXPERIÊNCIA

estão os trabalhadores terceirizados da escola? O que podemos fazer? A empatia foi o ingrediente principal, a comunidade escolar estava passando necessidades: de atenção e acolhida; de melhores condições de vida – até os cartões merendas, o material, o leite, foram deixados na escadaria do bairro e quem quisesse que pegasse o seu. Chegaram palavras de gratidão e de estímulo, carinhos em forma de máscaras, bolos, pães, sucos, café e, na partilha das dores, encontramos caminhos para iniciar a comunicação com as famílias. Ela foi feita por vídeos. O ingrediente dessa vez deu a tônica: “vamos ficar perto uns dos outros e cuidar dos nossos”. Então, o governador mandou voltar. Na gestão, assim como na docência, grande acúmulo de trabalho: documentos a preencher, planilhas e mais planilhas, entregas de cesta básica, planilhas de teletrabalho, processos, instruções normativas, formação pelas plataformas, reuniões sistemáticas. O ingrediente da vez foi a paciência de viver um dia de cada vez, e uma só certeza, a de ter uma rede de parceiros: fazendo contato com as famílias; reunindo alimentos para aquelas que não tiveram direito às cestas básicas oferecidas pelo governo estadual; ações isoladas de entregas de materiais escolares e de brinquedos. Ações para quem de repente ficou sem escola, sem merenda, sem trabalho, sem auxílio e sem máscara. De mim, o movimento exigiu me sentar em outros lugares de casa, olhei pela janela, vi pessoas nas quais nunca tinha prestado atenção, ouvi ruídos de crianças e pessoas que falavam chinês, senti cheiros variados, do café da manhã até a hora do jantar. Mais um ingrediente: o corona quase levou meu pai. Havia anos que não nos falávamos. Uma chamada de vídeo com minha irmã fez com que essa narrativa fosse contada como um cordel. Meu pai vem se recuperando, falo com ele todos os dias sobre plantas, filmes, carros, sobre sua história, nossa história, sobre política e televisão. Se eu contasse essa história antes da pandemia, eu iniciaria me apresentando como a filha de um alcoólatra. Hoje, finalizo dizendo: sou filha de um sertanejo de Serra Seca de Pernambuco, e de uma mulher filha de paraibanos cabras da peste, que lutam pela vida com alegria e vontade de fazer sorrir. Para completar, deixo uma frase do mestre Paulo Freire: “O mundo não é, o mundo está sendo”.

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DEVANEIOS

Iraçu: Nasci em São Bernardo do Campo, pequenininho fui para Belém do Pará, depois voltei para São Paulo, o que foi um choque, uma mudança de país. Foi um choque, acompanhado de muito aprendizado, crescimento, enfrentamento. São Paulo, terra do meu pai; Belém terra da minha mãe. O nomadismo me define, define a atuação que trago como educador, como pesquisador. Sou da área das artes, da música, da atuação, e uno a isso a busca da minha indigeneidade, que me acompanha na pele, no corpo, no espiritual, na genética. Aliei a essa busca, a ligação com os ancestrais indígenas, com um trabalho acadêmico ligado às questões indígenas e afrobrasileiras. Tive o privilégio de passar um tempo visitando algumas aldeias do Povo A’uwe_Xavante, principalmente as aldeias Etenhiritipa e Wederã , na reserva Rio das Mortes, no Mato Grosso. Fiz isso tanto na minha pesquisa de iniciação científica, como no mestrado. O foco da pesquisa de mestrado foi processo de aprendizado, da vida masculina, de trazer cantos dos sonhos. Trazer músicas de dentro dos sonhos é algo instituído como parte do aprendizado coletivo de uma fase da vida, com procedimentos a serem aprendidos, por exemplo sobre a posição de dormir, o que usar antes de dormir, como agir dos sonhos. O contato com conhecimentos e modos de aprendizado como esses, sem dúvida é algo impactante, que marca e que, penso eu, pode sim nos inspirar a visualizar outros modos de lidar com o que vivemos, como esse momento de crise. Meu olhar é voltado aos conhecimentos de povos tradicionais, negros, indígenas, o que tem me fortalecido e a outras pessoas. A crise da pandemia aponta um esgotamento do pensamento ocidentalizado. Diante do desafio de falar do “caldo”, meu olhar foi para o caldo que cada um de nós é, o que chamamos de identidade, cultura. Caldo que sempre tem ingrediente novo e nunca fica pronto. Quero ler um trecho de Jarbas Siqueira Ramos (2017)3, professor da Universidade Federal de Uberlândia que trabalha com a ideia de corpo encruzilhada:

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Conceitualmente, o corpo-encruzilhada é um corpo-espaço atravessado, entrecruzado pelos elementos e saberes-fazeres que compõem o universo em que ele se encontra. Carrega uma noção de tempo-espaço espiralado, curvilíneo, que aponta uma gnosis em um movimento 3 RAMOS, Jarbas Siqueira. O Corpo-Encruzilhada como de eterno retorno, não ao ponto inicial, mas às Experiência Performativa no reminiscências de um passado sagrado, para Ritual Congadeiro. Revista o fortalecimento do presente e o deslumbraBrasileira de Estudos da mento do futuro. Presença, Porto Alegre, RS, v. 7, n. 2, p. 296-315, maio 2017. ISSN 2237-2660. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/ presenca/article/view/66605. Acesso em: 04 dez. 2020.

Puxo daqui a ideia do movimento do eterno retorno, reminiscência de um passado sagrado para o fortalecimento do


Stela Barbieri: Mariana Galender mostrou um vídeo do filho falando o que era ser criança; o que era infância para ele. Ele disse que na infância, as crianças têm muito mais perguntas que os adultos, porque elas não sabem muitas coisas, então elas perguntam e inventam. A imagem da criança que inventa mundos, que não tem medo de se pôr na pele da formiga, de experimentar outros, é tão genuína! Sua fala, Iraçu, me suscita Terezinha Rios, filósofa da educação: ela diz que existe o currículo lattes e o currículo “mortis”, tudo aquilo que não dá certo. Será impossível negar o currículo “mortis” do momento que estamos vivendo. Isso se relaciona à fala da Cleide; à experiência da Nydia com os caldos; ao que Graciene disse sobre a visão da saúde, dos nutrientes; ao que Sandra traz de sua vida como diretora de escola; à experiência de Iraçu com os povos originários, que já estavam aqui na terra e tem tanto a nos ensinar.

O CALDO DA EXPERIÊNCIA

presente e o desdobramento do futuro. Algo que os povos tradicionais têm nos ensinado, que pode ser dito como: valorizar a ancestralidade. Penso que considerar Ancestralidade é também olhar para a criança e adolescente que fui; olhar para o que trago no meu corpo e em meu modo de sentir e pensar o mundo e que me remete à minha avó, meu avô, meus pais ou mesmo a antepassados que nem conheci. Podemos chamar parte disso de genética, espiritualidade, cultura… seja qual for o termo, é certo de que trago comigo elementos de outras vidas, e isso firma meus pés no momento que estamos vivendo. O que é ser indígena? O que é ser branco? Porque o indígena geralmente é pensado por grande parte das pessoas brasileiras de modo distante, sempre como um outro? Por que se identificam mais com o branco, europeu? Quem somos de fato nessa lógica? Perguntas que não têm como serem respondidas numa breve fala, mas podem disparar buscas, e que deixo abertas para refletirmos. Penso nesse momento, no caldo em que vivemos, como momento de criação, criação enquanto algo que organiza o caos. Isso tem muito a ver também com a ação criadora da criança diante do mundo, pela brincadeira, pela traquinagem. Do olhar para a infância, volto ao ponto inicial: a ideia de ancestralidade, que comporta a ideia de infância. Se a criança de hoje me faz olhar para a criança que já fui quando convivia com meus avós, e me faz me entender melhor, então a criança fortalece em mim minha ligação com a ancestralidade enquanto história, sabedoria que trago comigo, e com a possibilidade contínua de criação da existência, do mundo.

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BIBLIOGRAFIA BARBIERI, Stela. Interações: Onde Está a Arte na Infância? Blucher, 2012. KASTRUP, Virginia. Pistas do método cartográfico. Editora Sulina, 2009. LOUV, Richard. A última criança na natureza. Editora Aquariana, 2016. PEREIRA, Maria Amélia. Casa redonda: Uma experiência em educação com crianças. Editora livre, 2013.

DEVANEIOS

VECCHI, Vea. Arte e Criatividade em Reggio Emilia: Explorando o Papel e a Potencialidade do Ateliê na Educação da Primeira Infância. Phorte, 2017.

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Os colecionáveis binåh são uma série de publicações digitais voltadas à celebração do vivo em um momento ímpar: o isolamento social. Apresentam as investigações realizadas por Stela Barbieri e a equipe binåh, bem como o diálogo com seus convidados. Elas trazem as cartografias das experiências, as marcas dos movimentos de corpos, os pensamentos, invenções, ebulições, transbordamentos e fagulhas dos encontros no binåh em estado de ateliê. Livreto 01 - espaço, tempo e materialidade Livreto 02 - lugar de desenhar Livreto 03 - lugar de construir Livreto 04 - lugar de narrar Livreto 05 - lugar de cor/ luz/ sombra Livreto 06 - lugar de transformação Livreto 07 - berilimbau - a construção dos lugares coletivos/comuns Livreto 08 - devaneios – aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres - dobras, desvios e rachaduras Livreto 09 - devaneios – cambalhota cósmica - educação para além da sala de aula - caldo da experiência Livreto 10 - devaneios – narrativas do agora - casa nômade Conheça os outros livretos dessa coleção acessando o site do binåh ou pelo QR CODE abaixo:

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LIVRETO 10


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Colecionáveis binåh Livreto 01 - Espaço, tempo e materialidade Livreto 02 - Lugar de desenhar Livreto 03 - Lugar de construir Livreto 04 - Lugar de narrar Livreto 05 - Lugar de cor/ luz/ sombra Livreto 06 - Lugar de transformação Livreto 07 - Berilimbau - a construção dos lugares coletivos/comuns Livreto 08 - Devaneios – aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres dobras, desvios e rachaduras Livreto 09 - Devaneios – cambalhota cósmica educação para além da sala de aula caldo da experiência Livreto 10 - Devaneios – narrativas do agora - casa nômade

Ficha técnica Esta publicação digital foi realizada através da Campanha Viva binåh, de colaboração coletiva, Concepção editorial e texto: que contou com apoio espontâneo de diversas Stela Barbieri pessoas que, em troca, receberam acesso aos Edição e revisão de textos: colecionáveis binåh. Essa ação garantiu a Josca Ailine Baroukh continuadade de nossas atividades, em conjunto Assistência de edição de textos: com organizações sociais e escolas públicas. Flora Pappalardo Este material tem seus direitos autorais Transcrições: reservados, sendo vetada a reprodução ou Renata Miyuki Kotaira disseminação de qualquer parte do material sem a prévia autorização dos autores. Projeto gráfico: Caso tenha interesse em utilizar este conteúdo Fernando Vilela por favor entre em contato através do email: Ilustração da capa: contato@binahespacodearte.com.br Stela Barbieri Diagramação: STACCHINI Editorial Fotos: Flora Pappalardo, Guga Szabzon, Júlia Souza, Laila Kontic, Mariana Galender, Michele Mifano, Nádia Bosque, Nina B. Lucato, Rayssa Fleury, Stela Barbieri Equipe binåh: Carina Tiyoda, Felipe Leonidas, Fernando Vilela, Flora Pappalardo, Gilson Pereira, Pedro Campanha, Romeu Loreto, Roselane Silva, Stela Barbieri Educadores que trabalharam no binåh entre 2014 e 2020 cujas documentações são apresentadas nessas publicações: Blenda Souto Maior, Clara Rocca, Daniele Silva, Erica Rapu, Fábio Caiana, Flora Pappalardo, Guga Szabzon, Isadora Kalil Godoi, Julia Souza, Laura Gorski, Letícia Zero, Maria Fernanda Bento, Mariana Galender, Nádia Bosque, Nina Lucato, Otávio Vidoz, Roselane Silva, Thais Pontes Moreira, Tomaz Volpi

binåh espaço de arte Rua Bento Vieira Barros, 181 (entrada pela rua Jamil Safady) 05046-040 - São Paulo – SP Fone: (11) 3467-4387 www.binahespacodearte.com.br


apresentação

binåh espaço de arte é um lugar de invenção, investigação e imaginação. Um lugar de encontros e experiências com e a partir da arte, que foi construído no ateliê de Stela Barbieri e Fernando Vilela. Conta com uma equipe de profissionais diversos (cineastas, designers, artistas, escritores, educadores, músicos e cientistas) e realiza cursos, oficinas, grupos de estudos, assessorias, encontros, visitas, ateliês e festivais para adultos e crianças.

APRESENTAÇÃO

O binåh dialoga com as inquietações, urgências e questões de pes­soas, escolas e organizações, instaurando um lugar estético, ético e político de deslocamento, para construção de outros olhares que integram o pensar e o fazer. A arte e a educação são os principais campos de sustentação das investigações deste lugar de encontros e entrelaçamentos entre as experiências singulares, as diversas áreas do conhecimento e diferentes linguagens, que se articulam em torno de questões contemporâneas criando um território de partilha.

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introdução

DEVANEIOS

Vivemos um complexo momento social, político, ambiental: a pandemia. Momento crítico, que nos deixa atabalhoados, a cada dia mais pressionados, aturdidos com tudo o que está acontecendo. Temos a urgência de pensar em outras relações com o ecossistema, inventar caminhos juntos, porque sabemos que sozinhos não vamos a lugar algum. Devaneios binåh, abre espaços para o diálogo com profissionais de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes lugares do país (inclusive de outros países) que estão enfrentando esse momento criando movimentos de invenção. Todos os devaneios são mediados por Stela Barbieri. Este livreto conta com a participação de Fernando Vilela, Roger Ycaza, Margarida Botelho, Valter Passarinho e Stela Barbieri no devaneio Narrativas do Agora, que ocorreu em 16.07.2020. E Fernanda Zerbini, Laura Gorski, Marcelo Silveira, Sapopemba no devaneio Casa Nômade, que aconteceu em 23.07.2020.

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Fernanda Zerbini (São Paulo, 1982) é artista e arte-educadora . Pesquisa sobre criança e floresta. Participou do encontro convoque sua natureza com Jon Cree, diretor da Forest School Association (Parque das neblinas, SP, 2019). Fez formação de educadores na Casa Redonda (São Paulo, 2017) e formação de Educação Viva e Consciente na Escuela Viva Del Bosque com Ivana Jauregui (Uruguay, 2017). Em 2018 frequentou o sítio de Ana Thomaz e fez o curso Raízes com Gandhy Piorski. Fez atividades para Fábula e Ed. Cobogó através do livro Arte Brasileira para Crianças (2016-2018). Foi inspiradora com crianças em vários ateliês em projetos de arte e natureza, no Rio de Janeiro entre 2016/2017/2018. É educadora do Parquinho Lage desde 2016 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage/ curso Arte Brasileira. Fernando Vilela é escritor e ilustrador, artista, designer e educador. Já ilustrou mais de 100 livros em dez países, dentre os quais 26 são com


Stela Barbieri e 20 são de sua autoria. O primeiro, Lampião & Lancelote (2006), recebeu, em 2007, Menção Honrosa na categoria Novos Horizontes na Feira Internacional do Livro Infantil de Bolonha, Itália, e dois prêmios Jabuti. Também realizou exposições de arte e ilustração nacionais e internacionais. Possui obras em coleções, como a do Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York, e a da Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre outras. Integra a coordenação do Bináh Espaço de Arte, onde também ministra cursos (binahespacodearte.com.br). Seu trabalho pode ser visto no site www.fernandovilela.com.br e no instagram @fe.vilela.

Marcelo Silveira é artista, vive e trabalha em Recife. Sua prática parece questionar categorias pré-estabelecidas, ao desafiar e tensionar definições aparentemente consolidadas de escultura, instalação, artesania e colecionismo. Sua produção move-se a partir do interesse pela materialidade. Tudo pode ser objeto de trabalho: madeira, couro, papel, metal, plástico e vidro são apenas alguns dos elementos explorados. Contudo, também é fundamental a configuração por eles assumida, que pode ser criada a partir do repertório formal comum àqueles objetos – garrafas e copos de vidro, por exemplo – ou pela recriação de formas familiares e comuns em matérias inesperadas. Suas obras integram importantes coleções institucionais: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), Rio de Janeiro, Brasil; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), São Paulo, Brasil; Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), Recife, Brasil; Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil.

INTRODUÇÃO

Laura Gorski é artista visual e educadora. Sua pesquisa envolve a investigação de paisagens por meio do deslocamento, a criação de lugares contemplação e silêncio através do desenho e sua relação com o corpo e o espaço. Formou-se em Design de produto pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Participou de diversas exposições nacionais e internacionais e das residências artísticas Casa Wabi, no México (2019), Terra UNA na Serra da Mantiqueira (2018), LABVERDE na Floresta Amazônica (2017), ZKU em Berlim (2013), cidade na qual viveu durante um ano e Fundação Bienal de Cerveira (2012), em Portugal, onde integrou a 17ª Bienal de Cerveira. Como educadora, trabalhou na coordenação da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake, integrou a equipe de coordenação dos ateliês da 29ª Bienal Internacional de São Paulo, foi professora de artes do Ensino Fundamental I na Escola Castanheiras, em São Paulo e trabalhou na OSCIP Comunidade Educativa CEDAC, com formação de professores em diversas regiões do Brasil como Maranhão, Espírito Santo, Pará e Minas Gerais. Seu trablaho pode ser conhecido em www.lauragorski.com.

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Margarida Botelho é ilustradora e escritora portuguesa, licenciada em Arquitetura e Mestre em Design e Sequential Illustration. Desde 2005, publica livros para a infância, onde constrói as palavras e as imagens dessas casas/livros. Acredita no compromisso entre arte, educação e mundo social, por isso desenvolve experiências educativas com várias comunidades em vários contextos; cria e realiza projetos artístico-educativos em bibliotecas, escolas, centros culturais e sociais, museus, largos e praças públicas. Se tivesse que nomear o que faz diariamente diria: arte-educadora. Desde 2009, trabalha em parceria com várias instituições e ONGs em projetos de intervenção comunitária através da arte; em Moçambique, no Brasil, na Índia, em Timor-Leste e em Cabo Verde. A partir destas experiências, desenvolveu, com Mário Rainha Campos, o projeto ENCONTROS e a coleção de livros POKA POKANI. Em 2015, foi uma das candidatas ao Prêmio ALMA – Astrid Lindgren Memorial Award, como promotora da leitura com seu projeto ENCONTROS. Roger Ycaza é ilustrador e músico equatoriano. Ilustrou histórias e romances para diferentes editoras, e também escreve e ilustra suas próprias histórias, entre as quais Diez canciones infinitas (Panamericana), Quito (Pato Lógico), Los temerarios (GatoMalo), Lo días raros (FCE), Vueltas por el universo (Deidayvuelta) ySueños (Loqueleo). Lançou vários álbuns com suas bandas anteriores, Mamá Vudú e Mundos, e atualmente trabalha em um novo projeto musical, Frailejones. É membro fundador do projeto editorial independente Deidayvuelta. Conheça mais a seu respeito em www. rogerycaza.com.

DEVANEIOS

Sapopemba é percussionista, cantor, ogã, caminhoneiro e taxista. Mais que isso, é um profundo pesquisador da musicalidade religiosa afro-brasileira: fez parte do grupo Abaçaí, com o qual gravou o CD “Agô”; participou da trilha do espetáculo Milágrimas, de Ivaldo Bertazzo; gravou o CD “Guga Stroeter e HB convidam Sapopemba”. Já gravou os programas “Provocações” e “Ensaio” da TV Cultura e tocou na Alemanha, Cuba, Coréia, Espanha e França. Faz parte do grupo Clareira, com Benjamin Taubkin e Mazeh Silva, entre outros. Em 2020 lançou o disco “Gbó”.

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Stela Barbieri é artista, educadora, escritora e contadora de histórias. Foi curadora do Educativo da Bienal de Artes de São Paulo e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake, assessora de artes da educação infantil e ensino fundamental na escola Vera Cruz e prestou assessoria em diversas escolas. Stela fez parte do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência, em Lisboa, Portugal, e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ela também coordenou o curso de Pós-Graduação em Museus e Instituições Culturais, no Instituto Singula-


ridades. Contadora de histórias, Stela é autora de 25 livros infantojuvenis e diretora do Bináh Espaço de Arte.

INTRODUÇÃO

Valter Passarinho é músico, arte-educador e produtor cultural. É gestor do INSTITUTO NUA – Nova União das Artes, do Jardim Pantanal no bairro de São Miguel, em São Paulo. Foi assessor de gestão da Secretaria Municipal de Cultura de Guarulhos e Coordenador do Núcleo de Música da Secretaria Municipal de Cultura de Suzano. Também esteve à frente da coordenação da Casa de Cultura de São Miguel Paulista e atuou em uma série de projetos culturais e comunitários junto à secretarias de cultura e ONGs em São Paulo, Suzano e Guarulhos.

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narrativas do agora

DEVANEIOS DE FERNANDO VILELA, ROGER YCAZA, MARGARIDA BOTELHO, VALTER PASSARINHO E STELA BARBIERI (16.07.2020)

DEVANEIOS

Stela Barbieri: Hoje vamos falar das narrativas que nós todos estamos vivendo, que nos assolam, nos põem em suspensão e, também, por outro lado, nos impulsionam. Muitas perguntas têm vindo à tona, e há um grande questionamento do que faremos daqui para frente. Estamos reorganizando os modos do fazer e descobrindo maneiras de nos encontrarmos.

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Margarida Botelho: Sou formada em arquitetura, mas sempre trabalhei com livros como autora e ilustradora, e com educação. Meu trabalho é a mistura da educação com a arte: do meu ateliê com as escolas, museus; e da minha casa com esses lugares. Às vezes é difícil definir as fronteiras entre o pessoal e o profissional. Eu tenho sorte de ter uma família colaborativa: meu companheiro, Mário, que também é artista e arte-educador, com quem tenho uma sintonia muito grande; e nosso filho, Gabriel de 5 anos, que nesse momento é a idade mais estimulante de todas – eu já achava isso com os filhos das escolas e das bibliotecas onde trabalhava, e agora que tenho um ser de 5 anos em casa, é um estímulo constante, é uma idade fantástica. Em Portugal, o confinamento começou em 16 de março: as escolas, os restaurantes e os serviços fecharam. Havia um grande medo, pois a Espanha, nossa vizinha, estava em uma situação muito grave. Tínhamos acabado de lançar “Big Bang Boom!”, um livro com oficinas com bebês, o confinamento se deu logo em seguida e nos demos conta de que podíamos ser todos transmissores do vírus. O museu em que Mário trabalha fechou imediatamente e sua missão de fazer o serviço educativo de casa começou. Houve uma premissa inicial de trabalhar em casa que alimentou uma série


Roger Ycaza: Estou em Quito, Equador. Há cerca de 23 anos me dedico à música, à ilustração e aos livros para crianças e jovens. Os tempos que estamos vivendo, de muita reflexão e introspecção, são momentos de aprender novas formas de nos relacionarmos. Não nego que são dias difíceis, mas venho conseguindo manter-me muito ativo e tocar projetos. Não há muita diferença no meu dia a dia, porque trabalho de casa há muito

NARRATIVAS DO AGORA

de explorações, não só em família: como ilustradora e artista, eu via Mário trabalhar e me inspirava, algo que impactava em meu trabalho. Nossa casa era um ateliê com três pessoas, sendo um menino de 5 anos, nosso experimentador, pois se funcionava com Gabriel, então funcionava. Começamos a fazer muitas coisas que há muito tempo tínhamos vontade e não tínhamos tempo. A questão do tempo foi uma situação curiosa: sendo eu uma trabalhadora independente, que trabalha em várias instituições, a vida é uma corrida. Enquanto artistas, ficamos com vontade de aprofundar, e quando se fica em casa, é só o tempo do ateliê. No início, confesso que estava feliz por ter tempo em casa, para poder experimentar as coisas. Até dizíamos que criamos uma nave espacial: não víamos notícias, tínhamos uma ligação com nossa família mais velha, fazíamos as compras, e logo voltávamos para a cápsula. Quando percebemos que o isolamento ia demorar e começamos a ficar cansados de ficar na nave, saímos de Lisboa e viemos para um lugar muito isolado em que há uma floresta, uma casa de família de 300 anos. Ao chegarmos, percebemos que tínhamos uma variedade imensa de materiais à disposição, e espaço. Então, começamos a fazer muitos trabalhos de criação. Em maio, época das flores silvestres, começamos a fazer domos de eucalipto, tintas naturais das flores, calmos, aparos, pincéis gigantes com a folhagem das árvores – o lugar também influenciou nossos devaneios. Mário está trabalhando para o museu da prefeitura daqui, e as propostas passaram a ser impulsionadoras de experiências, que depois se estendiam muito além delas. Fomos potenciando, tentando equilibrar o espaço para criar, para lidar com outras questões que esse tempo também trouxe. Em família, fazíamos todos parte do mesmo ateliê, e fomos transformando as limitações em outras possibilidades. Essa fuga foi também uma transgressão. Meu Instagram, nessa pandemia, virou um diário visual. Queríamos fazer o papiro egípcio de pasta de papel de papiro há muito tempo, mas não havia espaço, e nessa nova casa, pudemos experimentar. A investigação em torno dos materiais precisa de tempo, pois não há fórmulas. Também começamos a fazer uma investigação com terra: pintar com a terra, com suas diferentes tonalidades e texturas. Como criaturas urbanas, nunca tivemos uma horta, e a pandemia nos trouxe a vontade de nos conectarmos com o ciclo: semear, tirar a semente do tomate, plantar, de ter um minhocário para fazer terra.

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tempo, mas com certeza me afetou ao estar longe das pessoas que gosto de ter perto, principalmente minha filha que mora com sua mãe, aqui em minha cidade. Em geral, faço almoço para ela todos os dias, ela faz as lições de casa, ficamos juntos. Não temos podido nos ver tanto como antes, quase todos os dias, que é o que mais me afetou neste período. Não nasci em Quito, onde estou agora, nasci numa cidade muito menor na Serra Equatoriana, e minha família já está distante de mim. Assim, tenho podido sentir ainda mais a distância na relação com minha filha e perceber seu valor. Confio que cheguem dias melhores, para que possamos nos encontrar, dar abraços próximos, como queremos. Estou trabalhando em um livro como autor integral. Já trabalhei muito como ilustrador, acompanhando autores em seus livros e passei a dedicar-me a contar histórias minhas. Também realizei exercícios de ilustração, digamos, mais pessoais, abordando este período que estamos vivendo. Para me sentir perto das pessoas, fiz uma breve seleção de canções ibero-americanas como playlist no Spotify que é uma retomada de temas que me acompanham ao longo dos anos. A pandemia não é minha única ocupação neste momento, pois no meu país tem corrupção, migração, racismo. O que me permite estar bem em casa agora é buscar novos disparadores e inspirações para futuras histórias e projetos. Encerro com algo que ninguém viu ainda e quero mostrar para vocês. São testes de cores do meu primeiro livro como autor integral, que se chama “Click” e é feito com as três cores primárias (azul, amarelo e vermelho), em tinta acrílica. É uma história que parte da relação com minha filha, ela já tem 16 anos, mas como muitos pais, para mim continua sendo minha filhinha.

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Stela Barbieri: Eu tenho muita esperança nos movimentos de transformação que estamos vivendo , que possamos criar continuidade nos pequenos grupos, inventando processos, modos de narrar e produzir a vida em outros termos, com mais respeito, com mais parcerias, com mais amor e com mais compromisso. É muito bonito o que você mostra no seu trabalho, como uma expressão de como você está se sentindo, da sua visão do mundo.

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Passarinho: É um momento muito difícil, tanto na questão da pandemia, quanto na questão política, mas acredito que é um momento de provocação para as pessoas entenderem o processo de mudança no país e no mundo. Estamos passando por um momento tão difícil por conta do desleixo todo: as queimadas das matas, os índios, as provocações raciais. Estamos passando por um tempo crítico, mas sempre acreditamos que, em alguma hora, vamos virar essa página da história. Quero começar falando da minha relação com a arte. Há um elo em todo o meu histórico, desde que fui expulso da primeira escola e fui para

Valter Passarinho, Roger Ycaza, Margarida Monteiro e Fernando Vilela no devaneio “Narrativas do agora”.


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outra, onde tive a oportunidade de conhecer um professor de educação artística que acreditou num menino que não era o padrão da escola em uma época na qual o país estava saindo da ditadura e entrando na democracia, mas ainda existia uma política escolar repressiva. Quando entrei nessa nova escola, o professor Jaircles, artista plástico, organizou um festival na escola e me pediu para ajudá-lo. Eu não entendia o porquê, mas era uma estratégia dele para dizer “tem um potencial aí e eu quero descobrir”. Eu ajudei, porque me despertou interesse. Passei por diversos processos em relação à educação, arte e cultura, que me fizeram ver o mundo de forma diferente, me fizeram enxergar as possibilidades de chegar a alguns jovens que estavam sendo discriminados ou estavam perdidos no processo de educação, por não se encaixarem no padrão escolar, assim como eu. Tem um processo de responsabilidade do Estado, de pensar nesses jovens, mas para agregar, somar, ver o potencial. Quando conto isso tudo, vejo minha relação com a arte, com o Instituto NUA. A partir do festival, tive interesse de estudar música, percussão. Fui ser arte-educador num colégio na periferia. Os meninos que apresentavam dificuldade de relacionamento com a escola, os “marginalizados”, foram para a oficina de percussão, o que me fez entender que eu tinha ali um grande desafio de conduzir esses garotos para eles pudessem ter outro olhar para a escola, as responsabilidades e compromissos decorrentes. Foi isso que me despertou muitas coisas em relação à música e à arte e, então, fui atrás de conhecimento, de estudo. Montamos um grupo de percussão legal, começamos a tocar em alguns lugares na periferia, fomos convidados a tocar numa universidade, levamos as crianças para uma apresentação na Escola da Vila. Isso me trouxe a percepção de quanto estamos distantes do ponto de vista econômico, mas ao mesmo tempo próximos. Os jovens vão para a Escola da Vila com um olhar da periferia, vão com preconceito, mas fomos recebidos com tanto carinho pelos alunos, que foi muito gratificante e transformador, tanto para nós quanto para eles. Os alunos começaram a enxergar o relacionamento que eles tinham com o pessoal da cozinha, com o pessoal da segurança, que é da mesma intensidade de relação que eles tinham com a direção da escola. Tive a possibilidade, aqui em São Miguel, de ser o interlocutor entre os artistas, para pensar nas ações que seriam criadas nos CEUS, no diálogo entre a educação e a cultura, um processo muito interessante, muito rico, viabilizado por Cida Perez, uma das responsáveis pela implantação dos CEUS de São Paulo. Então, Cida foi para Suzano e me levou para fazer o mesmo processo de diálogo entre educação e cultura. Fomos ver o que havia na educação para integrar com a cultura, e o que tinha na cultura para integrar com a educação. Havia o projeto sobre cultura popular “Roda de todos os Santos”, um processo de curto prazo para dialogar com a garotada, porque oferecemos capoeira, percussão, canto e dança.


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Levamos o projeto para dentro das escolas, que significava levar outras possibilidades de cultura para as escolas. Ao mesmo tempo, criou-se um grande obstáculo porque surgiram preconceitos: por que vamos levar dança afro, capoeira para dentro da escola? Alguns professores questionaram, acharam que era coisa de macumba, e falei para dialogarmos, pois é um processo histórico no Brasil e no mundo. Criamos a possibilidade de diálogos e o projeto foi para todas as escolas de Suzano. Não dá para pensarmos em educação e cultura separado quando se trata de transformação social. Tenho grande carinho pelo meu irmão Hermes de Souza, que tem um histórico fabuloso de mostrar o quanto a oportunidade pode abrir outros caminhos para que as pessoas possam entender a importância da arte, da educação e da cultura na transformação social de jovens. Vejo a oportunidade de dar acesso à arte aos jovens de uma maneira muito especial, pois foi a arte que me educou. Eu acredito que a mesma arte que transformou o Hermes, me transformou, transforma os jovens de outros espaços, de outros países. Conheci Hermes em meados de 2000, quando ele apresentou os projetos que estava realizando. Eu estava na Casa de Cultura de São Miguel e fomos conversando e estabelecendo um relacionamento de irmandade. Na conversa sobre o processo de transformação do bairro, criamos um diálogo num fórum permanente com os moradores, para discutir as questões. Pensamos a relação do espaço como uma educação matuta, na qual aproximamos a comunidade e criamos possibilidades de trazer as crianças para um mundo diferente. Temos o projeto “Escola debaixo da ponte”, que faz alusão à educação matuta através do morador, do conhecimento de senhorzinho que trabalha com plantas. Esse projeto tem um significado muito grande para nós, pois é usar o espaço urbano como espaço de aprendizagem. Estamos criando agora as Unidiversidades da quebrada, que são os mestres que tem o conhecimento não formal, conhecimentos importantes para o social. É muito gratificante pensar nessa construção como um processo educacional e, a partir da arte, somos parte da transformação. Quando o professor Jaircles, lá atrás, me mostrou um mapa do festival, era muito rabisco para meu entendimento, mas ele queria despertar o sentimento que eu tinha pela obra que ele tinha construído – e me despertou, de fato. Sou muito grato ao Jaircles, pois ele é o responsável pela oportunidade de ser uma pessoa do bem, por conta de ter confiado. Agora estou numa fase de querer desaprender algumas coisas para aprender novas, como diz a música, “eu quero ser uma metamorfose ambulante”. É importante a gente se questionar sempre para aprender, a troca é essencial, eu vivo aprendendo com as crianças. Temos que pensar não em tirar as crianças da rua, mas melhorar a rua para as crianças, e

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o Instituto NUA trabalha nessa vertente, de como dialogar com a comunidade, como fazemos o entendimento de que ela é educadora, de que a responsabilidade de educar não está só na escola, está na aldeia toda.

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Stela Barbieri: Compartilho da sua admiração pelo Hermes, uma grande inspiração para nós, um querido, idealista, transformador de realidades. Você foi compartilhando conosco sobre as pessoas com as quais você aprendeu. Para mim, Cida Perez também é uma mestra, com quem pude realizar e aprender muito. Juntas, fizemos o “Vivências Culturais para Educadores”, projeto no qual oferecemos formação para seis mil professores, em duas edições, quando eu era diretora do Educativo do Instituto Tomie Ohtake. Foi um curso de 120h de formação para professores e trabalhamos com arte popular e arte contemporânea entrelaçadas, com todas as áreas de arte: circo, música, arte visuais, dança, teatro, cinema. Quero agradecer pela sua fala, coragem, pela sua vitalidade de fazer esse trabalho de transformação, que é muito bonito e inspirador para todos nós.

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Fernando Vilela: Vivemos múltiplas narrativas, narrativas simultâneas, em nossas vidas, e tentei organizar as minhas narrativas do agora para compartilhar com vocês. Falamos de um lugar no espaço: temos Roger falando de Quito no Equador; Margarida falando de Lisboa, Portugal; aqui em São Paulo, eu estou falando de um lugar e Passarinho está falando de outro completamente diferente. Cada lugar propicia um tipo de narrativa, a vida de cada um é uma narrativa e a vida interior de cada um é outra. Com a pandemia, o que muda em nossos campos narrativos? Existe a narrativa da casa, o primeiro impacto na vida de todos foi estarmos em casa: como vamos nos organizar? No nosso caso, eu, Stela, Leo e Nina nos perguntamos: e agora? Vamos trabalhar, vamos limpar a casa, vamos cozinhar? A rotina mudou. A narrativa do dia a dia trouxe muitas oportunidades de estarmos juntos, conversar, nos cuidarmos mais, e ver os lados difíceis de ficar muito junto, ficar estressado. Tudo isso faz parte de ir ajeitando as coisas, olharmos para as nossas relações com o cotidiano é um grande aprendizado. Há outra narrativa que todos nós compartilhamos, a narrativa do mundo externo, da crise da pandemia, da crise do país, da crise mundial, e do mundo que parou. A narrativa do mundo exterior chega pela televisão, Whatsapp, internet, jornais, e vamos filtrando e reorganizando-a, pois temos que desconfiar dela o tempo todo. A narrativa que Passarinho nos trouxe é diferente da narrativa da zona oeste da cidade, que é diferente do governo da cidade de São Paulo. O terceiro campo, no qual eu queria me deter um pouco mais, é a narrativa do mundo interior, que é inescapável a cada um de nós. Cada um de vocês tem um ponto de vista insubstituível, pois não podemos estar


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no mesmo lugar, fisicamente neste mundo da matéria. Trabalhamos os nossos pontos de vistas interiores (os pensamentos, memórias, questões e nossas invenções), e, nele, nós nos encontramos artistas. Todos compartilham o espaço de criar, quando inventamos narrativas, dialogando ou não com esse mundo. As narrativas interiores, na pandemia, tem sido as mais intensas. Tenho trabalhado muito, pois o fato de ficar parado, sair menos, ter menos estímulos, foi uma oportunidade de pegar os projetos antigos, deixar as ideias virem. Tenho sonhado bastante e anotado meus sonhos, que têm sido um grande aprendizado. Como essas ideias vêm para o mundo? Stela e eu temos um caderno no qual a gente desenha, anota, é um canal de colocar as ideias no papel. No início da pandemia, a questão da faxina era uma tarefa inescapável, e depois passou a ser uma vivência mais filosófica, a relação foi mudando para mim. Quero compartilhar alguns fragmentos dessas narrativas interiores, fotografei algumas imagens. Esse desenho nasce de a faxina ser uma atividade criativa: uma família de um pai com três crianças, um desenho feito com duas cores, azul e vermelho. A sobreposição do azul com o vermelho cria uma terceira cor, o roxo, um pouco metaforicamente, pois quando trabalhamos juntos, nossos gestos se sobrepõem – não fazemos nada sozinhos nesse mundo, estamos sempre fazendo junto. Começamos a cozinhar para nós e também para outras pessoas, participando uma rede colaborativa. Fizemos 50 marmitas para moradores de rua. Foi um movimento completamente novo na nossa vida, foi uma experiência muito legal. Sonhei com um pavão num bombardeio. O pavão era mais ou menos assim, tentei desenhar, e ele acabou gerando uma história. A história de um anel que vai cruzando o mundo, cai da mão de uma pessoa dentro de um lago, um peixe come o anel, o urso come o peixe, uma história contínua que acaba atravessando o mundo. O pavão acabou entrando nessa história assim que ele saiu do sonho. Essa é outra narrativa que comecei a fazer com Stela. Pegamos tudo que era branco em casa e resolvemos fazer um personagem, que chamamos de Seroc (cores ao contrário). Seroc é um camaleão que se metamorfoseia com os objetos da casa. Nesse caso, são os brancos da casa. Aqui temos a vista da janela, eu coloquei esse céu porque quando tomamos café, almoçamos, jantamos, ficamos de frente com essa vista. É aqui na Vila Romana, temos a Avenida Cerro Corá, e um gavião que sempre está por aqui e se tornou um colega nosso. Nos perguntamos se é urubu ou se é gavião – é o to be or not to be do nosso dia a dia – mas descobrimos que é um gavião. No meio dessa pandemia o mundo interior pode ser compartilhado quando vemos um filme, lemos um livro, estamos no mundo interior de

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Telas de Fernando, Margarida e Roger compartilhando um pouco de seus processos durante a quarentena.

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outro artista, outros escritos. Li um livro muito marcante para mim na pandemia, que me foi emprestado por meu cunhado, Michel Gorski. É uma história em quadrinhos, uma novela gráfica que se chama “Heimat”, que significa o lugar de onde você veio, o lugar onde você vive, e a escritora é a Nora Krug, uma artista alemã que escreve e desenha. O livro é uma história biográfica, a capa é ela em cima do morro, olhando para a cidade natal, um vilarejo ao sul da Alemanha onde ela nasceu. Depois migrou para os Estados Unidos, e ela nunca soube nada dos avós, tanto paterno quanto materno – história que sempre foi escondida pelos pais. Ela tinha vergonha de ser alemã, pois é um país que passou pelo nazismo, um povo que carrega a culpa violenta de um genocídio absurdo. Ela carregava isso consigo e resolve ir atrás da história. A história vai se desvelando não com parentes monstros, mas a humanidade e o contexto que fez com que cada uma das pessoas chegasse ao lugar que chegou. Eu recomendo, um livro maravilhoso, super bem escrito, que mexeu muito comigo. Fiquei muito impactado com sua busca, acabei olhando para essa paisagem, para esse gavião e um dia entrei num devaneio, vou ler para vocês. Esse é nosso apartamento, esse sou eu na janela, o planeta terra, e aqui são alguns desenhos dessa pequena história que começou a nascer há uns três dias atrás. Vou ler para vocês esse pequeno devaneio da quarentena. “Nasci num ponto no espaço e no tempo, na Terra girando em torno dela, em torno do Sol no sistema solar. Nasci no dia 16 de novembro de 73 do calendário cristão, no calendário judaico era o ano 5.734, já no calendário zoroastriano era o ano 3.410. Posso dizer que nasci no ano 300.000, considerando a idade do homo sapiens na Terra, pensando assim, me envergonho do grande estrago que o grupinho branco letrado dessa prepotente raça fez no nosso planeta no curtíssimo período de 500 anos. Nasci no ano 3.5 bilhões se considerarmos que o início desse calendário acontece com o surgimento do primeiro ser vivo, da primeira célula. Daí vem meu sentimento por estar passando por essa existência por uma ínfima faísca, que surge e desaparece, na história desse mundo. Você, eu, somos como centelhas de vidas impermanentes, que não passam de um sopro. No mesmo dia que nasci, no mesmo país, mas há 300 anos daquela maternidade paulistana também veio ao mundo, no meio da Floresta Amazônica o pequeno Cauã, um indígena yanomami também festejado por sua nação milenar. Uma etnia com sua própria cosmologia e senso de humanidade, mas sem a prepotência da conquista insaciável, um grupo sobrevivente da destruidora raça branca, vírus incurável do nosso planeta, ameaçado hoje por um vírus. Hoje 16 de junho de 2020, vejo a paisagem da janela do apartamento onde vivo, na mesma cidade que nasci, que agora tem 24 milhões de habitantes, quando nasci tinha 8 milhões. Minha mãe aqui chegou de Minas Gerais em 1950, a cidade tinha 2 milhões

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de pessoas, garoava fino, ela pegava bondes, com luvas brancas para ir ao cinema no centro. A avenida que observo agora, com intenso tráfego na hora do rush, no final da tarde, naquele tempo era uma rua de terra onde passavam carros de boi. Mas foi aqui, neste bairro, longe do centro que, há 500 anos atrás, o som de trombetas de madeira emergiu da mata fechada do morro que enxergo, tocada pelos índios Tupiniquins, anunciando a chegada de uma tempestade, e assustando os pássaros. Pássaros como esse gavião que vejo agora pela janela, planando, que observa. Esse animal que cruzou séculos, descendente de vários outros gaviões que sobrevoavam essa mesma encosta 500 anos atrás, onde soavam as trombetas Tupiniquins. Daqui da minha janela, posso lembrar desse morro que, há 250 bilhões de anos atrás, um pterodáctilo sobrevoava a encosta sobre o mesmo céu azul. O enorme pássaro de meia tonelada deslizava, levado pelo vento morno, o mesmo vento que sopra agora no meu rosto, vento eterno, que atravessa os tempos, que nunca sabemos de onde vem e para onde vai . [...]”. Bom vou parar aqui, mas essa história continua. Queria terminar minha fala compartilhando-a com vocês. Stela Barbieri: Somos constituídos por toda a história da humanidade, com sua sombra e sua luz, o que faz com que nos tornemos mais humanos. Fernando traz uma história pessoal, mas também uma visão ancestral, daqueles que nos formaram, e é uma grande responsabilidade o que vamos fazer agora com tudo isso. Margarida falou uma coisa bonita, que somos apenas uma faísca, e é isso mesmo, somos apenas uma faísca.

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Fernando Vilela: Quero fazer uma pergunta para o Roger. Como estão as coisas em Quito, politicamente? Aqui estamos vivendo um momento muito complexo de um governo totalmente desgovernado, nosso presidente eleito o pior presidente do mundo pelos meios de comunicação mundo afora.

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Roger Ycaza: As coisas aqui no Equador estão muito parecidas com o que vocês estão vivendo. No tema da pandemia, chegamos a momentos de colapso, como Uaiaqui, na costa do Pacífico, com muitos contaminados e falecidos. Agora estamos vivendo isso em Quito. Entramos no confinamento no dia 17 de março. Estivemos em farol vermelho e agora amarelo ou laranja, com toque de recolher depois das 17h da tarde e antes das 9h da manhã. É importante que tomemos consciência, como povo, principalmente das medidas de higiene e de segurança. Temos que atuar juntos como uma comunidade, por ser um tema de vida ou morte, e nem todos estão agindo assim. Saio muito pouco à rua, mas quando saio é impressionante a quantidade de pessoas sem nenhum cuidado ou medida de prevenção, e isso é preocupante. Entendo que sou privilegiado de poder tra-


balhar em casa e sair pouco, mas ainda assim é impressionante quantas pessoas estão correndo risco de morrer, senão de fome, do Covid. Agora estamos vivendo uma preparação para as eleições e os candidatos estão começando a aparecer. Na política, há muitos casos de corrupção, como superfaturamento em todos os níveis, inclusive no abastecimento de recursos médicos para combater a pandemia. Depois de um longo governo de Rafael Correa, agora temos Moreno. Ele tem uma proposição de transição que não tem sido vitoriosa, de combater o desemprego, que é muito alto, ou estabilizar a economia do país. Assim, o panorama é nublado, sem perspectivas claras, mas, como artistas, precisamos seguir agindo, sendo o mais solidários possível, trazendo o que temos a oferecer e fazer por outras pessoas que precisem, para que saiamos juntos dessa situação. Como um jeito de levar a vida, tenho procurado refletir constantemente e encontrar os aspectos positivos deste momento. Margarida Botelho: Muitas vezes eu penso que sou privilegiada, faço uma coisa inútil do ponto de vista funcional – não sou médica, enfermeira, assistente social. Simplesmente o que faço é criação. Outro dia uma pessoa que segue nossas publicações disse que somos uma espécie de polinizadores da felicidade, e essa frase ficou em minha mente.

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Stela Barbieri: Percebo, no trabalho de todos vocês, a partilha da alegria, da vida, do sonho, da imaginação, sopro energético de movimentos de transformação e luta que aqui no binåh prezamos muito.

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casa nômade DEVANEIOS COM FERNANDA ZERBINI, LAURA GORSKI, MARCELO SILVEIRA, SAPOPEMBA E STELA BARBIERI

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23.07.2020

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Stela Barbieri: Os devaneios têm sido movimentos de presença, de estarmos presentes com o outro, de forma remota, mas ao vivo. Têm sido tempos de muitas descobertas, de expansão e de oportunidades para vermos que o mundo não pode continuar como está. Nós, da equipe bináh, conversamos sobre a transformação da casa dormitório em casa acordada, desde o início da pandemia. Então, iniciamos o trabalho com a ideia da casa acordada, com as investigações da materialidade, da poesia, dos movimentos da casa. Também pensamos que que, muitas vezes, a acolhida se dá dentro de si próprio, ou por uma pessoa que é uma casa para nós. Laura e eu ficamos brincando que ela é uma casa para mim, e eu sou uma casa para ela. A ideia desse devaneio teve a participação de Laura Gorski, pois foi inspirado em nossas conversas sobre a casa e sobre nosso cotidiano. Essas conversas fizeram com que olhássemos para a qualidade da presença: como é importante estarmos presentes numa conversa, numa brincadeira, cantando, estarmos presentes em cada coisa que fazemos, pois, a vida passa rápido e se estivermos apressados, não nos damos conta dela. Nina, minha filha, e eu temos feito um diário musical enquanto habitamos a casa e compus uma música de preparação, de anseio do que é receber os outros e do que é se ocupar dos outros dentro de nós. Não estarmos perto das pessoas têm sido algo muito forte durante a pandemia, mas vale pensar em como nos ocupamos das pessoas em nós. O que é sermos habitados pelos outros dentro de nós? O que nos move para sermos casas e ocuparmos casas?


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Laura Gorski: Eu comecei a trabalhar na vida com Stela, temos uma relação de muito afeto, por isso brincamos que uma é casa para a outra, pois é verdade. O período da pandemia fez com que nos voltássemos para nossas casas – talvez nunca tenhamos habitado tanto a casa como agora. Apesar de o isolamento nos ter sido imposto, ao lado das dificuldades e complexidades inerentes, também apareceu o questionamento: “o que estar na situação de ter que fazer tudo de dentro de casa abre como campo?”. A imagem da casa acordada é muito forte, e esse é um momento que nos convoca a presença, nos traz para a pergunta “como viver da melhor maneira esse dia?”. A pandemia me levou a um mergulho interno: fui visitar minha casa de infância, conversar com a criança que mora nela. Por estar em minha casa, organizando meu tempo, percebi como a ideia de casa está ligada ao cultivo do tempo interno, ao respeito a cada ser, ao seu tempo, à sua maneira de ser no mundo. Assim, pude entrar em uma escuta mais fina do tempo interno na forma de lidar com cada coisa. Muitas vezes, na velocidade que temos na vida, fica difícil manter a escuta fina dessa voz baixinha de um tempo de dentro, que te conta como é que deve ser feita aquela coisa, naquele momento. Penso que a escuta de nós pode acontecer em qualquer lugar, se estivermos com o ouvido afinado. Dessa forma, a casa também pode existir em qualquer lugar, pois a casa está dentro de nós. Eu gosto dessa frase do Mia Couto1: “O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora” – fico pensando nas diversas casas que nos habitam, que já nos habitaram, e o que é casa para nós. Penso que casa é um corpo em expansão e construção ao longo da vida. Nesses devaneios de encontros com a casa, fui para o lugar da natureza: pensar nossa casa expandida, o planeta, a natureza, as pessoas como casa. Tive a oportunidade de viver numa casa, na infância, em que a natureza esteve permanentemente presente: minha mãe é paisagista e meu pai sempre teve uma relação especial com o plantio, com as sementes brotando dentro da casa. Depois, vivi a experiência arrebatadora de ter entrado pela primeira vez na Floresta Amazônica, em 2017. Tive a sensação de atravessamento e uma sensação de casa, através do corpo, sem palavras, pela experiência de me sentir em casa dentro da floresta. Sempre trabalhei com o desenho, ele é o fio condutor do meu trabalho, e essa experiência mudou minha relação com tudo: com as pessoas, comigo mesma, com o trabalho e com o desenho, porque me senti integrada, fazendo parte de uma coisa muito maior, uma experiência de comunhão com o todo. Revisitei a floresta de dentro de casa, 1 COUTO, Mia. Um rio pensando nas várias casas que nos habitam, chamado tempo, uma e a possibilidade de expansão. No retorno casa chamada terra. São Paulo: Cia das Letras, 2016. dessa experiência, escrevi um texto:

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Depois desse atravessamento, a forma circular entrou de uma maneira irreversível no meu trabalho, pela experiência de me sentir parte do todo. Há um ano, comecei a fazer um trabalho diariamente e fiquei com vontade de mostrá-lo a vocês. Faço um círculo por dia e pinto-o com um elemento da paisagem, algo que como ou bebo no dia. É um estudo cromático a partir da minha relação com algum elemento do dia. Durante muitos meses, as cores vieram de fora: da terra, das folhas, das plantas, de coisas. Nos últimos 4 meses, comecei a observar as cores da paisagem de dentro

Sapopemba, Fernanda Zerbini, Marcelo Silveira e Laura Gorski no devaneio “Casa nômade”.

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A floresta me atravessou e ainda atravessa. Ir para a floresta é ir para um encontro amoroso. O encantamento pelo desconhecido magnético. A floresta é um abismo que te convoca. Você a quer. Ela te chama. São camadas e camadas de encantamento. São camadas e camadas de não saber. Ninguém sabe a floresta. Ela te acolhe pois é indomável. A floresta é liberdade de ser. A floresta é imensidão. Ela é o buraco habitado. É o encontro amoroso consigo e com o outro. É um lugar onde não existe dominador e dominado. Não existe abuso de poder na floresta. Não existe hierarquia na floresta. Vida e morte são a vida e a morte em estado bruto. Tudo o que é, faz parte do todo. Tudo o que deixa de ser, faz parte do todo. É o grande pertencimento do mundo sendo uma semente, um microorganismo, uma árvore centenária, uma onça. Tudo faz parte do todo. É tudo e pode ser nada no segundo seguinte e continua sendo parte do todo. A floresta é o encontro do tudo com o nada dentro do todo. Estar na floresta é entender, pelo corpo, que não existe fora. A floresta é o grande dentro circular. Tudo cabe. Tudo faz parte. Tudo pode existir. É incorporado à vida. A floresta é selvagem e generosa ao mesmo tempo. Como o corpo da mulher. A floresta é feminina. A floresta é casa. Nela tudo cabe. Ela acolhe. A floresta A terra A folha A semente A árvore A água A montanha A lama A chuva A concha A planta A raiz A fruta A pedra

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de casa: do chá, do suco, do café, dos banhos de ervas, da água em que cozinhei o espinafre. Vou mostrar um pedacinho desse diário, um desenho de cada mês, que tem 30 ou 31 bolinhas. Em cada página, escrevo o lugar em que o fiz. Este é o mês de agosto. Os círculos começaram como uma bolinha pequena de terra. Este é setembro, a bolinha cresceu um pouquinho, é uma bolinha de cúrcuma. Cresce um centímetro por mês. Este é outubro, aumentou mais um pouquinho, é um banho de eucalipto. Esse é um café com canela, na Bahia. Participei de uma residência em novembro, como passei dois meses na Bahia, vem as cores dessa experiência. Aqui, um suco de umbu, naquela maravilha de paisagem, quando podíamos nos deslocar. Este foi um banho de ervas, em janeiro. Este é fevereiro, suco verde que deixou de ser verde, pois os pigmentos naturais vão mudando de cor conforme o tempo passa. Pode ser que tudo isso desapareça em algum momento, pois não sei quanto os pigmentos vão durar. Este aqui é água da beterraba, em março. Este, um chá de hibisco, que também muda bastante de cor. Aqui em maio, um vinho tinto. Junho, chá de ervas. Julho, chá de boldo. Faltam alguns dias deste mês para concluir esse ciclo. Mas o hábito de todo dia fazer um círculo, talvez seja algo que eu não consiga parar. Vai fechar o ciclo de 1 ano, foi algo que fez muito sentido para mim, na relação com o tempo, a presença. Quis compartilhar esse trabalho, porque acho que tem a ver com nosso diário de quarentena, de viver, a cada dia, o que cada dia pode nos trazer, nos provocar e, ao mesmo tempo, a partir das cores que nos alimentam.

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Stela Barbieri: Assim como metabolizamos nossa infância, metabolizamos cada coisa que vivemos, como você mostrou em seu trabalho alquímico cotidiano. Fico pensando nos povos originários e nas comunidades mitológicas, nos povos onde a vida e a arte estão juntas. Como, cada vez mais, na nossa vida, nos rituais cotidianos, a arte e a vida estão juntas. Vamos ouvir Marcelo, um homem que também fica na lida com o mundo casa, a casa mundo.

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Marcelo Silveira: Para a família, sempre esteve subentendido eu ser o especialista em coisas inúteis. Uma vez, fui solicitado por pai a procurar, na cidade de Gravatá, outro local para que eles se instalassem em uma nova residência, pois a residência em que moravam era no centro da cidade e queriam sair dali. Procurei, procurei e cheguei no Alto do Cruzeiro, uma


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região muito simples da cidade, com uma grande carga de preconceito daqueles que moram na parte baixa da cidade. Volto e digo “papai, já achei o local da casa, é no Alto do Cruzeiro”. Mostrei o lugar e ele nem um pouco se agradou, disse que era um local perigoso. Eu disse que não era, e ficamos naquele impasse. Então, eu resolvi comprar a casa, que era muito pequena, tinha 28 ou 30 metros. O Alto do Cruzeiro, em sua formação original, era completamente coberto por pedras, e as pessoas que o foram ocupando, as foram eliminando. Para minha sorte, ficaram essas três: uma raridade. O espaço era muito pequeno para o que queríamos fazer, e ele foi convidando. Por exemplo, meu pai, que não via simpatia em se instalar lá, se empenhou completamente na construção da casa, um processo de conquista. Na primeira carga de cimento, perguntei: “Não veio o cimento?”. O vizinho apareceu e disse: “Eu coloquei na minha sala, pois poderia chover e molhar o cimento”. Essa foi apenas uma das experiências que fez aumentar minha paixão pelo lugar. É um lugar cheio do que eu gosto: as pessoas se sentam do lado de fora, não preciso fechar a porta da casa, no andar superior tem a coleção dos trabalhos dos amigos e, os mais antigos em circulação por lá, chamam os amigos para mostrar seus trabalhos. É uma casa de muita proximidade, nunca roubaram, arrombaram nada. A casa não tem grade, não tem cadeado e, no próximo ano, faz 35 anos. No início da pandemia, fiquei meio apavorado, pois me deixar dentro de casa é como cortar minhas pernas. Gosto da casa, mas gosto de estar em trânsito entre as várias casas, encontrando o amigo em sua casa, trazendo o amigo para dentro de casa, construindo situações diferentes em cada momento. Vi que uma das coisas que estava em aberto era minha experiência com Heleno, uma criança que, quando chegou a Alto do Cruzeiro, a casa já existia, as crianças já circulavam por ela. Éramos dois estranhos: eu querendo descobrir quem era Heleno e ele querendo descobrir quem era Marcelo. No início do projeto, havia uma regra: as crianças menores iam em casa nos sábados à tarde, e as crianças maiores, nos domingos de manhã. Quem dizia se era maior ou menor era a criança. Heleno não se integrava em nenhum desses espaços: aparecia no final das atividades, na janela olhando, querendo saber o que era aquilo. Eu, criando várias situações de aproximação, convidava, deixava o papel sobre a mesa, ia até ele e ele corria. Um dia, resolvi inverter o convite e dizer que ele não poderia entrar, não poderia usar o lápis, nem o papel. Ele entrou e disse que ia usar o papel e o lápis – era o que eu queria. Ao longo de 3 anos mais ou menos, ele fazia um papel a cada encontro. As outras crianças pediam para levar o trabalho para mostrar ao pai, à mãe, mas ele não se interessava em levar os seus, os deixava lá e eu sempre os guardava. Eu ficava, a cada dia, mais curioso para ver o que ele estava desenhando. Na semana seguinte, ele ocupava outro papel, às vezes mudava a cor,

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mas não mantinha referência com o desenho anterior. Esses desenhos, quando mostrados em sequência, parecem ter sido feitos no mesmo dia, dá até para gerar uma animação. Os materiais que usávamos eram muito simples, aproveitamentos ou doações, porque era um projeto sem financiamento algum e tinha 30 ou 40 crianças por atividade. Eu queria melhorar as condições de Heleno, para ele se inteirar melhor no grupo: tentava articular, mediar situações em que ele passasse a ser o protagonista da história. As outras crianças o chamavam de doido e isso me incomodava bastante. Certa vez ele me disse “quem é assim é bonzinho?” e fez o movimento circular em torno do ouvido. Eu disse: “Por que quem é assim é bonzinho?”. Ele respondeu: “Porque minha mãe, sempre que vou falar com alguém, ela faz esse movimento com a mão circulando e diz ‘não, ele é bonzinho’”. Aos poucos, fui conversando com a mãe e o pai, dizendo que ele não tinha nada daquilo que estavam construindo como imagem dele. Em um dos últimos encontros do ateliê de Gravatá, do projeto “A casa das pedras da rua do Cruzeiro”, Heleno foi o palhaço de uma festa, e foi muito legal, pois ninguém mais o chamava de doido. Ele conseguia interagir tanto nos sábados quanto nos domingos, o que foi uma grande conquista. No Cruzeiro, além das atividades de desenho, havia as vivências, até produzimos o vídeo “Brincadeira é coisa séria”. Eu fazia comida com eles, a história de eu cozinhar é de muito tempo atrás. Na época, faltava comida a vários integrantes do grupo, moradores do lugar. Quando eu chegava, sempre havia muitos para comer comigo e vários deles participavam do fazer e do dividir a comida, eram situações de grande integração. Nesse desenho, Heleno bota antena de televisão de palito, um elemento característico da época. Quando dominou a casa por fora, ele começou a representar seu interior e, em seguida, colocou os convidados na casa – entro eu, entram os voluntários. Quando resolveu a casa, ele trouxe o carro como novo elemento – seu interesse eram os carros de som – e coloca as pessoas penduradas ali. Heleno adorava simular propagandas. Passados muitos anos, descubro que ele chegou a ter um programa na rádio local, e agora tem uma bicicleta com alto falante que faz propaganda. Vez por outra, ele volta e diz: “O pessoal me achava doido, mas de doido eu não tenho nada”. É fantástico ver e entender o quanto a convivência, não só comigo, mas com todas as crianças e as pessoas que nos visitavam, transformaram a vida desse menino.

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Stela Barbieri: Marcelo, que coisa maravilhosa esse seu encontro com o Heleno e que trabalho lindo o dele. Todo ser humano precisa de um espaço, de um acolhimento para expressar o que é, o que deseja, o que sonha, o que imagina. Em casa, temos conversado sobre os reencontros

Desenhos de Heleno apresentados por Marcelo Silveira.


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com pessoas que encontramos há muitos anos. O sentido disso e do nomadismo da nossa imaginação – dessa casa que somos nós, com nossa imaginação. Vamos nos povoando, nos habitando com aquilo que inventamos, falamos, pintamos, desenhamos. Vamos habitando o que somos, a construção que fazemos de nós mesmos, com a ajuda das pessoas que nos sustentam, às vezes por acolhimento, outras, por confronto.

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Fernanda Zerbini: Eu me lembro até hoje da sensação da primeira vez que uma criança colocou a mão em minha perna, de uma maneira que eu nunca havia sentido antes. É o que senti na floresta, a entrega e, de repente, o reconhecimento, a sensação de ocupação, de pertencimento – a mesma sensação de quando a criança colocou a mão em minha perna. Também me lembro do fascínio de quando entrei a primeira vez em uma galeria de artes, uma exposição do meu tio Luiz, e vi um monte de cores penduradas. A sensação de comungar, de estar junto com o espaço, o tempo e nós mesmos é um mundo. Eu venho fazendo uma pesquisa de desvendar as florestas, pois tenho o sonho de criar uma escola floresta, floresta escola, a casa que a floresta já é. Também fiz uma pesquisa sobre as escolas da floresta pelo mundo, e tive vontade de compartilhar a sensação de casa, de quando a criança constrói a cabana, onde ela está salva de tudo, uma sensação de completude, integração. Esses espaços mágicos que podemos construir na vida, onde quer que estejamos. A sensação das cavernas, de entrar debaixo da terra, e sentir as possibilidades do nosso planeta. Assim como alinhar o planeta Terra com o nosso coração, nosso planeta. A possibilidade de experimentar lugarzinhos e casinhas – às vezes, um simples galho já é a continência inteira para a criança. A temperatura do chão, as luzes lá dentro, todas essas sensações são importantes. Desenhar as portas nas árvores é criar portais, gatilhos importantes para as crianças, mas também para nós, adultos. É importante criarmos um espaço de tranquilidade nessa quarentena. Passei os primeiros 4 meses e meio confinada, em retiro da auto gentileza, e continuei minha pesquisa da floresta. Fui ao jardim das brincadeiras, do Guilherme Blauth, em Paulo Lopes (SC): que linda a casa que ele construiu, um portal, recebe as crianças, de 2 em 2 meses. Ele construiu um espaço bem preparado, com brinquedos grandes nos quais as crianças entram, e depois tem um portal, literalmente, para a floresta. Ele diz que é a partir dali que começa o trabalho, pois você pega a corda, começa a subir as pedras, tem várias caverninhas, perfeitas para as crianças, É o momento de conhecer e de se reconhecer. Stela Barbieri: Na infância, quando estamos brincando, se nos sentimos totalmente integrados no que somos, nos sentimos inteiros, amados,


Sapopemba: Além de nômade, o caminhoneiro é como o caracol: carrega a casa para onde ele for. Cada parada é uma experiência diferente: a gente chega, instala a casa, isto é, encosta seu caminhão para descansar, para tomar um café, até mesmo para prosear. Volta e meia temos uns encontros para recarregar as energias. Em um pátio ou posto específico, junta 50, 60 caminhoneiros, faz uma roda e bota a prosa em dia, ou fazemos um churrasco e tomamos um mate, conversamos, cantamos, um traz a gaita, o outro, a percussão e a coisa pega. Minha primeira casa é em Penedo, no bairro Vermelho. Toda vida vi que Penedo era pequena. Um senhor trouxe um rádio Semp de Maceió, no qual a gente ouvia muito a Rádio Clube de Pernambuco e a Rádio Liberdade de Sergipe. Através da Rádio Clube de Pernambuco, a gente ouvia as marchas, frevos carnavalescos, tudo que dizia respeito a carnaval e as inovações que surgiam na rádio. Vou contar uma cena peculiar: em 1958, na primeira Copa do Mundo, um sujeito chamado Zé da Loja tinha comprado outro rádio e o colocou na janela para o povo ouvir a Copa do Mundo. A Suécia faz um gol no Brasil, virou o desassossego, depois a Suécia fez 2 gols no Brasil, aí o Zé da loja sacou o revólver e deu um tiro no rádio para não transmitir mais desgraça, e o Brasil ganhou de 5 a 2. Então, minha primeira casa foi no Bairro Vermelho, em Penedo. Migramos de lá para cá e viemos morar no Brás, Rua Coimbra 391. Em pouco tempo, eu saia dali e vagava por São Paulo e meu pai ficava desesperado. Como eu disse, tenho espírito nômade: eu zanzava, por isso conheço boa parte de São Paulo, o centrão, boa parte dos bairros de São Paulo, pois trabalhei como office boy também. Fui morar na Mooca, na rua Odorico Mendes, por 1 ano, e depois fui morar no Jardim Sapopemba, onde ficamos por 20 anos e adquiri meu apelido. Mesmo assim, era pouco, eu queria bem mais. Eu pintei muitas residências em São Paulo, consultórios, escritórios, prédios, aprendi certas manhas de pintura sobre seda em biombos, aquelas japonesas com sombrinhas, com pontes, jardins, pássaros. Eu achava aquilo lindo! Um dia, precisavam de um pintor, fui para o Morumbi com ele e lá me deram uma veneziana, uma porta balcão para pintar – hoje, esse lugar é o Museu Oscar Americano. Comecei a aplicar massa na janela e Miguel passou e falou: Almirante, está errado aí, pode desmanchar e fazer de novo. Fiquei indignado, desmanchei e comecei a fazer de novo. E de novo: “Já falei está errado”. Respondi: “O que está errado?”. Ele disse; “Eu quero que faça assim”. Caiu minha cara, porque ele aplicou a massa de

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porque nós também estamos amando. Agora, vou chamar o querido Sapopemba, um homem que entende dessa vida, muito sábio. Ele é músico, motorista, caminhoneiro, e tem muitas histórias para contar, pois conhece o Brasil. Então conta para nós dessa sua vida nômade!

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forma maravilhosa, e disse: “Reconheço que você tem noções de pintura, mas não é pintor. Se quiser aprender, eu ensino”. Falei: “Tá bom!” Passei um ano preparando paredes, casas para a tal da pintura, sem poder pintar. Então, em um apartamento da Avenida Angélica, ele falou: “Almirante, você está pronto. Esse apartamento, você vai fazer sozinho”. Ali comecei minha jornada como pintor. Mesmo assim, achava pouco tudo. Ia para o Rio de Janeiro, para a baixada santista, eu queria andar. Em 1990, através do concurso Municipal de Santo André e, paralelo a isso, conheci um sujeito caravanista. Nas horas vagas, ele levava caminhão pelo Brasil, e ele disse: “Você não quer fazer uns bicos?”. Lá fui eu! O primeiro caminhão que pilotei foi um sapão, levando para Caxias do Sul, e não parei mais. Muitas vezes eu saía 17h da prefeitura, ia para o pátio da Ford, pegava um caminhão, entregava em Bauru, corria para a rodoviária, pegava o Prata da meia noite, 1 hora da manhã para vir trabalhar às 6 horas da manhã. Mas era uma delícia! Estava na estrada dirigindo, vento batendo na cara, cheiro de flor de laranja, os ruídos da noite, ver aquela porção de coisas pela estrada. Antes da pandemia, fui buscar um caminhão em Santo Antônio da Patrulha para levar para Formosa de Goiás. Passando na divisa de Paraná com São Paulo, os pés de manga pejados, tudo amarelo, mangas maduras. Amauri falou: “Como é que é? Vamos parar e nos empanturrar de manga?”. Eu disse: “É agora!”. Encostei o caminhão e nos esbaldamos. Para o Espírito Santo, uma jaqueira carregada, adivinha? Uma cachoeira bonita, encosto o caminhão e vou tomar um banho de cachoeira para tirar a reima, as energias ruins. Minha vida é essa, nessas correrias todas. Você carrega a casa, leva a casa para onde você vai, entrega em outra casa, mas tem sempre a vontade de voltar para o seu cantinho, que é a sua casa. Todo mundo tem uma âncora em determinado lugar. Aqui, no meu rancho, costumo inventar coisas. Agora pouco, estava pintando umas paredes, fiz uns armários, improviso móveis – a chefa fica só na supervisão e eu vou à luta. Nas horas vagas, há 50 anos sou ogã, faço parte da “Casa dos Orixás Inquices e vodus”. Não sou fanático religioso, é que eu gosto dessas coisas diferenciadas, essas manifestações, as batidas, os cantos, essas coisas todas que vieram da África com os cativos que vieram para cá. Vieram muitas castas e trouxeram grande riqueza. Com segurança, posso dizer que 70% da musicalidade brasileira tem o dedo afro, e duvido que alguém, por mais cético que seja, ouça um batuque, um bumba meu boi, um samba de roda, uma chula – pode ficar sério no começo, daqui a pouco começa a tremer, começa a sambar. Indo para Natal em plena terça-feira de carnaval, estou atravessando Igarassu pela 101, vejo um maracatu desfilando, encostei o caminhão e fui lá apreciar de perto. É assim que sempre que posso faço, se estiver passando uma congada, eu vou parar, vou assistir, vou participar.


Me vi numa situação dessa, eu, Ari, Alisson, Mazé Cintra e Wellington em 2005, na França. Fomos convidados para um festival em Carcarás, chamado “Andanças”. Em uma igreja católica, um grupo de mais de 50 pessoas, entre homens e mulheres, começou a cantar. Bateu forte, e eu comecei a responder cantigas junto com eles. Eles perguntaram: “Quem é o senhor?” Respondi: “Essas cantigas são milenares e repercutiram lá na minha terra, Penedo, sou brasileiro”. Arrumei um monte de amigo alentejano. O que eles cantavam ia ao encontro de coisas que ouvi quando era criança, em Penedo. E essa é minha vida, prestar atenção nessas coisas. Muitas vezes eu me sentei na cabine do caminhão em Mato Grosso para esperar o sol nascer, ouvir os sons da madrugada, da transição da noite para o dia, ouvir o urutau piando, um canário da terra, o sabiá, os bichinhos vão acordando, você e a natureza acordando para um novo dia. Colegas meus falam: “Você é louco?”. Digo: “Sou louco sim, pela natureza, sou parte dela e precisa parar para prestar atenção nela também”. Tem gente que passa pela vida inteira e não presta atenção. Posso dizer que o culto a Orixá, o Candomblé me ensinou muito, o respeito e a vivência com a natureza, pois a natureza faz parte de um contexto que é a nossa casa, que é o planeta, que é a nossa casa de verdade, de fato, e temos que aprender a conviver com ela.

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Stela Barbieri: Sapopemba, eu fico impactada pela forma como você vive sua vida com presença! Esse encontro foi alinhavado por uma ideia de encontro e natureza como casa. Como construímos nossas casas estando em movimento?

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Os colecionáveis binåh são uma série de publicações digitais voltadas à celebração do vivo em um momento ímpar: o isolamento social. Apresentam as investigações realizadas por Stela Barbieri e a equipe binåh, bem como o diálogo com seus convidados. Elas trazem as cartografias das experiências, as marcas dos movimentos de corpos, os pensamentos, invenções, ebulições, transbordamentos e fagulhas dos encontros no binåh em estado de ateliê. Livreto 01 - espaço, tempo e materialidade Livreto 02 - lugar de desenhar Livreto 03 - lugar de construir Livreto 04 - lugar de narrar Livreto 05 - lugar de cor/ luz/ sombra Livreto 06 - lugar de transformação Livreto 07 - berilimbau - a construção dos lugares coletivos/comuns Livreto 08 - devaneios – aéreos e cambaleantes como nuvens nos transformam o tempo todo - a casa e seus entres - dobras, desvios e rachaduras Livreto 09 - devaneios – cambalhota cósmica - educação para além da sala de aula - caldo da experiência Livreto 10 - devaneios – narrativas do agora - casa nômade Conheça os outros livretos dessa coleção acessando o site do binåh ou pelo QR CODE abaixo:

www.binahespacodearte.com.br


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