Revista da Biblioteca Mário de Andrade n. 69: Obscena

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Revista da Biblioteca Mário de Andrade 69: Obscena – 2013


Revista da biblioteca Mรกrio de Andrade


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Sumário RBMA 69: Obscena 04 De dentro para fora 06 Pelo buraco da fechadura 10 18 32 38 50 59

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Toninho Mendes fala Entrevista Marcatti Os infortúnios de Sade e as prosperidades de Justine, Clara Carnicero de Castro Puta, putus, putida, Eliane Robert Moraes A Retórica das putas de Ferrante Pallavicino, Edmir Míssio Notícia da poesia colonial chamada “Gregório de Matos e Guerra”, João Adolfo Hansen “Alma de côrno” e outros espíritos malditos em Pessoa, Carlos Pittella-Leite Os telescópios e o sexo no Japão, Agnès Giard

86 Sobre Ethers, de Esther Faingold e Tunga, Luiz Armando Bagolin 92 Hilda Hilst nas lembranças e fotos de Fernando Lemos, Cecília Scharlach 102 Poemas aos homens de nosso tempo – Hilda Hilst em diálogo 110 Entre óleos, essências e flores, Maira Mesquita 122 Massao Ohno, Hilda Hilst e a busca da Poesia Total, Claudio Willer 130 O limbo de Hilda Hilst: teatro e crônica, Alcir Pécora 148 Glauco Mattoso, um perverso ao pé da letra, Ronnie Cardoso 158 A Boca do Lixo e a Boca do Lixo no cinema, Eugênio Puppo 178 Meu pai morreu, Leo Lama sobre Plínio Marcos


De dentro para fora [...] Trabalho junto à luz que canta Não por glória ou pão Nem por pompa ou tráfico de encantos Nos palcos de marfim Mas pelo mínimo salário [..] Dylan Thomas1 O “Inferno” está dentro! Nas grandes bibliotecas, nas mais antigas ou tradicionais, para não dizer conservadoras, o termo designa as coleções sobre assuntos malditos, licenciosos, marginais, além dos lugares físicos onde esses acervos devem permanecer confinados. De acordo com a definição do Dicionário Larousse de 1877 é “o depósito jamais aberto ao público; o Inferno, coletânea de todas as sem-vergonhices luxuriosas da pluma e do lápis”. A ocultação a todo custo do segundo livro da Poética de Aristóteles, a Comédia, supondo-se que tenha sido escrita, e a condenação à morte daqueles que tentam conhecê-la, é o pano de fundo do romance de Umberto Eco, O nome da rosa, que se passa dentro da torre labiríntica de uma biblioteca. Em nosso presente, sob a assim chamada “realidade”, o historiador Robert Darnton tem se dedicado, nos últimos anos, a estudar os “infernos” nas bibliotecas francesas, desvendando aos poucos os assuntos que até bem pouco tempo eram considerados tabus para a sociedade, tais como o sexo e as drogas, a literatura erótica e os livros de magia. O número 69 (meia nove) da Revista da Biblioteca Mário de Andrade quer desnudar o seu “inferno”, ensejando que também as demais bibliotecas públicas brasileiras não mantenham restrições de caráter moral, religioso ou outro qualquer, sobre temas, assuntos e objetos que integrem as suas coleções. De nossa parte, expomos neste número um dossiê, central para o nosso intento, sobre a obra e a vida de Hilda Hilst. Claudio Willer escreve sobre a relação de amizade entre o editor Massao Ohno, cujo acervo pessoal foi recentemente incorporado ao acervo da BMA, e a nossa querida senhora obscena. Alcir Pécora retira do “limbo” dois gêneros pouco tratados em sua obra literária: o teatro e a crônica, enquanto Maira Mesquita relê Da morte. Odes mínimas em artigo intitulado “Entre óleos, essências e flores”. Ilustra esse dossiê a bela mulher, Hilda, em todo o seu esplendor, no ensaio fotográfico de Fernando Lemos apresentado por Cecília Scharlach­, e que teremos integralmente exposto nas paredes da Biblioteca Mário de Andrade por ocasião do lançamento deste número da revista. Em torno de Hilda diagramam-se outras obscenidades, em parte extraídas do acervo da Mário, como o frontispício da edição de Justine, de Marquês de Sade, livro pertencente ao nosso acervo de obras raras e especiais, apresentada em “Os infortúnios de Sade e as prosperidades de Justine” por Clara Carnicero de Castro. Eliane Robert Moraes nos brinda com a etimologia da palavra Thomas, Dylan. Em meu ofício ou arte taciturna, Poemas reunidos (1934-1953). 1a ed. Tradução de Ivan Junqueira. São Paulo: Editora José Olympio, 1991. Direitos autorais de David Higham Associates. 1

puta em “Puta, putus, putida”, artigo que se conjuga com A Retórica das Putas, de Ferrante Pallavicino, finamente traduzida e aqui comentada por Edmir Míssio a partir de sua primeira edição, proscrita já no século xvii. A retórica é o campo em que grassam as explanações de João Adolfo Hansen em “Notícia da poe­sia colonial chamada ‘Gregório de Matos e Guerra’”, para a qual as noções de autoria formuladas nos séculos xix e xx são relativizadas ou tidas por insuficientes para dar conta do corpus poético-satírico, mas também teológico-político a receber aquele nome. O satírico ronda também parte pouco conhecida da obra de Fernando Pessoa que se nos apresenta em “Alma de côrno”, comentada por Carlos Pittella-Leite, assim como sempre esteve em nosso grande poeta maldito Glauco Mattoso, “Um perverso ao pé da letra”, segundo Ronnie Cardoso. A relação entre os instrumentos de ampliação da visão, como os telescópios, e a pornografia e o sexo é tema do breve, mas precioso artigo “Os telescópios e o sexo no Japão”, de mote antropológico, de Agnès Giard, autora de L’Imaginaire érotique au Japon, livro também pertencente ao acervo da Biblioteca Mário de Andrade. A cultura literária talvez tenha tido o seu ápice no século xix, havendo atualmente uma mi­ríade de outros gêneros nos quais as letras são exercitadas. Os quadrinhos são alguns desses gêneros, muitas vezes ausentes ou vistos como desnecessários em algumas bibliotecas. É este o caso da Mário, que não conta em seu acervo com os gibis, tal como eram chamados por gente de minha geração. Obviamente, pretendemos mudar isso. Nesse sentido, prestamos um tributo a eles neste número, reconhendo-os como marginais que não devem ficar à margem das ­grandes bibliotecas públicas, pois enfeixam os leitores há pelo menos cinquenta anos. Toninho Mendes nos fala de sua expe­ riência como editor de Angeli, Glauco, Laerte, dos irmãos Chico e Paulo Caruso e outros, e Marcatti compartilha a história de seu percurso como apreciador, desenhista e roteirista desse gênero, que conquista a cada dia novos leitores, particularmente os jovens. Há em nosso acervo muitos livros de artista, mas recentemente recebemos a título de doação a obra Ethers, de Tunga e Esther Faingold, que reproduzimos parcialmente na seção Fac-Símile. ­Trata-se não de um livro com poemas visuais, mas de um livro sensual, em que há a transa dos desenhos com as palavras e, simultaneamente, as nódoas e os vestígios desses contatos e contágios. De boca em boca, do Boca do Inferno ao Boca do Lixo, a Biblioteca Mário de Andrade presta homenagem a um de seus vizinhos mais célebres. Montamos um pequeno dossiê com fotografias de Ozualdo R. Candeias mapeando as ruas da Boca em sua epóca de auge, e de Jorge Bodanzky mostrando-a arruinada hoje. O vigoroso ensaio é acompanhado por um artigo de Eugenio Puppo sobre “A Boca do Lixo e a Boca do Lixo no cinema”. Concluindo esta seção, não poderíamos nos esquecer de nosso eterno dramaturgo maldito, adorado por putas e vagabundos, mas também por intelectuais, empresários, políticos, jornalistas e senhoras castas: Plínio Marcos, lembrado sem peias pelo seu filho, Leo Lama. A tu leitor, que entras, recomendo: deixa aí fora todo preconceito! Luiz Armando Bagolin Diretor


Pelo buraco da fechadura A nova gestão da Biblioteca Mário de Andrade (bma) aproveita o sugestivo número 69 (meia nove) da sua revista para assumir novos posicionamentos. De um lado para outro, de baixo para cima, invertendo os flancos e adotando diferentes posturas, a nova diretoria arregaçou as mangas e pôs-se em movimento. Desenvolveu, nesses primeiros meses, um grande plano de ações que promete colocar a bma numa posição de ativa protagonista. Nesse plano, além de projetos de aquisição de mobiliário adequado às inusitadas atividades que se pretende encorajar na Biblioteca, queremos também nos dispor incessantes, para todos, sem discriminação e a qualquer hora do dia ou da noite. bma 24 horas é o projeto que inverte a imagem da biblioteca, transformando-a numa espécie de centro cultural. Sala de cinema, seção de quadrinhos e um café-bar são algumas das propostas que nos seduziram e que prenunciam ainda mais noites quentes e vigorosas para São Paulo. Não é só a aparência que importa nessa relação da Biblioteca com o usuário; conteúdo também pode ser instigante e sedutor. Por isso, desenvolvemos um projeto de digitalização de acervo que, quando implantado, pretende flertar pela internet com um número ilimitado de pessoas, abrindo nossos recônditos para além da capital paulista. Esse esforço de descerramento não é novidade. Em 1925, a cidade de São Paulo se mostrou mais uma vez receptiva para as Letras com a inauguração desta Biblioteca pelo amante das artes Mário de Andrade. Essa paixão de nosso eterno patrono se deflagraria nos idos 1945, quando a Biblioteca seria o envoltório afetuoso da primeira coleção de artes da cidade, concebida por Sérgio Milliet. Tão formosa se mostrou a Coleção para a São Paulo dos anos 1940, que acabou por atrair a atenção de inúmeros artistas e intelectuais que, à época, cortejavam-na diariamente. Entre eles, Marcello Grassmann, artista de obra soturna, que frequentemente metia seus dedos habilidosos por entre as folhas dos inúmeros livros, desenhos e gravuras de nossa Coleção. Hoje, seguindo ao mote do algarismo libidinoso que

marca este número da Revista, invertemos a ordem e a disposição dos elementos e fomos nós a metermos nossos dedos nos papéis de Marcello. Propondo uma nova entrada da Biblioteca no centro das discussões artísticas da cidade, levamos, ao prédio da Hemeroteca, uma exposição do “jacaré gravador”, como carinhosamente lhe chamava seu amigo de copo e de vida Paulo Vanzolini. E visto que não temos vocação para a monogamia, já estamos nos relacionando com outros artistas, de todos os gêneros, que, em breve, estarão animados em nosso meio. Marcello foi o primeiro gravador a a ter sua obra exibida na Biblioteca, mas não foi o primeiro artista. Antes dele, apresentou-se o fotógrafo German Lorca, que, apesar de seus 90 anos, mostrou vigor incomparável. Com ele, contando com o apoio e a parceria da Imprensa Oficial, a Biblioteca fez um deleitoso ménage no terraço, com a participação ativa de mais de duzentas pessoas. Inaugurou-se, assim, uma mostra de fotografias de Lorca que acompanhou o lançamento do livro do incansável fotógrafo da cidade. O rendez-vous, que abriu para o público paulistano um antigo espaço reservado a reuniões internas, agora denominado Terraço Mário de Andrade, mostrou como a relação já antiga entre bma e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo permanece frutífera. Sem muita cerimônia, não esperando nem mesmo que a coisa esfriasse, deixamos que Lemos, companheiro de mesma geração de Lorca, o sucedesse em nossos espaços, numa exposição fotográfica que não deixa nada a desejar em relação à precedente. Do outro lado das lentes do fotógrafo português, ninguém menos que Hilda Hilst numa sequência delicada e bela. De cima para baixo, do céu ao inferno, do belo ao grotesco, descemos ao limbo acompanhados de Ozualdo R. Candeias e trouxemos a Boca do Lixo para dentro da bma. Nessa mostra, elevam-se aspectos da boemia paulista dos anos de 1960 e 1970 na zona que, poeticamente decadente, se tornaria o ponto libidinoso da cidade. E já que falamos em boemia e poesia, parece-nos oportuno trazer Vinicius de Moraes à mesa. Em comemoração aos 100 anos de nascimento de nosso saudoso “poetinha”, fizemos, em parceria com a Companhia das Letras e o Paribar, uma noite


gastronômica regada ao som do trio Fanculô Jazz, acompanhada de muito “cachorro engarrafado” – o uísque, na linguagem do poeta. Esse nosso sempre fiel amigo canino, mas agora sem metáforas, veio ter na Biblioteca em outra oportunidade. Xico, o legendário cachorrinho mexicano, apresentou-se no auditório da BMA ao narrar fabulosas lendas latino-americanas. O espetáculo, produzido por Descobrindo a América Latina e idealizado pela artista mexicana Cristina Pineda, contou com a parceria de importantes instituições, entre as quais a Claro e o Instituto Embratel, além do Consulado do México no Brasil. Lendas da América Latina Narradas por Xico trouxe de volta a alegria das crianças à Biblioteca. Os alunos da escola Brasil-México vieram em peso prestigiar a apresentação e foram os responsáveis por principiar a discussão em torno da necessidade de se abrir na bma um espaço para a criança. Assim, idealizamos uma sala infantil, projetada pelo escritório de design Ovo, que foi apresentada no primeiro dia do i Seminário sobre o Direito à Infância e Políticas Culturais para as Crianças. O Seminário, concebido por professoras da Unicamp e puc-Minas, especialistas em pedagogia, contou com a presença de representantes da Secretaria de Direitos Humanos, da Secretaria Municipal de Cultura e do Secretário Municipal de Educação César Callegari. Ana Estela Haddad também manifestou seu apoio. Miguel Arroyo, a maior autoridade em educação infantil no país, abrilhantou o evento e lançou as pedras fundamentais para que a Biblioteca venha a se tornar ponto de referência em estudos sobre direitos da primeira infância. Acompanhando o i Seminário sobre o Direito à Infância e Políticas Culturais para as Crianças, voltamos nosso olhar aos pequenos, mais precisamente ao menino Issa, um garotinho sírio de 10 anos de idade que trabalha 10 horas por dia, seis dias por semana, consertando equipamentos de artilharia e produzindo bombas e morteiros para o Exército Livre da Síria, e realizamos a mostra fotográfica Infância em Conflito. As imagens, contundentes, são de autoria de Hamid Khatib, fotógrafo independente que tem feito as mais eloquentes fotografias sobre a guerra na Síria. A mostra, em parceria com a Reuters, rendeu inúmeros elogios dos visitantes por explicitar a realidade de uma infância que, apesar de distante, nos é familiar. E como os direitos da população tornaram à pauta das discussões no país a partir das manifestações que se precipitaram às ruas em junho, deliberamos realizar o ciclo de palestras Democracia na História. Com o objetivo de promover a discussão em torno de diversos modelos políticos democráticos ou autoritários, e sua relação com o Estado, o ciclo buscou promover a reflexão, que apontou

as controvérsias sobre o tema, contribuindo para o fortalecimento de ideais democráticos. Grandes nomes do pensamento brasileiro como os de Marilena Chauí e André Singer palestraram para uma ávida audiência que exigiu a continuação do ciclo. Seu Módulo iii virá em 2014. 'Nessa vertente, com o olhar em direção ao estrangeiro, ampliando os horizontes, assumindo um papel de destaque na produção e na difusão da pesquisa no país e estimulando o uso adequado de línguas extranacionais, a Biblioteca incitou os sentidos de seus usuários apresentando-os aos alemães, russos e franceses. A Recepção da Poesia e da Prosa em Língua Alemã no Brasil, Dia da Língua e da Cultura Russa e Pesquisadores Franceses em São Paulo foram eventos que marcaram o início de uma relação concupiscente e antropofágica da bma com povos e culturas exógenas. Dessa importância do outro para o desenvolvimento do indivíduo foi concebido Romance de Formação: Caminhos e Descaminhos do Herói; ciclo que se propôs a apresentar o fascínio dos pressupostos que orientaram romancistas no que toca o indivíduo e sua formação, a partir dos sucessos e fracassos de notórias personagens. Célebres indivíduos que, em certo sentido, tornaram-se formadores do caráter do brasileiro foram protagonistas da série de palestras e apresentações teatrais Retrovisor. Nela, Paulo Markun entrevista personagens históricas em momento crítico de suas vidas, trazendo ao palco Anita Garibaldi, Visconde de Mauá, Plínio Salgado e Mário de Andrade. “Sou trezentos, sou trezentos e sessenta”, disse Mário, que, múltiplo e indefinido, virava, girava e invertia, fazendo o diabo acontecer.

Assim hoje somos nós.

Fabrício Reiner de Andrade Supervisor de Planejamento


Toninho Mendes

fala Antonio Mendes é artista gráfico, editor e poeta. Nasceu em 30 de abril de 1954 em Itapeva, mas já em 1960 mudava-se para São Paulo. Foi morar no bairro da Casa Verde, a cinco quarteirões do rio Tietê: “isso simplesmente marcou o homem que sou”, disse certa vez. Marcou tanto, que escreveu uma ode ao rio: publicada em 1980, Confissão para o Tietê teve uma segunda edição para banca em 1992 e em breve se tornará encarte do livro Humor paulistano, a história da Circo Editorial (19841995), a ser publicado pela editora do Sesi. E a importância do bairro vai além: se não fosse pela Casa Verde, Toninho não teria conhecido Angeli, e a história dos quadrinhos no Brasil poderia ter sido outra: a Circo Editorial – que durou de 1984 a 1995 – poderia nem ter existido. Essa icônica editora publicou mais de cem revistas e quarenta livros de quadrinhos; foram publicações que fizeram época, como Chiclete com Banana (de Angeli), Geraldão (de Glauco) e Piratas do Tietê (de Laerte). Só essa história já bastaria para colocar Toninho definitivamente no panteão dos grandes nomes da hq brasileira. Mas ele não para. Entre 2000 e 2010 comandou a Jacarandá Edição e Design, que produziu mais de

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trinta livros de humor e quadrinhos para as editoras Devir, Sampa, l&pm e Cia. das Letrinhas. Em 2010, criou a Peixe Grande, em parceria com Franco de Rosa (editor da lendária Ópera Gráfica) e com a Comix, para a distribuição, com o lema “um mergulho na história do humor, dos quadrinhos, da imprensa, da censura e da pornografia no Brasil”. Os livros que já saíram pela editora são prova disso: Quadrinhos sacanas – os herdeiros de Carlos Zéfiro, volumes 1 e 2, rememorando a história dos antigos catecismos (quadrinhos eróticos quase clandestinos com os quais os meninos costumavam saciar suas curiosidades sexuais); Quadrinhos sujos ii – O “catecismo” americano (1930-1950), coletânea organizada por Gonçalo Junior das revistas pornográficas americanas Tijuana Bibles (a número i saiu pela Ópera Gráfica); O Vira Lata, de Paulo Garfunkel e Libero Malavoglia, coletânea definitiva das histórias do personagem que estreou em 1991, na i Bienal de Quadrinhos, no Rio de Janeiro; Maria Erótica e o clamor do sexo e A morte do Grilo, os dois de autoria do jornalista Gonçalo Junior, sobre a imprensa de conteúdo erótico e considerados subversivos durante o regime militar.

Neste ano, a Peixe Grande deve publicar apenas um título, mas como diz Toninho: “publicamos pouco, mas definitivamente”. Trata-se de E depois, a maluca sou eu, primeiro livro de Mariza Dias Costa, ilustradora de Paulo Francis na década de 1980 e de Contardo Calligaris desde 1990 na Folha de S. Paulo. “A história dela é incrível: foi internada várias vezes, por desequilíbrio mental, quase morreu, está pesando quarenta quilos, mas continua firme, batalhando e trabalhando. É um livro grande, com mais de duzentas páginas e todo colorido.” Nele, há uma entrevista/perfil com Mariza – um rico depoimento narrando sua longa trajetória, as internações pelas quais passou, sobre sua relação com a Folha, com Paulo Francis, as drogas, a miséria e a loucura.

Publicações da Editora Peixe Grande

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O porque da Peixe Grande “Eu acho que o material de quadrinho, de imprensa, de humor sempre foi visto, pelo que eu chamo de ‘academicismo oficial brasileiro’– representados por usp, Unesp, Unicamp –, com preconceito. As pessoas cismam com um cara e deixam muita gente de fora; por exemplo, existem trezentas teses sobre a poesia do Juó Bananère. Já sobre o Belmonte, que durante trinta anos publicou charges na Folha, fala-se muito pouco. Além disso, tem-se a impressão de que se trata de uma produção de segunda categoria. Na vida cotidiana, muitas vezes, o material de quadrinhos e de humor teve uma importância tão grande quanto a música popular ou a televisão. Na realidade, quem é que lê livro? Quem vai ao teatro ou ao cinema? Vou dar um exemplo banal: é bem mais fácil a pessoa se lembrar das coisas do Mauricio de Sousa do que de outro tipo de artista mais conceituado. Por isso, a proposta da Peixe Grande é fazer o que nunca foi feito com esse material, tratá-lo com muita seriedade.”

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Quadrinhos sacanas “Quando pensei nessa coletânea, tentei dar uma alternativa ao sempre lembrado Carlos Zéfiro: nas duas caixas, não há um desenho dele. Isso exigiu um trabalho de garimpo, de pesquisador; fui buscar quem tinha, procurei colecionadores. Mesmo sem ter o peso do nome de Zéfiro, tratei a publicação com zelo, como obra de luxo: os desenhos receberam tratamento de imagem, foram muito bem impressos em papel bom e encadernação cuidadosa. Eu digo sem medo de errar que, com o cuidado, o tratamento, o papel e a impressão que a Peixe Grande deu, esse conteúdo nunca foi publicado.”

“O segundo livro da Peixe Grande é de um dos maiores historiadores de quadrinhos, Gonçalo Junior. Ele já havia publicado pela Companhia das Letras A Guerra dos Gibis, que vai de 1933 a 1964. A continuação dessa história, que envolveria o período da ditadura militar, ele fazia questão que eu editasse. Veio, então, o Maria Erótica. Nele, a concepção toda da editora se apresenta: você tem a pornografia, a imprensa, o jornalismo e a censura. O livro explica o que é a Peixe Grande. Por aí, fala-se muito das peças censuradas, das músicas censuradas e dos filmes censurados, no entanto, uma das maiores vítimas da censura foi a história em quadrinhos. Com a repressão durante o regime militar, muitas das editoras de hq fecharam. Dos gibis desenhados e publicados por gente como o Claudio Seto – O samurai, Maria Erótica etc. – vendiam-se duzentos mil, portanto tinham mais penetração, mais impacto.”

REPRODUÇÃO QUADRINHOS SUJOS

A relacao com Goncalo Junior

“Nas décadas de 1950 e 1960, não se falava abertamente sobre sexo, não havia aulas ou uma plataforma oficial que lidasse com o tema da sexualidade. Então, os catecismos têm uma importância histórica e social muito grande. Foi com eles que muitas pessoas, hoje na faixa dos 50 aos 70 anos, tiveram seu primeiro contato com o sexo. Eu resolvi publicá-los por causa desses aspectos, e não necessariamente porque são grandes obras de arte, de desenho. O nome ‘catecismo’ já tem uma história engraçada: as revistinhas possuíam o mesmo formato dos catecismos da Igreja e, assim como os manuais religiosos, também serviam para ensinar. Além disso, as histórias são absurdamente engraçadas, elas extrapolam a questão do tesão, de se você vai querer trepar por causa daquilo. São histórias muito loucas, com diálogos surrealistas do tipo ‘quero comer seu cu na Lua’. É um verdadeiro absurdo!”

REPRODUÇÃO QUADRINHOS SACANAS

Os catecismos

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Contar a historia da Circo Editorial, um sonho realizado “Quando fundei a Peixe Grande em 2010, o fiz porque achei que ninguém ia contar a história da Circo Editorial. Pensei: ‘vou contar essa história porque estamos todos vivos, ainda temos uma boa amizade e ninguém mais vai falar sobre o quanto isso foi importante’. Então, a Peixe Grande foi um cartão de visita para viabilizar o que eu chamo de ‘O livro da Circo’. O Jorge, que é nosso cara comercial, comentou comigo: ‘Toninho, se ninguém bancar até começo de 2013, a gente banca, pois a história merece’. Eu ia começar a fazer por conta própria, mas o portfólio da Peixe Grande ajudou. O Rodrigo [de Faria e Silva, editor chefe], da editora do Sesi, que conheci no lançamento d’O Vira Lata, se interessou pelo projeto. Isso também faz parte da magia da Circo, conseguir que a editora da maior entidade empresarial do país se interesse pela publicação de sua história.”

A parceria com o Sesi “Fazer, na minha editora, um livro sobre outra editora minha, sobre mim mesmo, na minha opinião, fica uma coisa meio cabotina. Agora, sair uma publicação dessa pelo Sesi é uma espécie de chancela. Além disso, dá para aproveitar melhor o material que tenho: o livro terá cerca de quatrocentas páginas; mais de trezentas são quadrinhos. Será um livro de peso. O Capítulo 1 é escrito pelo Ivan Finotti, chama ‘Um certo Toninho Mendes’ e conta as origens da Circo; o Capítulo 2 é sobre a revista Chiclete com banana, escrito pelo Waldomiro [Vergueiro], da usp. O Capítulo 3 é do Nobu Chinen, também da usp. O Capítulo 4 é escrito por Paulo Ramos, do Blog dos Quadrinhos; o Capítulo 5 é de Marcelo Alencar.”

A morte do Grilo “Esse outro livro do Gonçalo foi uma loucura, vai vender trezentos exemplares. Nenhum editor que está preocupado só em ganhar dinheiro tem interesse em publicar um livro sobre o Grilo [Revista O Grilo, de quadrinhos underground, que circulou entre 1971 e 1973, quando foi proibida pela ditadura militar]. A obra é um documento vivo, de algo que realmente aconteceu, conta a história da última geração romântica do jornalismo brasileiro antes de as redações começarem a ser regidas pelo comercial, pelo prazo. É o tipo de coisa que não sairia por uma grande editora.”

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REPRODUÇÃO MARIA ERÓTICA E O CLAMOR DO SEXO E O VIRA-LATA

“Esse também é um livro exemplar: foi escrito na prisão, virou cult, todo mundo falava, mas poucos tinham. Tem profundidade, o roteiro é muito poderoso, as histórias são muito bem escritas e muito calcadas na realidade. O personagem se locomove num mundo verossímil, tendo em vista o presídio brasileiro. O Vira Lata é provavelmente a experiência mais bem-sucedida da aplicação do quadrinho de alta qualidade dentro do processo educacional. Foi produzido na década de 1990 para ser distribuído dentro da casa de detenção e ensinar os prisioneiros a tomar cuidado com a Aids, com pico etc. A experiência foi de muito sucesso, porque toda a primeira tiragem, destinada à banca, foi vendida. Depois, o Drauzio Varella, que conhecia o Paulo [Garfunkel, autor], se interessou e bancou o projeto dentro da penitenciária. A Unip pagou a impressão e o Paulo e o Libero [Malavoglia, também autor] ganharam um pouco. Esse é um exemplo de como trabalha a Peixe Grande, de modo um pouco mais fechado. Não editamos um monte de coisa, mas o que editamos é para encerrar o assunto.”

REPRODUÇÃOA MORTE DO GRILO E O VIRA-LATA

O Vira Lata

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Humor paulistano “O Sesi está editando o livro da Circo não porque ele se chama ‘O Livro da Circo’, mas porque se chama Humor paulistano – A experiência da Circo Editorial. O Capítulo 6, escrito por mim e pelo professor Roberto Elísio, da usp, tem vinte páginas apresentando uma tese: com a Circo Editorial nasce o humor paulistano como marca na imprensa brasileira. Ou seja, o livro defende uma ideia, e que não é só minha. Conversei muito com o Angeli e com o Laerte há bastante tempo. O Roberto Elísio fez, em 2004, uma entrevista com todos nós, e escreveu um livro que esbarrava nesse tópico, começava a tocar nesse assunto. Quando vi que o projeto ia sair mesmo pelo Sesi, convidei-o para escrever comigo sobre isso. O humor paulistano de que falamos é de bar, de mulher liberada, de drogas, mais sarcástico. Não é um humor de praia, banquinho e violão. É uma tese que sei que vai gerar polêmica. Com certeza, vai ter gente que não vai concordar. Inclusive, já saiu uma matéria na revista do Sesi sobre o livro e já teve repercussão: ‘Trinta anos de humor paulistano’ [disponível em http://www. sesispeditora.com.br/noticia/revista-ponto/trinta-anos-de-humor-paulistano].”

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REPRODUÇÃO QUADRINHOS SACANAS

REPRODUÇÃO O VIRA-LATA

Projetos futuros “Mas há um objetivo final da Peixe Grande. Estou pensando como viabilizar isso: fazer um grande livro sobre a história do quadrinho no Brasil, com os desenhistas de A a Z. Um negócio que vai ter umas 1.200 páginas. Esse levantamento não existe no Brasil e é uma ambição da Peixe Grande. O projeto até que está adiantado, eu já tenho levantamentos, sei como é etc. Só é preciso oficializar. É um projeto muito grande para a Peixe Grande fazer sozinha. Agora, eu acredito que a última ponta da Peixe Grande é outra coisa, ainda não sei muito bem o que pode vir a ser. Ela vai deixar de ser só uma editora, vai virar um espaço, outra coisa. Não vai ser mais papel, vai ser um espaço, uma livraria, uma escola. Mas quando digo uma escola, não é uma escola nos moldes que se imagina. Eu ainda não sei explicar direito. Um lugar com cursos vários, em diferentes momentos, com diferentes temáticas: curso de roteiro; como se adapta histórias, como se pinta. Tem um universo. Seria algo em torno do que eu chamo de Planeta hq, quadrinho, charge, mangá, Batman, tudo. A História em Quadrinhos como um todo: os bonecos, os filmes, os jogos. Acho que falta um lugar como esse. Mas é um projeto bem para longo prazo, estou me mexendo devagar. Afinal, minhas metas mais inéditas são acabar o livro do humor e começar o projeto da enciclopédia dos quadrinhos. A enciclopédia exige um esforço menor, mas toma tempo e o retorno é muito lento. Só que tem muito mais importância e, talvez, as duas ambições se casem numa certa hora.”

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Entrevista Francisco de Assis Marcatti nasceu em 16 de junho de 1962, em São Paulo, na zona leste, onde cresceu, estudou, casou-se (aos 21 anos) e vive até hoje. Fez escola de artes gráficas no Senai e trabalhou durante muito tempo como produtor gráfico, profissão que por alguns anos ajudou a pagar as despesas de casa. Ao contrário do que se possa imaginar do autor de Frauzio, Marcatti é um sujeito caseiro e bem tranquilo, mas gosta muito de conversar: nosso primeiro encontro durou uma tarde toda. Sua esposa Tata (Fátima Pires) foi sua namorada de adolescência e, como disse uma vez em entrevista, “uma sócia de vida”. No início de Frauzio, ela ajudava a colorir as capas e grampear as revistas. Marcatti começou a criar quadrinhos aos 14 anos, mas essa não é sua fase preferida. Na época, segundo ele, os quadrinhos não tinham humor, eram depressivos. A escatologia começou em 1986, quando publicou Liberô geral. Aos 24 anos, ele já vivia exclusivamente de seus gibis, que imprimia numa ofsete de mesa Rex Rotary modelo 1501 (hoje, usa uma Multilith 1250). Chegou a ter a própria editora, a Pro-C, e a publicar obras de outros autores, como a revista Over Doze, de Lourenço Mutarelli. Em 2005, publicou sua primeira graphic novel (quadrinhos com histórias mais longas) pela Conrad. A mesma editora publicou, em 2007, A relíquia, adaptação da obra de Eça de Queiroz para a linguagem hq. Seu mais recente projeto, Coprólitos, é a reunião de toda a sua produção entre 1986 e 1992. Segundo apresentação do projeto no site Catarse, comunidade para financiamento via crowdfunding, a edição vai registrar como se moldou a verve do humor escatológico e contundente de Marcatti, que foi influência para toda uma geração de novos quadrinistas. No momento da entrevista, Marcatti já tinha rodado 710 exemplares da obra, dos quais quinhentos serão comercializados e 210 irão para os apoiadores. Ele mesmo vai grampear e encadernar os livros, não todos de uma vez, mas conforme a necessidade. A experiência como produtor gráfico e impressor de seus próprios gibis fez Marcatti criar uma série de aparatos que facilita o trabalho artesanal de montar suas revistas. Isso não deixa, também, de ser uma diversão.

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Marcatti

Caderno de registro e notas de todas as HQ.

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Página da hq A relíquia (Conrad, 2007)

No Prefácio de Coprólitos, escrito pelo amigo e também quadrinista Gualberto Costa, aparece o nome de Robert Crumb como uma de suas influências. É isso mesmo? Eu me lembro de, em nossa primeira conversa, você dizer que não era muito fã do trabalho dele. Eu reconheço o valor histórico de Robert Crumb na trajetória dos quadrinhos underground. Não quero que pareça um discurso de discípulo ingrato ou filho bastardo. Eu não gosto dele como leitor. Isso tem a ver com algo que remete, inclusive, aos meus trabalhos iniciais – o que é a prova cabal de que, sim, ele tinha muita influên­ cia sobre mim. Suas histórias são muito arrogantes, são histórias muito “dedo no nariz”, “eu sei a verdade e estou lhe mostrando”. É um trabalho quase messiânico, ele devia montar uma igreja, e não fazer história em quadrinhos.

Você acha que a escatologia de Crumb serve mais para apontar o dedo para a sociedade do que para rir dela? Sim. É aquela comparação que fiz entre Bukowski e Henry Miller. O Bukowski tem os mesmos ambientes, as mesmas situações, o mesmo universo do Henry Miller, só que ele põe adjetivo. Ele diz que aquilo é sujo, nojento, asqueroso. Toda vez que você dá uma opinião, você deveria se balizar. Ao mesmo tempo, isso pode ser uma presunção. Eu não gosto muito dessa presunção. Admito que existam grandes escritores que têm esse direito, e faço questão de lê-los. Mas dá para perceber que esses grandes escritores – como Eça de Queiroz – não se arvoram nesse direito. A crítica é sutil, eles não se colocam na posição de arautos. É essa a minha grande crítica ao Robert Crumb. Uma coisa é você dizer que não gosta de algo ou discorda de uma situação. Outra é dizer que algo está errado e que o certo é você quem sabe. Isso é complicado.

Então, de quadrinistas, quem são suas influências? Tenho muita conexão com a coisa do humor, e do humor leve. Nós, como escritores, como produtores de cultura, temos uma relativa responsabilidade com aquilo que escrevemos ou criamos. Mas essa responsabilidade não pode ser presunçosa como a de Crumb. O meu dilema é justa20 rbma 69

mente gostar de coisas que sejam, ao mesmo tempo, leves e agudas. Gosto muito do Hunt Emerson [quadrinista do underground britânico conhecido pelos personagens Alan Rabbit, Calculus Cat, Max Zillion e Alto Ego], seu humor é pura sacanagem, pura diversão. Ele é quase pueril, se não fosse a sordidez das cenas; não tem uma coisa conceitual, nada disso. Eu não gosto desse papo conceitual, principalmente em quadrinhos. Gosto muito do humor contundente, doloroso, desconfortável, incômodo. Esse, para mim, é o papel da hq, mais do que propor coisas. Por exemplo, eu sou fã de carteirinha do South Park.

… o politicamente incorreto na figura de crianças desenhadas com traços infantis... Isso, totalmente incorreto. E a alma pura de uma criança fazendo as coisas mais horrendas. Esse contraponto é interessante. O programa toca em assuntos que são realmente profundos, sérios, mas sem

O MEU DILEMA É JUSTAMENTE GOSTAR DE COISAS QUE SEJAM, AO MESMO TEMPO, LEVES E AGUDAS a pretensão de propor alguma solução. Esse espírito leviano é o que eu gosto nos quadrinhos. Gilbert Shelton [desenhista e roteirista americano. Fat Freddy’s Cat é um de seus personagens mais conhecidos] também tem essa leviandade. Para mim, Shelton é o contraponto do Robert Crumb. Do meu ponto de vista como leitor e como autor, o Shelton é muito mais underground do que o Crumb. Ele revolucionou sem querer revolucionar, fez o que sabia e gostava de fazer. Era um doido varrido, e isso é o legal. Algumas histórias, inclusive, têm final feliz. Eu costumo falar, das minhas histórias mais recentes, que se não fossem nojentas podiam estar na novela das seis [risos]; se não fosse por umas coisas asquerosas, podia muito bem ser um folhetim de banca de jornal. Uma vez me disseram algo, achando que me ofendiam, quando na verdade eu gostei muito: que meu 69 rbma 21


Página da HQ Frauzio: Perpétua Serenata (Devir, 2013)

trabalho era como a experiência de uma criança que enfia o dedo na própria bosta e coloca na boca, só para experimentar o gosto. Isso não teria profundidade nenhuma. Eu achei do caralho! É exatamente o que eu faço [risos].

Inclusive, para psicanálise, essa é uma fase importantíssima [risos]. Eu ia mesmo lhe perguntar: qual é a função da escatologia em seu trabalho? O desconforto. Como pessoa, eu sou um pouco formal, pragmático, exigente. Na minha relação com meu trabalho, com qualquer coisa, eu procuro sempre ter tudo bem definido, aquela coisa bem chata, bem burocrática. Meu contraponto é exatamente este, criar esse desconforto, até para mim mesmo. A vida é muito chata e, muitas vezes, é chata porque nós a tornamos assim. Mas, ao mesmo tempo, é difícil que seja diferente. O convívio social exige e pressupõe regras e parâmetros, na maior parte das vezes, desagradáveis. Eu, pelo menos, não consigo vislumbrar uma forma de viver mais anárquica do que esta em que vivemos, socialmente anárquica. Então, o desconforto é a hora em que você acha um ponto de equilíbrio. Ela nos lembra que a gente peida, a gente caga, todo mundo peida e caga e não quer que ninguém saiba. Lembra que somos também bichos, coisa que a gente faz questão de esquecer.

Lembra-lhe também que você é humano? Sim, claro. Mas eu dependo muito de quem me lê. Não gosto muito dessa coisa de ser chamado de artista. Eu sei que o que eu faço tem algumas características artísticas, mas eu não me considero um artista. O artista é muito livre, ele é totalmente descompromissado na relação de quem o vê. Eu não posso ser totalmente desvinculado de quem me lê. Se alguém lê uma história minha e não sente absolutamente nada, para mim isso é um fracasso. Eu gosto de planejar, eu sou muito

A VIDA É MUITO CHATA E, MUITAS VEZES, É CHATA PORQUE NÓS A TORNAMOS ASSIM 22 rbma 69

chato, gosto de planejar o momento em que as pessoas vão rir nas minhas histórias. O mais legal é que, geralmente, elas riem em outros momentos. Planejo métodos, calculo a página, e no final das contas as pessoas riem de coisas que eu não planejei. De qualquer forma, é uma relação que eu tenho: faço para mim, mas sou um indivíduo dentro de um contexto social. Nas minhas histórias, portanto, evito personagens que sejam personalidades pontuais, diretas. Para mim, é sempre como um coletivo. Eu não faço crítica, mas se existe alguma crítica construída nas minhas histórias, ela é social, e não individual. Eu li um depoimento de um humorista que trabalhava na revista Mad dizendo que o humor contemporâneo é de muito mau gosto e eu concordo plenamente, porque ele envolve pessoas.

Então você está de acordo com a crítica a Rafinha Bastos no caso da piada feita com a cantora Vanessa Camargo? Existe alguma diferença entre esse caso e as piadas que fazem do deputado Feliciano e de sua bandeira pela “cura gay”, por exemplo? O Feliciano é uma figura pública e, por ser uma figura pública, seus gestos são públicos. Uma vez público, eu posso sacanear até uma atitude do presidente da república. Se disser alguma coisa muito pessoal sobre a vida dele, aí é uma falta de respeito com o indivíduo, por mais porco que ele possa ser. A Wanessa Camargo é uma celebridade, como pessoa pública está sujeita a piadas públicas, mas não com o bebê em sua barriga. Nesse sentido, ela é uma mulher como qualquer outra, com uma criança na barriga. Isso, para mim, é intocável, porque aquilo é pessoal dela, não envolve nada da área artística ou da área que a tornou pública. Então, com relação ao deputado e sua bandeira pública de cura gay, é para enfiar o pé na jaca mesmo, porque o cara está enfiando o pé na jaca. Ele faz isso a sério, a gente faz na sacanagem, beleza. Agora, se eu disser que a filha dele é sei lá... se eu fizer uma piada com a mãe dele, não tem nada a ver. A mãe dele é igual a minha mãe, minha mãe não tem culpa por eu ser assim. Essa distância entre o que é público e o que é privado precisa ser feita sempre, principalmente quando se faz humor. Além disso, que diferença pode fazer se o irmão de um 69 rbma 23


Pรกginas centrais da revista Ventosa (Pro-C, 1987)

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deputado é isso ou aquilo? Pode fazer diferença para ele, não para o público. Agora, as atitudes dele como deputado, sim, devem ser aplaudidas ou achincalhadas. Voltando um pouco, você falou que não faz humor com indivíduos. O que é o Frauzio, então? Eu nunca fiz personagem em quadrinhos. Gosto muito dos personagens dos outros e acho isso um desafio monumental. Eu faço uma coisa que a gente chama de humor de contexto e não de tipo. O personagem nada mais é que humor de tipo. Você fica criando situações para aquele personagem, então, todas as gags, as piadas para aquele personagem são “iguais”. Não podres, iguais. Até porquê, se você não fizer igual, o personagem perde suas características. Isso eu nunca gostei de fazer. Mas quando recebi uma proposta de fazer uma revista para pôr em bancas, fui eu quem falou para o editor que deveria ser um personagem, afinal de contas, esse é o apelo de banca de jornal. Desenvolvi o Frauzio como um personagem que é qualquer coisa – isso quando eu projetei. Pensei: “vou

TENHO UMA COISA MEIO MALUCA DE NÃO ME SENTIR VIVO E AO MESMO TEMPO ME SENTIR FLUTUANTE

Capa do livro Frauzio: Carne gão (Editora do autor, 2013)

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fazer uma história de um cara que é um pedreiro, é o Frauzio que arrumou emprego de pedreiro; vou fazer uma história com um fascista, é o Frauzio”. Parecia fácil: criar qualquer história e, no lugar do personagem principal, colocar o Frauzio. Achei que havia tido uma sacada de mestre, genial! Eu podia fazer qualquer coisa, só que o personagem teria sempre a mesma cara, aquela cara de idiota. O que me chama a atenção é que ele está se fazendo sozinho. Ou seja, há histórias em que eu quero colocá-lo e simplesmente não dá certo. Eu não sei por quê. Não tenho experiência em desenvolver personagem. O Angeli é um criador de tipos extraordinário. Eu não sei como ele consegue fazer aquilo, é incrível. O Fernando Gonsales

faz aqueles animais que são parecidos fisicamente mas completamente diferentes entre si. É fascinante. Esse é um domínio que eu não tenho, e achei que o Frauzio era a minha grande sacada: fazer o que eu sempre fiz – com um personagem. Mas não funciona. Eu continuo não sabendo lidar com personagem. Mas não está sendo um problema. Estou gostando do fato de ele andar sozinho.

Como se ele tivesse vida própria. Ele tem mesmo. Eu ouvia isso de alguns autores, de que o personagem cria vida própria. Eu achava que isso era uma liberdade poética. “O caralho que o personagem cria vida própria, sou eu que escrevo”, pensava. Mas agora eu sinto isso, parece que ele sopra na minha orelha “olha, eu não sou assim, não”. Esse imperativo dos personagens é um dos motivos que me levou a escrever histórias longas. Eu passo a viver com aquelas figuras. Uma história curta, você bola em minutos, horas no máximo. Uma história mais longa, você rumina, reescreve, remodela. Nesse processo, aquelas personagens passam a ter vida própria. Você começa a conviver com pessoas que não existem e elas interagem com você. De novo, pode parecer liberdade poética, mas não é. A gente fica com o personagem. Eu estou desenvolvendo a história nova do Frauzio, e tem uma velhinha na feira que eu vejo todo dia. Ela é fundamental na história e está comigo todos os dias. Tem uma gostosinha lá que também aparece para mim, menos, pois eu ainda não cheguei no momento da história em que ela é peça-chave, mas ela está por aqui.

Na nossa primeira conversa, você falou que, quando está criando, vive num mundo paralelo e demora para voltar ao mundo real. Disse, inclusive, ter certa dificuldade em distinguir o que é o mundo onírico e o que é o mundo real. Por isso eu marco muito o tempo das coisas que eu faço. Para poder ter um pouco de chão. Tenho uma coisa meio maluca de não me sentir vivo e ao mesmo tempo me sentir flutuante. Por isso eu preciso saber as horas, o dia da semana. Eu perco os referenciais concretos, preciso ter marcações. Talvez seja esse o motivo de eu ser tão sistemático. 69 rbma 27


O que remete à questão da disciplina. Para você, processo de criação é disciplina. Se você não tiver inspiração vai ao dicionário... Não, ao contrário, eu só busco no dicionário. Aliás, das ideias “inspiradas” que tive, nenhuma virou história. Eu acho mais difícil construir pela inspiração. Para mim, o trabalho é metódico. A história exige método, é criada mecanicamente. É como contar uma piada, a piada só é boa se estiver bem montada, isso é mecânica. Isso que eu uso para criar. Não gosto da inspiração.

E essa sua disciplina inclui outros processos além da busca ao dicionário? Você tem um dia da semana ou do mês para sentar e pensar na história? É quando acaba uma história. Logo em seguida começo o processo de outra. Aí sim é dia de ir ao dicionário, escolher uma palavra e, a partir dela, fazer um monte de perguntas, construir gráficos. É um método fácil que encontrei de não ficar refém da inspiração ou do bloqueio criativo. Eu não tenho bloqueio criativo, não posso ter, me recuso a ter.

E os caderninhos que você me mostrou da outra vez, fazem parte dessa disciplina? Os caderninhos começaram porque, depois de ter feito alguns gibis, percebi uma diferença gritante entre o original e o impresso. Esse choque entre um e outro me alertou para o que eu deveria fazer nas próximas histórias. O mesmo vale para as coisas que deram certo. Se eu quiser replicar um efeito, ou evitar um problema, vou precisar consultar cada original. Isso dá trabalho. Então, comecei a registrar todas as variáveis usadas em cada desenhos qual a caneta, qual o tipo de papel, o tamanho do original, quando foi publicado pela primeira vez, onde... Fazendo o Coprólitos, esses caderninhos foram muito úteis. Eu sabia cada detalhe da produção. Optei por não editar as histórias, no sentido de uniformizar sua apresentação. Cada uma delas tem a sua trajetória, a grossura do traço, o tamanho do original, são coisas que contam uma história. Preferi deixar assim e, ao final do livro, incluí um apêndice com algumas das informações contidas nos caderninhos. E na hora de desenhar, você faz pré-roteiros, storyboards? 28 rbma 69

Não faço esboços muito detalhados de cada imagem para a história inteira. Eu defino alguns momentos-chave e vou desenhando cada quadrinho por vez, até o final. Por exemplo, se você olhar o Frauzio que estou fazendo agora, até a página onze está tudo absolutamente finalizado, inclusive já está digitalizado. Da página doze em diante, não tem mais nada. Prever absolutamente tudo antes, no roteiro, para mim é castrativo. Mas o estrutural está todo pronto.

Queria voltar de novo ao tema de suas influências. Você disse que o Crumb lhe influenciou mais pela força histórica do que pela temática. Você falou também que, quanto ao humor, Gilbert Shelton é central. Mas e quanto aos desenhistas, quem são seus paradigmas? Basil Wolverton [cartunista e desenhista americano que trabalhou para a Marvel em seus primórdios, e depois para a revista i], com certeza. Descobri o traço dele por volta de 1981, ou 82, depois de ler uma entrevista do Gilbert Shelton tecendo elogios a

É TÃO BOM FAZER, POR QUE FICAR OLHANDO? NÃO TENHO NENHUM FETICHE ele. Para ser sincero, o traço do Wolverton eu conhecia, sem saber, desde moleque, graças à revista Plop!. As capas da Plop! eram desenhadas por ele (aliás, eu tenho a coleção brasileira completa da revista). Aquilo, para mim, era coisa de doente. Mas eu nunca havia associado Wolverton a Gilbert Shelton. Provavelmente, esse contato criou aquela sementinha de influência no meu estilo, mesmo sem eu saber, não era consciente. Na realidade, a influência é tão grande que na revista Ventosa (o nome vem de chupar mesmo) eu deixo isso bem claro e coloco como citação uma ilustração dele. Antes, ele fazia quadrinhos mais convencionais [para a Timely Comics, que posteriormente viria a se tornar a Marvel] como Spacehawk. Mas quando foi redescoberto pela revista Mad [em 1954. Vai continuar contribuindo para a revista pelos próximos 20 anos] pôde fazer aparecer seu traço mais maluco. O uso dos hachurados e as

Pinup nº 4, ilustração (lápis sobre papel) da Coleção PINUPS (2003)

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distorções são fantásticas (principalmente esta última técnica me influenciou muito). Ele é um dos pais de outros mestres dos quadrinhos. Há outros que gostavam e seguiam Wolverton, mas acho que Gilbert Shelton foi quem mais bebeu dessa fonte. O traço dele tem muito desse hachurado, principalmente o Wonder Wart-Hog.

Lembro de você ter dito na nossa primeira conversa que suas primeiras histórias eram muito diferentes e que as influências foram outras... Sou muito reservado e introspectivo, o que na adolescência era reforçado. Estudei numa escola em que não me dava muito bem com ninguém, foi um momento bem ruim para mim. Mas, quando estava no último ano, conheci um cara, um vizinho, que era fã de quadrinhos, o Marcelo Barroso. Ele, apesar de também soturno e calado, diferente de mim, saía muito, ia para a região da Paulista nas livrarias de cultura alternativa e tal. Comprava muitos quadrinhos. Foi graças a ele que eu conheci o underground americano. Através dele conheci o Robert Crumb, o Gilbert Shelton. Um dos primeiros exemplares que ele me mostrou foi da Metal Hurlant, revista francesa de quadrinhos de ficção científica. Os desenhistas eram Philippe Druillet, Moebius etc. e, no começo, eu tentava desenhar como eles. Foi bizarro, pois aquele traço não batia comigo. Até então, as minhas referências eram Turma da Mônica, Tio Patinhas, Disney. Eu não conhecia Henfil. Na década de 1970, era muito difícil chegar coisas às bancas de jornal do bairro que não fossem de grande tiragem. Quando vi a Metal Hurlant, despiroquei, queria desenhar daquele jeito. Só que meu traço não tem essa alma. A coisa da anatomia não é meu forte, não tenho disciplina para isso. Aliás, eu gosto dos meus desenhos, mas não me considero desenhista, porque eu não estudo, não pratico, não desenvolvo traços ou faço experiências. A história na revista Papagaio é uma tentativa de chegar àqueles caras. Só depois que saiu a Papagaio eu conheci o underground americano. Foi então que conheci aquele desenho mais expressionista do Crumb, e depois, o Shelton. O Shelton tem todas as características de um desenho infantil: nariz redondo, olhos bolinha. São coisas que estão no meu traço até hoje. Meu desenho é infantil: contorno grosso, olho redondo etc. 30 rbma 69

Para finalizar, como a revista é nº 69 e toca nessa temática, posso pedir para você me confessar um fetiche? Eu sou a pura contradição. Acho muito mais estimulante olhar catálogo de lingerie do que ver mulher pelada, só para começar. Acho muito bonitinho uma calcinha. Teve um período que eu estava buscando imagens de referências para as minhas pin-ups nesses sites de mulher pelada; não teve nenhum efeito em mim. É tão bom fazer, por que ficar olhando? Não tenho nenhum fetiche.

Nenhum desejozinho estranho? Não. Se eu tiver, ainda não descobri. Não tenho nenhum pudor com sexo, talvez, por isso, não tenha fetiche. Para mim, tudo é natural. Poderíamos até conjecturar que o fetiche seja fruto de uma castração.

Aqui, capa do livro Enterólitos (Editora do autor, 2013). Ao lado, capa do livro Coprólitos (Editora do autor, 2013)

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Os infortĂşnios de Sade e as prosperidades de Justine


J...” – era assim que os contemporâneos de Sade costumavam se referir ao escandaloso Justine ou Les malheurs de la vertu. O romance de 1791 era infame, mas parecia tímido se comparado à sua versão ampliada de 1799: La nouvelle Justine. Na época, porém, não se fazia distinção entre as duas obras. E a confusão teria sido ainda maior se os leitores setecentistas tivessem conhecido Les infortunes de la vertu, primeiríssima versão da narrativa, cujo manuscrito foi encontrado no início do século xx pelo poeta Guillaume Apollinaire. Redigido durante o Antigo Regime, mais exatamente em 1787, esse texto só foi publicado em 1930. Seu esboço, feito na prisão de Vincennes, ganhou forma final nas celas da Bastilha, para onde o Marquês foi transferido em 1784. A trama era simples: duas irmãs ficam órfãs por um revés do destino e seguem caminhos opostos; a que escolhe a virtude é condenada ao infortúnio; a que opta pelo vício, só conhece a prosperidade. Com isso, Sade tentava enfatizar a inadequação da virtude face à realidade social e sua incompatibilidade com a felicidade. Visando o grande público e o abrigo da censura, orgias e torturas eram apenas sugeridas no texto, deixando ao leitor a tarefa de imaginar as cenas. Na versão de 1791, o abstrato título Infortúnios da virtude foi substituído por outro, nominal, literalmente Justine ou as Infelicidades da virtude. É quando a novela se torna romance. Tudo progride, intensifica-se: as alusões se explicitam; os personagens ganham facetas humanas; o acento na arbitrariedade da fortuna recai na conduta incongruente de Justine; a energia celerada dos carrascos excede, em vez de contrabalancear, a energia virtuosa da heroína; a natureza outrora amoral anuncia então seu franco imoralismo. A nuance entre infortúnio e infelicidade é essencial para se entender o olhar sadiano: o primeiro implica a fatalidade, enquanto a segunda traduz a posição obstinada daquele que prefere a ilusão à realidade. Essa ênfase na transgressão evoca a euforia de Sade com os movimentos revolucionários. Estima-se que ele tenha concluído o texto em 4 de julho de 1789, quando foi transferido às pressas da Bastilha ao sanatório de Charenton. Aristocrata de longa linhagem, ele não se regozija com a ideia de República, que fique bem entendido.

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Sade, Donatien Alphonse François de Sade, Conde de. Opus Sadicum: a philosophical Romance; for the first time translated from the original French (Holland, 1791) With an engraved frontispiece. Paris: Isidore Liseux, 1889. Tradução inglesa da Justina, reproduzida da edição holandesa de 1791. viii, 392p. front. (grav.) 23x15cm.

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A esperança é de uma monarquia constitucional: os poderes moderados do rei aumentariam a tolerância e atenuariam a censura, de fato mais branda no início da revolução – o que explica a publicação do livro provocante. Não obstante, Sade renega prudentemente a obra antes mesmo de ela cheguar às ruas. Em meados de 1791, em seu terceiro mês de liberdade após treze anos de cárcere, escreve ao advogado Reinaud: “Imprimem atualmente um romance de minha autoria, mas muito imoral, […] meu editor o pediu bem apimentado, eu o fiz capaz de empestear o diabo. […] Queime-o e não o leia, se por azar ele cair em suas mãos”. Não surpreende que o livro saia anônimo da gráfica. Sábia decisão, pois o Comitê de Saúde Pública da República Francesa irá proibir enfaticamente a circulação da obra por volta de sua terceira ou quarta edição. Apesar disso, na imaginação do autor, o crescendo continua, e atinge seu pico oito anos depois. A terceira Justine, de 1801, não somente tem todos os seus infortúnios agravados exponencialmente, como perde o direito de contar sua própria história, tornando-se duplamente passiva. Narradora nas duas primeiras versões, a mocinha fica então desprovida do posto de memorialista, que é cedido à vilã triunfante: sua irmã mais velha. A publicação de La nouvelle Justine (“Nova Justine”), romance em terceira pessoa, é seguida pela Histoire de Juliette ou Les prospérités du vice (“História de Juliette” ou “As prosperidades do vício”), narrativa em primeira pessoa. Reunidos, os itinerários das duas órfãs formam um dos maiores monumentos da literatura licenciosa: dez volumes, em quase duas mil páginas na edição francesa da Biblioteca da Pléiade. Tal cume, no entanto, foi ainda superado pela genialidade do escritor: em 6 de março de 1801, o Marquês entrega a seu editor um exemplar da “Nova Justine” com várias correções e acréscimos, constituindo talvez uma quarta versão do romance, uma “Nova Nova Justine”. Mas Sade é preso nesse mesmo dia, e sua última Justine se perde. Foi o infortúnio do leitor e a infelicidade do império de Napoleão. referências bibliográficas: Delon, Michel. “Introduction et Notices”. In: Sade. Œuvres. Paris: Gallimard/Pléiade, 1995, tomo ii. Lever, Maurice. Donatien Alphonse François, Marquis de Sade. Paris: Fayard, 1991. Clara Carnicero de Castro* * Doutora em Filosofia pela USP, Clara Castro é atualmente pós-doutoranda do departamento de Filosofia da USP, em estágio pós-doutoral na Universidade Sorbonne-Paris IV. Sua linha de pesquisa aborda a relação entre a eletricidade e a metempsicose nos romances de Sade.

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“Alma de Côrno” e Outros Espíritos Malditos em Pessoa Por Carlos Pittella-Leite*

Devaneios etimológicos em torno da prostituta Eliane Robert Moraes*

Girl Seen in a Dream, Egon Schiele, 1911. Aquarela e grafite sobre papel. 47.9 x 32.1 cm. Acervo bma

Puta, putus, putida

Ainda que a palavra puta nomeie a dita “profissão mais antiga do mundo”, a suposição de que ela remonta à própria origem das línguas pode causar certa surpresa. Mas é o que sugere uma de suas etimologias mais curiosas ao lhe atribuir a mesma raiz latina da palavra poço. Tal sugestão se encontra num anônimo Dicionário do amor, publicado na França em 1927, que estabelece relações entre os dois termos tendo em vista sua possível derivação de putagium ou putens, “uma vez que, outrora, os poços eram lugares de encontro de moças em busca de aventuras amorosas”. Segundo o mesmo verbete, seria esse o sentido implícito da antiga expressão “poço de amor”, provável denominação original do que mais tarde viria se chamar “corte de amor”, evocando a acepção corrente de “fazer corte”. 1

Ora, não é difícil aproximar essa suposição das hipóteses de Jean-Jacques Rousseau em seu célebre Ensaio sobre a origem das línguas. Como se sabe, o filósofo imagina que o surgimento das palavras possa ter sido determinado pelas condições climáticas. Nas regiões frias, diz ele, por estarem continuamente ocupadas em prover a própria subsistência, as pessoas só se encontravam por obra da necessidade. Daí que, motivadas pelo perigo de perecer, a primeira palavra trocada entre elas teria sido ajudai-me. Já os habitantes das regiões quentes, desobrigados de tais ocupações, só precisaram se dar ao trabalho de cavar poços para então se entregarem a atividades mais prazerosas. Foi em torno da água, portanto, que se deram os primeiros encontros entre os sexos: “os pés saltavam de alegria, o gesto ardoroso não bastava e a voz o acompanhava com acentuações apaixonadas; o prazer e o desejo confundidos faziam-se sentir ao mesmo tempo. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos – do puro cristal das fontes saíram as primeiras chamas do amor”.2 Não admira que a primeira palavra nascida dessas reuniões tenha sido amai-me.

1. Dictionnaire de l’Amour, p. 460. 2. J.-J. Rousseau, “Ensaio sobre a origem das línguas”, em Os Pensadores – Rousseau, p. 183.

* Professora de Literatura Brasileira no departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP. Suas pesquisas concentram-se na interface entre literatura e erotismo e atualmente se dedica a investigar a erótica literária brasileira.


A etimologia, segundo a bela definição de Curtius, é um modo de pensar e, como tal, supõe infinitos modos de imaginar. O intento de investigar algumas das formas como a prostituta é fabulada no mundo latino, inspirado na concepção do filólogo alemão, supõe o caminho por ele indicado, que vai da “denominação para o ser” ou, se quisermos, “dos verba para as res”. Ora, se tal caminho conduz à “origem (origo) e à força (vis) das coisas”, como propõe o autor, ele realmente pode ser valioso quando se aborda a singularidade dos erotica verba, já que se trata de um vocabulário referido, como nenhum outro, à força motriz (vis motrix) do corpo.3 Vejamos, então, que origens são atribuídas a uma denominação de origem tão incógnita.

Putida: parte maldita A palavra puta revela um extraordinário poder de permanência no imaginário sexual latino, sobretudo se levarmos em consideração que o léxico erótico vive em perpétua expansão, comportando transformações, evoluções ou desaparecimentos ao longo de sua história.4 Não só ela se mantém como o principal significante chulo de prostituta, como está na origem de uma série lexical que constitui numerosa e viva família, passando por putaria, puteiro, putaina, putame, putanheiro, putona etc., para citar só alguns exemplos do domínio português. Na verdade, ela fornece a base a partir da qual as outras línguas latinas criaram os significantes putta (italiano), pute (francês) ou putana (espanhol), esses igualmente comportando inúmeras variações que se multiplicam segundo o contexto geográfico e histórico. Contudo, ainda que o sentido da palavra pareça inequívoco, sua origem é bastante obscura, implicando uma grande variedade de possibilidades. Uma das etimologias mais frequentes associa a meretriz à sujeira. A edição histórica do dicionário Robert, por exemplo, ao examinar a palavra francesa putain, que remonta ao século xii, assinala que ela deriva do:

[...] antigo francês put, pute, adjetivo corrente até o século xv no sentido de “fedorento, sujo”, ao lado de ordorde. A palavra se origina (1080) do latim putidus, “podre, estragado, fedorento, fétido” e moralmente “que se revela afetado” derivado de putere, “aprodecer, estragar”. [...] Put, pute, propriamente “fedorento” tomou desde os primeiros textos o sentido figurado de “sujo, mau, vil, odioso, maldoso”, aplicando-se particularmente à mulher lasciva e pervertida. 5

3. E. R. Curtius, “Etimologia como forma de pensar”, em Literatura europeia e Idade Média latina, p. 533. 4. Cf. J.-M. Goulemot, Ces livres qu’on ne lit que d’une main, p. 13. 5. A. Rey (org.), Dictionnaire Historique de la Langue Française, p. 1674.

Reclining Model in Chemise and Stockings, Egon Schiele, 1917. Carvão sobre papel. 46.4 x 29.8 cm. Acervo da bma

É digno de nota que a imagem do poço tenha sido reiterada como lugar emblemático da atividade amorosa, abarcando tanto a concepção naturalista de um Rousseau quanto a imaginação perversa que costuma envolver o amor venal. Desnecessário lembrar que a palavra realmente evoca toda uma simbologia passível de se associar à prostituição, acionando termos que passam ora pela concretude de um buraco escuro ou do dinheiro que nele se joga, ora pelas incógnitas que recobrem a ideia de verdade, de segredo, de inferno ou de abismo, quase sempre a realçar sua insondável profundidade. Não estranha que seja do fundo obscuro da língua, onde se testemunha o encontro fortuito entre o poço e a prostituta, que venham brotar outras etimologias improváveis que não cessam de interrogar a palavra puta. Trata-se, aqui, de refletir sobre tais etimologias, mas sem qualquer pretensão de observar o rigor típico dos filólogos ou dos linguistas. Pelo contrário: o rigor que se almeja no espaço desta reflexão, também fecundo nos estudos literários, é o da fantasia. Por tal razão, vale dizer que interessam ao argumento tanto as etimologias consideradas pertinentes quanto aquelas que se revelam puro fruto da imaginação. No limite, pouco importa se participam de uma ou de outra categoria, pois é na condição de “devaneios etimológicos” que elas são convocadas no interior deste texto.


6. P. Guiraud, Dictionnaire érotique, p. 528. Para essa mesma etimologia ver ainda C. Bernheimer, “Prostitution in the Novel”, em D. Hollier (ed.), A New History of French Literature, Cambridge: Harvard University Press, 1994, p. 780. 7. Idem, ibidem, p. 96. 8. M. Surya, Georges Bataille, la mort à l’œuvre, p. 109. 9. Cf. o verbete “Pute” em É. Littré, Dictionnaire de la langue française, tomo 6, p. 632. 10. Cf. o verbete “Puta” em J. P. Machado, Dicionário etimológico da língua portuguesa, tomo IV, p. 464. Na versão brasileira, cf. o mesmo verbete em A. G. da Cunha, Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, p. 649. 11. E. Faria (org.), Dicionário escolar latino português, p. 824. 12. A. Rey (dir.), Dictionnaire culturel de la langue française, p. 2244.

Two Reclining Nudes, Egon Schiele, 1911. Aquarela e grafite sobre papel. 56.5 x 36.8 cm. Acervo bma

Semelhante trilha é explorada por Pierre Guiraud, que a sintetiza em seu Dictionnaire Érotique, ao propor que: “A palavra pute vem do latim putida, ‘fedorento’. É um aspecto semântico fundamental do francês que trata a prostituta como um ‘lixo’ e um objeto de nojo”.6 A suposição coincide com um estigma antigo que envolve o métier e concebe essa mulher como “um lixo fedorento”. Segundo o linguista, tal concepção se organiza em torno de certos núcleos temáticos que se comunicam entre si, cada qual compondo um léxico próprio, nos quais se reconhecem três grandes famílias semânticas: na primeira, a ênfase recai sobre a associação com o “lixo”; na segunda, as figuras evocadas reiteram a ideia de um “velho trapo”; e, na terceira, a personagem ganha atributos de “vagabunda”, sendo não raro identificada como a mulher do “mendigo profissional”, que representa a classe mais baixa da sociedade.7 Escusado lembrar que a sujeira é por excelência um objeto de recalque e, como tal, não cessa de demandar sentidos. O notável empenho humano para que ela entre numa cadeia simbólica já foi insistentemente sublinhado por Freud e por seus seguidores, sem falar dos diversos textos literários que, antes mesmo da psicanálise, ocuparam-se da questão. No mais das vezes, a sujeira se apresenta como um excedente, demarcando o que fica às margens do social, do mundano, do normal. Como ensina a antropologia, pelo menos desde Marcel Mauss, qualquer afirmação de identidade coletiva implica a exclusão dos aspectos considerados impuros, não obstante o fato de eles também contribuírem, à sua maneira, para reforçar a coesão da coletividade. Leitor atento das teses antropológicas, Georges Bataille tomou-as como ponto de partida para formular sua dialética do erotismo que, ao voltar particular atenção aos polos do proibido e da transgressão, confere um estatuto exemplar à figura da prostituta. Não são poucas as passagens da sua obra que interrogam o amor venal, percorrendo desde seus sentidos sagrados até os mais degradados, mas sempre supondo ali um tipo exclusivo de prazer “ao qual ninguém acede sem antes se rebaixar a tudo aquilo que esses lugares e os seus hábitos têm de escuso, de feio e de imundo”. 8 Palavras que, de algum modo, conectam-se com a suposição etimológica que faz puta derivar de putida, autorizando-nos a precipitar a meretriz na condição irrevogável de “parte maldita” tal como a concebe o autor de L´érotisme.

Putus: puríssimo Ainda que as aproximações com as teses bataillianas possam reforçar as bases dessa etimologia, convém dizer que seu sentido não é, de forma alguma, hegemônico. O Littré, por exemplo, o recusa expressamente, terminando o verbete Pute com a observação de que ele não implica qualquer sentido negativo nem tem “qualquer relação com o antigo adjetivo put, que vem de putidus e significa feio, mau, desonesto”. Não surpreende que o dicionário francês vá buscar outra fonte para a palavra, que remete ao termo homônimo em latim, originalmente sem qualquer sugestão sexual. É o que se lê na definição sintética do mesmo verbete: “do latim puta, menina, putus, menino”, no qual se acrescenta ainda que os termos “em italiano putta, em português puta, foram muitas vezes usados com boa acepção; e o mais antigo exemplo histórico da palavra putain não significa nada mais que uma jovem empregada doméstica”.9 Tal sugestão é revalidada por diversos dicionários etimológicos da língua portuguesa, que não raro mantêm a remissão do vocábulo à sua origem latina, como se pode ler neste verbete lusitano de Puta: “Trata-se, segundo parece, do feminino de puto, que, por sua vez, provém do latim puttu, de putus, com germinação consonântica expressiva, ‘rapazinho’, que existia ao lado de potus. A extensão românica das formas femininas leva a pressupor igualmente em latim uma forma putta”. Semelhante definição se encontra em dicionários etimológicos brasileiros, o que vem corroborar a ideia de “boa acepção” da palavra, conforme defendida pelo Littré.10 Como que radicalizando essa vertente mais asséptica, outros compêndios da língua portuguesa ainda acrescentam que, como adjetivo, putus quer dizer: “puro, purificado, limpo, cuidado”, ou mesmo, no plano figurado, “puro, brilhante”.11 Definição que figura na edição cultural do francês Le Robert, reiterando o sentido do polêmico vocábulo ao citar uma passagem do dicionarista Antoine Furetière que, em 1690, afirmava o seguinte: “É digno de nota que os antigos Franceses tenham feito derivar, por antífrase ou contradição de sentido, a palavra putain do latim putus, que significa puro”.12


Observa Aline Rousselle que, na Roma antiga, “a mulher é por vezes uma criança”, o que presume antes de tudo a equivalência jurídica entre uma e outra. Não se trata, porém, de uma afirmação que implica toda mulher, mas exclusivamente aquela que, tendo se tornado uma concubina de fato, ainda não tem idade suficiente para sê-lo de direito. Segundo a historiadora, essa condição diz respeito a grande parte das meninas, que eram efetivamente oferecidas aos amantes bem antes de completar 12 anos.13 Ocorre o mesmo com o menino, o puto ao qual se remetem as etimologias, não raro encarnado na figura do puer delicatus, o escravo jovem que servia à volúpia do homem adulto na Roma antiga, cuja idade, segundo os estudiosos, por vezes não chegava aos 5 anos completos.14 É de supor que, em ambos os casos, a palavra original que designava a criança pudesse ter um uso ambíguo, contemplando um deslizamento de sentido. Todavia, embora esses dados sejam sugestivos, quando se interroga as nascentes de uma língua, a prudência nos obriga a tomá-los tão somente como especulações históricas.15 Cumpre sublinhar, portanto, que a aproximação entre prostituição e infância é matéria delicada, não só pelas implicações éticas que vem ganhando particular atenção na atualidade, mas também porque os dois termos estão sujeitos a inflexões muito diversas no espaço e no tempo. Ou seja, da mesma maneira como a criança não pode ser reduzida à imagem da inocência que, como bem mostrou Phillipe Ariès, tornou-se hegemônica a partir da ascensão da burguesia, tampouco a figura da prostituta pode ser enclausurada num só significado. Da “mulher de vida fácil” à “cortesã”, da “rameira” à “cocote”, da “vadia” à “messalina”, a puta foi e continua sendo objeto de tantos avatares quantos são os nomes pelos quais ela atende. Feita tal ressalva, não deixa de surpreender a recorrência do encontro entre a prostituta e a criança no plano linguístico. Convém recordar que, na França, a palavra fille, menina,

Em que pesem eventuais exageros, o que fica evidente nessa série de etimologias é a passagem de um sentido no mínimo neutro, senão realmente puro, a outro decididamente perverso. Trata-se da perversão da menina realizada no corpo da língua, o que remete a um imaginário recorrente na erótica literária, que tem variantes exemplares na corrupção da jovem Eugénie em La philosophie dans le boudoir, de Sade, na sedução da ninfeta em Lolita, de Nabokov, ou na depravação da protagonista infantil do Caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst.

teve destino semelhante ao de puta, sendo um dos termos mais repetidos no léxico em torno do amor venal, pelo menos a partir do século xii. Pierre Guiraud cita dezenas de denominações do gênero que se rotinizaram no país em diferentes épocas, valendo-se do vocábulo para criar uma infinidade de termos – tais como fille de joie, fille de maison, fille de nuit, fille perdue, fille publique, entre outros. Recorda ainda o dicionarista que o sentido principal – sendo o de fille ou, por sinonímia, jeune fille – abre toda uma cadeia associativa que emprega palavras afins como demoiselle (senhorita), nymphe (ninfa), poupée (boneca) ou sœur (irmã), para citar apenas algumas delas.16

Na França, a versão mais ostensiva dessa operação linguística talvez seja dada pela expressão corrente fille des rues que supõe o deslizamento semântico da criança para a sujeira, e sua transferência da casa para a rua – ou, se quisermos, do lar para a sarjeta –, fazendo convergir as duas etimologias. Aí também é possível identificar toda uma cadeia semântica associativa que reforça a ideia de uma menina referida à imundice, à porcaria, à escória.20 Importa notar que, ao invés de atenuar a sujeira, a presença da infância parece acentuá-la ainda mais.

Em língua portuguesa, seu equivalente pode ser encontrado na usual rapariga ou nas diversas expressões lusitanas que se valem da palavra menina para fazer referência ao universo dos bordéis tais como: casa de meninas, ir às meninas ou meninas à sala!17A esses poderiam ser acrescentados os termos criados em torno da garota, que são mais correntes no Brasil, como é o caso de garota da casa, garota de viração ou garota de programa, entre outros. Além disso, a exemplo do que ocorre no âmbito francês, a linguagem popular brasileira em torno da personagem também expõe um sentido, se não infantil, ao menos juvenil, como se evidencia em moça, prima, donzela ou mesmo em andorinha, camélia e mariposa, que exalam algo de inocente e virginal.18 Vale perguntar, uma vez mais, como se encadeiam os termos dessa evolução semântica, que funciona como uma espécie de máquina de degradação moral da menina, quase sempre operando por meio da perversão de seu sentido original. Com efeito, de tal forma este se associa à pureza que, no verbete Puta de seu estudo sobre a Linguagem médica popular no Brasil, de 1936, Fernando São Paulo chega a afirmar que “Inútil foi a ponderação das autoridades em Filologia, que clamaram contra a impropriedade do termo, considerado seu étymo, lembrando o formoso sentido que a princípio se lhe concedia: moça puríssima. Triunfou o desvirtuamento”. Para confirmá-lo, o autor recorre a um compêndio português do século xviii, que insiste na mesma tecla: “tal foi a corrupção da palavra, puta, que sendo vocábulo honestíssimo, que quer dizer moça puríssima e limpa, por encobrir a fealdade do vocábulo de meretriz, ou outro tão feio, vieram a infamar aquele nome, chamando puta a mulher que está posta no ganho e putaria o lugar onde ganha”.19

Girl, Egon Schiele, 1919. Litogravura. 45.2 x 63 cm. Acervo bma

Também nesse caso, mais que tudo, a suposição é boa para pensar. A começar pelo fato de que a associação entre a criança e o amor venal parece não se restringir ao domínio linguístico, sendo mencionada em diversos estudos históricos sobre o mundo latino na Antiguidade. Vale citar, apenas a título de exemplo, duas fontes históricas.

13. A. Rousselle, Pornéia – Sexualidade e amor no mundo antigo, p. 111. 14. F. Dupont e T. Éloi, L´Érotisme masculin dans la Rome antique, pp. 243-250. 15. Como bem sugere Alain Corbin, “em matéria sexual, a medida dos fenômenos depende mais do grau de percepção e dos fantasmas dos observadores de que da realidade dos fatos” (Les filles de noce – misère et prostitution au XIXe siècle, p. 300). 16. P. Guiraud, op. cit., p. 335 e 96. 17. Cf. C. P. Santos e O. Neves, Dicionário obsceno da língua portuguesa, pp. 97-98. 18. Cf. H. de Almeida, Dicionário de termos eróticos e afins, p. 139 e 176. 19. F. São Paulo, Linguagem médica popular no Brasil, pp. 284-285. 20. Cf. P. Guiraud, op. cit., p. 96.

Tudo ocorre, portanto, como se os devaneios etimológicos em torno da prostituta variassem à exaustão entre os polos da infância pura e da sujeira fétida até o ponto de reunirem essas forças opostas em uma única expressão. Um bom exemplo desse tipo de operação simbólica é contemplado na palavra composta flor-do-lodo, que qualifica a meretriz em certas regiões brasileiras. Para além de uma simples reunião de contrários, o que tais termos supõem é uma espécie de “sujeira pura”, imaculada, não corrompida pelas regras da civilização que impõem a obrigatoriedade social da limpeza, seja ela física ou moral. Por tal razão, essas expressões terminam por expor justamente aquela zona de poder e perigo que, segundo o ensaio seminal da antropóloga Mary Douglas, demarca a fronteira entre o puro e o impuro ao mesmo tempo em que revela o ponto que os une.

A deusa Puta Não por acaso, na outra ponta da cadeia semântica aqui analisada, pode-se encontrar uma etimologia que propõe o sentido inverso e complementar suposto na menina impura. Trata-se, nesse caso, de uma sugestão efetivamente


literária, já que apresentada por Hilda Hilst em seu livro de crônicas Cascos e carícias, de 1998, em que se lê: “Não sei se vocês sabem, mas ‘Puta’ foi uma grande deusa da mitologia grega. Vem do verbo ‘putare’, que quer dizer podar, pôr em ordem, pensar. Era a deusa que presidia à podadura. Só depois é que a palavra degringolou na propriamente dita, e em ‘deputado’, ‘putativo’ e etc.”.21 O humor ferino da autora a leva, por distintos caminhos, a conclusões semelhantes às dos linguistas que denunciam o desvirtuamento da palavra. Porém, diversamente do que pode se imaginar, sua sugestão não é de todo infundada, e por mais de uma razão. A primeira delas remete a outra etimologia, nesse caso a do adjetivo Putativo citado por Hilst, que é assim definido pela edição histórica do Robert: “derivado do latim medieval jurídico putativus que, já no baixo latim, significa ‘imaginário’. Tem origem em putare no sentido abstrato de ‘contar, calcular’, de onde vem ‘pensar’, palavra que só entrou no francês por meio de seus derivados”. Assim, segundo essa definição, antes de ter

se tornado um termo específico do direito, o adjetivo que a escritora pretende derivar de puta teria realmente desfrutado maiores afinidades com o verbo pensar. Mais significativo, porém, é o fato de Hilda Hilst compartilhar a menção à deusa Puta com outros autores, entre os quais está Leon Battista Alberti. Em seu célebre tratado sobre a pintura, o humanista italiano faz menção às “ramagens em torno da deusa Puta” para indicar uma forma de movimento na qual “uma dobra nasce de outras dobras”, esclarecendo em nota que faz referência à “deusa que preside à poda das árvores”.22 Aqui, uma vez mais, a etimologia vem corroborar uma atribuição literária de sentido, já que, em latim, o substantivo putamen significa “aquilo que sai das árvores quando se podam ou aparam”; ou “ramos podados de uma árvore”.23 Assim, por ostentar todos esses atributos, na qualidade elevada de deusa e filósofa, a Puta da escritora brasileira

Reclining Nude, Egon Schiele, 1918. Giz sobre papel. 29.8 x 46.4 cm. Acervo bma

21. H. Hilst, Cascos & carícias, p. 138. 22. L. B. Alberti, De la peinture, p. 163. 23. E. Faria (org.), op. cit., p. 823.

parece guardar fortes afinidades com a antiga prostituta sagrada, cujos predicados foram exaltados em inúmeros textos mitológicos e literários. Mulheres que, como sintetiza Georges Bataille, estando “em contato com o plano divino e vivendo em lugares sacrossantos, tinham um caráter sagrado similar ao dos sacerdotes”.24 Obviamente, esboça-se aí uma figura que pode ser considerada como o oposto simétrico e complementar da menina impura, esta decaída ao mais baixo patamar da degradação, muito embora ambas compartilhem significativas ambiguidades de fundo. Nunca é demais lembrar que tanto uma como a outra deixam descoberto o inconcebível ponto de toque entre a pureza e a sujeira, expondo assim a perigosa possibilidade de reversão que ameaça cada um desses polos. Não admira, pois, que as atribuições etimológicas para a palavra puta sempre tendam a descrever paradoxos, uma vez que reúnem termos opostos não só como sujeira e pureza, mas igualmen-

24. G. Bataille, "L’Érotisme", em OEuvres Complètes, tomo x, p. 133. 25. J. M. Wisnik, "Famigerado", em Scripta, vol. 5, n. 10, 1o semestre de 2002, pp. 182-183. 26 J. P. Machado, op. cit., p. 464.

te seus desdobramentos expressivos como excesso e poda; desmedida e justa medida; alto e baixo, e assim por diante. Tudo leva a crer que certas formas de designar a meretriz, sendo semanticamente oscilantes, caracterizam-se justamente por dizer algo e ao mesmo tempo o seu contrário, sugerindo um duplo sentido antitético no qual Freud chegou a ver uma vinculação primordial da linguagem com o inconsciente. Por flutuar e deslizar num eixo de polaridade cujo sinal sempre pode se inverter, como propõe José Miguel Wisnik sobre os palavrões que adquirem força de talismã, essas expressões remetem “ao lugar em que os significantes se dobram, deixando entrever o quanto toda significação é virtualmente equívoca”.25 Prova disso está no fato de que, em diversas línguas, um dos xingamentos mais ofensivos – “puta que o pariu!” – é muitas vezes pronunciado como expressão de surpresa, deslumbramento ou admiração. Inversão expressiva que, de certo modo, repõe-se ainda na suposição de que uma exclamação tão trivial como “puxa!” seja uma corruptela de puta, implicando “um esforço eufêmico” de deformar o vocábulo, como quer a etimologia proposta por João Pedro Machado, mas também de disfarçá-lo para garantir sua permanência na língua corrente.26 Objeto de inversões radicais e de desdobramentos vertiginosos, que não cessam de se repor, o significante puta parece guardar um pacto de fundo com seu referente. Pautados, ambos, pelo imperativo do excesso, eles se refletem mutuamente, como se a insaciabilidade que se reconhece no métier da prostituta exigisse a todo o tempo novos acréscimos de sentido e contínuas atualizações das fantasias. É o que sugerem os devaneios etimológicos em torno dessa palavra, que oscilam entre as acepções mais óbvias até as mais enigmáticas para, no limite, interrogar as fronteiras entre o dizível e o indizível. É nesses confins que se esconde aquele poço primordial, cujo fundo obscuro guarda as nascentes das línguas. Lá, onde toda etimologia é válida e toda fantasia tem salvo-conduto. Lá, onde não se conhece o frio nem qualquer freio. Precisamente lá onde, livres de toda interdição, a menina pode se consagrar por inteiro ao sexo – e a puta, à filosofia.


Referências Bibliográficas Alberti, Leon Battista. De la peinture. Paris: A. Levy, 1868. Almeida, Horácio de. Dicionário de termos eróticos e afins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. Bataille, Georges. L’Érotisme. OEuvres Complètes. Tomo x. Paris: Gallimard, 1987. Corbin, Alain. Les filles de noce – misère et prostitution au xixe siècle. Paris: Flammarion, 1982. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Curtius, Ernest Robert. “Etimologia como forma de pensar”. In: Literatura europeia e Idade média Latina. Tradução de Teodoro Cabral. Brasília: Instituto Nacional do livro, 1979. Dictionnaire de l’Amour, Paris: Editions Georges-Anquetil, 1927. Dupont, Florence; Éloi, Thierry. L’Érotisme masculin dans la Rome antique. Paris: Belin, 2001. Faria, Ernesto (org.). Dicionário escolar latino português. Rio de Janeiro: mec, 1962. Goulemot, Jean-Marie. Ces livres qu’on ne lit que d’une main – Lecture et lecteurs de livres pornographiques au xviiie. Siècle. Aix-en-Provence: Alinea, 1991. Guiraud, Pierre. Dictionnaire érotique. Paris: Payot & Rivages, 1993. Hilst, Hilda. Cascos & carícias. São Paulo: Nankin Editorial, 1998. Littré, Émile. Dictionnaire de la Langue française. Tomo 6. Paris: Gallimard/Hachette, 1958. Machado, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Tomo iv. Lisboa: Horizonte, 1990. Rey, Alain (dir.). Dictionnaire Culturel de la Langue Française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2005. Rey, Alain (org.). Dictionnaire Historique de la Langue Française. Paris: Dictionnaire Le Robert, 1995. Rousseau, Jean-Jacques. “Ensaio sobre a origem das línguas”. In: Os Pensadores – Rousseau. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Rousselle, Aline. Pornéia – Sexualidade e amor no mundo antigo. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1984. Santos, Carlos Pinto; Neves, Orlando. Dicionário obsceno da língua portuguesa. Lisboa: Bicho da Noite, 1997. São Paulo, Fernando. Linguagem médica popular no Brasil. Rio de Janeiro: Barreto e Cia., 1936. Surya, Michel. Georges Bataille, la mort à l’œuvre. Paris: Gallimard, 1992. Wisnik, José Miguel. “O Famigerado”. Scripta. Belo Horizonte, vol. 5, n. 10, 1o semestre de 2002.

Standing Nude with Orange Drapery, Egon Schiele, 1914. Aquarela, gouache e grafite sobre papel. 46.4 x 30.5 cm. Acervo bma


Edmir Míssio*

A Retórica das Putas de Ferrante Pallavicino1

Ferrante Pallavicino foi um satirista italiano

50 REVISTA BPMA 69

de família nobre e de carreira e vida curtíssimas. Nasceu em Parma em 1615 e foi decapitado em Avignon em 1644. Tendo recebido uma educação jesuítica, entrou porém para a ordem beneditina, tornando-se cônego. Formou-se na Universidade de Pádua e passou a morar em Veneza, onde atuou como secretário de Giovanni Loredano, nobre que fundou a Academia dos Incógnitos em 1623. A Academia ficou famosa pela liberdade de expressão de seus escritores, bem como por sua promoção do nascente gênero dramático-musical da ópera, à época acusada de imoral.

Apesar da curta vida, Pallavicino escreveu 26

obras, entre declaradas e clandestinas, romances e libelos, estes voltados especialmente contra os jesuítas, mas também contra a família Barberini – entre eles o papa Urbano viii (1623-1644), famoso pelo nepotismo, tendo elevado a cardeais seu irmão e sobrinhos (nipoti em italiano) – e a própria cúria romana – cujo luxo e cuja luxúria eram notórios.

Das obras que compôs, o Corriere svaligiato

(“Carteiro desvalijado” ou “O carteiro do malote roubado”, 1641) foi a que mais se destacou, valendo-lhe uma prisão momentânea pela Inquisição e depois sua perseguição até a morte. De acordo com Armando Marchi, em sua introdução à recente edição do Corriere, trata-se de uma correspondência do governante espanhol de Milão dirigida a Roma e Nápoles, interceptada e transformada em mote de comentários satíricos. Entre os temas atacados estão as cortesãs, as mulheres forçadas ao claustro, além de jesuítas (ordem espanhola) e espanhóis. Note-se que os primeiros tentavam monopolizar a educação e a vida intelectual da península itálica, a qual já estava parcialmente submetida aos segundos.

Em relação à prostituição, também Marchi nos informa do status

elevado e da grande quantidade de prostitutas (cerca de vinte mil) apenas na República de Veneza, onde sua atividade era regulada por leis do Estado.

A Retórica das putas, composta conforme aos preceitos de Cipriano e dedicada à universidade das cortesãs mais célebres (1642) insere-se nesse contexto, quando, já fora da prisão, seu autor procurava manter-se livre e vivo. O termo universidade podendo ser entendido como república, comunidade ou ainda universalidade; já os preceitos de Cipriano diziam respeito à retórica do jesuíta Cipriano Suarez, largamente utilizada nas escolas da época.

O livro segue, assim, por duas vertentes. Uma consiste em ensinar a aspirante à puta a seduzir e ganhar a vida, ensino que se desdobra em alerta ao cliente sobre os riscos desse negócio. A outra, em ensinar a argumentação retórica, ensino que se desdobra em alerta ao leitor/ ouvinte acerca das armadilhas argumentativas do discurso persua­sivo. Note-se que se trata de uma retórica voltada antes de tudo ao apelo aos afetos – ao elogio ou à censura – e sem maiores preocupações com amarras lógicas, sendo confluente assim com a sofística, que já havia sido atrelada às putas desde a Antiguidade.

*O autor dedica-se à pesquisa e à tradução,

Mas pode-se dizer que o texto de Pallavicino surpreende o leitor tanto

com interesse especial

da época (seus escritos tiveram grande sucesso de público) quanto de hoje ao abordar em termos tão claros um tema pouco usual. Ao sabor do “incomum” do mote concorre ainda o uso então comum do paradoxo e da ironia: ao mesmo tempo em que é louvada a capacidade de seduzir, critica-se o dano a que se expõe quem é seduzido – como se depreende da dedicatória que faz o autor às putas:

pelos séculos

xvi

e

xvii.

Com pós-doutorado pelo dlcv-usp

e pela

fe-Uni-

camp, escreveu ainda a obra A civilidade e as

artes de fingir (Edusp, 2012).

Nem por isso pretendo consagrar-vos esta composição como digna das vossas glórias, mas antes submetê-la ao vosso escrutínio enquanto defeituosa em muitas partes e plena de erros que deverão ser corrigidos com as vossas regras. Declaro não poder escrever tanto quanto sabeis obrar, nem sei quimerizar tantos fingimentos e velhacarias quanto são praticadas por vós para uso ordinário.

¹ Terminei recentemente a tradução da Retórica de Pallavicino, a qual ainda não recebeu edição em língua portuguesa. Portanto, a tradução dos trechos citados é de

O livro é dividido em catorze “lições” breves, antecedidas pela su-

minha autoria.

pracitada dedicatória, por uma tradicional carta ao leitor e por uma introdução; e seguidas pela conclusão e por uma “confissão do autor”.

69 REVISTA BPMA 51


Em defesa da obra

que seus fins também se contrapõem: de um lado, ensinar a ludibriar, âmbito da astúcia; de outro, ensinar a não ser ludibriado, âmbito da prudência:

A carta ao leitor traz uma defesa da própria obra, recorrendo a uma analogia com as pinturas que retratam “objetos disformes”, as quais têm seu valor reconhecido pela capacidade do artista de retratá-las, sendo verossímeis ao real observável e não a uma idealização. Nas palavras do autor: “São gloriosos aqueles pintores que suscitam maravilha pintando objetos disformes: a feiura é culpa do original, não da efígie”. Admite-se certa culpa, porém, “a quem a propõe como elegível sob aquela generalidade de bem que, distinta em honesto, útil e deleitável, faz que se aprove por bom tudo o que apresenta utilidade e deleite”. Assim, a escolha desse uso, ou talvez de usar prostitutas, é que seria de fato ocasião de mácula, e não o retratá-las. E o anterior louvor da dedicatória transforma-se certamente em detratação quando afirma: “Com semelhante pressuposto pretendo, oh leitor, reduzir o espanto desta extravagância, enquanto vires formados os dogmas de profissão infame”; adequando a fala a cada interlocutor.

O resgate do valor de sua própria obra adviria ainda da finalidade educativa, atentando-se para a ignorância da mulher da época, cuja vida restringia-se ao âmbito do casamento ou da clausura. Assim diz Pallavicino: “Sendo obra de caridade ensinar aos ignorantes, e na nossa espécie não se encontrando ignorância maior do que na mulher, estimei bom encaminhá-la com universal doutrina a um exercício tornado comum em seu sexo”.

À detratação anterior da profissão, contrapõe-se, agora, o resgate de seu valor pelo reconhecido uso do sexo como “lenitivo da humanidade”. Alívio, portanto, conforto dos tormentos terrenos.

A ideia da prostituição como profissão à época já havia aparecido, ao menos, na famosíssima e grandiosa obra de Tommaso Garzoni, Praça Universal de todas as profissões (1589), citada por Pallavicino ainda na carta ao leitor, para a qual remete o “curioso” interessado em “penetrar seus fundamentos”. E quando vamos ao Discurso lxxiii – Das meretrizes e de seus seguidores, da Praça Universal, em que se trata da arte meretrícia, vemos que o tema é tratado apenas em termos de detratação, fazendo-se um recenseamento histórico dessa profissão limitado a historiadores e poetas da Antiguidade greco-romana.

Pallavicino, porém, tem uma visão mais prática da questão, em confluência com uma teoria naturalista, e uma função didática ao alertar para os riscos financeiros envolvidos. Assim, o valor de seu livro é reafirmado ainda em termos de sua finalidade para a formação da prudência do leitor, e não tanto da aprendizagem da leitora; de modo 52 REVISTA BPMA 69

“São gloriosos aqueles pintores que suscitam maravilha pintando objetos disformes: a feiura é culpa do original, não da efígie”

Não te escandalizes, oh leitor, pois tenho por fim ensinar não tanto às mulheres o verdadeiro modo de serem boas putas, quanto a ti a necessidade de escapar delas, porquanto com artificiosa tessitura compõem somente para teu dano laços e redes de insídias e enganos.

Por fim, parece que, junto com a famosa falsa modéstia retórica, os próprios leitores não escapam da ironia quando lhes é dito para imputarem “o erro dessas leviandades à corrupção dos séculos, nos quais é preciso escrever mal para fazer que sejam aceitas e bem acolhidas as mais virtuosas fadigas dos engenhos”.

A retórica do deleite Passadas as contraposições, passa-se à introdução das lições, a qual traz o pano de fundo e o caráter das principais personagens: a aprendiz, uma jovem pobre, presa à sua casa pela honra e sem dote para casar, que não vê saída para a vida e não pretende entrar para a clausura; e a mestra, uma velha pobre mundana que vê a chance de ganhar a vida agenciando a jovem, tornando-se sua rufiona. Para convencer a jovem, a velha usa um recurso muito comum da fala retórico-sofística, o de

transformar a exceção em regra, o particular em geral, reiterando a riqueza que até era alcançada por algumas prostitutas, mas calando a pobreza e as dificuldades enfrentadas pela maioria delas.

Captada a boa vontade da pobre ouvinte, ou vítima, iniciam-se as lições. Nas duas primeiras são apresentados os aspectos gerais dessa retórica algo específica. Assim, a retórica das putas é definida como “arte de multiplicar artificiosas palavras e mendigados pretextos, com o fim de persuadir e mover os ânimos daqueles infelizes que presos em suas redes assistem às suas vitórias”; sua matéria é o “interesse”, e seu fim, o ganho monetário, dissimulados para melhor poderem enredar os clientes. Para isso, faz-se necessário o uso dos afetos, ou o uso das paixões, que aparece como principal recurso para o convencimento. Para a captação da benevolência desponta, principalmente, o deleite, e para variá-lo, torna-se fundamental a capacidade de inventar, dispor, ornar, memorizar e atuar. Nos termos da velha, a prostituta deve [...] consumir a mente para quimerizar coisas verdadeiras e verossímeis, e também falsas com contrária aparência, segundo estimarem-se mais aptas a persuadir e a impetrar aquilo que se deseja. À invenção se ajusta a disposição, em virtude da qual se observa a ordem de lugar e tempo conforme seja estimada melhor adaptada à intenção 69 REVISTA BPMA 53


da arte. Segue o ornamento das palavras e um extrínseco atavio, que com afável pompa acrescente notável força às formas de persuadir. É necessária a memória, para não tropeçar nos pedidos, e para não ocasionar náusea com a repetição de costumeiros artifícios, bem como para não confundi-los, e formando a contradição de um e outro fazer aparecer a falácia dos argumentos e a falsidade das fraudes. Concorre finalmente também o corpo com o gesto, que é a alma da eloquência, donde esta retórica recebe a vida e o ser, representando-se nesta parte o quanto ela se gaba de mais maravilhoso: promover os afetos.

Depois desses princípios, são apresentados quatro requisitos a serem preenchidos pela candidata à vaga: natureza (beleza e vivacidade), arte (para ocultar as falhas da natureza, sendo a coluna do edifício), exercício (pela variedade de amantes) e imitação (pela observação das putas mais prezadas). Além da imitação de modelos vivos, porém, estipula-se a imitação da teoria proposta agora em detalhes nas demais lições, “pois os mais excelentes na prática fazem uma cópia da teoria”.

Dão-se em seguida os meios de despertar os afetos no cliente: “dando a crer que apenas do afeto procedam as carícias, os abraços e os beijos, donde envisgado quem ama pelo crédito de uma pura afeição acorrenta-se ainda mais com os ligames de uma necessária correspondência”. Porém, requer-se moderação nos artifícios usados para não parecerem muito afetados e aborrecidos. Não se confundem aqui sexo e vulgaridade do trato social. Pallavicino parece ter clareza de que o sexo é do âmbito biológico e não do social, não sendo pois passível de ser-lhe aferido os valores deste. Assim, na Lição 4, nota-se que a variedade de clientes requer maleabilidade no tratamento: Haverá quem reclamará termos honestos mesmo na mulher de vida licenciosa, comprazendo-se s i n g u l a r me n t e­ de maneiras não tão livres ou­ , como diz o vulgo, desenfreadas. [...] Até no mostrar pudicos e santos pensamentos avantaje a cortesã os seus argumentos, quando os ânimos com estes se convençam; conheça por isso o temperamento para ter oportunidade de chegar a essas extravagâncias.

São retomadas então as cinco partes já elen-

Na lição quinta, adentra-se às quatro partes

cadas para o deleite, e da invenção pode-se destacar a seguinte passagem: “O atrativo dos prazeres supera a avareza, quando excede nas satisfações do apetite; ao menos leva a amargura da despesa, que muito mais aflige na falta da presença do real deleite”.

do discurso (ou oração, nos termos da época): exórdio, narração, confirmação e epílogo. A passagem seguinte da lição sexta resume os termos: “pode-se dizer que as quatro acenadas partes da oração figuram os quatro estados nos quais incorrem as fortunas de

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qualquer puta com os amantes”. O exórdio seria uma “introdução primária, donde, não se fechando o negócio, basta observar os dogmas prescritos em obrigação de adquirir benevolência e conciliar o amor”.

foi “encaminhada e o amásio entra na casa, passando dos discursos aos beijos e às carícias, com segura esperança de obter todo o seu comprazimento”. Nesse ponto, adverte-se a puta a ter mais rigidez, e vale trazer a seguinte passagem: “Não se dê tanta liberdade aos personagens de autoridade sem a segurança do ganho, pois que em tal ordem existem alguns indiscretos, os quais querem deitar raízes onde colocam um pé”. Para a confirmação, valorizam-se os exemplos mais do que a argumentação: “Empenhe-se mais com fatos do que com palavras, usando as maneiras dos gozos, e ali onde é mais afagado o amante, prove os esforços da força persuasiva delas”. E ao epílogo corresponde o gozo final, com o ápice da comoção dos afetos.

comuns: “a metáfora outra coisa não é senão um transferir as palavras do assunto próprio a lugar impróprio. Quando, portanto, costuma-se exclamar com frequên­cia ‘meu bem, minha alma, vida minha, assim eu morro’”. O mesmo ocorre com as demais figuras, como a sinédoque, definida na décima lição como discurso que acena em uma parte o todo, ou ao contrário amplia no todo as partes, exemplificada nestes termos: “Requeira portanto uma parte por tudo o que anseia receber”. E ainda a repetição, na décima primeira lição: “finja-se insaciável no comprazer ao amante e no multiplicar os passatempos, fingindo gozar com as satisfações dele”. A agudeza de Pallavicino na observação da realidade me parece alcançar seu ápice nessa mesma lição, quando afirma: “São falaciosos todos os negócios, pois é necessário primeiro expor a certeza, e quem não se expõe a nenhum risco nunca pode gozar o ansiado ganho”; ou seja (se é que é preciso explicar), o orador e a puta querem vencer pela assertividade, e a audiência e o cliente estão em perpétuo risco.

Passada em revista a ordem da argu-

A décima segunda lição toca na questão da

mentação, a lição oito toca no ponto da elocução (do estilo), tomada como “essência própria da retórica”, que reposta para o caso se traduz em “vestimentas do corpo austeras mas lascivas”, expressões do rosto graciosas e, especialmente, asseio.

sonoridade da composição, que aplicada ao caso é assim concebida: “outro ribombo não deve deleitar o ouvido da puta senão aquele dos metais mais sonoros, e por isso a sua eloquência aparecerá harmoniosa na multiplicidade dos amantes”. Nesse ponto, a velha aponta o papel da rufiona a justamente prover a clientela, saindo dos ensinamentos retóricos e entrando na sua própria negociação.

A narrativa ocorre quando a transação já

A lição nove traz o uso da metáfora, definida em termos comuns mas exemplificada em in-

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A décima terceira lição traz considerações gerais sobre o discurso, comparando-o com um corpo; devendo a aspirante observar “apenas de colocar os membros naquela parte do perío­ do no qual farão melhor efeito e se tornarão mais agradáveis ao homem”. Também aí são tratados os adornos da puta e da casa/cenário.

A questão da memória aparece na décima quarta lição, sendo necessária para não se contradizer, já que “seus discursos em conformidade com os costumes são um misto de mentiras e fingimentos”. No entanto, essa memória seria “uma artificiosa lembrança dos pontos necessários para a própria eloquência”. Daí o uso de quadros e gravuras lascivas em torno do leito, recomendando as feitas por conta dos Sonetos luxuriosos de Pietro Aretino, escritos no século xvi, as quais retratavam cenas de sexo explícito.

A décima quinta e última lição trata mais especificamente da ação, pela “eloquência corporal, operando artificiosamente a língua e o movimento dos membros”. Dos recursos da voz, destaca-se o uso do canto. Roma, Florença e Nápoles surgem como lugar de uso desse costume, com a participação de músicos e castrados “com seus putos”. Dos gestos, adverte-se a puta a “mexer-se gentilmente para mostrar-se vivaz, não já àqueles excessos donde alguma pareça enfurecida, e quase que a trabalhar em torno a um mármore se mova com impetuosa violência, o que por vezes machuca o amante”. A fala é explícita e pornográfica: “Invista se puder a puta, fazendo a isso consentir também o 56 REVISTA BPMA 69

amante, na maneira de gozar no flanco, ou nas pernas, ou no cruzamento do corpo envolto e concatenado junto”. Pallavicino retoma a cena das grandes cortesãs, donas de palácios e honrado cortejo, boa comida e rica mobília, reafirmando o dito na introdução. O último argumento finaliza a questão em termos práticos: “De dinheiro se mantém o homem, e o corpo mortal não se alimenta daquilo que saboreia a alma, a qual como imortal não estima nenhuma comida”.

Agruras da ignorância A conclusão da obra, porém, aparece ao modo dramático, com uma infeliz reviravolta, quando a jovem tem sua primeira experiência – algo desastrosa, especialmente para a velha que a agenciou. A virgindade prometida ao cliente não se deu, e a explicação não estava no conhecimento do sexo pela jovem mas na sua ignorância. A moça, que jamais havia se deitado com outro homem, havia contudo recorrido a conchas de sopa (caços, cazi) para coçar-se, fato que explicava ainda o mesmo problema acusado em outras moças que do claustro saíam para casar, tendo assim perdido a virgindade sem o saber.

Pallavicino adverte por fim ter feito o retrato da “puta pública e livre”, e não das que “por necessidade ou artifício exercem secretamente essa profissão, as quais são algumas viúvas ou senhoras casadas”. A ironia não deixa de expor o drama da situa­ ção. Também não se contempla na obra “a

puta honrada”, a que não cobra, sendo porém, a seu ver, pouquíssimas – sua misoginia foi apontada por Marchi também no Corriere.

Os conselhos passam a ser dados então ao leitor curioso das

“De dinheiro se mantém o homem, e o corpo mortal não

putas, exortando-o a usar igualmente de mentiras e ardis para não só se defender, mas também ter vantagem sobre elas. Prometer casamento é dado como ardil muito usado e eficaz; mas aos gentis-homens reconsidera-se o uso desses e de outros enganos e mentiras, bastando-lhes aprender a não ser enganado. Nesse ponto, há uma curiosa nota acerca do recurso a rapazes como prostitutos, observando-se que as cortesãs de Veneza, “avisadas para os próprios interesses, notam o prejuízo que acarreta à profissão ter concorrentes os rapazes, os quais usurpam delas a propriedade de dar prazeres, e em um e no outro sexo dão forma aos gozos humanos”.

Outro ponto que toca ao negócio do prazer diz respeito ao dispêndio

se alimenta

a ser administrado: “Em cada semelhante despesa, em suma, tome-se conselho da consciência do bolso, dispondo em tudo segundo sua largueza ou estreiteza”.

daquilo que

Findadas as lições, da velha e da vida, a confissão do autor traz

saboreia a alma, a qual como imortal não estima nenhuma comida”

justamente a tese do erro pela ignorância. Citando em latim a seguinte fórmula de Aristóteles ( Ética a Nicômaco, iii, 2), Omnis peccans ignorans, Pallavicino faz o reparo dizendo que estaria “enganado neste axioma” quem não o entendesse “ao inverso, isto é, que todo ignorante é pecador, tolo, celerado e abundante de qualquer iniquidade, conforme prova uma ordinária experiência”. A ignorância, no caso, diz respeito à naturalidade da relação sexual, completando com o médico Galeno, de quem cita que “reter o sêmen é veneno” (semen retentum est venenum). Com isso, Pallavicino retira a necessidade biológica do sexo da esfera ética de vícios e virtudes: “deveríamos atribuir a vergonha também ao comer e beber, pois não faço diferença do procurar a saciedade da fome com o alimento frente às satisfações do desejo carnal, não menos natural e necessário”.

De um lado, o libertinismo de Pallavicino chega ao excesso de defender o sexo público, argumentando o uso comum de urinar em público; de outro, mantém-se limitado, ao definir o “comércio” com o sexo oposto como o modo natural de satisfação sexual­. Apesar disso, o texto demonstra de maneira inusitada seu conhecimento prático e teórico acerca do tema abordado. De resto, cabe ao leitor ajuizar sobre suas necessidades e seus limites – limites necessários, e que se tornam naturais, na vida em sociedade –, de preferência, creio, sem se deixar seduzir pela argumentação alheia, seja a libertina, seja a moralista. 69 REVISTA BPMA 57


M archi, Armando. “La rete di Ferrante, o le due imposture”. In: pallavicino, Ferrante. Il Corriere Svaligiato. A cura di A. Marchi. Parma: Università, 1984. Pallavicino, Ferrante. La retorica delle puttane. A cura di Laura Coci. Parma: Fundazione Pietro Bembo/Ugo Guanda Editore, 1992.

Créditos das imagens Xilugravuras atribuídas a Agostino Caracci para a primeira edição de Sonetos luxuriosos, de Pitro Arentino. I Modi: Riemerge de quattro secoli di censura il libro maledetto del Rinascimento cui posero mano Marcantonio Raimondi. Giulio Romano e Pietro Arentino. A cura di Lynne Lawner. Milano: Longanesi & Co., 1984.

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Nos séculos xvii e xviii, “Gregório de

Matos e Guerra” era o nome que classificava poemas de diversos gêneros colecionados em códices manuscritos, principalmente o gênero satírico; a partir do século xix, passou a ser o nome de um homem desregrado, que expressa sua psicologia doente em poemas impressos e lidos na forma de antologias e livros. Esse deslocamento da significação do nome – antes classificação do gênero, depois psicologia do homem – e dos modos de publicação dos poemas – antes códices manuscritos, depois textos impressos – foi e é decisivo na recepção deles, e evidencia que as noções de autor, obra e público são históricas. Ou seja: os modos como os poemas são lidos e interpretados hoje são particulares, não podendo ser generalizados para todos os tempos. Aqui, trato desse assunto esquematicamente.

João Adolfo Hansen*

Garzoni, Tommaso. “Meretrici” (p. 592-602). In: Piazza Universale di tutte le professioni del mondo. Veneza: Robeto Meghetti, 1605.

Notícia da poesia colonial chamada “Gregório de Matos e Guerra”

Bibliografia consultada

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O homem Gregório de Matos e Guerra nasceu em Salvador da Bahia

Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor titular da mesma instituição. Também é membro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e autor, entre outras obras, de

Solombra ou A sombra que cai sobre o eu (Hedra, 2005) e A sátira

e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (2 ed. Ed. Unicamp. 2004), pela qual recebeu o prêmio Jabuti (1990) na categoria Ensaio.

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“Há muitas anedotas sobre a vida desregrada Francisco Goya, Los caprichos “Los Duendecitos”. Água-forte, 29,3 x 20,2 cm. Acervo bma

*Nota Biográfica:

em 23 de dezembro de 1636. Filho de senhor de engenho, recebeu o sobrenome do pai, Matos, e o da mãe, Guerra. Fez estudos no Colégio dos Jesuítas e, aos 14 anos, foi mandado para Lisboa. Em 12 de dezembro de 1652, matriculou-se na cadeira de Instituta (Direito Romano) da Universidade de Coimbra, seguindo cursos de Cânones, ou Direito Canônico, entre 1653 e 1660. “Anda aqui um estudante Brasileiro, tão refinado na sátira, que, com suas imagens e seus tropos, parece que baila Momo às cançonetas de Apolo”, declarou Belchior da Cunha Brochado, seu contemporâneo na Universidade. Graduou-se em Cânones em 24 de março de 1661, ano em que se casou com D. Michaela de Andrade. Foi Juiz de Fora em Alcácer do Sal (1663) e Juiz do Cível em Lisboa (1671). Emmanuelis Alvarez Pegas, em seus Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae (1682), informa que o juiz Gregório emitia sentenças em versos, como: “Gaita de foles não quis tanger / Vejam diabos o que foi fazer”, com que decidiu uma causa na qual a família da noiva exigia a devolução do dote porque o noivo não tinha consumado o dever conjugal. Foi Procurador da Cidade do Salvador nas Cortes de Lisboa de 1668 a 1674, quando foi exonerado pela Câmara Municipal da cidade baiana. Conta-se que em 1674 teve uma filha, Francisca, com Lourença Francisca. Ficou viúvo em 1678. Nomeado desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia em 24 de março de 1679, retornou em dezembro de 1682 para “esta peste / do pátrio solar”, como se lê em poema que lhe é atribuído, acompanhado do poeta português Tomás Pinto Brandão, o “Pinto Renascido”. Em 1683, pediu demissão; teria declarado que, sendo homem, não podia manter o voto de abstinência sexual como clérigo tonsurado. Botou banca de advogado, casou-se com D. Maria dos Povos, tiveram um filho, Gonçalo, que foi poeta. Há muitas anedotas sobre a vida desregrada que Gregório teria levado nos engenhos do Recôncavo, compondo poemas obscenos ao som da música de uma viola de cabaça. Em 1694, o governador João de Lencastre o degredou para Luanda, Angola. Fala-se que o fez para protegê-lo do filho do ex-governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho (1692-1694), vindo de Portugal para matá-lo, vingando o pai desonrado em versos obscenos que Gregório teria feito sobre a sodomia do Tucano (o narigudo Antônio Luís) com o Lagarto, Luís Ferreira de Noronha, Capitão da Guarda. Em Luanda, teria traído soldados sublevados, quando os setecentos libongos (palhas valendo cinquenta réis) do soldo foram substituídos por duzentas moedas. Não se sabe bem por que e como, voltou para o Estado do Brasil em 1695, indo para Recife, onde teria aberto banca de advogado. Usava “bananas, que chamam do Maranhão” como adorno do escritório, conta o Licenciado Manuel Pereira Rabelo, letrado baiano do século xviii. Em Recife, foi amigo do governador Caetano de Mello e Castro. Conta-se que morreu como ímpio, comparando o vermelho do sangue do corpo de Cristo de

que Gregório teria levado nos engenhos do Recôncavo, compondo poemas obscenos ao som da música de uma viola de cabaça”

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Na primeira metade do século xviii, seguindo o costume de letrados europeus que compilavam poemas em códices manuscritos, intitulando-os com o nome de um autor que classificava o gênero ou os gêneros deles, o Licenciado Manuel Pereira Rabelo compilou poemas que circulavam na Bahia na oralidade e em folhas avulsas, atribuindo-os ao nome Gregório de Matos e Guerra. Usando lugares-comuns extraídos dos poemas,­ 62 RBMA 69

Rabelo escreveu um retrato biográfico, “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra” (Vida do Doutor Gregório de Mattos Guerra. Pelo Lecenciado Manuel Pereira Rabello, Cofre 50, Códice 57, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). No retrato,

que é um gênero ficcional, Rabelo recorre a um lugar-comum para afirmar que recolheu os poemas, já “destruncados pelo tempo”, de folhas volantes e da boca de pessoas antigas que os sabiam de cor. São lírico-religiosos, lírico-amorosos, jocosos, satíricos, burlescos e fesceninos, além de um poemeto épico celebratório de Dionísio d’Ávila Vareiro, exterminador de bandidos paulistas que assolavam Boipeba, Camamu e Porto Seguro.

Desde o século xix, a ficção biográfica de

Francisco Goya, Los caprichos, “Contra el bien general”,Água-forte, 29,3 x 20,2 cm. A Acervo bma

um crucifixo que lhe deram a beijar com a vermelhidão dos olhos do menino vizinho com sapiranga. Conta-se que morreu cristãmente, pedindo perdão a Deus pelos pecados. De todo modo, em 26 de novembro de 1696, foi enterrado na capela do Hospício de Nossa Senhora da Penha, em Recife, demolida em 1870.

­ abelo foi lida como documento da vida R empírica do homem. Com isso, os poemas atribuídos ao nome do personagem Gregório passaram a ser lidos como expressão da psicologia do homem Gregório. A ficção do retrato é inventada com lugares-comuns de pessoa do gênero demonstrativo, gênero do louvor e da vituperação. Com eles, Rabelo compõe seu personagem como homem infame que é excelente poeta. Em todas as ocasiões, deseja a justiça a qualquer preço, porque é “inimigo acérrimo de toda hipocrisia”. O excesso do seu desejo de justiça o faz irracional, aristotelicamente vicioso: “(...) seguindo os ditames de sua natural impertinência habitava os extremos da verdade com escandalosa virtude”. Na ficção de Rabelo, a “natural impertinência” e a “escandalosa virtude”, que fazem o personagem excessivo habitar os “extremos da verdade”, são instrumentos da Providência Divina. Seu nome, Guerra, evidencia que, assim como a fome e a peste, o poeta é causa segunda ou instrumento de Deus para castigar a corrupção da Bahia com a sátira: “... e não é de admirar que, disparadas do trono da divina Justiça aquelas duas lanças de sua ira, seguisse a terceira com tão esquisito gênero de guerra em um homem que de sua Mãe unicamente tomou esse apelido entre outros partos. Ela o deu apelidando-se da Guerra; ele o foi sem aquela preposição da, por ser a mesma guerra ...”. “Boca do Inferno”, seu apelido, significa “Boca da Verdade”: “Ah Bahia! bem puderas / de hoje em diante emendar-te, / pois em ti assiste a causa / de Deus assim castigar-te”, diz o personagem satírico em poema que interpreta providencialmente a “bicha”, a epidemia de febre amarela de 1686. Outro afirma: “Sempre veem, e sempre falam, / Até que Deus lhes depare, / quem lhes faça de justiça, / esta sátira à cidade”.

Rabelo ficou esquecido até 1840, quando o Cônego Januário da Cunha Barbosa, membro

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicou no número nove da Revista do Instituto uma paráfrase do seu retrato de Gregório de Matos e dois poemas graciosos atribuídos ao poeta, “O músico castigado” e “O livreiro glutão”. Romântico, o Cônego Barbosa interpretou a ficção do retrato como documento da vida empírica do homem. Ou seja: interpretou como realidade­ da psicologia do homem o que no retrato é a ficção do caráter de um personagem.

A paráfrase foi repetida pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen no seu Florilégio da poesia brasileira, de 1850. Varnhagen­ publicou vários poemas, que atribuiu ao homem Gregório de Matos, interpretando-os como expressão psicológica de um sujeito desclassificado, vadio e doente. Apesar disso – quem sabe justamente por isso – homem pré-nacionalista, crítico da dominação metropolitana, arauto do Nacional. Varnhagen também deu início à censura da poesia atribuída a esse tarado, convencionando signos gráficos com que eliminou palavras, versos e estrofes inteiras. “Não deixaremos uma linha de reticências por cada verso omitido por não nos expormos a ver alguma vez uma página só de pontinhos.” E, como o Cônego Barbosa, suprimiu a interpretação providencialista da sátira, típica do antigo Estado português, que a entendia aristotelicamente como correção de abusos, substituindo-a pela ideologia nacionalista romântica. Em sua História da literatura brasileira, de 1870, Sílvio Romero retomou Varnhagen e Barbosa, propondo que Gregório foi “brasileiro”: não índio, não negro, não português, mas mazombo, “filho do país”, capaz de ridicularizar as pretensões separatistas das três raças formadoras da Nacionalidade. No final do século xix, José Veríssimo acusou a falta de originalidade e o plágio em poemas que são emulações ou imitações intencionais de Quevedo e Góngora, afirmando que seu autor tinha sido “homem nervoso”, “quiçá um 69 RBMA 63


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poemas satíricos obscenos denunciados como de mau e péssimo gosto. Na década de 1930, o crítico carioca Sylvio Júlio repetiu Veríssimo, afirmando que os poemas do “indecente tocador de viola” eram plágios. Outro, Agrippino Grieco, sentenciou que Gregório tinha sido um “parasita vitalício”. Em 1946, Segismundo Spina o chamou de “Homero do lundu” em seu Gregório de Matos. Em 1968, após estudarem dezessete códices, a maioria deles da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, James Amado e Maria da Conceição Paranhos publicaram o Códice Rabelo pela Editora Janaína, de Salvador (Obras completas de Gregório de Matos e Guerra. Crônica do viver baiano seiscentista, em sete volumes). Agentes da ditadura militar declararam Gregório de Matos “subversivo, anticlerical e pornógrafo” e confiscaram mil coleções para queimá-las em praça pública. A interferência de um político impediu o fogo. Poemas

Francisco Goya, Los caprichos, “La filiacion” (detalhe). Água-forte, 29,3 x 20,2 cm. Acervo bma

nevrótico”. Em 1893, Araripe Júnior publicou o livro Gregório de Matos, classificando o homem e a poesia atribuída a ele como espécimes da “obnubilação”, o entorpecimento da razão causado pelo clima tropical. A ideologia determinista de Araripe Júnior afirma que o Trópico amoleceu as conexões cerebrais do baiano. Suas sinapses relapsas causaram sua relaxação sexual e moral expressa na sátira. “Fauno de Coimbra”, quando jovem, Gregório foi “sátiro do mulatame”, quando velho, boê­ mio e quase louco na Bahia. O sátiro obnubilado expressa sua psicopatologia obscenamente com o ressentimento e o pessimismo do mazombo de origem fidalga que assiste à ascensão social dos tratantes burgueses enquanto a fidalguia velha decai. Essa interpretação fez e faz fortuna até agora. Em 1923, Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras, editou Obras completas de Gregório de Matos. Não tão completas, expurgam muitíssimos

que atacam a estupidez prepotente de autoridades do século xvii foram usados na resistência contra a ditadura de 64. No álbum Transa, de 1972, Caetano Veloso musicou o soneto “Triste Bahia, ó quão dessemelhante” como alegoria do Brasil de Médici. Na universidade, foi rotina aplicar às sátiras as formulações sobre o riso e a paródia na cultura popular medieval do teórico da literatura Mikhail Bakhtin. Interpretadas como libertinas, transgressoras, rebeldes, anárquicas, libertárias e revolucionárias, foram entendidas como expressão risonha da voz dos dominados coloniais contra a seriedade da classe dominante local e metropolitana. Citando o lema do poeta Ezra Pound “make it new” (“faça-o novo”) e outras autoridades poéticas, como T. S. Eliot, Garcia Lorca e Octavio Paz, que revalorizaram poetas do século xvii, como Donne, Góngora e Sor Juana Inés de La Cruz, concretistas de São Paulo afirmaram a novidade de procedimentos técnicos, versos e metáforas de Gregório de Matos no “presente de produção” da sua vanguarda de longa duração. Em 1989, com a obra O sequestro do Barroco. O caso Gregório de Matos, Haroldo de Campos acusou Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido, de sequestrar Gregório de Matos e o Barroco do cânone literário brasileiro. Afirmando que o poeta e o Barroco são fundamentais para o cânone literário constituído do ponto de vista do “presente de produção” da vanguarda, Haroldo de Campos criticou o nacionalismo do romantismo formativo de Candido e defendeu, com nacionalismo, a brasilidade de Gregório, dado como primeiro antropófago cultural brasileiro ou primeiro autor brasileiro de malandragens dialéticas.

Até agora, o leitor viu que Gregório de Matos foi e é plural: homem infame de humor sanguíneo excessivo, poeta causa segunda escolástica, instrumento da Providência Divina, Boca do Inferno, Boca da Verdade, homem vadio, doente, tarado, obnubilado, pessimista, ressentido, nacionalista, plagiário, parasita vitalício, indecente tocador de viola, canalha genial, vanguarda do proletariado colonial – os especialistas não têm documentação suficiente para dizer se leninista, stalinista ou trotskista –, moderno, antropófago cultural, paradigma da cultura baiana multietnicopolicultural, tropicalista, neoneovanguardista e pós-moderno. Evidentemente, não há nem pode haver interpretações verdadeiras dessa poesia. A poesia é ficção. E a ficção é irredutível a qualquer regime de verdade. Evidentemente, as interpretações sempre produzem novos valores de uso, inclusive valores críticos que a poesia não previa no século xvii, como ocorreu na época da ditadura militar de 1964. O que se pode dizer é que, quando universalizam para todos os tempos a particularidade datada dos seus critérios de definição de autoria, obra e público, as interpretações realizadas a partir do Cônego Januário da Cunha Barbosa desistoricizam o passado e o presente em que são feitas. Há outras recepções, algumas até muito mais originais,

“(...) Boca do Inferno, Boca da Verdade, homem vadio, doente, tarado, obnubilado, pessimista, ressentido, nacionalista, plagiário, parasita vitalício, indecente tocador de viola, canalha genial (...)”

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ceitos retóricos e teológico-políticos que modelam a poesia neles publicada evidencia que, na Bahia do século xvii, a sátira era praticada como subgênero poético do cômico, conforme se lê numa pequena nota que Aristóteles escreve na Poética. Segundo Aristóteles, a matéria do cômico é a feiura – do corpo, como deformidade e desproporção, e da alma, como estupidez e maldade. O feio é desproporção sem unidade e, quando o representavam, os poetas do século xvii aplicavam o estilo baixo das misturas deformadas de seus dois subgêneros aristotélicos: guelóion, traduzido em latim por ridiculum, ridículo; e psógos, traduzido latinamente por maledicentia, maledicência. Uma sátira a Pedralves da Neiva, fidalgo com foros falsos chegado a Salvador em 1692, diz: “Sejais, Pedralves, benvindo / E crede-me meu amigo / Que tudo o que aqui vos digo / Ora é zombando, ora rindo”. “Zombando”: a maledicência obscena adequada para tratar da deformidade que não faz rir, mas causa dor e horror, porque é a feiura dos vícios fortes caracterizados pelos excessos para mais; “rindo”: o ridículo correspondente à deformação que faz rir sem dor, pois é a feiura dos vícios fracos caracterizados pela falta, como excessos para menos. Sempre irracionais e sem unidade, aristotelicamente, vícios e viciosos são extremos para mais e para menos de um ponto médio equivalente à virtude unitária, racional, bela e honesta defendida pelo personagem satírico para a manutenção da hierarquia.

Ele é um ator complexo. Aristotelicamente definido, deve se apresentar publicamente como 66 RBMA 69

Quando canta as coisas baixas, o personagem satírico cita poeticamente as normas sociais do seu tempo. Citadas poeticamente, ou seja, ficcionalmente, são metáforas de princípios hierárquicos da “política católica” da monarquia portuguesa. Preenchendo os lugares­-comuns cômicos com referências extraídas dos discursos da Bahia, o satírico repete o sentido legal das normas, invocando-as metaforicamente para interpretar e castigar

vícios e abusos que figura no poema. Como talvez se saiba, é sempre a instituição que produz a perversão; no caso, as virtudes produtoras dos vícios são as institucionais: brancura da pele oposta a “raças infectas” de não brancos; religião católica oposta a heresia luterana, calvinista, maquiavélica, judaica, muçulmana, além da idolatria de índios e africanos; discrição cortesã oposta a vulgaridade plebeia; liberdade e ócio senhoriais opostos a escravidão e trabalho mecânico; sexo segundo o Direito Canônico oposto a sexo contra a natureza etc.

Na sociedade colonial, os poemas não pressupunham nenhuma autonomia crítica dos seus autores e de seus públicos, como acontece nas sociedades de classes contemporâneas. Todos eles definem a sociedade baiana como “corpo místico” de vontades subordinadas à cabeça mandante, o rei. Todos reproduzem aquilo que cada membro desse corpo político já é, e determinam, ao mesmo tempo, que deve ser e permanecer sendo o que já é. Assim, todos os seus destinatários também são incluídos na totalidade do “corpo místico” como membros subordinados que testemunham a representação satírica, reconhecendo e devendo reconhecer sua posição subordinada: “Desejo, que todos amem, / Seja pobre, ou seja rico, / e se contentem com a sorte, / que têm, e estão possuindo”. Quando reiteram o “cada macaco no seu galho”, os poemas funcionam como teatro corporativista em que se representa a hierarquia: encenam os vícios como abusos que a corrompem e, simultaneamente, propõem os bons usos do costume que os corrigem. Assim, a obscenidade é política: os nomes das partes baixas do corpo, suas funções fisiológicas e seus excretos são aplicados nos poemas como metáforas da condição social não branca, não católica, não discreta, não fidalga, não livre de tipos classificados como naturalmente feios, inferiores e desiguais.

Referências Bibliográficas: A Sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século 2 ed. revista. Campinas/São Paulo: Ed. Unicamp/Hedra, 2004. moreira, Marcello. Critica textualis in caelum revocata? Prolegômenos para uma edição crítica do corpus poético colonial seiscentista e setecentista atribuído a Gregório de Matos e Guerra. São Paulo: Edusp, 2011. hansen, João Adolfo. xvii.

29,3 x 20,2 cm. Acervo bma

O exame dos códices manuscritos e dos pre-

tipo virtuoso e indignado com a corrupção de sua pátria. Age para restabelecer a ordem natural das coisas, e sua arma são as torpezas agressivas de gênero baixo. Como nas liras contra Antônio de Sousa de Meneses, governador: “Oh não te espantes não, Dom Antônia, / Que se atreva a Bahia / Com oprimida voz, com plectro esguio / Cantar ao mundo teu rico feitio, / Que é já velho em Poetas elegantes / O cair em torpezas semelhantes”. Um preceito estoico, igualmente antigo, determina, como se pode ler em Sêneca, que a indignação também é indigna, pois também irracional. Logo, o satírico é um louco, tão estúpido e malvado como os viciosos. (Nas interpretações romântico-positivistas que desde o século xix psicologizam o artifício da ficção poética, esse preceito estoico aparece reformulado como expressão do ressentimento e pessimismo do homem Gregório.) Ambos os preceitos, o aristotélico e o estoico, determinam que o personagem satírico seja composto como tipo dramático que fala com informalidade correspondente à falta de controle da sua cólera. Obviamente, como a sátira é arte, a falta de controle não é decorrência da psicologia de um homem doente supostamente expresso nela, mas do ato de fingir do poeta, que inventa a irracionalidade da cólera do personagem fora de si com técnicas muito racionalmente regradas. Numerosos poemas evidenciam a convenção: “Eu sou aquele que os passados anos / cantei na minha lira maldizente / torpezas do Brasil, vícios e enganos”.

Francisco Goya, Los desastres de la guerra, “Farandula de charlatanes” (detalhe). Água-forte,

afirmando as metempsicoses de Gregório, mas não quero falar delas. Para resumir, digamos que a maioria das interpretações feitas nos séculos xix, xx e xxi não tem interesse pela particularidade histórica dessa poesia como prática simbólica de uma colônia do antigo Estado português.

69 RBMA 67


“Alma de Côrno” e Outros Espíritos Malditos em Pessoa Carlos Pittella-Leite

I. Sagrado & Profano

Há o Bocage que, segundo a mestra Cleonice Berardinelli, junto a Camões e Antero, ocupa o estreito pódio dos maiores sonetistas da língua portuguesa. Há o outro Bocage, de poemas e piadas de baixíssimo calão, incluindo célebres sonetos pornográficos. Os dois foram um só Bocage. § Por décadas, considerou-se apenas o Drummond modernista de Sentimento do mundo, um poeta tão duro quanto arguto, tão perfeccionista quanto inovador, consagrado entre os maiores poetas brasileiros. Eis que, um belo dia, postumamente se descobre o Drummond de O amor natural, dos poemas eróticos. Ambos foram Carlos Drummond de Andrade. § Decerto não se trata de um fenômeno exclusivo das Literaturas Portuguesa e Brasileira. Mesmo em tradições religiosas, personalidades como Santo Agostinho, São Francisco de Assis, Saulo/Paulo representam tanto o sagrado quanto o profano, em complexas biografias cheias de luz e sombra – ainda que mudem de nome, ainda que sejam canonizados, ou ainda que, como Bocage, urjam num escrito derradeiro: “Rasga meus versos, crê na eternidade!” 1 § Decerto versos são e serão rasgados. Contudo, nem mesmo as mais severas inquisições logram obliterar todos os versos profanos. Mesmo que versos sejam riscados, rasgados, ou queimados por autoridades, alguns apenas permanecem latentes, temporariamente escondidos por mãos hesitantes, acabando esquecidos ou extraviados – até que, um dia, súbito ressurgem para macular as reputações mais consagradas com as nódoas da realidade, a realidade do mundo da matéria, com seus fluidos e excreções. § É nesse sentido que há Fernando Pessoa, o maior poeta espiritual da língua portuguesa..., e há Fernando Pessoa, autor do soneto “Alma de côrno”, que, embora comece pela palavra “alma”, não explora uma temática transcendental, visto que a alma é “de côrno” (bem como o “espírito de porco” não é uma entidade espiritual). O caso é que esses dois Pessoas são o mesmo Fernando; e não se sabe de ninguém que tenha sido mais pessoas que Pessoa, um universo: uno e diverso. Nota Biográfica: Carlos Pittella-Leite é poeta, pesquisador e educador, autor de Civilizações volume dois (Palimage, 2005), de uma tese de doutorado sobre os sonetos de Pessoa (PUC-Rio, 2012) e professor titular do instituto Global Citizenship Experience, em Chicago, EUA. Em 2012, recebeu uma bolsa da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), a fim de realizar uma investigação dos sonetos inéditos de Pessoa, trabalho que inspirou este artigo.

Nota do Editor: A pedido do autor, a acentuação dos ditongos em palavras paroxítonas e o uso da trema foram mantidos. 1 Bocage, “Soneto CCL”. 69 RBMA 69


II. Alma & Côrno No espólio número 3 (e3) da Biblioteca Nacional de Portugal (bnp), em Lisboa, encontra-se a maior parte dos manuscritos de Fernando Pessoa, excluindo-se os papéis ainda em mãos de herdeiros do poeta. Entre as dezenas de milhares de textos pessoanos, escritos recorrentemente em inglês, francês e português, há muitos sonetos, a forma mais popular da poesia lírica – em que o poema se organiza em catorze versos, com estrofes seguindo ou a tradição italiana, simbolizada por Petrarca (dois quartetos e dois tercetos), ou a tradição inglesa (três quartetos e um dístico), encarnada por Shakespeare. Dos sonetos em português espalhados por vários envelopes do espólio, pouquíssimos estão ainda por publicar, visto que a exploração da poesia em língua portuguesa de Pessoa foi muito mais intensa do que as de língua inglesa ou francesa. Em princípios de 2013, colaborei com o Prof. Jerónimo Pizarro para publicar, na primeira edição da revista Granta, em Portugal, cinco sonetos inéditos de Fernando Pessoa em português – entre eles o poema “Alma de côrno”, datável de 1910 e assinado com letra ilegível, à primeira vista. É este o texto que a muitos surpreendeu, a alguns chocou, e que forneceu o tema deste ensaio. Transcrevo-o a seguir, tal como publicado na Granta, seguindo a ortografia do poeta no manuscrito de cota e3 36-10 na bnp (notem-se as crases invertidas, já não utilizadas no português atual).

70 RBMA 69

Alma de côrno – isto é, dura como isso; Cara que nem servia para rabo; Idéas e intenções taes que o diabo As recusou a ter a seu serviço – Ó lama feita vida! ó trampa em viço! Se é p’ra ti todo o insulto cheira a gabo – Ó do Hindustão da sordidez nababo! Universal e essencial enguiço! De ti se suja a imaginação Ao querer descrever-te em verso. Tu Fazes dôr de barriga á inspiração. Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo, Tu fazes sempre mal. És como um cú, Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!

O que seria uma “Alma de côrno”? O Dicionário Houaiss da língua portuguesa inclui, entre as acepções de “côrno”, a definição número 16:

“que ou aquele que é traído pela mulher (diz-se esp. de marido, companheiro ou namorado); cornaça, cornudo, guampudo”. Nesse sentido, uma alma de “côrno” seria aquela de alguém traído, ou de alguém cuja essência estaria traída. Contudo, em bom (ou mau) português, o xingamento “côrno” aplica-se às mais diversas ocasiões, de relações amorosas a brigas cotidianas. A definição de “alma de côrno”, portanto, talvez não seja tão simples. O próprio poeta busca explicar-se, ainda no primeiro verso: “Alma de côrno – isto é, dura como isso”. Logo, trata-se de uma alma tão dura quanto um corno, um chifre; uma alma verdadeiramente rígida, como sugerem tanto a metáfora, quanto a acentuação métrica do verso: decassílabo, ele força o leitor a fundir a segunda sílaba de “co-mo” com a primeira de “is-so”, gerando uma superacentuação, “co-moIs-so”, na qual o segundo “o” torna-se a semivogal “u” num ditongo crescente: “co-muÍs-so”. Veja-se a escansão do verso:

Al-

-ma

de

côr-

-no–is-

-to_é,

1

2

3

4

5

6

du7

-ra

co-

8

9

-mo_is 10

-so; --

Não é só a abertura do soneto com a expressão “Alma de côrno” que causa espanto, mas também o desenvolvimento de versos que culminam noutra comparação, feita com o mais breve palavrão da língua portuguesa: “cú”, palavra duplamente acentuada no soneto (pelo acento agudo e pela rima), no clímax do poema. Como poderia um soneto tão chulo, brutal, ter sido escrito pelas mãos do mesmo autor dos poemas místicos de Mensagem, dos tão filosóficos 35 Sonnets, das clássicas Odes de Ricardo Reis? Seria mesmo Pessoa o autor deste soneto?

III. Paú & Nabos Para os decifradores das letras (freqüentemente hieroglíficas) de Pessoa, há algo que imediatamente chama a atenção ao ler o manuscrito de “Alma de côrno” – algo além do peculiar vocabulário do poema. Ao contrário do que ocorre com os sonetos inéditos de Pessoa, a caligrafia deste poema é bastante legível, o que torna surpreendente ele ter permanecido inédito até 2013. De fato, a caligrafia de “Alma de côrno” é tão mais legível se comparada aos outros poemas inéditos que, ao encontrá-lo no espólio da bnp, imediatamente pensei que não se tratasse de um texto de Fernando Pessoa, mas sim de alguém que o tivesse presenteado ao poeta, ou de quem Pessoa tivesse copiado, com rara paciência caligráfica. O primeiro caso careceria de uma pesquisa biográfica (quem poderia ter presenteado o soneto a Pessoa?); o segundo, de uma pesquisa bibliográfica (que poetas Pessoa poderia ter copiado?). O segundo caso (Pessoa ter copiado o poema) não seria o único, pois há pelo menos um soneto jocoso limpidamente copiado pelo poeta num caderno: “Fanfarunfias, farofas, bagatelas” (cota 153-6r na bnp), poema anônimo dirigido a um tal António Isidoro dos Santos, profes-

sor de Retórica que, à primeira leitura, parece até uma personagem pessoana! Este Isidoro, porém, consta no Diccionario Bibliographico Portuguez, tendo nascido em 1743, em Coimbra, onde lecionou Retórica, supostamente traduziu a Arte Poética de Horácio e travou um duelo poético com o autor brasileiro Silva Alvarenga (1749-1814) quando este era estudante em Coimbra.2 Voltando ao soneto “Alma de côrno”, se o texto é bastante legível, a assinatura, porém, pareceu-me inicialmente indecifrável – como se o autor não se quisesse dar a conhecer. Busquei o poema em edições de poesia de escárnio e maldizer; sem sucesso, folheei obras de Gregório de Matos, Bocage e outros poetas malditos. Perguntei, então, à Profa. Cleonice Berardinelli, mestra em Pessoa e minha orientadora; Cleonice e eu perguntamos ao Prof. Helder Macedo, conhecedor de antologias maledicentes... Nada. Antes de passar à pesquisa biográfica, analisei a curiosa assinatura do poema:

Empreguei softwares como Photoshop e fotos em alta resolução; comparei a assinatura com a caligrafia de sonetos em que a atribuição a Pessoa é indiscutível; busquei outros manuscritos pessoanos em papel, tinta e datações similares. A essa altura, ocorreu-me uma idéia: ora, seria estranhíssimo assinar versos doutrem… com uma rubrica! Decerto a assinatura parece uma rubrica: seria ela “fp”, iniciais de F[ernando] P[essoa]? Prossegui buscando rubricas similares, sem encontrar mais “fp”s. No entanto, contemplei a assinatura do soneto “Nova Ilusão” (cota 35-28).

2 F. Topa, Silva Alvarenga. 69 RBMA 71


Eis o plano: compor uma rubrica a partir dessas iniciais e observar se este forjado “fp” não seria similar à hipotética rubrica do poema “Alma de côrno”. Segue abaixo a assinatura de “Nova Ilusão”, despida de tudo além das iniciais.

=

Foi também o Prof. Jerónimo Pizarro quem exclamou “Gaudêncio Nabos!” quando sugeri o soneto “Alma de côrno” para a antologia da revista Granta: eis que outra personagem adentra o drama de um soneto. O Prof. Pizarro prosseguiu, sem hesitar: “É uma provocação a Gaudêncio Nabos; note as preciosas rimas em '-abo', feitas sob medida para irritar o destinatário da maliciosa mensagem”. E a relação também se fundamenta no jornalzinho O Palrador, pois foi a Gaudêncio Nabos que Pessoa delegou sua direção literária em 1905.

Combinando as iniciais retiradas da assinatura de “Nova Ilusão”, justapus o resultado à assinatura de 
“Alma de côrno”:

& Eureka! A rubrica de “Alma de côrno” parece mesmo

ser “fp”, iniciais de Fernando Pessoa... ou de Francisco Paú! Dentre a miríade de personagens do universo pessoano, Paú é mero figurante, correndo o risco de passar despercebido. Ele dirigia a seção humorística de O Palrador, um jornalzinho inventado pelo poeta quando jovem. Ora, uma seção humorística seria labor apropriado para o autor dos versos de “Alma de côrno”. Sem encontrar assinaturas de Paú, mas satisfeito com a pesquisa, decidi incluir o soneto em minha tese de doutorado, levantando a hipótese da dupla-atribuição a Francisco Paú e/ou Fernando Pessoa. Um ano depois, o Prof. Jerónimo Pizarro me indicou uma série de manuscritos pessoanos contendo assinaturas “fp” análogas à do poema “Alma de côrno”, e em contextos em que a atribuição deveria ser mesmo feita ao Fernando Pessoa ortônimo. Três exemplos disso são os testemunhos de cota 133b-32r (fac-similado ao lado, à esquerda), 18-115v e 1142-69 – além de textos assinados “fpessoa” (como o 92f-84v, à direita), em que as duas consoantes iniciais constituem mais um exemplo de “fp”.

72 RBMA 69

Se fp pode ser “Francisco Paú” ou “Fernando Pessoa”, Gaudêncio Nabos também pode ser “gn”, o destinatário de um soneto em inglês assinado por Alexander Search, datado também de 1905. Trata-se do soneto “Liberty”, “to g.n.”, que principia pelo verso “Oh, sacred Liberty, dear mother of Fame!”. O Dr. Gaudêncio Nabos, humorista anglo-português, jornalista e diretor literário de O Palrador, teria, portanto, dois sonetos feitos em sua “homenagem”, por duas personagens distintas de Pessoa. Enquanto Search encarnava o papel de correspondente da África do Sul, a informar o diretor literário com uma carta-soneto, Paú estaria a entregar, como um bilhete de assinatura misteriosa, um soneto que certamente implicaria sua demissão imediata do jornal, caso seu patrão Gaudêncio Nabos viesse a recebê-lo e decifrá-lo.

Entre as minhas incertezas e as exclamações do Prof. Pizarro, decidimos publicar o poema, que passou a simbolizar uma provocação à imagem que construímos de Fernando Pessoa. Às vezes, imagino se alguém ainda encontrará o soneto “Alma de côrno” numa antologia desconhecida de sonetos satíricos, exclamando que atribuímos o soneto erroneamente. Embora isso seja possível, creio que meu desconforto tenha uma razão psicológica mais provável: minha expectativa de versos elegantes foi destruída ao admitir que o soneto “Alma de côrno” era de Pessoa. O Prof. Pizarro, mais experiente, já tinha aprendido a lição fundamental do labirinto pessoano: não ter expectativas, pois Pessoa não será pessoa acabada até ajuntarmos todas as peças do quebra-cabeça. fp, Nabos, Paú, Palrador... Seguimos todas as pistas encontradas, sem descobrir informações conflitantes que justificariam atribuir o poema a outro autor. Mesmo assim, como acabo de confessar, minha certeza não é total: há sempre uma dúvida em minha nada cega fé. Imagine-se, então, a reação do público a este soneto: em meio a exclamações, houve controvérsias públicas em redes sociais, com reclamações que foram desde o questionamento “por que editar um poema que diminui o legado de Pessoa?”, até a incredulidade total de “este poema não é de Pessoa, em hipótese alguma!”, passando por ataques ético-chauvinistas tais como: “os brasileiros (nacionalidade em que me incluo) são os reis do apócrifo e, portanto, este poema talvez tenha sido falsificado” – embora a edição da revista Granta incluísse tanto o fac-símile do original, quanto a indicação da cota sob a qual o poema pode ser encontrado na bnp.

IV. Pancrácio & Coelho O primeiro soneto de Fernando não foi assinado por Pessoa, mas sim pelo doutor Pancrácio, quando o poeta tinha ainda 13 anos. Trata-se de “Sonho”, texto em que os temas do sonho, da ilusão e da alma já surgem, se não com o mesmo requinte poético, certamente com a mesma intensidade que marcará a lírica pessoana. O dr. Pancrácio tem outro soneto sobre a alma, mais especificamente sobre a teoria da transmigração – que fornece o título do poema (“Metempsicose”) e ecoa o “Transforma-se o amador na cousa amada”, que Camões tomou emprestado de Petrarca. Antes que o leitor veja o dr. Pancrácio como um modelo de erudição, lembremos que ele também assina dois outros sonetos, cada um deles ridicularizando a imagem da mulher, aqui africana, acolá portuguesa. Transcrevo, a seguir, um desses poemas de Pancrácio, datado de 5 de julho de 1902, incluído na “Nova Serie” do jornalzinho O Palrador (cota 87-25v).

Quanto mais acirradas as reações, mais importante se torna este mero soneto chulo, e mais necessário se faz lembrar que, como todos nós, Fernando Pessoa foi um universo de sensações, com a diferença poética de que, nele, tais sensações ganharam corpo e voz e poesias, tão sagradas quanto profanas — o que nos fornece a oportunidade de resgatar outras profanidades cometidas por esse ser de tantas almas.

69 RBMA 73


V. Campos & Bebé fp não é o único a xingar. Álvaro de Campos é desbocadíssimo, chegando a concluir seu soneto “Regresso ao Lar” com “E berdamerda para o que saberei” – fecho que não pode ser tachado de pueril, visto que data de 1935, último ano de vida do poeta. Em sua juventude poética, de fato, Campos se dedica a chocar toda e qualquer moralidade, como atestam os excertos abaixo:3

Galeria Africana – 1. Mulher Universal O seu rosto repleto de meiguice Inda contém os rastos de bexiga, Quer que eu guarde segredo e que não diga O que eu a todos digo e sempre disse: – É alourada como esbelta “miss”, Dos franceses costumes é amiga, E quer que assim como ela tudo siga Das lindas gaditanas a doidice...

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, Que emprega palavrões como palavras usuais, Cujos filhos roubam às portas das mercearias E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! — Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.4

Leitor, aos seus encantos seja cego, Ante seus olhos seja forte – adeus! – Se cede à fala que ela tem di lá. Que é bonita, leitor, eu não te nego, Mas quando ri (louvado seja Deus) Parece estar tocando um fungágá!!… Com apenas quatro sonetos, as estatísticas de Pancrácio são simples: 50% sagrado, 50% profano. Considerando que, etimologicamente, Pancrácio é o “Todo Poderoso” (Pan + Kratos), temos já, na mera adolescência do poeta, a idéia de que a toda-poderosa poesia pode abordar quaisquer temas, e não apenas os agradáveis ou filosofais. Há outro dado que faz Pancrácio ganhar importância: uma lista dos funcionários de O Palrador (no caderno 144r-1), que esclarece: “Director da Secção Humorística: Francisco Paú (Dr. Pancrácio)”, como se Pancrácio fosse pseudônimo de Paú, ou vice-versa.

Coelho, ha [] creado (Bicho tão manso deve ser bom, va, Disse comigo). “Traga-m’o guisado. Não ha melhor talvez, nem mesmo assado É uma coisa que no gôto dá.

Pancrácio ridiculariza sua musa. fp (Fernando Pessoa ou Francisco Paú) escracha seu diretor literário Gaudêncio Nabos (gn). Em dois poemas, datados de 1905 e 1914 pelo pesquisador Luís Prista, Pessoa ataca Adolfo Coelho (um dos seus ex-professores) com as mesmas armas semânticas que fp empunhou contra Nabos – empregando trocadilhos para difamar o ex-mestre. Transcrevo o poema de 1905 (cota 50b1-36v), seguindo majoritariamente a leitura de Prista, com sugestões do prof. Pizarro.

Este do Curso, disse eu *animado Será (que é horror) bem mais delicado Mas d’engulir é [] má Bi-illudido, estou desenganado E tenho ainda mais horror ao A. Coelho.

74 RBMA 69

E deu. Juro, não sei porque peccado M’engasguei. Eu sem dar por isso pá Tomei horror ao traiçoeiro bocado E ao lettreiro que vi posto “Ha Coelho.”

Se Pessoa foi capaz de ridicularizar mestres e musas, por que seria surpreendente que ridicularizasse uma de suas criações heteronímicas? Seria, porém, no universo poético de Álvaro de Campos que o atrevimento pessoano atingiria, talvez, seu ápice.

Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus, Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa, Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso... Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar, De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo, De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo, De me meter adiante do giro do chicote que vai bater, De me [] De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam(…),6

Ah, torturai-me para me curardes! Minha carne — fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros! Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam! Minha imaginação o corpo das mulheres que violais! (…) Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!5

Álvaro de Campos sabe, pois, ofender... tanto em poemas breves quanto em textos monumentais.

Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho! O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim! (…) Meto esporas! Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,

Nesses meros sete versos, Campos escorraça a imprensa portuguesa. Já em seu longo “Ultimatum” sensacionista (meio em verso, meio em prosa), xinga a todos os representantes da cultura e política coetâneas – ainda que muitos desses xingamentos demandem estudos profundos para ser compreendidos, tão elaborados que são.

Ora porra! Então a imprensa portuguesa é que é a imprensa portuguesa? Então é esta merda que temos que beber com os olhos? Filhos da puta! Não, que nem há puta que os parisse.7

3 Os excertos foram transcritos por C. Berardinelli, em Poemas de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa. 4 “Ode Triunfal”. 5 "Ode Marítima". 6 "Saudação a Walt Thitman". 7 Apud C. Berardinelli op. cit. 69 RBMA 75


Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fóra. Fóra tu , Anatole France, Epicuro de pharmacopeia homeopathica, tenia-Jaurès do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em loiça do século dezesete, falsificada! Fora tu, Maurice Barrès, feminista da Acção, Châteaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da patria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu commercio! Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das particulas alheias, psychologo de tampa de brazão, reles snob plebeu, sublinhando a regua de lascas os mandamentos da lei da Egreja! Fora tu, mercadoria Kipling, homem-practico do verso, imperialista das sucatas, epico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa immortalidade! Fóra! Fóra! (…)8 Álvaro de Campos atreve-se a infiltrar até mesmo a vida amorosa do próprio Fernando Pessoa, surgindo em plena correspondência com Ofélia Queirós – correspondência que, aliás, ainda choca quem julga tais cartas de amor como literatura inferior, como se pudéssemos separar Fernando, o poeta dos nossos poemas preferidos, do homem apaixonado e ridículo – como se o tema (e não a obra em si) fosse suficiente para avaliar qualidades literárias. Entretanto, há cartas belíssimas, atrevidíssimas, criativíssimas, em que o superlativo Campos irrompe embriagadamente, tal como na carta de 5 de abril de 1920.

Meu Bebé pequeno e rabino: Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa coisa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra. Sabes? Estou-te escrevendo mas não estou pensando em ti. Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da caça aos pombos; e isto é uma coisa, como tu sabes, com que tu não tens nada. Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem disposta, e eu estava bem disposto, e o dia estava bem disposto também (…). Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade. A terceira razão é haver só duas razões, e portanto não haver terceira razão nenhuma. (Álvaro de Campos, engenheiro). Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo... Meu Bebé para sentar ao colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para... (e depois o Bebé é mau e bate-me...) «Corpinho de tentação» te chamei eu; e assim continuarás sendo, mas longe de mim. Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho (...)9 Álvaro de Campos, cujo lema era “sentir tudo de todas as maneiras”, não poderia deixar nenhuma sensação de lado...

8 "Ultimatum", em Portugal Futurista, 1917. 9 F. Pessoa, "Carta a João Gaspar Simões, 18 nov. 1930", em Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simôes. 76 RBMA 69

VI. Antínoo & Safo Paú, Pancrácio, Campos... O poeta abraçou o profano e o vulgar na obra de suas personagens. Seria, porém, Pessoa capaz de assinar com o próprio nome textos que ferissem a moralidade da época? Certamente assinou-o ao publi car, em inglês, “Antinous” [Antínoo] e “Epithalamium” [Epitalâmio], e chegou mesmo a chamá-los de obscenos – como explica em carta a João Gaspar Simões, relatando o processo de expurgação poética de tais obscenas sensações, como se fossem demônios a exorcizar em sua poesia.

Uma explicação. Antinous e Epithalamium são os únicos poemas (ou, até, composições) que eu tenho escrito que são nitidamente o que se pode chamar obscenos. Há em cada um de nós, por pouco que especialize instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidentemente, varia de homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente. É nisto que se baseia o que será para v. a violência inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas – e sobretudo no Epithalamium, que é directo e bestial – se revela. Não sei porque escrevi qualquer dos poemas em inglês.10 O poeta esforça-se em não reprimir suas sensações, transformando-as em poesia. É interessante indagar o quanto nós, leitores e editores do poeta, talvez inconscientemente, reprimimos nossa leitura da poesia pessoana – donde preferiríamos talvez considerar “Alma de côrno” como um soneto doutrem, ou talvez editar poemas como seu “Soneto Positivo” com as menos obscenas opções de leitura. Eu próprio sou culpado disso: ao retranscrever o “Soneto Positivo” (já presente em outras edições), não questionei as opções do editor primeiro, que na segunda estrofe leu “tez & mês” em vez de “teza & meza” – como me apontou o Prof. Maurício Mattos em minha defesa de tese.

Soneto Positivo (17-8-10) [cota 37-22] Infandum, regina, jubes renovare dolorem Ó Sappho negra, sub-rameira, ronha Do vício em q’rer achar-se subtileza, Não é das portuguezas a vergonha, Você, por não ser uma portugueza. Volte p’ra o seu paiz, onde a alma sonha De bocca aberta []como que teza
 E a confusão de tudo é tão medonha Que o copular é um prazer de meza. Vá. Não tenha medo que eu lhe fuja Nem a você nem [] E se, por não poder ficar mais suja, Por perversão mais limpa se fugir, Tenha a certeza, que se não morri, Vocemecê inda me agarra aqui. A epígrafe latina do “Soneto Positivo” é o terceiro verso do Livro ii da Eneida, de Virgílio; uma tradução possível seria “Ó Rainha, tu força-nos a rever dores impronunciáveis” – o poeta sente a obrigação de abordar o tema, ainda que contra a sua vontade, ainda que isso lhe cause dor. Por que, então, classificaríamos os poemas segundo nossa arbitrária vontade? Por que nossa tendência é cânones (antolhos) da poesia (pessoana e em geral), antes de nos darmos ao trabalho de conhecer e decifrar a obra completa, com sua vontade interna? Por que não questionamos a moralidade de nossas precárias posições censórias, antes de julgar a imoralidade da poesia?

10 F. Pessoa , "Carta a João Gaspar Simões, 18 nov. 1930", em Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. 69 RBMA 77


VII. Homem & Super-Homem Por que, afinal, o soneto “Alma de côrno” teria ficado inédito por tanto tempo? Não se trata da poesia em língua inglesa de Pessoa, em grande parte ainda por explorar; também não é de difícil leitura, pois a caligrafia é clara. Há duas explicações possíveis: 1) talvez por ser difícil comprovar que o poema fosse de Pessoa, ou 2) conscientemente ou não, talvez por não querermos que o poema seja de Pessoa, nem que receba destaque... Ora, esse desejo de desimportância, multiplicado pelo tempo em que o texto permaneceu inédito, confere agora importância ao soneto – como algo que, ao ser de tal maneira reprimido, acaba, pela lei da ação e reação, tornando-se explosivo. A obra de Fernando Pessoa é plena de experimentações, um novelo de complexidade exponencial, que, com a morte do poeta, começou a enovelar-se ainda mais, como se qualquer tentativa de resolução estivesse fadada a embaralhar ainda mais as coisas. Entretanto, daí tampouco se poderia concluir que se trata de uma obra sem propósito – pois há propósitos (no plural) por toda parte. Na obra do heterônimo Ricardo Reis, um propósito surge como máxima: “Para ser grande, sê inteiro”. Por que, então, o poeta excluiria a obscenidade dessa inteireza? O “Ultimatum”, assinado por Álvaro de Campos, oferece outro propósito (ou uma versão do mesmo):

E proclamo também: Primeiro: O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo! E proclamo também: Segundo: O Super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo! E proclamo também: Terceiro: O Super-homem será, não o mais livre, mas o mais harmónico!11

* Referências Bibliográficas: Voltamos, pois, ao ponto de onde partimos, pois “o super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo”; logo, o super-homem não terá “alma de côrno – isto é, dura como isso”. Ao contrário do complexo, inteiro e pleno super-homem pessoano, aqueles que não sabem mudar (de opinião, de cânone, de moral) é que teriam “alma de côrno – isto é, dura como isso”. Talvez o poeta estivesse o tempo todo a caçoar de nós, leitores ansiosos por possuir a palavra final sobre sua poesia, tal como um patrão Gaudêncio Nabos que quisesse comprar o espírito de seu empregado-poeta, que não tem medo de trair-se, pois sua alma comporta as almas todas, inclusive a do patrão.

Andrade, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Berardinelli, Cleonice. Poemas de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa. Fixação do texto, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Bocage, Manuel Barbosa Maria du. O livro dos sonetos. Bibliotheca Universal Antiga e Moderna, 19a Série, Número 76. Lisboa: “A Editora”, 1908. Camões, Luís de. Os sonetos de Luís Camões. Organização de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Lisboa: Clássica, 1942. _______________. Obra completa. Organização de Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Aguilar, 1863. Houaiss, Antônio et al. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. Pessoa, Fernando. “Ultimatum de Álvaro de Campos – sensacionista”. Separata do Portugal Futurista. Lisboa: Tipografia P. Monteiro, 1917. _________________. Cartas de amor. Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz. Lisboa: Ática, 1978. _________________. Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. Introdução, apêndice e notas do destinatário. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, 2a ed. Pittella-leite, Carlos. Pequenos infinitos em Pessoa: uma aventura filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2013. Pizarro, Jerónimo & pittella-leite, Carlos (eds.) “Como se Eu fluísse" Granta. Lisboa: Tinta-da-China, vol. i, Junho de 2013, pp. 95-117. Prista, Luís. “Pessoa e o curso superior de letras”. In: Memória dos afectos – homenagem da cultura portuguesa ao Prof. Giuseppe Tavani. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 157-85. Silva, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez, vol. i. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858. Silva, Manuela Parreira da. Correspondência de Fernando Pessoa (1905-1922). Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. ______________________. Correspondência de Fernando Pessoa (1923-1935). Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. Topa, Francisco. Silva Alvarenga – Contributos para a elaboração de uma edição crítica das suas obras. Porto: s.n., 1994. Virgílio. The Works of Virgil – Translated into English Prose, vol. i. London: Excudebant J. Nichols et Filius, 1826.

Imagem da abertura: Revista Grande Hotel, J.M. Symes, N0 152, 1950, p. 2

11 "Ultimatum", op. cit. 78 RBMA 69

69 RBMA 79


s o i o p 茫 贸 p c a s J e l o e n t o s x e O os e


No período Edo, mercadores holandeses introduzem no Japão o uso do telescópio, que tem um imenso sucesso. Ultrapassar os limites do corpo e projetar-se, literalmente, no interior de aposentos situados a várias centenas de metros parece magia aos olhos dos primeiros espectadores. Assim, Utamaro, em 1790, mostra um casal curiosamente enlaçado: a mulher, a cavalo sobre o homem, está de costas para ele e parece ter muito mais interesse em olhar para a casa vizinha... Enfiada no membro intumescido de seu parceiro, apoiada na balaustrada de sua varanda, ela observa três moças que, elas próprias (numa outra ilustração que apresenta a cena como se fosse um espelho), a estão espionando com o auxílio de um telescópio! A forma fálica do telescópio – que, aberto, atinge até quatro vezes seu tamanho (às vezes mais) – incita, aliás, os humoristas a considerarem esse objeto intrusivo como uma espécie de brinquedo erótico. São essencialmente as mulheres que o utilizam. “Como o telescópio é pretensioso! Em seguida os olhos voltam ao normal”, zomba um poeta do século xviii. Munidas de seus telescópios, as heroínas de determinados manuais pornográficos intrometem-se nas relações sexuais que espionam sem serem percebidas, que comentam em voz alta e das quais acabam por... tirar proveito. Com uma mão no telescópio e a outra entre as coxas, fazem uma sessão de cinema pornô, com dois séculos de antecedência à invenção do vídeo. Verdadeira prótese escópica, o telescópio dá, mesmo aos que têm menos dinheiro, o poder de visitar bordéis. Graças a ele, até os monges podem atravessar as barreiras de determinados bairros nos quais não têm rigorosamente o direito de entrar. Quem nunca sonhou em brincar de atravessar paredes? No século xviii, essa fantasia leva à instalação de lunetas, que podem ser alugadas por alguns minutos, no alto de torres ou de mirantes. As lunetas mais conhecidas estão em Atago, Shinagawa, Yushima e também (em Kioto) acima do Kiyomizu-dera, o templo dos apaixonados. Porém as mais populares são, com certeza, as que permitem espionar os bairros de prostituição. Há a de Yushima (o bairro de prostituição masculina), por exemplo, que fez os autores de senryu1 dizerem: “Escolham o rapaz que quiserem / depois tenham relações com ele / por telescópio”. 82 RBMA 69

1

Senryu é um gênero

poético derivado do haiku. Em três versos, fala da natureza humana de modo irônico ou satírico [N.E.].

69 RBMA 83


Em Tóquio, a torre de Ryounkaku, de doze andares, erigida em 1890 – destruída por ocasião do terremoto de 1923 – ergue-se acima do bairro de Asakusa... e de suas zonas miseráveis. “A luneta situada no último andar, que aumentava até trinta vezes, era famosa em toda Tóquio”, conta Kazuo Koike, roteirista de Lady Snowblood (a obra que inspirou Tarantino a fazer Kill Bill). Em seu mangá, Lady Snowblood, matadora de beleza glacial, espiona as idas e vindas de prostitutas que chamam as pessoas entre os bordéis de um bairro construído como se fosse um labirinto “a fim de que nenhuma mulher pudesse dele escapar”. Uma vez dentro, “mesmo aquele que conhece bem essa região tem dificuldade de sair. É uma das características desses bairros do prazer”, comenta Koike. Visto do alto com o auxílio de um telescópio, caem as divisões do labirinto. Como se o bairro de prostituição fosse apenas um emaki,2 o olhar se desloca livremente. Entre as ruelas iluminadas por lanternas, aliciadoras abrem as abas de seus quimonos e mostram seu sexo aos transeuntes deliciados, tocam-lhes nos ombros sussurrando palavras ternas e os conduzem ao bordel, no meio de uma intensa circulação de clientes que sobem as escadas, saem dos quartos ou pedem algo para beber através de uma divisória entreaberta. A vida de formiga das prostitutas se apresenta, então, como um afresco vivo, e os voyeurs metem aí o nariz com a deliciosa impressão de fazer parte dele.

2

Literalmente, “rolo de

desenho”. Essa arte

Na literatura, os microscópios, os telescópios celestes e os jogos de lentes também surgem rapidamente. Saikaku – chamado de Oranda, “o holandês” – é o primeiro a falar de telescópio em um romance – Koshoku ichidai otoko (1682, “O homem que só viveu para amar”). O herói, Yonosuke, tem sua primeira conscientização sexual ao observar – da extremidade de um longo binóculo – uma empregada entrar no banho. Com 9 anos, no quarto dia do quinto mês (na véspera da festa dos meninos), Yonosuke sobe no telhado de um pavilhão com um telescópio, esconde-se atrás dos galhos de um salgueiro e nota que a empregada espalhou na água do banho narcisos (plantas do sexo masculino e feminino), o que não ocorre sem um mergulho numa profunda emoção...

japonesa consiste em narrativas ilustradas em rolos, que se abrem horizontalmente [N.E.]. 84 RBMA 69

É tão grande a popularidade dos telescópios, que no espaço de meio século as lentes de aumento tornam-se um artigo comum, por vezes guardadas num armário, por medo de que as crianças

se utilizem delas, a exemplo do muito precoce Yonosuke. Consideram-nas mais ou menos como gadgets para adultos. Algumas estampas pornográficas adotam a forma arredondada que significa: “visto através de um telescópio”. É como se fosse uma garantia de autenticidade. As imagens em forma de claraboia ou com o efeito de lupa tornam-se equivalentes às fotos de paparazzi (voluntariamente dolosas dar a impressão de serem “reais”). Os fotógrafos japoneses especializados nas sexy girlfriends­, aliás, continuam retomando essa técnica – o efeito de lupa – para dar a impressão de que se entra literalmente nelas... inclusive na cabeça delas. Em sua alma. Talvez até em seu coração.

Agnès Giard

(Tradução: Regina Campos) Nota biográfica Agnès Giard é escritora e jornalista francesa. Dedica suas obras à pesquisa da cultura sexual no Japão, unindo os estudos da arte aos da antropologia. No acervo da Biblioteca Mário de Andrade, pode ser encontrado um exemplar de seu livro L’Imaginaire érotique au Japon (Albin Michel, 2006), que faz uma análise da sociedade japonesa na relação com o corpo, o sexo e o sagrado. Crédito das imagens Todas as imagens são gravuras eróticas de Kitagawa Utamaro (1754-1806). Xilogravura e tinta colorida sobre papel. Acervo bma.


ETHERS sobre

(Esther Faingold e Tunga, Cosac Naify, 2011) Luiz Armando Bagolin

Luiz Armando Bagolin é diretor da Biblioteca Mário de Andrade e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da usp, na área de História da Arte.

86 RBMA 69



O

s desenhos desenvolvem-se em circularidade na página, interligados por quartzos hialinos. As representações perpetradas em corpos se acumulam e desdobram sobre si como vasos comunicantes que a linha, cornalina, decalcada sobre o papel, delicada sobre o poema, como rastro, macula. Dos corpos esvaem líquidos recolhidos em copos, frequentes nas obras de Tunga, que escorrem nas linhas transferidas sobre a poesia de Esther Faingold, impondo ao leitor a condição de não impunidade em relação à leitura do estranho livro. A cada página virada, atiçado pelos corpos que se eriçam ou se inclinam, provocado pelas frases que fazem a natureza rodopiar sobre os sentidos, os altos de Esther, os baixos de Tunga, o leitor põe em obra a impregnação do pó vermelho da tinta de carbono que, embora duradoura, nada dura, pois vai aos poucos se dissipando. Esther repõe hegelianamente o poema como ato de dissolução, a passagem do em-si definindo o ato de ler como um “entre”, nem sempre demarcável por tinta, gesto ou signo, porque etéreo, e que ao espírito se dirige. Éter é o ar onde brilha a luz inefável, para onde se dirigiria o espírito após sua breve temporada na matéria rebaixada, mas para onde, ao mesmo tempo, é impossível dirigir-se Esther ou qualquer outro poeta humano, porque é da faina o entretecer das palavras caro à construção da poesia, e é da voz o som que preenche o sopro do poema, último vínculo com o mundo. A circularidade não está apenas nos desenhos, que transformam em cacetes tunguianos calcedônias leitosas que mãos túrgidas agarram. O ato de ler também é circular, na busca por aquele “entre”, o vácuo entre a palavra e sua significação interdita, porque a boca é interrompida, nem cabeça muitas vezes há, mas apenas nesgas de corpos que desejam e indiciam o hiato entre a luz e o corpo híbrido feito de uma linha vermelha ubíqua. O corpo está no desenho; a cabeça está nos poemas. Mas às vezes essa relação se inverte e a poesia delira febril, ébria de vinho e de mar, e desejosa do garoto que grassa, friccionando com sua mão o grão de onde espirra o lácteo enrabichado.

90 RBMA 69


Hilda Hilst nas lembranรงas e fotos de Fernando Lemos





Fernando Lemos conheceu Hilda Hilst quando chegou a São Paulo, 1953. Ela frequentava o bar do Museu, na rua Sete de Abril. Andavam juntos pela cidade, muitas vezes com uma amiga dela, americana, Bárbara. Quando soube que a mãe de Hilda era portuguesa como ele, e vinha à baila a questão da língua, ele troçava: “Ainda não aprendeste o sotaque de tua mãe!”. Um dia, levou-a ao seu ateliê e fez uma fiada de dezesseis fotos, ela linda, vestida em preto e branco, assim como as tiragens que resultaram deste ensaio. Hilda ficou-lhe associada à lembrança do tempo em que a conheceu – um tempo quase sagrado, para eles um dos melhores momentos de São Paulo e do Brasil. Momento do projeto de Brasília, de Niemeyer, das grandes construções, da criação do parque automobilístico, do surgimento da Bienal, dos concretistas. Tempo de reflexões sobre arte como parte do cotidiano dos intelectuais com que conviviam, de Sérgio Milliet a Rodrigo de Mello Franco de Andrade, Antonio Candido, Darcy Ribeiro. Hilda sempre teve ligação com o mato, com o som da natureza, gravava tudo. Fazia cursos e desistia. Fez Direito, envolveu-se com edições de livros e, com seu particular e vívido raciocínio, começou a aproveitar-se de algo que era muito dela – a parte maldita –, a qual levou aos últimos limites que a linguagem permite, com força de mulher intelectualmente pronta. Hilda Hilst tinha mesmo o propósito de incomodar a sociedade burguesa. Ela não lidava de forma narcisista com sua beleza. Sentia orgulho de sua postura e coragem intelectual, nunca teve preocupação com o vestir-se, era discreta, e até se vestia mal por escolha. Havia um lado amargo em sua vida – “o do pai, enjaulado como um cachorro, abraçado à sua demência” –, e ela sempre buscando um jeito de adoçar essa amargura. O convívio intenso entre Hilda e Fernando durou um ano, ele chegou a fazer anotações, mas não as ilustrou. Fez um guache, mas este se perdeu. Fez a capa de Ode fragmentária, em 1961, para a Anhambi. O que marcou Hilda, disso ele se lembra bem, foi sua ligação ao conceito integral de retorno. Como se o retorno fosse uma tese. Não o retorno do morto, e sim o retorno de um ciclo, um pouco traduzindo o sentido da falta daquilo que ela não viveu. Ela tinha a angústia de não ter vivido tudo. Além de algumas cismas, como a de ela mesma ter um papel de vítima. Ela se considerava uma vítima. Como se o tempo e sua duração não lhe fossem pródigos. Talvez a inscrição do relógio sem ponteiros que ficou suspenso na parede da Casa do Sol resumisse, para ela, tudo: “É mais tarde do que supões”. Cecília Scharlach*

Texto apoiado em conversa com o fotógrafo, em São Paulo, 08 de setembro de 2013. *Cecília Scharlach, desde 2005, é coordenadora editorial da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.


“SENHORAS E SENHORES, OLHAI-NOS. REPENSEMOS A TAREFA DE PENSAR O MUNDO” Hilda Hilst

102 RBMA 69


Divino Sobral

Adair SodrĂŠ


Thiago Martins de Melo

Paulo Moreira


Dizer que ela [Hilda Hilst] tinha morrido era inadequado”. As palavras da crítica de arte Ana Luisa Lima, impressas no livro Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em Diá­logo (fruto do projeto que lhe deu o nome, com curadoria de Ana Luisa, Jurandy Valença e Ateliê Aberto), definem bem a sensação de leitores e admiradores da escritora, morta em 2004: se seu corpo não circula mais pelos espaços da Casa do Sol, seu espírito ainda está vivo, assim como sua escrita, capaz de provocar a reflexão não só de leitores usuais, mas também de artistas contemporâneos. Foi esse o mote para que os curadores idealizassem o projeto Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em Diálogo. Nele, cinco artistas passaram quinze dias na Casa do Sol, sede do Instituto Hilda Hilst, e no Ateliê Aberto, ambos em Campinas (SP), naquilo que se chamou de “residência artística”. Em seguida, os “residentes” criaram trabalhos inéditos, dialogando com obras da escritora, em especial com a série de poemas que inspirou o projeto, “Poemas aos homens do nosso tempo”, reunida no livro Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974). Em plena ditadura, por meio dos poemas, Hilda descreve o momento em que está imersa, utilizando vozes masculinas como repertório poético-político. As obras resultantes compuseram uma mostra realizada no Ateliê Aberto, na qual os artistas tornaram-se as vozes políticas contemporâneas de Hilda, evidenciando que Ana Luisa Lima tinha razão: a essência da poeta, assim como sua obra, a­ inda está muito viva. O happening de abertura da mostra foi criação de Adir Sodré: adotando O caderno rosa de Lori Lamby, ele rees­creve a obra de Hilda em aquarela, entitulando-a O caderno rosa de Lori Bamby. Uma oferenda à Hilda, “sua mãe”. O artista Divino Sobral fez uma instalação: Sangue buscando a veia reuniu textos de Hilda Hilst, lágrimas e saliva do artista, galhos de goiabeira envolvidos por lã, lápis de cor, grafite, tinta acrílica e uma fotografia da intervenção no jardim da Casa do Sol. Seu desejo era fazer uma árvore para Hilda em seu jardim, vermelha, simbolizando a intensidade que a vida tinha para a escritora, o que veio a acontecer com a goiabeira envolvida com mais de 150 novelos de lã que o artista deixou nos jardins do instituto. “O vermelho, cor vital, como sangue e pulsão, marcou todo o trabalho de Sobral no Ateliê Aberto.”

Imagens cedidas pelo Ateliê Aberto, Campinas

Uma pintura a óleo em grande formato, de Thiago Martins de Melo, com o título Simulacro e parasitismo na Casa do Sol Preto, levou a curadora Ana Luisa Lima a se referir ao artista – o terceiro – no livro da mostra como “o homem força. Dentre esses homens, foi um dos que pôde ouvir e interpretar o oráculo ocultado na grande árvore que chorava cipós. E o oráculo era um sol preto e, em tempos e tempos, cuspia pragas sobre aqueles que não o davam ouvidos: os que insistiam em replicar histórias glamorosas sobre aquela casa que não abrigava outra coisa senão muita dor e lucidez”.

Nazareno

Inspirado no interesse ao sobrenatural presente na vida e obra de Hilda, Paulo Meira criou a videoinstalação Mensagens sonoras com canto dos cacos, que abrigava uma estação de rádio criada especialmente para o projeto, a Rádio HH 911 MHz. O artista, nas palavras dos curadores, “fazia chover, no pátio central da casa ocre, uma chuva de pratos [...] Cada prato caído impulsionava os estilhaços e rasgavam os corpos invisíveis acostumados a perambular por ali em dias de lua cheia”. Nazareno criou desenhos-poesias, traços em nanquim acompanhados por versos, frases, palavras – sem papel. Também eles ficaram – talvez – imortalizados na publicação da mostra, outro desdobramento da residência, com projeto gráfico da designer Daniela Brilhante. A publicação, editada pelos curadores, é bem diferente daqueles folhetos de mostras que visitantes costumam receber. Com cara de caderno de arte, é uma plataforma dialógica e criativa entre os trabalhos produzidos pelos artistas, conteúdos produzidos pelos profissionais envolvidos no projeto, e Hilda. O projeto e o legado de Hilda abriram tantas possibilidades artísticas que, embora a publicação devesse ser o “último capítulo” do projeto, outros desdobramentos ainda viriam, fechando as criações dialógicas entre os artistas e a escritora. Henrique Lukas, do Ateliê Aberto, criou um roteiro – registrado no livro da mostra – de um curta-metragem baseado nos poemas que dão título ao projeto. Dirigido e editado também por Lukas, o vídeo, filmado na Casa do Sol, estreia na Biblioteca Mário de Andrade exatamente no lançamento deste número.


Entre essências O RITO DO BATISMO EM DA MORTE. ODES MÍNIMAS

“LEVANTA-TE. RECEBE O BATISMO E PURIFICA-TE DOS TEUS PECADOS” Atos, 22:16

óleos, e flores Maira Mesquita

Nota biográfica: Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa/MG, pós-graduada lato sensu em Literatura Brasileira pela Fafire-Recife/PE e mestranda no programa de Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – EACH/ USP. Atualmente, desenvolve pesquisas destacando as relações entre poesia, música e dança.


Em 1983, Jorge Coli colaborava para o jornal Le Monde e recebeu a incumbência de uma matéria sobre a atualidade da literatura brasileira. Morando na França há muitos anos, veio ao Brasil para se inteirar do assunto e, passado certo período, declarou à Folha de S. Paulo: Do ponto de vista das novidades literárias, o panorama parecia triste: alguns nomes consagrados, mas em fim de produção; uma vanguarda velhíssima e desdentada, com trejeitos de mocinha mordaz; uma tradição engajada, de inspiração perdida e de gosto requentado. Nada causava entusiasmo [...] Até que Roswitha Kempf, que na época possuía uma pequena editora no Bexiga, passou-me um volume admiravelmente concebido e publicado por Massao Ohno. Era Da morte. Odes mínimas, de Hilda Hilst. Foi uma descoberta surpreendente e emocionada. Tratava-se da mais alta poesia. Busquei outros livros do mesmo autor: todos revelavam essa qualidade intensa dos grandes escritores.1 Os poemas de Da morte. Odes mínimas foram criados entre 1978 e 1979. Em 1980, foram publicados pela primeira vez e em duas versões: a primeira, como abertura à antologia Poesia (19591979), pela Editora Massao Ohno, que editaria também a segunda; a esta última, por sugestão de Hilda, foram acrescentadas, como abertura aos poe­mas, aquarelas pintadas por ela, intituladas “Desenhos de Hilda Hilst”. Em 1998, a obra ganhou nova publicação pela Nankin Editorial e ­Éditions Noroît, numa edição bilíngue português/ francês, com tradução de Álvaro Faleiros. Cinco anos depois, a obra foi reeditada pela Globo, com organização de Alcir Pécora, edição em que as seis ilustrações receberam o nome de “Aquarelas”. A obra é dedicada à memória de Ernest Becker e Cristina Figueiredo, não sendo difícil encontrar razões para a dedicatória ao antropólogo americano, uma vez que, em 1973, ele publicou A negação da morte, que lhe concedeu o Prêmio Pulitzer um ano depois. Na obra, Becker explicita dois pressupostos: 1) o medo persegue o animal humano como nenhuma outra coisa e 2) esse temor é um dos maiores incentivos à atividade humana. O estudioso acreditava que o que nos mantém vivos é o heroísmo que luta persistentemente contra o medo da morte.

Nessa direção caminha o pensamento de ­Kazantzakis,2 apesar de o escritor não pronunciar o heroico. Sua obra é um reiterado chamado à luta, por meio da negação radical de tudo. Quando se suporia o congelamento da ação, ele descentra a atuação de Deus no mundo e remete a responsabilidade ao homem. Para o pesquisador Felix de Lima,3 Becker e ­Kazantzákis se encontram nessa espécie de “niilismo heroico”, cuja bandeira é a ação, e Hilda, assim como eles, transforma o medo da morte em ação, pois é libertação e renascimento. Os versos de Da morte foram distribuídos em três séries: a primeira, “Da morte. Odes mínimas”, é­composta de quarenta poemas; a segunda, “Tempo-Morte”, e a terceira, “À tua frente. Em vaidade”, con­tam­com cinco poemas cada. Nesses cinquenta p­oemas que compõem a obra, Hilst nos apresenta um­ritual de renomeação da Morte. A aposta da au­tora se dá num jogo de construção literária que ad­vém do encontro entre os limites de vida­ ­­ e morte, tornadas personagens e travestidas em corpo de mulher. A remissão ao clássico – denunciada no título da obra a partir do uso do “Da”, comum na escritura clássica latina, que na transcrição para o português é traduzido por “sobre” – é feita de maneira inovadora, uma vez que Hilda insere o termo “mínimas” e, como sabemos, a ode clássica não se pretende mínima. A construção sintática do título parece propor um trocadilho em que se traz implicitamente a ideia de que o livro seria composto de odes mínimas sobre a morte, de modo que apontaríamos duas premissas: 1) o mínimo que um texto pode apresentar para ser uma ode e 2) o mínimo que se pode dizer sobre a morte. Na primeira série, a Vida4 ornamenta-se com o discurso da sedução e convida a Morte a participar de um ritual de renomeação, no qual a própria Morte será ressignificada. Nesse jogo, as ideias comumente apresentadas sobre a morte são revisitadas e se revela uma nova forma de se experimentá-la; uma dissociação de tudo o que se diz e se pensa sobre ela. Se a morte normalmente é vinculada ao fúnebre e ao melancólico, Hilda retira tal característica e concede a ela uma nova roupagem. Na segunda série, “Tempo-Morte”, é acrescen­tado o Tempo, o qual, integrado ao vocábulo “Morte”, parece-nos indicar um empréstimo tomado da física moderna, por meio do qual Hilda Hilst propõe a

1. J. COLI, “MEDIAÇÃO EM IMAGENS”. 2. DEPOIS DE LER TESTAMENTO PARA EL GRECO, HILDA HILST MORRE PARA A SOCIEDADE PAULISTANA E PASSA A VIVER PARA A LITERATURA NA FAZENDA SÃO JOSÉ. 3. F. DE LIMA, AS AMANTES: UMA LEITURA DE DA MORTE. ODES MÍNIMAS DE HILDA HILST. 4. ASSIM MESMO, COM LETRA MAIÚSCULA, POIS SE TRATA DE UMA PERSONIFICAÇÃO, COMO TAMBÉM “POETA”, “TEMPO” E “MORTE”.

fusão do tempo com a morte, à semelhança de Albert Einstein, quando mostra que o “espaço-tempo” não é necessariamente algo que possamos atribuir a uma existência separada e independente dos objetos da realidade física. Assim, o termo “Tempo-Morte” parece sintetizar a ideia de que a morte não é dissociada do tempo, tampouco da vida. Logo, não se trata de tempo cronológico, mas, possivelmente, dialógico. Na terceira e derradeira parte, “À Tua Frente. Em Vaidade”, a ambientação que se estabelece é de vaidade, já que a Poeta, como num grito de libertação, canta o desejo de eternizar-se. Nesse sentido, essa série parece representar o renascimento do sujeito que fora descodificado e estilhaçado nas séries anteriores. Hilst nos desponta o renascimento, ao modo da poesia moderna, que, segundo Octavio Paz,5 tem por fundamento a transformação. Para o poeta mexicano, a época moderna reincidentemente se examina e se destrói para se reconstituir. É como se o poeta moderno estivesse em um constante estado de transe. Em Odes mínimas, é como se a Morte passasse por um processo de transe, no qual ela se ressignifica. José Gil6 afirma que, no transe, joga-se uma cena dupla, na qual ocorre a descodificação de um corpo usado e o renascimento de um corpo novo. A primeira cena, que seria a negativa, cor-

responde ao desbloqueamento do sentido, que é ob­tido pela confusão de códigos e línguas que tinham por emblema o corpo. Para tanto se recorre à música, à dança, à encantação, aos alucinógenos e às drogas; enfim, toda a atmosfera que envolve a sessão contribui para obter esse resultado, a con­fusão extrema dos sentidos. Já a segunda ce­na corresponde ao processo de irrupção progressiva do corpo tal e qual, do corpo não codificado que só pode viver, precisamente, no estado de transe ou êxtase. Apenas sobre essa inscrição, tornada assim virgem, pode surgir o novo sentido. O BATISMO DA MORTE: EM BUSCA DE OUTRO SENTIDO Na introdução à edição de 2003 da obra Da morte.­Odes mínimas, Alcir Pécora afirma que “em termos gerais, pois, as odes deste livro se compõem basicamente como a construção de uma interlocução da morte. Isto implica testar o vocabulário capaz de celebrá-la adequadamente”.7 Partindo dessa proposição, pretendemos realizar uma investigação pautada nas performances corporais da Morte e da Poeta no decorrer da celebração do ritual de renomeação, rastreando os mitos e motivos clássicos da literatura remontados por Hilda.

5. OCTAVIO PAZ, OS FILHOS DO BARRO. 6. JOSÉ GIL, METAMORFOSES DO CORPO 7. A. PÉCORA, “INTRODUÇÃO”, EM H. HILST, DA MORTE. ODES MÍNIMAS, P. 9.


passagem do ser de sua primordial indistinção genérica às formas particularizadas e nominadas de sua nova existência. A “alegria-do-nome” dá início à festa. Invocados pelos atabaques e cantigas, os deuses montam os seus cavalos, vindo dançar uma vez mais em homenagem ao recém-chegado. Ao lado desses exemplos, o batismo ou qualquer outro rito de iniciação são igualmente uma operação de regeneração. O batizado assimila-se ao Salvador, sua imersão na água, a colocação no túmulo e sua saída, a ressurreição. Em outro plano, o batismo liberta a alma do batizado, simbolizando essa liturgia um nascimento da alma. Em Hilst, o sujeito batizado não será transformado individualmente; ao contrário, toda a cadeia de relação já consagrada para a morte será rearranjada – “Te nomear num trançado de teias”. As novas descrições para a Morte ganham sentido à medida que revelam aspectos da poesia. Evidencia-se assim a outra identificação da Morte com a água, o fogo, a luz, a música, a beleza e a irracionalidade. Ela, a partir de seu novo batismo, associa-se ao prazer – quiçá ao prazer dionisíaco – e à vida, tal como na perspectiva freudiana de contraposição da pulsão de vida e da pulsão de morte. Segundo Freud,10 a pulsão de morte precede a pulsão de vida; em Hilda, Vida e Morte são geneticamente unidas. Observe-se:

A poeta inicia suas odes clamando por um novo batismo:

i

Te batizar de novo. Te nomear num trançado de teias E ao invés de Morte Te chamar Insana Fulva Feixe de flautas Calha Candeia Palma, por que não? Te recriar nuns arco-íris Da alma, nuns possíveis Construir teu nome E cantar teus nomes perecíveis: Palha Corça Nula Praia Por que não? 8 As tensões do poema poderiam ser distribuídas em três momentos, nos quais a ação principal recai, primeiro, no verbo “batizar”, segundo, em “nomear” e, terceiro, em “recriar”. As perguntas retóricas são colocadas como elemento dissimulador para que o interlocutor atenda aos anseios do eu lírico. É no sacramento do batismo que Hilst busca a sua analogia para a renovação da morte. Vejamos. Conta o livro de Mateus que vinham a João Batista pessoas de toda a circunvizinhança do rio Jordão. Ali confessavam seus pecados e por ele eram batizadas nas águas. Assim, o rito de imersão nas águas tornou-se símbolo de purificação e renovação. Essas ações indicam o desaparecimento do ser pecador nas águas da morte, a purificação por meio da água, o retorno do ser às fontes de origem da vida. A emersão, nesse sentido, revela a aparição do ser

xxx

Juntas. Tu e eu. Duas adagas Cortando o mesmo céu. Dois cascos Sofrendo as águas. E as mesmas perguntas. em estado de graça, pleno, reconciliado com uma fonte divina de vida nova. Em diversas religiões, o batismo é associado aos rituais de passagem. Nas tradições funerárias dos maia-quichés, por exemplo, o batismo é realizado não somente no nascimento, mas também no momento da morte; é a partida para outra vida. Esse ato assegura ao morto a sua regeneração. A água é instrumento de purificação ritual, fonte de vida e morte, criadora e destruidora. Para as religiões afro-brasileiras, no “dia-do-nome” estamos diante do único resultado visível ao “mundo material”, “dos viventes”, de um rito de passagem; de um processo cujo objetivo explícito consiste em transformar o ser daquele que se submete simbolicamente ao estado de congraçamento em relação ao princípio natural que o gerou. Tudo o que o neófito faz ou diz, no “dia-do-nome”, gravita em torno do que se mostra. E o que se mostra é, essencialmente, o próprio iaô.9 Ele, que morrera para o mundo em algum momento do passado imediato, renasce agora, sendo a grande transmutação operada representada como uma metamorfose. Revela a 8. H. HILST, OP. CIT., P. 29. 9. IAÔ – PALAVRA DE ORIGEM IORUBA QUE DENOMINA OS FILHOS-DE-SANTO JÁ INICIADOS.

Juntas. Duas naves Números Dois rumos À procura de um mesmo deus. E as mesmas perguntas No sempre No pasmoso instante. Ah, duas gargantas Dois gritos O mesmo urro De vida, morte. Dois cortes. Duas façanhas. E uma só pessoa.11

PULSAÇÕES DO CORPO EM TERRAS DE DIONÍSIO Hilda vai tecendo sua trama e, com exímio cuidado, alinhavando, em suas personagens, elementos próprios das deidades e figuras mitológicas femininas, desenhando o universo feminino cuidadosamente em seus ricos detalhes e resguardando a imaginação como agente que move o ritual; potência que transfigura o encontro de ambas. A Poeta nos transporta para o seu mundo onírico, onde a Morte será batizada e ungida pelo suor de seus corpos. No poema ii da primeira série, por exemplo, pode-se observar a veiculação do amor e da sedução por meio de uma relação de dominação corporal: 10. S. FREUD, INTRODUÇÃO AO NARCISISMO, ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS. 11. H. HILST, OP. CIT., P. 58.


ii Demora-te sobre minha hora. Antes de me tomar, demora. Que tu me percorras [cuidadosa, etérea Que eu te conheça lícita, [terrena Duas fortes mulheres Na sua dura hora. Que me tomes sem pena, Mas voluptuosa, eterna Como as fêmeas da Terra. E a ti, te conhecendo Que eu me faça carne E posse Como fazem os homens. 12 O primeiro “momento poético” parece ser delimitado pelo verbo “demorar”, conjugado na segunda pessoa do modo imperativo afirmativo; “demora” anuncia as relações de poder na discursividade. Depois, a presença do pronome possessivo “minha” e do verbo “tomar” reforçam o universo do apoderamento. Somos levados a imaginar uma dança dioni­síaca de dois corpos, em que a demora incide sobre o assenhoramento. O processo de tomada corpórea tem seu tempo alongado, o que se nota pela semântica do verbo inaugural avigorada pelos sintagmas adverbiais “hora” e “antes de”. Assim, o que se estabelece nesses versos é o domínio lascivo da carne estendido no tempo. No período mélico arcaico, Safo cantava para ­Atthis: “há muito tempo eu te amei, ó Atthis: / eras ainda para mim uma menina pequena / e sem encantos, adormecendo no seio / de uma terna amiga: ah!

Pudesse aquela noite / durar duas noites para mim”.13 A respeito do poema, mais tarde, Libanius faz a seguinte declaração: “Se, portanto, nada impediu Safo de Lesbos de desejar que [aquela] noite tivesse para ela a duração de duas noites, que eu possa fazer um pedido semelhante”.14 Safo e Libanius cantam o prolongamento do tempo nas experimentações do amor, da luxúria e do prazer, uma vez que, tradicionalmente, as noites evocam a conotação erótica. Para Paul ­Veyne,15 Eros engendra a positividade do vazio. A noite tem o apelo do desconhecido, o convite aos prazeres, aos desvios da luz do dia, quando tudo é possível. É o momento privilegiado das práticas do prazer. No segundo par de versos, a relação corporal anunciada é a do universo do desejo. A troca do modo imperativo pelo subjuntivo marca o devaneio; o que antes fora ordem, torna-se, agora, clamor; trata-se da devoção ao ser amado. Jean Baudrillard16 acredita que se confessar enamorado pelo outro é a melhor maneira de seduzir. Nessa perspectiva, a Poeta confere à Morte o poder de senhora absoluta no espetáculo da conquista amorosa.

12. IDEM, IBIDEM, P. 30. 13. SAFO, POEMAS E FRAGMENTOS, P. 83. 14. IDEM, IBIDEM, P. 83. 15. P. VEYNE, ELEGIA ERÓTICA ROMANA: O AMOR, A POESIA E O OCIDENTE. 16. J. BAUDRILLARD, DA SEDUÇÃO.

E, num trote súbito, interrompe-se o devaneio para dar visibilidade real aos corpos. Por meio do dístico “Duas fortes mulheres / Na sua dura hora”, são evidenciados os sujeitos do rito. O adjetivo “dura”, com dupla acepção – duração e virilidade – recupera a ideia da extensão do tempo e apresenta uma importante característica para ambas: o vigor. Nesse caso, Hilda parece remontar às figuras das Amazonas e das Valquírias, mulheres vistas como símbolo da animalidade. As Amazonas eram, para os gregos, antes de tudo “bárbaras”, inclusive no sentido que hoje se empresta a essa palavra: transgrediam as leis. ­Ésquilo mostrava-as como devoradoras de carnes. Eram guerreiras armadas com arcos, que combatiam montadas a cavalo. Para melhor adequação do arco, queimavam um dos seios, daí o nome de Amazonas (a-mazôn: “sem seio”). Na Ilíada, as amazonas lutam ao lado dos troianos, sob o comando da rainha Pentesileia (“a que sofre por seu povo”). Baseavam-se no princípio da concentração máxima de força para assombrar qualquer exército e esmagá-lo numa onda avassaladora; apareciam do nada, soltavam gritos assustadores, como se estivessem possuídas pelo demônio, e eram chamadas emissárias da morte. As Valquírias, por sua vez, eram conhecidas como “virgens com escudo” – figuras complexas que ilustram virtudes marciais, normalmente próprias aos homens. Homero, na Ilíada, nos dá a ver que são, ao mesmo tempo, iguais aos homens e, também, suas inimigas. Não à toa as chama de “mulheres-homens”. Na terceira e quarta estrofes, a fantasia é retomada. A Poeta traz novamente à cena o seu desejo, a posse carnal da outra, a animalidade, surgindo o vocábulo “fêmea” como substituto de “mulher”. Na troca entre essas mulheres não há lugar para a piedade ou o puritanismo. O que se apresenta é a eternização da volúpia, atributo da mulher terrena, e o que emerge é a selvageria. Tal qual as Valquírias, que, em suas sagas, eram capazes de executar os mesmos gestos dos heróis, a Poeta deseja igualar-se aos homens. Nas pulsações dessa dança, a Poeta vai ungindo o novo corpo da Morte com o suor que se faz água benta; na sensualidade dos movimentos, o ser batizado se purifica e se transforma pelo suor. Como contas de um rosário, as gotas de pérolas líquidas vão escorrendo e libertando o passado; queimando e purificando os corpos num batismo de fogo. De 17. G. ROTH, OS RITMOS DA ALMA. O MOVIMENTO COMO PRÁTICA ESPIRITUAL.

acordo com Gabrielle Roth,17 o suor é uma forma antiga e universal de autocura. Para a dançarina, a transpiração é uma oração e, quanto mais o corpo transpira, mais o sujeito ora; quanto mais o sujeito ora, mais se aproxima do êxtase. O caminho que Hilda constrói para conduzir a Morte ao deslumbramento assemelha-se àquele dos xamãs, que dançavam até que se tornassem uma prece suada e caíssem num amontoado estático de ossos sobre a “Mãe Terra”. Hilda parece buscar a própria carne, ou seja, aquilo que define a presença humana no plano da realidade, para dar outro sentido para a Morte. SOBRE AS LINHAS BORDADAS DO CORPO-AROMA IMERSO EM BACANTE-BORBOLETA A extraordinária estrutura do corpo, bem como as surpreendentes ações que é capaz de executar, são alguns dos maiores milagres da existência, em que cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela um aspecto de nossa vida interior. Executar os ritmos dessa dança voluptuosa, deixar que as partes do corpo falem por meio de movimento, requer certo cuidado. Para tanto, Hilda desenha a preparação dos corpos da


Oxum é a dona da água doce e conhecida por sua delicadeza, domina os rios e cachoeiras, imagens cristalinas de sua influência. Isto é: atrás de uma superfície aparentemente calma podem existir fortes correntes e cavernas profundas. As lendas adornam-na com ricas vestes, rosas amarelas, lírios, perfume de rosas, pulseiras e colares de ouro, e ressaltam que quando se banha no rio penteia os cabelos num movimento lânguido e provocante. No candomblé, quando dança, traz na mão uma espada e um espelho, revelando-se em sua condição de guerreira da sedução. Iemanjá, majestade dos mares, senhora dos ocea­ nos, sereia sagrada, é a rainha das águas salgadas. Chamada também de Deusa das Pérolas, é aquela que apara a cabeça dos bebês no momento de nascimento. Na fluidez do movimento das ondas, dança vestida com roupas litúrgicas, customizadas com conchas e pérolas, trazendo nas mãos o espelho e o leque. As joias de prata e os perfumes de jasmin ou rosas brancas compõem o universo de sua vaidade. No poema xxvi Hilst traceja a preparação de uma Morte que se banha ornamentada de flores:

xxxix Uns barcos bordados No último vestido Para que venham comigo As confissões, o riso Quietude e paixão De meus amigos. Porque guardei palavras Numa grande arca E as levarei comigo

xxvi Durante o dia constrói Seu muro de girassóis. (Sei que pretende disfarce E fantasia.) Durante a noite, Fria de águas Molhada de rosas negras Me espia. Que queres, morte, Vestida de flor e fonte? - Olhar a vida. 20

18. G. RAGUSA, FRAGMENTOS DE UMA DEUSA: AS REPRESENTAÇÕES DE AFRODITE NA LÍRICA DE SAFO. 19. F. JOUAN, EURÍPIDES ET LES LÉGENDES DES CHANTS CYPRIENS, APUD G. RAGUSA, OP. CIT., P. 108. 20. H. HILST, OP. CIT., P. 54.

Peço uns barcos bordados No último vestido E vagas Finas, desenhadas Manso friso Como as crianças desenham Em azul as águas. DESENHOS DE HILDA HILST, ACERVO CEDAE-UNICAMP

Poeta e da Morte por meio da toilette, ponto comum entre as deidades femininas em diferentes mitos. Na Antiguidade clássica, a associação das deidades femininas aos banhos, perfumes e óleos era recorrente na literatura. Segundo estudos de Giuliana Ragusa,18 os banhos das deusas se revelavam em quatro movimentos mais ou menos constantes: o banho, a aplicação de óleo perfumado, a vestimenta de belos trajes e o acréscimo de joias. A poeta Safo traz Andromákha num banho pré-nupcial, ornamentando-se com joias de prata e marfim, bordados coloridos e perfume. Na Ilíada, narra-se a toilette de uma Hera determinada a seduzir seu marido Zeus e distraí-lo da guerra que se desenrola entre os aqueus. Já no Hino Homérico a Afrodite, a deusa é preparada para seduzir Anquises e fazê-lo sucumbir aos seus encantos, adornando-se de ouro e vestes luminosas. O tema da toilette de uma divindade era lugar-comum na poesia épica grega,19 e à sua relação com as deidades gregas devem-se somar também as deusas da mitologia africana, como Oxum e Iemanjá, para citar apenas dois exemplos.

De outro lado, a Poeta escolhe sua indumentária pré-nupcial:

Uns barcos Para a minha volta à Terra: Este duro exercício Para o meu espírito.. 21

21. IDEM, IBIDEM, P. 67. 22. R. LABAN, DOMÍNIO DO MOVIMENTO.

Óleos, perfumes, flores, vestimentas e joias compõem o cenário desse ritual em que está embutida a ideia de beleza, sedução, erotismo, jovialidade e, por que não, cura. Assistir a essa “dança-mínima” é testemunhar uma frequência de movimentos em que as bailarinas catalisam em ritmos profundos os limi­ tes da existência; os gestos se seguem uns aos outros­de acordo com uma sequência completamente ir­racional que pode significar uma luta interna e se tornar a expressão de uma prece para a libertação de uma confusão interna. Para Rudolf Laban,22 o movimento é empregado com dois propósitos distintos: a consecução de valores tangíveis em todos os tipos de trabalho e a abordagem de valores intangíveis na prece e na oração. Assim, na liturgia de Da morte. Odes mínimas, em que as banheiras ornamentadas de flores se tornam a pia batismal, ressoa não só a aproximação entre Vida e Morte, mas, sobretudo, a cerimônia de purificação e renascimento.


Referências Bibliográficas Baudrillard, Jean. Da sedução. São Paulo: Cultrix, 1991. Becker, Ernest. A negação da morte. Trad. Luiz Carlos do Nascimento. Rio de Janeiro: Record, 2007. Bíblia Sagrada. Tradução portuguesa da vulgata latina pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo. 1 ed. São Paulo: Rideel, 1997. Brunel, Pierre. Dicionário de mitos literários. Trad. Sussekind & outros. Brasília: José Olympio Editora, 1962. Coli, Jorge. “Mediação em imagens”. Folha de S. Paulo, 14 de junho de 1996. Einstein, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Trad. Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2003. Freud, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Gil, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1980. Hilst, Hilda. Da morte. Odes mínimas. São Paulo: Globo, 2003. Homero. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2013. Jeudy, Henri Pierre. O corpo como objeto de arte. Trad. Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. Kazantzakis, Nikos. Testamento para El Greco. Trad. Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. Laban, Rudolf. Domínio do movimento. Trad. Lisa Ullmann. São Paulo: Summus, 1978. Lima, João Carlos Félix de. As amantes: uma leitura de Da morte. Odes mínimas de Hilda Hilst. Dissertação de Mestrado em Letras – Universidade de Brasília, 2008. Paz, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Prandi, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Ragusa, Giuliana. Fragmentos de uma Deusa: as representações de Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Editora Unicamp, 2005. Roth, Gabrielle. Os ritmos da alma. O movimento como prática espiritual. Trad. Newton Roberval. São Paulo: Cultrix, 1997. Safo. Poemas e fragmentos. Trad. Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003. Veyne, Paul. Elegia erótica romana: o amor, a poesia e o ocidente. Trad. Milton Meira do Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vogel, Arno; Mello, Marco Antônio da Silva; Barros, José Flávio Pessoa de. Galinha d’Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.


Massao Ohno Hilda Hilst ea busca da Poesia Total Cláudio Willer

Imagens: Desenhos de Hilda Hilst, acervo cedae-Unicamp

Nota biográfica: Poeta, ensaísta e tradutor, Cláudio Willer tem doutorado em Letras pela usp. Entre 2010 e 2011, ministrou na usp um curso de pós-graduação sobre surrealismo.


Impossível não me expressar na primeira pessoa ao escrever sobre Massao Ohno. “Willer, quero te publicar...!”, declarou no começo de 1964. Ainda não havia pensado nisso; não me via publicado. Juntei poemas em prosa e adicionei um manifesto para, em outubro daquele ano, lançar Anotações para um apocalipse – juntamente com Piazzas, de Roberto Piva. Enfrentando dificuldades, sem caixa, Massao custeou as edições, assim como, no ano anterior, havia bancado um projeto gráfico complexo, Paranoia, de Piva, com as fotos de Wesley Duke Lee, encerrando a coleção Novíssimos. Com Piazzas e Anotações para um apocalipse, dois volumes imitando a diagramação simples das edições da City Lights de Ferlinghetti, inventamos, beat-surreais,1 um novo selo, Coleção Maldoror, pelo qual ainda sairia mais um título, No temporal, de Décio Bar, mas já por outra editora. Massao repetiria a frase. Em 1976, no calor de um megaevento que organizamos, a Feira de Poesia e Arte no Teatro Municipal, fez Dias circulares. Em 1981, no período especialmente produtivo de sua parceria com Roswitha Kempf, complementada por um acordo operacional com a Civilização Brasileira e realizações graficamente brilhantes, livros e posters, lançaria Jardins da provocação – meu livro visualmente mais atraente. E a sessão de autógrafos em companhia de Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta de especial qualidade, com Voo circunflexo. Em março de 2010, vi-o pela última vez, em uma manifestação em favor de Piva. Magro, envelhecido, mal falava – mesmo assim, puxou-me para um canto e repetiu-se, sussurrou que gostaria de me publicar mais uma vez. São trechos de uma saga; da história de como ele promoveu um avanço na criação gráfica da edição de poesia. Felizmente, sua aventura editorial está bem registrada. Houve a plaquete do Instituto Moreira Salles lançada na homenagem, em dezembro de 2004, pelos 45 anos de atividade editorial. Nela, depoimentos de Alberto Beuttenmuller, Álvaro Alves de Faria, Antonio Fernando de Franceschi, Armando Freitas Filho, Carlos Vogt, Renata Pallottini, Fernando Paixão, José Mindlin, Plinio Martins Filho, Heloisa Buarque de Holanda e o meu. Em 2009, a Revista da Biblioteca Mário de Andrade publicou a lista dos treze títulos da coleção Novíssimos, acompanhando um elucidativo artigo de Heitor Ferraz Mello.2 No mesmo ano, o depoimento autobiográfico de Massao saiu no projeto Memória 1 O termo foi usado pela primeira vez por Roberto Piva para designar seu livro Paranoia. Segundo

Willer no artigo “Henry Miller, beat-surreal”, disponível em seu blog (http://claudiowiller.wordpress.

com/2012/02/05/henry-miller-beat-surreal/), “o beat realizou algumas premissas do surrealismo;

beat e surrealismo, além de contarem com criadores extraordinários, foram os movimentos em que poesia e rebelião se uniram de modo mais efetivo, e com mais desdobramentos”. [N.E.] 2 Volume 65, novembro de 2009.

Oral.3 Em 2010, o acervo de suas edições foi ampliado e recebeu destaque. São iniciativas que adicionam informação à história da própria Biblioteca, frequentada por Massao, onde encontrava poetas, inclusive alguns que integrariam sua programação editorial. E onde conheceu Hilda Hilst. Poesia, mulheres e transgressão: essas categorias esclarecem a relação especial de Massao e Hilda. Reconhecida como grande voz poética de sua geração, também foi a que mais ousou. Nesse quesito, da transgressão, O caderno rosa de Lori Lamby e A obscena senhora D são inigualáveis. Massao publicou muitos estreantes; foi graças a ele que muitos começaram. Mas Hilda – assim como Renata Pallottini e Lupe Cotrim – já era conhecida, saudada pela crítica, com uma reputação literária consolidada. Precedendo Sete cantos do poeta para o anjo, de 1962, foram seis títulos desde a estreia em 1950, aos 20 anos, com Presságio. Uma relação cronologicamente às avessas. Foi a Hilda da maturidade, após a virada explosiva de Fluxo-floema, que mais o frequentou. A segunda parceria editorial veio apenas em 1974, ano em que Massao, após uma década afastado, voltou a publicar, com o lançamento de Júbilo, memória, noviciado da paixão, da própria Hilda. Prosseguiriam com Da morte. Odes mínimas, de 1980, talvez o mais belo de todos os livros que fizeram, pela simplicidade, pelo modo como o branco predomina; e com seu oposto complementar, A obscena senhora D., em 1982: espessa torrente de impropérios, uma literatura do avesso. A relação editorial entre Massao e Hilda foi constante: persistiu por 37 anos. Foi ela quem Massao mais publicou; e ele, o editor a quem Hilda mais encaminhou textos. Além de dois títulos em prosa, dos seus dezoito de poesia (descontando duas reuniões de poemas já publicados), antes de passar a sair pela Globo, nove tinham o selo de Massao.4 Ia e voltava: publicada por editoras então comercialmente fortes, como Brasiliense, Perspectiva, Siciliano, retornava a Massao com, por exemplo, O caderno rosa de Lori Lamby, pelo simples motivo de que dificilmente outro enfrentaria aquele desafio. 3 Parte das comemorações dos 80 anos de existência da Biblioteca Mário de Andrade, o Me-

mória Oral reuniu, em 2005, mais de cinquenta depoimentos de ex-funcionários, diretores, pesquisadores, usuários e artistas que fizeram parte da história da Biblioteca. [N.E.]

Disponível em www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Depoimento_MassaoOhno_127

6539751.pdf

4 Sigo a bibliografia que acompanha as edições da Globo.


Se com Massao minha relação foi pessoal – de encontrá-lo, fazermos coisas juntos, até mesmo hospedar seu estúdio por um tempo em um escritório com espaço sobrando na rua Paim –, com Hilda, a relação foi como leitor e estudioso. Não a frequentei. Fui a seus lançamentos, e conversamos mais demoradamente uma vez, já em 2000. Na década de 1960, admitindo a qualidade de sua escrita, tinha-a como mais uma representante de uma tradição da qual eu e alguns amigos nos distanciávamos. Evidentemente, tive de rever essa avaliação quando saiu Fluxo-floema em 1970, logo seguido por Qadós (depois renomeado como Kaddosh), de 1972. Não podia deixar de concordar com Leo Gilson Ribeiro de que se tratava de algo novo, nunca antes apresentado em nossa literatura. Incluí poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão nas leituras de poesia daquela década: “Os dentes ao sol” (que Ignácio de Loyola Brandão adotaria como epígrafe e título de uma narrativa), o lamento por García Lorca, a convocação de “Poemas aos homens do nosso tempo”. Em 1980, rendi-me à fulgurante beleza de Da morte. Odes mínimas e, colaborando na revista Isto É, escrevi um artigo. Voltaria a tratar de Hilda, também na Isto É, a propósito de Com os meus olhos de cão e outras novelas, reunião de suas prosas pela Brasiliense, de 1986. Foi quando comentei pela primeira vez o gnosticismo em sua obra: o dualismo, a visão do mundo regido por um mau demiurgo, um deus degradado; e de novo em 1990, quando saiu Amavisse, novamente por Massao Ohno: obra de síntese, encontro da dicção lírica e daquela transgressiva, juntando exaltações do amor, elogios da loucura e imprecações contra Deus. Colaborava com o suplemento Idéias do Jornal do Brasil; fiz que Humberto Werneck, um dos editores, recebesse um exemplar: acrescentou a meu artigo uma entrevista com ela e um box sobre Massao Ohno, além de colocá-la na capa do caderno. Logo a seguir, o escândalo com O caderno rosa de Lori Lamby: amigos e críticos, até mesmo Leo Gilson Ribeiro, rejeitaram a espantosa história da menininha sem limites em sua vida sexual. Imediatamente, posicionei-me a favor (como o fizeram, também, Eliane Robert Moraes e Alcir Pécora). No Jornal da Tarde, interpretei como sátira dirigida ao mercado editorial (algo corroborado por entrevistas da própria Hilda). Aprecio tratar dessa narrativa em palestras, mostrando a armadilha que ela criou para leitores ingênuos, daqueles mais afeitos às telenovelas. Após edificar o público com as enormidades relatadas em uma dicção infantil, juntando perversidade e inocência, já ouvi alguém comentar, ao chegar ao final, aliviado: “Ah! Então a menina inventou tudo! Não aconteceu nada disso...!” – como se fizesse diferença, como se não estivéssemos igualmente na esfera simbólica independentemente de a obra apresentar aquilo como vivido ou inventado pela protagonista.

Dediquei-lhe palestras,5 ensaios de maior fôlego e um capítulo de minha tese, Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna.6 Pequenos acréscimos a uma fortuna crítica colossal – e muito merecida. Acho reconfortante ela ter-se

tornado não só uma autora reconhecida, mas um mito literário, alguém que é cultuado. Hilda apreciava o que escrevi sobre ela e concordou com minhas interpretações. Seu amigo e estudioso, o jornalista Gutemberg Medeiros, contou-me, por ocasião de uma mesa sobre ela em 2010, que, ao sair o artigo na Isto É, após lê-lo, Hilda virou-se para ele e comentou: “É – esse me entendeu”. Encantou-se com a matéria no Jornal do Brasil. Deveria ter conversado mais com ela: assunto não faltaria. Quem a visitou na Casa do Sol foi Piva: entusiasmou-se com as gravações de vozes misteriosas, conversaram sobre discos voadores e outros focos de interesse comum; tornaram-se amigos. Hilda e Massao? Além dos encontros para tratar de publicações e lançamentos, viam-se, mas ocasionalmente. Em seu depoimento para o projeto Memória Oral, Massao fala de um último encontro, no qual a aconselhou a parar de beber – logo ele, al­ coólatra declarado, que também admitiu, na ocasião, que a bebida tinha reduzido em vinte anos sua expectativa de 110 anos de vida, além de outros quinze pelo tabagismo. 5 Uma delas, a do ciclo Tertúlia do Sesc, disponível no Youtube [www.youtube.com/watch?v=-

f3CHkE3bZAY]; em breve sairá em livro, também pelo Sesc. 6 Publicada em livro pela Civilização Brasileira, em 2010.


Gutemberg Medeiros, que prepara um ensaio sobre Hilda, me informou que Massao foi poucas vezes à Casa do Sol, mas se encontravam sempre que Hilda vinha a São Paulo, além de se telefonarem. Confidentes. Massao lhe mandava, do que publicava, os livros que iriam interessá-la. Arrisco uma interpretação adicional para a constância e produtividade dessa relação. Nas primeiras publicações de Hilda, precedendo Sete cantos do poe­ta para o anjo, já estão presentes artistas plásticos: Darci Penteado, Clóvis Graciano, Fernando Lemos. Em seguida, muitos outros: Wesley, Anésia Pacheco Chaves, Ubirajara Ribeiro, Jaguar, Millôr; e uma inversão, Hilda escrevendo para uma publicação de Renina Katz – isso, mencionando apenas os que ilustraram, pois, se fosse abranger os autores de capas, a relação se estenderia, com Tomie Ohtake, Maria Bonomi, Mora Fuentes, Olga Bilenky, Pinky Wainer, Ianelli, entre outros. Foi uma parceira de artistas visuais. E, em sua poesia, predominam as imagens visuais, a fanopeia – embora, evidentemente, estejam presentes e sejam fortes a logopeia e a melopeia. Ideias não lhe faltavam; musicalidade, senso de ritmo, menos ainda. O projeto de Da morte. Odes mínimas contém uma inversão da relação: ela já havia feito as aquarelas, e foi Massao quem lhe pediu poemas para acompanhá-los (informa-me, novamente, Gutemberg Medeiros). Penso que ela aspirava a uma confluência ou síntese do verbal e visual. Ademais, queria a Poesia Total; que o poema se realizasse. Para usar os termos criados por Octavio Paz em O arco e a lira, que acontecesse a “encarnação da poesia”; sua projeção na diacronia, na vida. Procurou fazê-lo, também, através da dramaturgia, e de outros meios: apreciou ser musicada e gravada por Zeca Baleiro e José Antônio Almeida Prado; compareceu a eventos e performances como aquela realizada por Beatriz Azevedo no Sesc Pompeia; nunca se furtou a entrevistas. A própria Casa do Sol, a escolha por morar lá, a vida que levou, não foram tomadas de posição poéticas? Foi essa vontade de, através do livro, ir além para alcançar a poesia plena que aproximou Massao e Hilda e os tornou parceiros, cúmplices e confidentes.


Arte do dossiĂŞ Hilda Hilst: Gabriela Lissa Sakajiri


Se há uma disputa dura e que mexe com os nervos entre os leitores de Hilda Hilst (1930-2004) é saber se ela é mais poeta ou mais prosadora, ou, de outra maneira, se foi mais longe literariamente na poesia ou na prosa de ficção. Por outro lado, pouca atenção tem sido dada, até agora, mesmo pelos seus mais fiéis leitores, aos textos que produziu em dois outros gêneros, aparentemente mais frutos de ocasião em sua escrita do que de engajamento sistemático e consequente. Falo, naturalmente, do teatro e da crônica. Em relação à crônica, o desinteresse parece até mais compreensível: Hilda se limitou a escrever para um único jornal, de circulação apenas regional, durante um período bem determinado (1992-1995). A publicação em livro desse material apenas aconteceu, e ainda parcialmente, em 1998, por iniciativa da editora Nankin, de São Paulo. O conjunto delas só foi editado pela Globo em 2007. A rigor, a sua circulação ampla é, portanto, muito recente.

Desenhos de Hilda Hilst pertencentes ao acervo do cedae - Unicamp.

No que toca ao teatro, parte da história é semelhante: as suas oito peças também foram escritas num período bem determinado, mais precisamente de 1967 a 1969. À exceção da única peça mais conhecida, O verdugo, todo o material ficou inédito em livro até 2000, quando foram lançadas quatro pela editora Nankin. Novamente, a edição do conjunto integral se deu apenas na edição da Globo em 2008. Há diferenças, contudo: o teatro de Hilda foi escrito num período em que era ele o gênero que mais contundentemente catalisava a produção e a recepção cultural da época. Ele poderia ter ficado conhecido e ter sido muito mais montado e debatido do que realmente foi. Bem diverso do que se dá com a crônica, cujo lugar cultural, tanto no jornal como no cenário literário brasileiro, sempre foi secundário. Mesmo Rubem Braga, o mais celebrado dos cronistas brasileiros do século xx, ressentia-se dessa situação de relativo desdém pelo gênero, embora em geral o negasse. Nota Biográfica: Alcir Pécora é crítico literário e professor do departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Colabora com diversos periódicos, como a revista Cult e o jornal Folha de S. Paulo. Entre as obras de sua autoria, citamos Teatro do sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 1994); Máquina de gêneros (Edusp, 2001) e Rudimentos da vida coletiva (Ateliê, 2003).


Além disso, há um dado bem curioso e importante a ser anotado aqui. Conquanto o teatro propriamente dito de Hilda Hilst esteja praticamente esquecido, a dramaturgia sobre a sua obra não teatral cresce sistematicamente! E, a julgar pela volúpia com que jovens dramaturgos têm se lançado sobre a sua prosa, promete crescer muito mais. É como se o teatro de Hilda apenas alcançasse o seu ponto de realização na prosa, e como se o que produziu diretamente como teatro não chegasse lá. Para entender esse fenômeno do apelo teatral de seus textos em prosa, é preciso mergulhar na leitura deles e perceber o quanto o seu processo de composição mais nuclear, a saber, o fluxo de consciência, recebe um tratamento marcadamente dramático, que tem menos a ver com uma personagem ensimesmada, cujos pensamentos vão se construindo ou improvisando mentalmente, do que com uma geração contínua de personagens, que se desdobram em confronto contínuo. Em adição, tais confrontos de personagens proliferantes se dão no âmbito de cenários econômicos e sistemáticos, quase abstratos, o que os afasta bastante da representação realista. Já comentei esse aspecto dramático da literatura de Hilda em outros textos. No entanto, melhor do que eu o fiz, procurou evidenciá-lo a tese de doutoramento de Sonia Purceno, ainda inédita em livro, mas passível de ser acessada on-line na Biblioteca da Unicamp. A tese convincentemente demonstra a existência – em Fluxo-Floema, O caderno rosa de Lori Lamby e em outros textos de ficção – de um forte movimento dialógico do fluxo, sustentado por personagens antagônicos e cenários compostos de recintos confinados, mas invariavelmente com escapes estreitos para cima e para baixo. Ou seja, a dramaturgia de Hilda tem se alimentado de sua ficção mas, como disse antes, permanece num limbo tão obscuro como o das suas crônicas. Proponho-me aqui a fazer um breve passeio por esses dois gêneros e esboçar o que neles funciona mais, ou menos.

I. O teatro Hilda compôs oito peças, entre 1967 e 1969. Como apontei, trata-se de um período no qual o teatro – e em especial o teatro universitário – adquire grande importância, tanto por sua significação nacional de resistência contra a ditadura militar, como pela vigorosa consonância com as manifestações políticas e artísticas que ganham corpo em todo o mundo ocidental. Ao escrever todas as suas peças nesses pouco mais de dois anos exuberantes, Hilda Hilst dava mostras de entender o apelo único que o teatro representava naquele momento. Pode-se dizer que foi uma produção de ocasião, mas não uma produção oportunista, pois estavam e estão lá os problemas que se tornariam centrais em sua obra em prosa, a qual, então, mal começava a existir. Quero dizer, de certo ponto de vista, o efeito mais importante de seu teatro foi o de ensaiar a sua prosa. Poder-se-ia pensar que, em relação à poesia, o teatro não teve efeito significativo, pois, como se sabe, Hilda produzia há mais de uma década, tendo obtido várias resenhas favoráveis de críticos importantes. No entanto, não é assim. A própria poesia de Hilda nunca mais foi a mesma depois da experiência como dramaturga e da sua iniciação na prosa.


O salto de qualidade é evidente, como vários críticos já apontaram e eu mesmo tentei demonstrar em notas à edição de Júbilo, memória, noviciado da paixão, livro de 1974 que inaugura uma fase muito mais complexa em sua poesia. A dicção poética alta, de inspiração parnasiana, que até então parecia predominar, ganhou contrapontos surpreendentes de humor, de registro vulgar e de vivacidade dialógica que lhe deram muito mais alcance estilístico e intensidade de fatura. Desse modo, se, por episódico, o teatro de Hilda Hilst parece servir mais à prosa e à poesia do que a si mesmo, pode-se pensar que, em termos de dramaturgia, ele se resumiria a uma coleta de lugares-comuns do teatro militante de época. Até certo ponto, não é uma impressão falsa: trata-se de um teatro alegorizante, de feitio genericamente didático ou doutrinário, cujo assunto básico gira em torno de uma situação de opressão institucional. Assim, o Exército, a Igreja, o Tribunal, a Empresa, a Escola ou outra instituição exerciam seu programa repressor, aplicando-o contra a população e contra os heróis, perfeitamente distintivos, insubmissos e dispostos a se sacrificar por uma ordem mais justa. Acontece que Hilda, sem deixar de constituir suas peças em torno desses lugares-comuns de época, introduz variantes notáveis no desenvolvimento deles, nem sempre simpáticas às correntes dominantes nos pensamentos da esquerda – a começar pelo fato de que a instituição autoritária tematizada por Hilda é especialmente vigilante contra os mais talentosos e estranhos; isto é, personagens que se caracterizam como representantes de uma comunidade, mas também como seres de exceção, muito diversos de todos. São estes os que mais recebem a admiração da jovem teatróloga, e não o homem comum ou a coletividade em geral. Isso não torna melhor ou mais aguda a simbologia de que lança mão nas peças, mas diversifica o uso que ela faz de uma simbologia já reconhecida por ela mesma como inexoravelmente “gasta”, sem contudo abdicar dela. Dou um exemplo bem recorrente em todas as peças. Insiste-se numa imagem dos protagonistas como seres “com asas”. Elas significam o óbvio: apontam o sujeito inconformado, criativo, único, que acaba pagando o preço de sê-lo em meio à autoridade repressora, de um lado, e à gente comum, de outro, que reproduz, embaixo, o anódino institucional de cima.

De modo geral, entretanto, é possível dizer que Hilda submeteu os lugares-comuns da época à sua própria maneira de encará-los, fazendo que a aporia e a contradição ocupassem o lugar central de todas as suas peças. Evidentemente, esses pontos de desequilíbrio dos estereótipos é o que me interessa ressaltar aqui, para, quem sabe, entusiasmar outros leitores, mais apetrechados, a retirá-las do vazio interpretativo em que se encontram. No caso de A empresa (ou A possessa), de 1967, a nota hilstiana mais interessante não é, como se poderia esperar, a denúncia da repressão institucional sobre os jovens, mas o alerta sobre a possibilidade terrível de que justamente os jovens mais criativos possam ser cooptados ou ter a sua imaginação posta a serviço do processo repressivo. Quando a personagem “América” inventa “Eta” e “Dzeta” supondo demonstrar a fecundidade da sua imaginação e, portanto, a sua diferença em relação aos padrões anódinos da instituição, o que acaba involuntariamente fazendo é prover a instituição repressora de recursos muito mais eficazes do que ela dispunha até então. Revela-se aqui um tema que sempre esteve no coração da obra de Hilda: a existência de uma condição destrutiva no cerne da mais genuína criação, a qual tanto se abate sobre o seu criador, quanto se mostra impotente diante da sua manipulação autoritária. Essa contradição entre invenção e liberdade é o que há de melhor na peça, e, nisso, Hilda se aproxima curiosamente de autores como George Orwell, cujo 1984, por exemplo, sugeria que nenhuma ação repressora de desintegração da vontade pessoal atingia o seu grau máximo antes da colaboração de um intelectual criativo. Em O rato no muro, do mesmo ano, a melhor nota hilstiana, ou seja, aquela que desafina o estereótipo adotado, está na imagem baixa do “rato” para caracterizar o único ser que, tendo agilidade para subir no muro, capacitava-se para ver além dos processos edificantes da reeducação social e cívica. Outra vez, o que se põe fora da estreiteza institucional é marcado por algum estigma, aqui acentuado por um clima neogótico, penetrado por lembranças vagas, interditos, mal-entendidos, conversas exasperadamente cifradas. O efeito geral é de desarranjo assombrado, que vai se instalando em meio a uma situação de histeria coletiva.

O visitante, de 1968, é a peça mais distinta do conjunto dramático produzido por Hilda Hilst. Para um leitor familiarizado com a sua obra, é fácil


reconhecer que ela contém o núcleo narrativo da segunda parte da novela Tu não te moves de ti, que será publicada apenas doze anos depois. Na peça, Hilda compõe um núcleo familiar que nada tem de prosaico; ao contrário, evoca a lembrança de alguma fantasia literária imemorial, com vagos elementos de paganismo popular. Parece celebrar a alegria e a força generativa da vida, mas acaba também por pressagiar o engano, a traição e a dor que parecem residir, inalienáveis, no fundo de toda relação amorosa. Além da vinculação mais direta com a prosa posterior de Hilda, a peça se distingue do conjunto teatral pelo seu viés erótico e intim ista, distante, portanto, da situação de repressão institucional constante no seu teatro. No entanto, a peça está igualmente distante de uma situaç ão pacificada. A cena idílica inicial logo se revela como fonte de suspeitas, acusações e situa­ções torturadas. O seu andamento, centrado num triâng ulo composto de mãe-filha-genro, efetua uma via tortuosa que arruína a ideia de confiança entre os que se amam.

O auto da barca de Camiri, também de 1968, tem como pano de fundo a morte de Ernesto “Che” Guevara. O próprio título já o evide ncia, já que Camiri é o nome da região da Bolívia onde “Che” teria sido morto, em outubro do ano anterior. No entanto, na peça, o nome do guerrilheir o jamais é revelado, sendo referido apenas como “homem”, o que certa mente tem a ver com a censura de época, mas também com os próprios propó sitos alegóricos que a autora pretendeu extrair do episódio.

se dá diretamenmaldito de romance epistolar gótico, cuja presença nunca corpo vivo que te ao leitor, mas é apenas referida por outros. Antes de ser um morto que pode ou não ser condenado à morte, já surge na forma de continua a assombrar os vivos. feitos pelos O efeito abertamente cômico dos diálogos e interrogatórios ulha em paroxisjuízes remete a Kafka, ainda mais quando a conversa merg assunto principal. mos de incompreensão e de interferências deslocadas do nse do Direito A deriva aleatória do julgamento parece demonstrar o nonse lidar com a realisustentado pelos juízes, e, ainda, a sua impossibilidade de as rajadas sucessidade que ocorre fora do palco – desta, apenas se ouvem , o “homem” que vas de metralhadora e os gritos dos executados. No fundo os que não se é acusado e os juízes que o condenam fazem parte de espaç si. cruzam e que, até certo ponto, permanecem intocáveis entre em sentido equíA notar também que o termo “auto” é explorado na peça ação de assunvoco, significando tanto o material processual como a encen m acaba atestando to sacro, pois o processo que condena o “homem” també do “prelado”. a sua natureza sagrada. Reforça esse aspecto a personagem e confirmar que Tomada de modo favorável, é a única que pode entender , enquanto o a realidade vivida pelo “homem” é um anúncio de vida futura ssão e morte. julgamento está encerrado em seu próprio impulso de repre

A cena é do julgamento das ações do tal “homem”. As testem unhas da defesa são figuras igualmente alegóricas, que não recebem nomes próprios, mas são designadas pelo ofício: o “Passarinheiro” e o “Trap ezista”. Tais ofícios, percebe-se facilmente, estão no domínio do “ar” ou das “asas”, o que traz novamente para a cena a simbologia operaciona l “gasta” a que me referi antes, que Hilda acolhe, mas também obscurece. Tamb ém está óbvio que o “Che” by Hilda tem muito de Cristo: é ele o cordeiro sacrificial imolado com sentido expiatório para salvação do conjunto dos homens.

ior no sentido­­ As aves da noite, ainda de 1968, segue de perto a peça anter dido como de dramatizar um episódio real da morte de um herói, enten os protagonimártir da liberdade. Dessa vez, a ação é inspirada nos event o nazista de zados pelo padre Maximilian Kolbe, morto em 1941, no camp r o lugar de outro Auschwitz, ao se apresentar voluntariamente para ocupa por uma suposprisioneiro sorteado para morrer de fome como punição cou o padre ta fuga ocorrida no campo. Em 1971, a Igreja católica beatifi então, costuma Kolbe; em 1982, foi canonizado por João Paulo ii e, desde listas e outros ser designado como Santo Protetor de presos políticos, jorna profissionais ligados à liberdade de expressão.

No entanto, a salvação é uma possibilidade adiada e o Cristo revolucionário é um sujeito ausente. O “homem” é julgado in absentia e os atos que lhe atribuem, se o caracterizam como um Cristo solitário, incompreendido, também o esboçam como um ente exclusivamente aludid o, não como quem pode tomar para si a palavra. Nisso, curiosamente, lembr a mais um herói

herói posto em Hilda está particularmente interessada em considerar o uma convicção situações extremas, nas quais deseja dar testemunho de mundo oferece moral e religiosa inabalável e explicável, quando nada no ário, parece dar qualquer fiança para a verdade da crença, mas, ao contr testemunho de seu completo vazio.


Outro ponto relevante a considerar na peça é a apologia feita à aceitação do sofrimento próprio e do reconhecimento da humanidade mesmo no mais cruel inimigo, ao qual não se nega a aplicação da metáfora gasta: são “aves”, noturnas embora. Contra essa ideia de compaixão sem limites está não a razão ou a justiça, mas o rancor autodestrutivo dos que se debatem inutilmente contra a fragilidade da vida e o horror habitual do destino. Quero dizer, na encenação de confrontos de atitudes entre os prisioneiros face à morte, a admiração de Hilda vai para os que voluntariamente escolhem o fim que lhes é dado, de tal modo que nessa escolha da morte e da não violência reside paradoxalmente toda a esperança humana de sobreviver à barbárie. Pode-se dizer que a posição de Hilda é próxima à de Ghandi, popularizada nos movimentos contraculturais dos anos 1960; mas há nela também um acento cristológico, de afirmação sacrificial no tempo presente. A entrega voluntária à crueldade do outro é o único gesto eficaz contra a ação violenta, seja a do carrasco, movida pela pulsão de morte, seja a do próprio prisioneiro, conduzida pela vingança da injustiça sofrida. A ideia que parece defender é que nada, no futuro, poderá resgatar teleologicamente o crime que se comete no presente. Nenhum mundo novo, nobre e justo aguarda ao fim do pesadelo. O mundo é este e a nobreza, quando houver, há de ser manifesta já.

O novo sistema, última das peças de 1968, novamente traz à cena as alegorias do autoritarismo presentes nas demais peças, com uma variante: é a ciência que, agora, fornece o paradigma da ação institucional repressiva. A peça é uma ficção futurista à maneira de 1984 ou de Admirável mundo novo, com a particularidade de que, nela, a Física se torna a fonte subsidiária do Direito e, portanto, de legitimação científica do poder tirânico. O double think orwelliano se torna, na peça, uma espécie de mote didatizante. Cada gesto autoritário introduz o mantra da ciência positiva: “estude Física”. Dois elementos importantes de dissonância dos clichês típicos dessa compreensão da ciência como novo totalitarismo emergem aqui. Primeiro, os maiores talentos não estão necessariamente a serviço do bem – antes, são lugares em que o bem e o mal se encontram como potência. Segundo, na esfera coletiva predomina uma subalternidade estúpida, da qual nada se pode esperar a não ser a servidão voluntária a qualquer senhor.

Em termos políticos, a vontade coletiva é sempre menos decisiva do que a escolha individual, não partilhada, mas significativa porqu e torna existente no presente a potência de humanidade que reside no indivíduo. O corolário dessa posição é a clara descrença num futuro forjado por uma doutrina revolucionária, que apenas poderia resultar numa nova forma de tirani a, ainda pior ou mais cruel, pois mais convicta de suas bases sociais e cientí ficas.

O verdugo, de 1969, é a peça mais representada de Hilda e também a única que chegou a ser premiada e publicada em seu tempo. Repet e-se o esquema de julgamento já presente no Auto da barca de Camiri, e não é difícil sustentar que, novamente, o “homem” em julgamento é “Che”, cujas características cristológicas são acentuadas pelo feitio de parábola de seu discurso. Falando por parábolas, a questão da interpretação passa a ocupar o primeiro plano do drama, o que, no caso, implica a tentativa de compreend er o paradoxo da luta armada – e, portanto, da violência – num projet o cuja destinação final é a relação amorosa entre os homens.


A resposta aventada pela peça contempla dois movimentos distintos: primeiro, deixa clara a venalidade das gentes, que não hesitam em sacrificar o “homem” que fala por elas, ou em nome de um futuro para elas, em troca de dinheiro e vantagens imediatas. Nisto, a cena do julgamento de rua retoma diretamente a do julgamento de Cristo por Pilatos. Segundo, ensaia-se uma justificativa para as grandes “patas de lobo” desenvolvidas pelos “homens-coiotes”, como são chamados os que resistem à execução da pena injusta aplicada pelos juízes. É como se, diante da arbitrariedade tirânica, apenas a violência dessas “patas” agisse em favor da instauração da justiça, ou, ao menos, de uma etapa de sua efetuação progressiva. Entretanto, mesmo nesse ponto de relativa justificação da violência, a peça, mais uma vez, evidencia a impotência da revolta, pois os “homens-coiotes” apenas assistem, sem conseguir reagir, à execução de seu líder. Assim, se O verdugo acentua a feição cristológica do líder revolucionário, que padece a morte pelo bem dos que o vendem, também reforça uma tradição de leitura revolucionária do Cristo, como fazia Pasolini, em 1964, com o seu O Evangelho segundo São Mateus, o que tende a justificar ou entender a necessidade da violência na luta pelo direito. A última peça de Hilda, A morte do Patriarca, ainda de 1969, retoma a encenação em ambientes confinados e quase sem ação, a não ser de ordem subjetiva e intelectual. No palco, as imagens de Cristo, de líderes revolucionários, além de um surpreendente Ulisses, são exibidas como forma de atrair e manipular a simpatia de um grupo de jovens prestes a tomar o palácio papal. Cristo, ainda mais que Ulisses, é objeto da simpatia da autora (ao contrário de Marx, Lênin ou Mao), mas nenhum deles consegue blindar a Igreja quando eclode a revolta popular contra sua autoridade. Assim resumida a ação, a peça pode parecer um passo adiante de O verdugo na aceitação da violência revolucionária. Não é o caso: os jovens que invadem o palácio e matam o papa o fazem sob os incentivos do mesmíssimo conselheiro do papa que cai: o demônio. A iconoclastia dos jovens traz dentro de si a origem do mal que produziu, no passado, a ascensão da própria Igreja. Deus e os anjos apenas observam, sem intervir, possivelmente antevendo o desgraçado fim da história. O mais marcante no andamento da peça, entretanto, é menos o seu desfecho cético, do que o humor anárquico que se desenvolve em meio às cenas

mais dramáticas, produzindo diálogos agudos e ágeis, o que será marcante na prosa posterior de Hilda. É o que me ocorre dizer como apresen tação sucinta do teatro de Hilda Hilst. São peças que praticamente não tiveram encenação profissional, a não ser O verdugo. Não func ionaram, portanto, até agora, como teatro propriamente dito, isto é, com personagens atuando em cena, diante do público. A falta de açã o, o enredo abstrato, o acento colocado sobre a palavra poética, uma discussão política que mais parece condenar a política, um teatro popular que parece implacável com o povo, certo catolicismo pad ecente e vitimista que contamina o pacifismo, o repúdio às posiçõe s polarizadas da época, sem deixar de acentuar os polos; um olhar mais agudo para as contradições e as incongruências do que par a a clareza ideológica – qualquer coisa, ou tudo isso, resultou no fracasso de seu teatro. Sempre que volto ao texto das peças, pergunto-me se elas – que foram longamente desenvolvidas, de maneira mais complexa e radical, na prosa de ficção de Hilda – teriam ainda chance de funcionar como teatro. E não tenho resposta para essa indagação. Os textos têm bons momentos, situações potencialmente fortes, posto que irrealizadas. Mas como saber o que vale um teatro que não é encenado? Se o fosse, imagino que demandaria fortes adaptações, uma vez que as tópi cas revolucionárias e as metáforas gastas com as quais dialoga, em larga medida, são já ruínas.


II. Crônica Quando já tinha 60 anos completados, Hilda Hilst aceitou o convite para escrever uma coluna de crônicas para o recém-criado Caderno C do jornal diário Correio Popular, de Campinas, e o fez regularmente entre 30 de novembro de 1992 e 16 de julho de 1995. A sua coluna, que tinha como título apenas o nome da autora, começou a ser publicada às segundas-feiras, assim permanecendo até 20 de setembro de 1993. De 17 de outubro de 1993 até o final de sua colaboração, passou a circular aos domingos, sempre tendo como editor do caderno o jornalista Jary Mércio. Às segundas ou aos domingos, a crônica de Hilda não passava despercebida. Para alguns poucos, suponho que se tratava de razão suficiente para comprar o jornal; para outros, era motivo para os mais veementes protestos contra sua linguagem desbocada, à que não faltava o calão; para muitos, era a chance de rir dos destrambelhamentos de uma velha louca. Certo é que não havia meio de frear a liberdade da imaginação de Hilda Hilst pelo chamado à responsabilidade do senso comum. Lembro-me exemplarmente de uma crônica sua, a qual, edificante nos seus próprios termos, animava velhinhas a se empenharem na prática do sexo oral, já que a falta de dentes, garantia a cronista, ajudava o trabalho de sopro. O tom metódico e didático do texto era hilariante. Deixava evidente que Hilda Hilst era uma humorista completa, no sentido pirandelliano do termo; isto é, alguém que não apenas sabe fazer entender o contrário do que diz, mas que suspende as certezas do que diz e do que insinua, voltando-se contra si mesmo e produzindo aporia e paradoxo. Esse mesmo exemplo da velha gulosa serve para mostrar que, para Hilda, nada era estranho ao humor, mesmo o tema difícil, se não doloroso, das misérias da velhice, que era talvez o mais constante do conjunto das crônicas. Esse é apenas um exemplo, entre tantos outros, hilariantes e igualmente duros, que Hilda mandou ao jornal. Alguém ainda terá de falar com muita seriedade da Hilda Hilst humorista, e quando fizer isso, será nas crônicas que encontrará alguns de seus melhores argumentos, mesmo se não exclusivamente nelas. No Brasil, que sempre se louva de muito engraçado, há poucos autores que pratiquem uma escrita de alto nível na qual o humor seja um componente tão decisivo. Estar sob o influxo do humor das crônicas de Hilda é, de alguma forma, estar implacavelmente exposto a um processo educativo, entendido como aprendizado de rir de si mesmo e de desistir de toda afetação vulgar, seja

a de autoridade, seja a de intelectual sério, intérprete de grandes aspirações nacionais. O melhor jeito de se livrar do pior da sua ironia é aprender que não há sentido elevado possível que imediatamente não traga o contraponto de uma baixeza: a humanidade não está em nenhum deles sem que venha junto o outro. Ler aquelas crônicas da primeira metade dos anos 1990, especialmente no que diz respeito à sua indignação contra a roubalheira generalizada do governo e a insensibilidade venal dos políticos, é ainda tão amargamente divertido como no tempo em que Hilda as escreveu. Quase digo que o que ela registrou antes apenas agora se revela em toda a sua densidade e mau cheiro. Mas não era profecia, não, longe disso: o que hoje se passa é apenas continuidade cabal do mesmo merdel de “quinto mundo”. O Brasil sem-vergonha de Collor e pc Farias, dos anões do orçamento, das famigeradas “sobras” de campanha, da chacina da Candelária, da impunidade generalizada, da arrogância boçal dos ricos, que são sempre novos-ricos, da parvoíce do plebiscito da monarquia, das negociatas do fmi, do roubo da Previdência, da secular indústria da seca, da prostituição infantil, da privatização cavilosa... De tudo isso Hilda falava e ria, brava, e ainda estaria a esbravejar, rindo, pois novos e impensáveis descalabros públicos lhe cairiam nas linhas afiadas, como ainda se apresentam a nós, todos os dias. Já estou ouvindo Hilda gritar da sala, enquanto vai vendo e ouvindo as notícias no rádio e na televisão: “me tragam meu penico de estanho que eu vou vomitar”; e depois: “agora é tarde, negão, já vomitei”. É passar os olhos pelas crônicas de Hilda Hilst para conhecer, de um golpe, que o Brasil é um desastre persistente, fruto do que ela chamaria de pornocracia, ou reino da pornografia inata. A justa indignação, entretanto, nunca implicou em perda de humor, mas, ao contrário, deu-lhe um mar de metáforas escabrosas. Talvez por isso as crônicas ensaiem diversas possibilidades de criação no gênero que lhe é próprio, no âmbito do jornal. Refiro algumas delas. Em certas crônicas, Hilda justamente tematiza a expectativa usual de que o texto se efetue como comentário otimista das notícias recentes, com destaque para os casos que pudessem atrair “simpatia humana”. O roteiro lhe parece cínico e desonesto demais num tempo quase sem esperança à vista, além de ser patente a sua falta de sintonia pessoal com o ar conformista dos anos 1990. Isso a obrigava a inventar saídas novas para a sua crônica, fora dos parâmetros de uma escrita “coerente e agradável”.


Outra estratégia hilstiana para a crônica foi a criação de fábulas com moralidade invertida, à maneira dos poemas hilariantes reunidos em Bufólicas, que misturavam a última lambança pública com historietas nonsense. Há crônicas, ainda, que simulam uma espécie de entrega ao fluxo de lembranças momentâneas e aos desvios mais inesperados do andamento argumentativo, o que produz uma impressão de imediatismo e de improviso total, como uma conversa que irrompe, de repente, sem fim e sem começo, ali mesmo, no meio das páginas do jornal.

Entre as saídas que ensaiou está a de misturar comentários de notícias recentes com poemas e textos de sua própria autoria, escritos e publicados em outros tempos, mas seguramente desconhecidos do leitor médio do jornal. Digamos que, nesses casos, ela usava as crônicas como divulgação de sua obra poética. Pessoalmente, não me parece que esta seja das soluções mais bem resolvidas. Os poemas, em geral, surgem descolados do restante da crônica, sobretudo por exigir um tipo de concentração ou estratégia de leitura muito diversa daquela que orienta o início referencial da crônica.

Enfim, diria que as estratégias inventadas por Hilda nas crônicas privilegiam um procedimento básico: colocam no centro da roda uma imagem caricata do leitor habitual do jornal, no extremo oposto do “leitor utópico”, de que fala Boris Groys, o qual leria a obra exatamente como se gostaria que ela fosse lida. Hilda propõe como leitores de sua crônica velhos casais desanimados, saturados da própria companhia esvaziada; senhoras falsamente pudicas que simulam inocência escandalizada e a acusam de “nojenta” ao editor do jornal; representantes da “sociedade campineira” que, ao contrário do que supunham, não se distinguem em ignorância do “povão, caterva, populacho”; gente basicamente desesperada que, sem saber o que fazer do deserto da própria vida, aposta no Esse alheamento de si como moralidade e leitor no cultivo da boçalidade como evidentemente trunfo da convivência. não compra livros, a não ser para fingir para o vizinho igualmente atoleimado a inteligência que não tem. Essa caricatura de leitor avança e se amplifica até abarcar a humanidade inteira. E então, do seu leitor ela não pleiteia fraternidade ou sequer a amizade, mas, ao contrário, declara-lhe divórcio radical, cujo performativo é dado pela fórmula: “sou gente não”. Essa é a sua variante do I would prefer not to, frase com que Bartleby, a célebre personagem de Melville, faz recuar o seu ofício mecânico e contingente de escriba a um estado de negatividade primordial. De modo geral, entretanto, as crônicas significam a abertura para uma grandeza artística que tampouco se efetua nelas. São geralmente resumos, sínteses cômicas, desfechos caricaturais de algo que já se passou mais completamente em outro lugar. São um modo despachado de dizer de novo o que já disse, mais e melhor, na prosa ou na poesia, mas que ali, no campo do jornal, gera a alegria perversa de maltratar quem não a leu.


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pé pé pé pé Com o pépassar cresce pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé maneira seu criador, pé pé pé pé invade pé pé pé péde pé pétal pé pé pé pé pé pé apévida pé pé péde pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé que pé pé pé pé pévai pé pégradativamente pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pécomo pé pé pé pé este desaparecendo, sepé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé a pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé apé potência pé pé pé pé péfetichista pé pé pé pé pé e pé perversa pé pé pé pé pédo pé péprojeto pé pé pé péassociado pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Mattoso, pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé por pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé péda pé pé pé pé pé pé pé pé pé oupé construído meio dele, dependesse pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé 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pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé péBiográfica: pé pé péRonnie pé péCardoso pé pé pé pé pé pée jornalista. pé pé péMestre pé péempéEstudos pé péLiterários pé pé pé péUFMG, pé péatualmente pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Nota é professor pela está cursando doutorado em Literatura Brasileira na USP. Desenvolve pesquisa sobre a erótica literária e a espé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé tética da perversão. Escreveu a dissertação Na falha da gramática, a carne: a pornografia em Hilda Hilst. pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé RBMA pé pé148pé pé69 pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé

Glauco Mattoso: um perverso ao pé da letra

Nasci glaucomatoso, não poeta. Poeta me tornei pela revolta

que contra o mundo a língua suja solta e a vida como báratro interpreta.

Compenso o que no abuso se me impôs

Bastardo como bardo, minha meta

lambendo, por debaixo, os pés do algoz.

jamais foi ao guru servir de escolta

nem crer que do Messias venha a volta, mas sim invectivar tudo o que veta.

(pedal humilhação) com meu fetiche,

Mas não compenso, nem que o gozo

[esguiche, masoca, esta cegueira, e meus pornôs poemas de Bocage são pastiches.

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Catalogado com o número 951 de uma extensa série de sonetos que acumulam os saberes e os prazeres da sexualidade desviante, nele o eu textual criado por Pedro José se assume como perverso, aponta sua filiação literária e mostra a revolta que só pode ser traduzida por meio da “língua suja e solta”. Sob a assinatura de Mattoso, já são mais de cinco mil sonetos escritos e mais de cinquenta livros publicados. A maior parte de sua produção compõe-se de poesias, contudo, também escreveu ensaios sobre a lírica marginal, a tortura, a história do trote estudantil, o rock, além de tratado de versificação, dicionário, romance, memórias, “autoficção” e contos. O fetiche por pés e as experimentações sadomasoquistas estão presentes, direta ou indiretamente, em grande parte da produção poética do autor, como também nos ensaios O que é tortura (1984) e O calvário dos carecas: história do trote estudantil (1985), no romance autobiográfico Manual do podólatra amador, aventuras e leituras de um tarado por pés (2006), o romance A planta da donzela (2005) e os livros de contos Contos hediondos (2009) e Tripé do tripúdio e outros contos hediondos (2011). Na vasta obra do autor, a podolatria e o sadomasoquismo são temas recorrentes que singularizam a sua produção textual. Nos diversos gêneros por ele praticados (poesia, ensaio, prosa, ficcional ou autobiográfica), o fetiche por pés, associado muitas vezes à prática sadomasoquista, aparece como o enunciado a ser repetido, duplicado e ampliado por meio da escrita de Glauco Mattoso, que não deve ser visto apenas como um pseudônimo, mas sim heterônimo ou alter ego de Pedro José Ferreira da Silva. Nesse movimento de construção de um eu textual fetichista, a própria linguagem torna-se objeto da fantasia erótica e apresenta um novo traçado da sexualidade para o leitor: a perversão não aparece só na perspectiva temática, mas principalmente na forma de enunciação.

“Nesse movimento de construção de um eu textual fetichista, a própria linguagem torna-se objeto da fantasia erótica e apresenta um novo traçado da

O texto como fetiche

sexualidade para

O Manual do podólatra amador, cujo subtítulo é “aventuras e leituras de um tarado por pés”, fornece o aporte mais profícuo para se definir o projeto estético-literário do autor. O livro representa não só a consolidação literária de uma concepção estética, como também traz uma contribuição crítica aos estudos literários brasileiros e aos estudos sobre perversão. Em vários momentos, percebe-se nele determinados posicionamentos, programas ou ideias típicos de um manifesto. O volume apresenta os princípios, as proposições, o embasamento conceitual, a genealogia e as filiações da concepção estético-literária que estamos denominando “estética da perversão”.

o leitor”

Mesmo tendo um caráter biográfico (ou de autoficção), o Manual do podólatra amador não deixa de ser um romance de tese. De fato, o texto de Mattoso procura alternativas para impasses que surgem no contexto da indústria cultural. Em outras palavras, o que é possível fazer diante da repetição que não permite 150 RBMA 69

a instauração da diferença, ou ainda, como reverter o processo de esgotamento e de homogeneização do relato pornográfico que gira em torno de clichês sobre a sexualidade? O primeiro passo dado pelo escritor (que transita pelos espaços da ficção e das vivências reais, misturando os dois) em direção oposta à domesticação e à padronização impostas pela indústria cultural, foi o de colocar a sua vida, as suas experiências sexuais, os seus conhecimentos e as suas leituras sobre a tradição obscena como foco e fonte da escrita. A ideia de se autobiografar pareceu-lhe uma tarefa grandiosa. Logo percebeu que, para resgatar a memória do que foi vivido ou para romancear os acontecimentos, reflexões e emoções da sua existência, seria preciso determinar o ponto de corte, apresentado pelo autor na seguinte passagem do Manual do podólatra amador: Só me dispus a isso quando percebi que a fórmula tava bem mais aquém: bastava ficar em torno daquilo que eu havia lido & feito com relação aos pés. Já que nesse terreno a literatura é curta e minha experiência larga, tudo o que eu passasse pro papel seria lucro. Sem o peso de compromissos mais genéricos com a Ficção ou a Memorialística, foi fácil & rápido produzir este livro. Que nem fazer um gol de pênalti, bater num cara amarrado, empurrar cego em ladeira, tirar doce da boca de criança ou gozar tocando punheta.1 Ao longo do volume, o autor procura questionar, deslocar, erotizar ou perverter as definições a respeito de sexualidade desviantes presentes nos manuais de sexologia aos quais teve acesso, numa atitude que evoca outros sujeitos perversos, cujas supostas patologias foram descritas, de forma pioneira, no Psychopathia sexualis, do Doutor Krafft-Ebing. O narrador do Manual do podólatra amador revela ser um leitor contumaz desse gênero textual desde a 1 G. Mattoso, Manual do podólatra amador, p. 162.

adolescência, principalmente do livro de Frank Caprio, Aberrações do comportamento sexual. Essa obra, segundo o eu textual, rendeu-lhe “material pra muita punheta”.2 Daí que, em alguns momentos, chega a citar passagens do texto de Caprio, recortando e desviando o caso relatado pelo médico do aparato clínico que o circunscreve, pervertendo a finalidade didática e científica de tais relatos. Ao alterar o texto original, Mattoso satisfaz seu desejo por meio da palavra escrita. Ele desloca os princípios normatizadores do texto científico, reescrevendo-o à sua maneira. Quando encontra o caso de uma relação incestuosa entre pai e filho, relatado pelo Doutor Caprio, faz o seguinte comentário: “Tava eu lá interessado em saber se o filho era paranoico e o pai esquizofrênico? E eu com a opinião do psiquiatra? O que eu queria era me imaginar naquela cena onde o carinha contava...”.3 Assim, o imaginário perverso de Mattoso (vinculado à ficção) serve-se do conhecimento clínico para, em seguida, pervertê-lo. Nos escritos de Caprio, procura recortar as aberrações em função do seu desejo, desviando-se do tratamento e da cura associados a cada caso. Encontra-se em consonância, assim, com o que defende Roland Barthes no seu livro autobiográfico: “A Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que a perversão, simplesmente, faz feliz; ou, para ser mais preciso, ela produz um mais: sou mais sensível, mais perceptivo, mais loquaz, mais divertido, etc. – e, nesse mais, vem alojar-se a diferença (e, portanto, o texto da vida, a vida como texto)”.4 Na produção literária de Mattoso, a fixação aos pés masculinos – que, segundo a sua preferência, deveriam ser grandes, desleixados e malcheirosos – desvia-se em direção ao espaço textual, duplicando, assim, a dimensão do prazer. Tal perspectiva fica ainda mais clara no livro A planta da donzela. Nesse volume, não só o texto clínico é rasurado, alterado ou reescrito por Mattoso, mas também o 2 Idem, ibidem, p. 29. 3 Idem, ibidem, loc. cit. 4 R. Barthes, O óbvio e o obtuso, p. 77.

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texto literário. Em Manual do podólatra amador e em alguns contos que publicou, ele já havia mostrado o rastro que a podolatria tem deixado nas letras brasileiras, no entanto, como constata, eram apenas passagens, flagrantes, lampejos selecionados e destacados em função do seu recorte fetichista. Em A planta da donzela (2005), o trabalho amplia-se. Mattoso se propõe a reescrever totalmente aquele que considera “o grande monumento ao pé, o clássico da podolatria em sua concepção feminil, elevada ao status de tese estética”.5 Esse livro é A pata da gazela (1870), de José de Alencar, um romance cujo enredo desenvolve-se em torno da singularidade do pé e do desejo sexual que ele desperta. No entanto, sobrepondo-se a isso, para moldar ou domesticar tal conteúdo­incômodo, o escritor do Romantismo brasileiro apresenta princípios morais baseados numa lógica maniqueísta. Conforme observa o autor paulista: Trata-se mais duma fábula desenvolvida, com alguma pitada de conto de fada, que duma crônica de costumes. A ambientação do enredo no cenário urbano da corte imperial é meramente circunstancial. O autor pretende expor uma tese, e pra isso traça o caráter dos personagens da forma mais estereotipada e simbólica: cada um com sua carga moral, avaliada pela cômoda balança do maniqueísmo. O mocinho & o bandido, o feio & o bonito, o certo & o errado, o bom & o mau, o vício & a virtude, o castigo & o prêmio. Nada do “rigor científico”, dos “fisiologismos” & “psicologismos” que caracterizariam mais tarde “teses” da ficção naturalista. A de Alencar era só uma “tese” romântica, para efeitos “edificantes”. Uma fábula, embora para adultos.6 Glauco Mattoso conhece bem a literatura brasileira. Em vários dos seus textos está presente uma

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interlocução profícua com escritores de diferentes períodos históricos, tais como o próprio Alencar, Gregório de Matos, Álvares de Azevedo, Joaquim Manoel de Macedo, Laurindo Rabelo, Luís Delfino, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Fernando Gabeira, João Silvério Trevisan, Roberto Piva, entre tantos outros, que lhe são contemporâneos ou não, cujas obras são, por vezes, citadas “ao pé da letra” e, por outras, reescritas em função do seu deleite fetichista. Alguns textos da nossa tradição literária foram recriados por Mattoso, mas não parece que, principalmente no caso de A planta da donzela, o autor tenha feito mero pastiche: aliás, esse conceito talvez seja insuficiente para se compreender a singularidade da sua literatura. No mínimo, seria uma questão que ficaria em segundo plano diante do movimento de seleção, recorte e arquivamento realizado em função de um traçado fetichista que envolve acúmulo e repetição em torno do objeto do seu desejo (o pé). A reescrita pode ser entendida, aqui, como movimento de rastreamento e formação de uma estética sobre perversão ou, de outro modo, de construção de uma plasticidade que foi moldada por meio do desvio sexual; não como cópia, mas sim como invenção e fundação de uma prática textual. O tripé do tripúdio é outra obra importante para a percepção do projeto estético de Glauco Mattoso. Em alguns contos desse livro, encontra-se uma perspectiva crítica que coloca em questão os clichês da literatura erótica, como nesta passagem: Um soneto como aquele “Higiênico” (143) me veio na mesma noite em que, conversando com Carlos Carneiro Lobo, a monotonia dos contos eróticos foi a pauta central. Comentávamos que, no caso da literatura gay, sempre houve pouca vanguarda e muita retaguarda, e o magistral ficcionista de Histórias naturais e de Geografias humanas, que costumeiramente me visitava, expunha então sua própria teoria

a respeito: a arquetípica estrutura narrativa na base do começo-meio-e-fim, contestável ou não, fica reduzida, no homoerotismo, à mera sequência ereção-penetração-ejaculação, que, já pouco criativa por si mesma, resulta ainda mais burocrática por estar presa a falsos clichês como o mito do pau grande e o vício do coito anal.7 O livro foi publicado em 2011, mas os contos foram concebidos ao longo de uma produtiva interlocução com os sonetos que o autor escreveu a partir do momento em que ficou totalmente cego. Aliás, como é possível observar na singularidade da denominação heteronímica do autor (Glauco Mattoso = glaucoma), a cegueira, cantada em verso e prosa, torna-se um dado relevante para analisar a sua produção literária. Trata-se da única patologia assumida como tal no projeto estético do escritor, sendo um desafio constante para o seu percurso perverso. A despeito dessa limitação, ou estimulada por ela, a estrutura perversa do desejo de Mattoso vai transformar a própria deficiência em mecanismo de prazer, quando percebe que a cegueira pode legitimar e intensificar a sua atuação masoquista. Nesse percurso, a deficiência visual e a palavra vão se suplementar no mesmo movimento de duplicação e ampliação do gozo perverso. Em função da perda gradativa da visão, que o deixará totalmente cego dos dois olhos, o escritor decide registrar por meio de uma forma fixa, o soneto, todo o roteiro sexual delineado por sua imaginação nas noites de insônia. A memória erótica, que intumescia o corpo e a palavra de Glauco Mattoso, era então convertida em sonetos. Tal estratégia, segundo o autor, permitia que se lembrasse, ao acordar, do itinerário textual do seu gozo, mostrando assim que, apesar da cegueira, seu “tesão continuava vivo e esperneando”.8 Dessa forma talvez conseguisse despistar ou evitar a angústia. No conto “O sexagenário sedentário”, registra assim o seu estado atual:

5 G. Mattoso, Manual do podólatra amador, p. 81.

7 Idem, ibidem, p. 70.

6 Idem, ibidem, pp. 81-82.

8 Idem, ibidem, p. 75.

Não me adaptei, mas hoje convivo com a cegueira mais pacificamente que nos anos 90, quando o impacto da desgraça me levou a sonetar desesperadamente, como no soneto “Perpétuo”, em que me considero prisioneiro e condenado a chupar o pau do primeiro carcereiro (leia-se qualquer visita) que aparecesse. Com o passar do tempo, consegui me virar na vida prática, e o fantasma da solidão deixou de ser um pânico meramente material para se concentrar na carência afetiva. Já não era a incapacidade que me assustava, e sim a ociosidade, que a punheta talvez não fosse bastante para preencher.9 Os contos de Tripé do tripúdio vão ampliando as formas da interlocução intratextual com diferentes personagens (reais e fictícios). Em todo o livro, o autor explora o palimpsesto como forma de enunciação: cada conto remete a um ou mais sonetos que, por sua vez, retratam uma circunstância erótica que atualiza alguma cena já experimentada no passado pelo eu textual. A narrativa é sempre em primeira pessoa, intercalada, muitas vezes, com discursos diretos, confissões ou relatos do que foi observado por diferentes interlocutores, além de citações de diferentes gêneros textuais. Nesse percurso, o autor executa, como já vinha fazendo, um trabalho arqueológico que visa resgatar textos esquecidos, renegados ou disfarçados por discursos civilizadores.

O excesso na perversão Glauco Mattoso mapeou as variadas manifestações podólatras na literatura brasileira. Nos textos que selecionava e incorporava em seus escritos, percebe-se o acréscimo ou acúmulo de diversos elementos perversos, tais como o sado9 Idem, ibidem, p, 58.

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masoquismo, a disodia, deformações e toda sorte de inversões sexuais. Nesse caso, quanto mais o desejo por pés estivesse associado a outros desvios ou fetiches, maior seria a qualidade estética do relato revisitado pelo eu textual perverso. O traço fetichista encontrado por Mattoso nas obras dos autores nacionais pode não ser percebido pelo leitor comum. O olhar do escritor de Manual do podólatra amador recorta o texto original em um ponto insuspeito, que passaria despercebido para um legente cujo desejo não fosse acionado por um regime de leitura estimulada pela perversão ou, mais especificamente, pela podolatria. Quem se ateria, por exemplo, ao momento em que Augusto, personagem de A moreninha (1844), de Joaquim Manoel de Macedo, escondido debaixo da cama, observa a perna e o pé de uma donzela que se despe, senão um leitor podólotra? Depois de selecionada, recortada e realçada por Mattoso, a figura do pé feminino descalço vem para o primeiro plano da narrativa: Ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!… Através da finíssima meia aparecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseo, um pezinho que só se poderia medir a polegadas, apertado em um sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... mil beijos; mas quem o pensaria? Não foram beijos o que desejou o estudante outorgado àquele precioso objeto: veio-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já não se podia suster... já estava de boca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com força procurava iludir a sua imaginação.10 Com o destaque dado a esse fragmento, fica a sensação de que o livro de Macedo, e tantos outros elencados por Mattoso em seu Manual do podólatra amador, pode ser experimentado segundo um regime de leitura perversa. É preciso atentar-se para o traçado da leitura e da escritura proposto por Mattoso, o qual tem a ver com a atenção ao detalhe, ao ruído, ao desvio, que um fetichista, ou “psiquiatra castrador”, sabem identificar tão bem. Em A planta da donzela, o autor avisa: Tratando-se duma novela fetichista – mais especificamente retifista – e maniqueísta, só mesmo um podólatra assumido ou um psiquiatra castrador estaria apto a parafraseá-la, seja para desvirtuá-la duma vez, seja para enquadrá-la nos padrões da “normalidade”. Eu me habilito no primeiro caso, ou seja, no papel do maníaco radical, para quem o revisionismo literário está a serviço do vício.11 Por meio do fetiche do eu textual, cria-se uma profícua interlocução com a literatura brasileira atual e com autores da nossa tradição literária que lhe antece-

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“Quem se ateria, por exemplo, ao momento em que Augusto, personagem de A moreninha (1844), de Joaquim Manoel de Macedo, escondido debaixo da cama, observa a perna e o pé de uma donzela que se despe, senão um leitor podólotra?”

deram. Ao se observar a biblioteca de obras nacionais constituída pelo escritor de Tripé do tripúdio, percebe-se uma dupla operação, ambas derivadas da escavação da linguagem. A primeira operação requer selecionar, acumular e fixar ações fetichistas que, ao mesmo tempo, também apontam para a figura de um leitor voraz. Tal figura pode tanto ser associada a uma metodologia de leitura quanto a um processo de produção criativa. Esse eu textual, em sua leitura voraz, como também em sua escrita, enuncia e conduz sua criação, selecionando, reunindo, fixando, catalogando, arquivando a nossa literatura segundo um processo que denomina “cropofagia”. No Manual do podólatra amador e, antes, no controvertido Jornal Dobrabil, Mattoso ressalta a direta relação desse termo com a noção de antropofagia de Oswald de Andrade. Ao fazer “apologia da merda em prosa & verso”,12 o autor procura, em suas palavras, fazer “uma reciclagem ou recuperação daquilo que já foi consumido e assimilado, ou seja, uma sátira, uma paródia, um plágio descarado ou uma citação apócrifa”.13 O segundo movimento operatório envolve ampliação, gesto de revisitar e alargar pela reescrita os textos que tocam o desejo do escritor. Nesse processo, um detalhe do texto do outro é recortado, remontado e aumentado segundo um traçado que refaz a historiografia pelo avesso (seu olhar quase sempre se direciona para as partes baixas do corpo, e não para o alto), cobrindo as brechas deixadas pelos historia­ dores da literatura nacional. Rastreia, atualiza e revitaliza textos de autores do nosso passado literário tendo em vista a constituição de uma erótica podólatra brasileira nas letras. Tanto nos textos de sua autoria, como nas antologias que ajudou a organizar – Antologia sadomasoquista da literatura brasileira (lançada em 2008) e Aos pés das letras: antologia podólatra da literatura brasileira (lançada em 2011) –, pode-se perceber o diálogo com a nossa tradição literária por meio do acúmulo e da ampliação.

10 J. M. Macedo, A moreninha, apud G. Mattoso, Manual do podólatra amador, p. 69.

12 Idem, Manual do podólatra amador, p. 143.

11 G. Mattoso, A planta da donzela, p. 9.

13 Idem, ibidem, p. 144.

Ao se voltar para obras de diferentes autores, em contexto e temporalidades diversas, Mattoso mostra o excesso no texto original: detalhes, resíduos, sobras que vão se amontoando em sua biblioteca, construída segundo um corte perverso. O escritor de A planta da donzela direciona o leitor para detalhes que normalmente não seriam notados, traz à tona autores ou obras esquecidos, além de remeter a outros desconhecidos, constituindo assim uma comunidade marcada pela perversão. No traçado executado por Mattoso, rompe-se a separação estanque dos estilos de época para ganho da linhagem de escritores extemporâneos, entre os quais ele se encontra, que aproximam o lado obscuro dos nossos desejos à cifra da letra. Em consonância com Barthes (O óbvio e o obtuso), Derrida (Gramatologia) e com a psicanálise lacaniana, a letra é vista aqui tanto como materialidade ligada às mais profundas experiências humanas, quanto como encruzilhada de símbolos. Segundo a proposição de Barthes, ela seria o estado adâmico da linguagem, antes do erro, antes do discurso, anterior ao sintagma. Nesse sentido, pode ainda ser vinculada à noção de contemporaneidade proposta por Agamben, para quem “a­­via de­acesso ao presente tem necessariamente a­forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançada para a origem, sem jamais poder alcançá-la”.14 Enfim, quando Mattoso solicita a escritura, de lavra própria e de outrem, como motivação masturbatória, um certo fetiche pela letra vai suplementando ou sobredeterminando o fetiche por pé. Tanto nos ensaios quanto na poesia e na ficção do autor, parece que toda perversão só existe em nome da letra; ou, mais especificamente, no plano literário só seria possível uma estética da perversão sob a condição de um fetiche da letra. 14 G. Agamben, O que é contemporâneo?, p. 70.

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Bibliografia Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. Barthes, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. . O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999. . Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. . Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Caprio, Frank. Aberrações do comportamento sexual. São Paulo: Ibrasa, 1965. Derrida, Jacques. Gramatologia. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. Krafft-ebing, Richard von. Psychopathia sexualis: as histórias de caso. São Paulo: Martins Fontes, 2000. mattoso, Glauco. O calvário dos carecas: história do trote estudantil. São Paulo: emw Editores, 1985. . O que é tortura. São Paulo: Brasiliense, 1986. . Jornal Dobrabil. 2 ed. São Paulo: Iluminuras, 2001. . A planta da donzela. Rio de Janeiro: Lamparina, 2005. . Manual do podólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. São Paulo: All Books, 2006. . Poesia digesta. São Paulo: Landy Editora, 2008. . Contos hediondos. São Paulo: Editora Demônio Negro, 2009. . O tripé do tripúdio. São Paulo: Tordesilhas, 2011. . Sonetodos: poesia completa de Glauco Mattoso. Disponível em: <http://sonetodos.sites. uol.com.br>. Acesso em: 18/03/2012.

Imagens: Juca Lopes 156 RBMA 69


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os anos 1920, uma série de distribuidoras de filmes se instalou no centro de São Paulo. Elas vinham atraídas pela facilidade logística graças à proximidade com as estações da Luz e Sorocabana. No início dos anos 1950, a região passou a ser denominada pelos jornais da época como “Boca do Lixo”, em função do grande número de figuras marginais que frequentavam o local, como prostitutas, ladrões e traficantes. 1. Prostitutas na rua do Triunfo. 2. Cavalo puxa carroça na rua do Triunfo. 3. Carrocinhas transportam latas de filme

Imagens: Ozualdo R. Candeias

OCA DO LIX

E A BOCA DO LIXO NO CINEMA

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Já a partir do final dos anos 1960, a produção cinematográfica nacional voltada para as classes populares intensificou-se diante da repressão política. Grande parte dessa produção era concentrada na Boca do Lixo, principalmente na rua do Triunfo, no bairro da Luz, em São Paulo. O local passou a atrair técnicos, diretores, produtores e atores, que frequentavam principalmente os bares Soberano e Ferreira, onde idealizavam projetos cinematográficos. Com esse agrupamento, aliado à criação pelo governo militar do Instituto Nacional de Cinema (inc) em 1966 e à legislação que associava as distribuidoras estrangeiras à produção nacional – permitindo que parte do imposto devido sobre a remessa de lucros fosse investida nos filmes –, o cinema foi ganhando um caráter popular e levou muitos espectadores às salas de projeção. A diversidade na produção cinematográfica da Boca abrangia diversos gêneros de filmes, entre eles a pornochanchada, gênero por excelência associado à região. A partir da segunda metade dos anos 1970, sua produção passa a se concentrar cada vez mais nos filmes eróticos, que com o passar dos anos foram se tornando mais apelativos, alcançando grande sucesso de público.

7 4. Caio Scheiby, Paulo Emílio Sales Gomes e Carlos Roberto de Souza, no bar Soberano em 1977 5. Ferreira, Cida, Miro Reis e Zé do Paiol, no bar do Ferreira 6. Bar Soberano

7. Bar Soberano 8. Ozualdo R. Candeias e Anselmo Duarte no bar Soberano, em 1977

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Em 1982, Coisas eróticas, de Raffaele Rossi e Laente Calicchio, foi o primeiro filme de sexo explícito brasileiro, o que acabou estimulando a produção de obras de péssima qualidade. Paralelamente ao aumento da inflação, o advento do home video e o desinteresse do Estado levaram o mercado cinematográfico a se enfraquecer, contribuindo para a decadência da produção na rua do Triunfo.

9. Claudete Joubert e Tony 12

Vieira durante festa na Boca 10. Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla 11. Jairo Ferreira, Rubens Eleutério, Rubens Ewald Filho no bar Soberano 12. Antônio Thomé, Ody Fraga, John Doo e Oswaldo de Oliveira (Carcaça) 13. Silvio de Abreu, Moreira e Walter Portela

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15 21 14. Jean Garret, Oswaldo de Oliveira (Carcaça) e Carlos Reichenbach 15. Jairo Ferreira, Carlos Coimbra e Júlio Calasso

19. David Cardoso e Claudete Joubert durante 18

festa na Boca 20. Ozualdo R. Candeias filmando Bocadolixocinema

16. Valéria Vidal e Oswaldo de Oliveira (Carcaça) 17. Placa da rua do Triunfo com grafia antiga 18. Bibi Vogel e Elisabeth Hartmann

ou Festa na Boca (1976) 21. Atriz se exibe para diretores e técnicos


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22. Morador de rua na regi達o da Boca do Lixo 23. Frequentadores da rua do Triunfo


Precursor do cinema marginal e um dos expoentes do cinema autoral no Brasil, Ozualdo Ribeiro Candeias foi um dos cineastas mais criativos que o país revelou. Chofer de caminhão, Candeias realizou diversas viagens pelo interior do estado de São Paulo e, no início dos anos 1950, comprou uma câmera 16 mm Keystone para registrá-las. Com ela realizou filmagens caseiras, o curta A pensão e, em 1955, sua primeira obra acabada, o documentário Tambaú, a cidade dos milagres, sobre os romeiros que visitavam o padre Donizetti, então considerado milagroso. Em seguida, Candeias aprimorou seu conhecimento técnico e teórico frequentando o Seminário de Cinema do Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre 1955 e 1957, quando passou a dirigir documentários institucionais e cinerreportagens, e a trabalhar na equipe técnica de algumas produções. Essas experiências possibilitaram ao diretor seguir para uma prática mais formal ao realizar diversos filmes institucionais, entre eles, Polícia feminina e Marcha para oeste. Em 1967, dirigiu seu primeiro longa, A margem, que conquistou bom resultado de público e foi considerado pelo Instituto Nacional de Cinema o melhor filme daquele ano. Com a obra pronta, dirigiu-se à Boca do Lixo para tratar da distribuição e, assim, aos poucos começou a frequentar a região. Presente em todos momentos da Boca, o cineasta Ozualdo Candeias, em paralelo à sua produção cinematográfica composta por 35 filmes e doze telefilmes, entre os anos 1960 e 2000 registrou fotograficamente o dia a dia da Boca do Lixo com suas câmeras Exakta 50 mm e Nikon, revelando, de um modo próximo e espontâneo, o cotidiano do cinema paulista da época.

Sua primeira exposição, A boca, realizada com essas imagens, ocorreu em 1984, na Imprensa Oficial. Em 1989, marcando seus vinte anos de fotografia, realizou no Museu da Imagem e do Som em São Paulo outra exposição, Uma rua chamada Triumpho, projeto que posteriormente ganhou forma de publicação. Em 2001, editou um livro homônimo com os personagens da Boca em fotos tiradas na rua. O conjunto dos trabalhos propõe contar a história e a efervescência daquele lugar que foi, em outros tempos, responsável pela produção de filmes de grande importância para a história do cinema nacional e que, hoje, é tão desconhecido e pouco estudado. O reconhecimento da grande contribuição cultural de seus filmes se revelará também nos trabalhos produzidos pela Embrafilme, como Aopção, ou as rosas da estrada (1981), Leopardo de Bronze no Festival de Cinema de Locarno; Manelão, o caçador de orelhas (1982), premiado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo; As bellas da Billings (1987) e O vigilante (1992), premiados pela Fundação Cultural de Curitiba. A trajetória de Candeias, falecido em 2007 aos 89 anos, está ligada à história desse polo de produção cinematográfica que chegou a ser responsável por cerca de cinquenta por cento da produção dos filmes nacionais nos anos 1970. Foram mais de quatro décadas de fotografias do cotidiano da vida e do trabalho na Boca do Lixo.

OZUAL OZU OZUALDO R. CANDEIAS


Na rua do Triunfo no 155 estava o mítico bar Soberano, onde a grande maioria das produções eram gestadas; hoje é uma loja de informática. É interessante observar a arquitetura daquela fachada, “preservada”, mas sem a vitalidade de outros tempos. Ainda existem os prédios históricos, um tanto quanto malconservados, e um movimento considerável de carrocinhas puxadas por pessoas, hoje transportando sucatas variadas – antes, filmes em 16 e 35 mm.

Imagens: Jorge Bodansky

Andar pelas ruas do Triunfo, Gusmões e Vitória, hoje, é um verdadeiro exercício de imaginação, sobretudo tendo em mãos Uma rua chamada Triumpho, livro que Candeias editou em 2001 com a colaboração de sua filha Simone R. Candeias e do pesquisador Plácido de Campos Jr.. A publicação é repleta de textos e fotografias, muitas delas colagens feitas pelo próprio Candeias, o que possibilitava a inserção de mais imagens nas páginas, deixando-as dinâmicas. São fotos mostrando que os tempos áureos do cinema da Boca do Lixo em São Paulo de fato existiram.

BOCA DO LIXO NO SÉCULO XXI

OCA DO LIXO NO SÉCULO XXI


BOCA BOCA

Nos idos de 1960 e 1970, as ruas fervilhavam com gente de todo o tipo, desejosa por fazer cinema – fosse como produtor, roteirista, diretor, ator, figurante, técnico. Ao mesmo tempo, ficavam por ali prostitutas, travestis, traficantes e usuários de drogas, retirantes, engraxates, intelectuais, jornalistas, estudantes e policiais – geralmente montados em seus cavalos altos – convivendo pacificamente. Não se pode dizer o mesmo de hoje.

DO LIXO


Imagens da revista Cinema em close-up cedidas por Heco Produções

CINEMA EM CLOSE-UP

Em 1975, Minami Keizi fundou, em São Paulo, a revista Cinema em close-up, que desde seus primeiros números obteve sucesso no meio cinematográfico e posteriormente se estabeleceu como uma das principais publicações de cinema da época. Seu objetivo era conquistar espaço no meio e alimentar o público com informações sobre o cinema brasileiro, sobretudo aquele feito na Boca do Lixo. No ano de 1976, a editora da revista mudou-se do bairro do Caxingui para a rua do Triunfo, mantendo uma intensa proximidade com o centro de produção cinematográfica ali instalado. Entre seus colaboradores, figuravam nomes atuantes na Boca do Lixo, como Ozualdo Candeias, Luis Castellini, Fauzi Mansur, Jean Garret e Tony Vieira. Por estarem no centro de produção dos filmes, Minami e sua equipe colhiam informações diretamente da fonte, 24 horas por dia. Em suas publicações, estavam fotos de atrizes da Boca, notícias sobre as novas produções, artigos críticos e espaço para cartas de leitores e técnicos do meio cinematográfico. A revista obteve sucesso comercial e alcançou vendagem média de trinta mil exemplares, o que contribuiu para criar uma identidade da Boca do Lixo. A Cinema em close-up pode ser considerada um dos símbolos do levante do cinema nacional.

Min Ke Minami KeiziMinam


Eugênio Puppo

Nota Biográfica: Eugênio Puppo é cineasta, sócio fundador da Heco Produções e realizou diversas mostras de cinema entre elas Boca do Lixo cinema, Ozualdo R. Candeias, José Mojica Marins. Produziu e dirigiu os longas documentais Bocadolixocinema e Ozualdo Candeias e o cinema, entre outros.

A EM CLOSE-UP

Em 1979, com o fim do ai-5, o início da abertura política, a crise econômica e o esgotamento das comédias eróticas ligeiras produzidas na Boca, onde já não era mais possível projetar carreiras que por vezes começavam nas funções menos prestigiadas da técnica, ocorreu o fechamento da revista. Hoje, Cinema em close-up é peça de colecionador e raramente encontrada em sebos e afins.

CINEMA


Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento? Não. Carro? Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não conseguia pagar nem as próprias contas. Mas pagava a dos filhos. Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem herança, sem nada? As peças. As peças de teatro? De quem são as peças de teatro? Meu pai era escritor. Escritor de teatro. Teatro? Teatro dá dinheiro. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. Não, meu pai não. Não ganhou muito dinheiro com teatro. O que ganhou, gastou. Deu dinheiro pra muita gente. Meu pai não era um bom administrador.

Era um “maldito”, diziam, um “marginal”, mas não era bandido. Por que ele era maldito, afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não

escreveu peça pra ganhar dinheiro? “Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo.” Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. Puta, cigano sem dente e cafetão. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. Puta e cigano sem dente? Puta, cigano sem dente e cafetão é chato, porra! Puta, cigano sem dente e presidiários não dava dinheiro. Puta, cigano sem dente e desempregados não tinha “patrocínio”. Walderez de Barros, Leo Lama, Plínio Marcos, Ana Carmelita e Ricardo Barros

Meu pai morreu

Mas eu queria tênis americano, eu queria camisa Lacoste, camisa Hang Ten. Meu pai tinha de ganhar dinheiro. Por que ele insistia em escrever peças sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários? Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. E o ator e Jesus Cristo e nada de “comédia comercial”. Mas eu queria o meu “All Star”, eu queria ter todos os discos dos Beatles. “Pai, me dá dinheiro pra comprar uma guitarra!” E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos dos Beatles com o dinheiro dele (depois tive de comprar tudo de novo em cd com o meu dinheiro e agora dá pra baixar de graça na internet). Calça boca fina, camisa Hang Ten. Onde ele arrumava dinheiro?

Ele insistia.

Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis All Star? Ele achava que isso era “lixo americano”. Ele achava

que essa merda importada só servia pra aumentar a nossa alienação. Meu pai era generoso. Ele não ia deixar de me dar uma coisa que eu queria só porque ele achava que o que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me orientar, mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Onde ele arrumava dinheiro? Era época de ditadura. Escrever sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários, incomodava os “poderosos”. Porra, ainda mais essa! Já escreve sobre coisa que não dá dinheiro, mas além de não dar dinheiro, ainda é proibido?

disco do Bob Dylan!” Dia 19 de novembro é aniversário da morte do meu pai (Plínio Marcos); escrevi este texto no dia em que ele morreu: 19 de novembro de 1999.

“Pai, me dá dinheiro pra comprar

Meu pai fez novela, fez Beto Rockfeller. Mas Beto Rockfeller não conta, Beto Rockfeller era “a novela”, tinha a cara dele, era revolucionária. Ele fazia o Vitório, o melhor amigo do Beto. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tênis, uma guitarra, um... Mas “a nove69 RBMA 179


la” era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo: Bandeira 2. Mas a Globo é no Rio, o Rio tem praia, ele cabulava as gravações e ia pra praia: “Novela é chato pra caralho, porra! O direito da gente coçar o saco é sagrado”, ele dizia. Ele ia pra praia e lá ficava, indignado, porque naquela época a Globo não punha negros nas novelas e quando punha era nos papéis de escravo ou mordomo. Meu pai escreveu no jornal A Última Hora, do Samuel Wainer, onde ele trabalhava, que a Globo botou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer Gabriela. A Globo não gostou. Os “poderosos” da Rede Globo não gostaram. Fizeram ameaças, juraram de morte. Enfim, a Globo não dava mais. Quando ele tava por lá, ele bem que quis escrever novela. Afinal, eu queria dinheiro pra comprar tênis, disco, guitarra. Mas novela de puta, cafetão e cigano sem dente? Não, novela de puta, cafetão e cigano sem dente não dá. Se fosse cigano com dente, musculoso e mau ator, aí dava. Agora, cigano sem dente, pobre e fudido, não dá. Então não dá. “Na televisão brasileira, artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro vivo.”

Tudo bem, não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava, não podia novela de cigano pobre, fudido e sem dente porque a tv não queria. Então o

quê que podia? Não podia nem chamar a Rede Globo de racista, nem nada. A sinopse que ele fez pra uma novela, quando finalmente a Globo chamou ele, era de uma tribo de ciganos que estupravam as filhas dos empresários e... bem, não aprovaram. E as portas iam se fechando. E a ditadura ali, descendo o cacete. E eu queria o meu tênis All Star! “Pai, porra, pai, eu quero dinheiro pra comprar time de botão!” Mas enquanto os “poderosos” iam dizendo “Não! Não! Não!”, ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração, um “povo que berra da geral sem nunca influir no resultado”, um povo fudido, os marginais, as putas, os ciganos sem dente, os presidiários, um povo que não aparecia na tv. “Pobre na Rede Globo almoça e janta todo dia.” Pobre na Rede Globo tem dente, favela na Rede Globo não tem rato. Esse povo não era o povo dele. O povo dele era, entre outros, os sambistas, não esses de agora, de terno Armani, cercados de loiras recauchutadas, mas os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Os sambistas marginalizados, os que nunca gravaram cd. O Zeca da Casa Verde, o Talismã, o Jangada, o Toniquinho Batuqueiro, o Geraldo Filme, enfim, os que morrem na merda.

“Silêncio, o sambista está dormindo, ele foi, mas foi sorrindo, a notícia chegou quando anoiteceu...”

Então a solução era fazer show com os sambistas. Meu pai contava histórias e os sambistas cantavam suas músicas. Mas os sambistas eram crioulos. Negros? Negro não podia. Em plena ditadura, Plínio Marcos e “a negrada”? Que papo é esse? Poder, podia, mas ninguém queria ver. “A burguesia não me quer”, ele dizia. Não podia peça de puta e novela de cigano sem dente pobre e fudido, não podia dizer que a Globo era racista e ninguém queria ver show com “a negrada”. Então o quê que podia? “Pai, me dá dinheiro pra comprar figurinha do álbum Brasil Novo!” 180 RBMA 69

A ditadura, quando eu tinha 7 anos, tava em todo lugar, em cada esquina, no meio de cada casal que fazia “amor com medo”, nos porões do doi-codi e nas torturas atrozes que muitos sofriam. E eu lá: “Pai, me leva na Expoex, pai, me leva na Expoex! A Expoex é a exposição do exército! Eu quero ver os soldados, pai! Eu quero ver os tanques!”. E ele me levava. Senão eu chorava. Eu chorava se eu fosse censurado e não pudesse ver a Expoex. Quando eu tinha uns 12, 13 anos, lá estava o ônibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro com todos os meus amiguinhos dentro e os pais, do lado de fora, dando tchauzinho. E um amiguinho meu perguntou: “Quem é seu pai?”. Eu não tive dúvida: “Meu pai é aquele!”. E o meu amiguinho: “Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?”. E eu: “É, aquele”. O meu amiguinho gritou: “Pai, esse aí é o pai do Leo!”. E a professora ouviu. Não, meu pai não era aquele de terno e gravata. Meu pai era outro. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo. Meu pai era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! “O pai do Leo é mendigo, o pai do Leo é mendigo!” Afinal, quem trabalha tem de usar terno e gravata. Naquela época, um moleque de 12, 13 anos, era um tapado. Ou isso era característica minha? “Pai, por que você não trabalha? Pai, por que você dorme até meio-dia? Pai, por que o pai do Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa? Pai, por que você anda de macacão e chinelo? Pai, me dá dinheiro pra comprar...” E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de “burguês”. Eu estudei nas “melhores escolas”. E olha que o meu pai odiava escola.

“A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que as armas;

por isso, a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes”, ele dizia. Ele saiu da escola na quarta série do primário. Ele era canhoto. Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. Ele fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto. Com 21 anos escreveu Barrela!. “Me chamavam de analfabeto, como se isso fosse privilégio meu, neste país.” Meu avô queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria é subir num banco no meio da praça e fazer números de palhaço. A família chegou até a pensar que ele fosse débil mental. Meu pai foi pro circo. Ele amava o circo. Foi ser palhaço de circo. Era o palhaço Frajola. A escola dele era o circo, a minha era escola de “burguês”. Mas como ele pagava a minha escola? Foi preso, foi solto, ameaçado, escrevia em jornais e revistas, quase todos que existiam. Foi despedido de todos. O que fazer? Sair do país? Ele não falava direito nem o português. O que fazer? “Pai, me dá dinheiro pra comprar uma calça Soft Machine!”

A censura não queria meu pai escrevendo em lugar nenhum.

Uma vez o meu pai tava com uma dívida muito grande, tava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. Daí um belo dia a Ford ligou pra ele, convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranquilo por uns tempos. Meu pai não fazia comercial. 69 RBMA 181


Foi vender livro na rua. Nas portas dos teatros, nas portas das faculdades, nos bares. Foi vender livro na porta de teatros onde se apresentavam artistas piores do que ele. Ele mesmo editava os livros, ele mesmo ia vender. E podia? Não. Não podia. Várias vezes ele foi expulso pelo “rapa” como um camelô comum. E ele chorava? “Perseguido, o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de governador, quebrei vidraça de banco. Foi uma farra. Não teve mau tempo.” Tinha. Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava difícil, ou que era “foda”. Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia. Meu pai é o Plínio Marcos, porra! Bela merda, tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era só um fudido que não deu certo na vida, andando feito mendigo pelo centro da cidade. Já morreu. Não era melhor do que ninguém. (Não?)

“Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem caminhar.” Com 15 anos eu quis sair da escola. Ele disse: “Sai logo dessa merda, eu te sustento até você encontrar sua vocação!” Eu saí, eu saí daquela merda na metade do primeiro colegial. Acho que qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade sabe: o ensino do jeito que é faz mal pra saúde. Eu devia ter uns 17 anos, era de madrugada. Eu morava com ele. Eu tava na mesa da sala com o violão, triste, querendo encontrar a minha vocação, sem saber o que dizer, inibido, pensando em todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou pra tomar água, me viu ali, não disse nada. Foi até o escritório, voltou com um livro e leu um poema pra mim. “O corvo” do Edgar Allan Poe. Não disse nada, só leu a poesia. Não foi o conteúdo, foi o tom da voz dele, aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Foi dormir e me deixou ali, ouvindo o corvo dizer: “para sempre!”. Eu virei escritor, com 21 anos escrevi Dores de amores. Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser mergulhador só porque o Kiko, meu irmão, é. A Aninha, minha irmã, era tudo pra ele. Eu fiz vários shows com ele, pelas faculdades, pelos teatros, pelos bares.

Ele contava histórias e eu tocava violão. Meu pai era generoso, violento, essencial, amava, amava tanto as pessoas que chegava mesmo a odiá-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai não me deixou apartamento, carro,

dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho de ganhar o meu próprio dinheiro. Até hoje, muito pouca gente quer montar as suas peças e muito pouca gente quer assistir. Meu pai já não precisa mais vender livro na rua, pra quem não quer comprar, ou pra quem compra só pra “ajudar”. O que eu mais queria é que ele me ouvisse agora: “Pai, você não me deixou nada que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo. Me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com sempre alegre,

uma puta vontade de viver,

182 RBMA 69

sempre fazendo piada das próprias desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular porra nenhuma”. E se ele me escutasse ele diria, com um sorriso malandro sem dentes, segurando as lágrimas: “Ê, Leo Lama!”. Meu pai não sabia receber elogios. Mas se ele me ouvisse agora, eu diria: “Pai, eu preciso te contar, no seu velório foi muita gente, pai. No seu velório, estiveram os maiores artistas do país. Médicos, políticos, advogados, empresários, fãs, gente do povo, crianças e os sambistas. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus amigos, seus inimigos, todos nós, todos nós te aplaudimos quando o seu caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. Eu tava segurando uma aba, o Kiko outra. Você foi cremado, pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados, disseram: . Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia, onde você passou sua infância. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno estádio, uniformizado, com a mão no coração, vendo o cortejo passar. O povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo santista, e

grito de liberdade!’

‘Plínio Marcos, um

nós no barco deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como se você nem tivesse existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar, mas de repente já era só o mar. E você foi, como todo mundo vai.

“É isso aí, pai: tanta gente te amava. Você sabia? Acho que ninguém te amou tanto como a minha mãe.

O amor dela ecoa em mim.

“Mas, e eu, pai? E eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu não tenho a sua coragem. ‘A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos.’ Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só queria ser essencial, essencial como você. É difícil. Eu reclamo. A vida tá uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. O mundo tá se destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho desta gente, você sabe, esta gente, os ‘homens-pregos’, fixos no mesmo lugar.

Esta gente quer ter carro, pai, casa com piscina, esta gente quer ser rica e famosa, esta gente quer ser musculosa e quer ter bunda, esta gente diz que acre-

dita em Deus e fode ele, esta gente não quer ser essencial, pai, esta gente... esta é a minha gente, pai. Às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com esta gente. Me perdoa.” Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos:

Leo Lama 69 RBMA 183


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Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: departamento Biblioteca Mário de Andrade, 1992anual. Continuação, a partir do n. 50 de 1992, do Boletim Bibliográfico. issn 0104-0863 Do pré-tropicalismo aos Sertões Conversas com Zé Celso Miguel de Almeida Travessia periférica A trajetória do pintor Waldemar Belisário Ana Maria Barbosa de Faria Marcondes

1. Literatura – Periódicos cdd 805

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

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188 Revista da Biblioteca Mário de Andrade

1.

Volume 69, novembro de 2013 DIRETOR

Luiz Armando Bagolin EDITORA-CHEFE

Tarcila Lucena

PROJETO GRÁFICO

Gabriela Lissa Sakajiri Juvenal Lopes Filho EDIÇÃO DE TEXTO

Diana Szylit Tarcila Lucena REVISÃO

Ariadne Martins Francisco Alves da Silva DIAGRAMAÇÃO

Gabriela Lissa Sakajiri Juvenal Lopes Filho Karen Kawagoe DIGITALIZAÇÃO E TRATAMENTO DE IMAGEM

Gabriela Lissa Sakajiri João Luiz Musa Juvenal Lopes Filho Tiago Cheregati

Colaboraram com esta edição:

Agnès Giard, Alcir Pécora, Angélica Moura, Anne Caroline Pereira Mariano, Beatriz Cristiane de Araújo, Carlos Pittella-Leite, Cecília Scharlach, Clara Carnicero de Castro, Claudio Willer, Edélcio Lavandosk, Edmir Míssio, Eduardo Dias, Eliane Robert Moraes, Eugênio Puppo, Fabrício Reiner de Andrade, Fernando Lemos, Flávia de Mesquita, Heloísa Helena de Amorim Dip, Jerónimo Pizarro, João Adolfo Hansen, Jurandy Valença, Leo Lama, Luiz Armando Bagolin, Maira Mesquita, Marcatti, Marcelo Dias de Carvalho, Marco Antonio Mori Lupião Junior, Mariana de Mesquita, Natan Tiago Batista Serzedello, Neusa Ferrari, Regina Campos, Renato Cardilli, Ricardo Ferreira da Silva, Rita de Cássia Guglielmi Rua, Ronnie Cardoso, Samantha Moreira, Silas Rocha, Toninho Mendes.

Agradecimentos:

Ana Beatriz Freire, Carlos Sodré, Cecília Scharlach, Cristiano Diniz, Daniel Fuentes, Erika Hamassaki, Grecia Silva, Henrique Lukas, Ivan Junqueira, Jurandy Valença, Lucia Riff, Maria Amélia Mello, Nanci da Silva Cheregati, Samantha Moreira Agência Riff, Ateliê Aberto, Biblioteca Nacional de Portugal, Cosac Naify, cedae-Unicamp, Editora José Olympio, Instituto Hilda Hilst

Agradecimento especial: Regina Campos

Foto de dat', disponível em www.flickr.com/photos/dat-pics/4378592436/sizes/z/in/photostream/ (Creative Commons)

1.

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1.

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CONSELHO EDITORIAL

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190 rbma 69

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Esta publicação de número 69 foi composta no ano de 2013 por Gabriela Lissa Sakajiri e Juca Lopes no 120º aniversário de nascimento de Mário de Andrade, sesquicentenário de Ernesto Júlio de Nazareth, pianista e compositor, no 110º ano do nascimento do pintor Cândido Portinari, no centenário de nascimento de Rubem Braga, escritor, e de Vinicius de Moraes, poeta e diplomata, no 90º ano do nascimento de Stanislaw Ponte Preta [Sérgio Porto], escritor, e de Fernando Sabino, escritor do romance O encontro marcado, no 25º ano da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil [A Carta Cidadã] e no centésimo aniversário de Albert Camus, autor de O estrangeiro.


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