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Revista da Biblioteca Mário de Andrade n. 70 - medo
biblioteca mário de andrade edições
Sumário RBMA 70: medo 04 06
Editorial País na ponta do fuzil
Ana Cecilia Impellizieri Martins, Evandro Teixeira (fotos)
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Margens e transgressões
André Mesquita
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Repressão, modernização e conciliação
Daniel Aarão Reis
48
A FAUUSP e a ditadura militar
Sérgio Ferro
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A escolarização do civismo
Cleber Santos Vieira
68 Entrevista com Bira Dantas 88 Depoimento Maria Bonomi 104 Depoimento Walderez de Barros 126 "Sobreviver, como é difícil sobreviver"
Darci Miyaki (entrevista)
146 Camponeses
162 O
caso dos Waimiri-Atroari
Egydio Schwade (depoimento)
172 Os
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e indígenas
Maria Rita Kehl
anos de chumbo e o medo
Marco Pezão
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Revista da Biblioteca Mário de Andrade Volume 70, outubro de 2016 DIRETOR Luiz Armando Bagolin
EDITORA-CHEFE Tarcila Lucena
EDIÇÃO DE TEXTO Tarcila Lucena
REVISÃO Fernanda Alves de Sousa Guilherme Pessin Moreira Marcelo Carpinetti
PROJETO GRÁFICO / DIAGRAMAÇÃO Gabriela Lissa Sakajiri Kaio Cassio Rafael Micheski
Colaboraram com esta edição: Ana Cecilia Impellizieri Martins, Evandro Teixeira, André Mesquita, Daniel Aarão Reis, Sérgio Ferro, Cleber Santos Vieira, Bira Dantas, Maria Bonomi, Mayra Laudanna, Walderez de Barros, Darci Miyaki, Glenda Mezzaroba, Maria Rita Kehl, Egydio Schwade, Marco Pezão, Fabrício Reiner de Andrade, Raphael Fernandes e Natame Diniz
Agradecimentos: Bernardo Kucinski, Eduardo Jardim, Ricardo Musse, Daniel Chiozzini, Pedro Dallari, Galeria Nara Roesler, Galeria Luisa Strina e Projeto Oiticica
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[...] O sonho, quando não um pesadelo, livre de todo o medo, é mais facilmente esquecido. Nilo Gabue
Em 2014, ao começar a desenhar a edição da Revista da Biblioteca Mário de Andrade número 70, decidimos fazer um número especial sobre o golpe militar de 64 e os anos de ditadura que se arrastaram em nosso país até 1985. Não supúnhamos então o agravamento da crise política que se iniciara um ano antes com as manifestações de junho de 2013, intensificando-se em 2014 e 2015 e que, ao que tudo indica, está ainda longe de chegar ao seu fim. Dizem (Cícero dizia) que a história é mestra da vida porque tem o poder de nos ensinar com os acontecimentos do passado, tornados em exemplos a serem seguidos, compartilhados ou evitados. É óbvio que lembrar daquele período, seja pelo depoimento, seja pela análise crítica, é importante para todos que prezam o direito à liberdade, o direito de se expressar ideológica, política e artisticamente, ou simplesmente o direito de discordar. As dissonâncias são importantes para a construção das democracias, particularmente daquelas que se alternam entre momentos de calmarias e turbulências, como a nossa, e lembrar consiste também num esforço contínuo de reconstrução do imaginário e da memória. Nenhuma memória é neutra ou imparcial, porque se baseia na operação de associar constantemente imagens e imagens de lugares e coisas numa determinada ordem, de tal modo que, invertendo-a, olhando-a, por exemplo, do presente para o passado, pouco seja alterado daquilo que fora ali colocado. Frances Yates cita uma passagem de Quintiliano no seu célebre The art of memory 1 sobre a descoberta da arte da memória (sim, a memória era considerada pelos antigos uma forma de arte ou ciência) por ocasião de um banquete oferecido na casa de Scopas. Um terremoto acaba por fazer ruir a casa destroçando todos os convivas, incluindo o anfitrião, tornando-os irreconhecíveis. Simônides, o poeta que estivera momentos antes no banquete, é o único capaz de identificar os corpos para os familiares e o faz ao relembrar a ordem em que cada um se sentava à mesa antes da tragédia. O episódio permite que façamos algumas considerações sobre a antiga arte da mnemotécnica com a criação de lugares em ordem, a colocação de imagens fortes nos lugares criados e a maneira como construímos hoje a narrativa histórica produzindo uma ordem a ser ocupada principalmente pelos ausentes, por quem viveu o acontecimento mas não pode narrá-lo, e por quem o viveu mas conseguiu escapar para narrá-lo a uma certa distância. A distância se impõe mesmo quando se é um repórter ou um fotojornalista como Evandro Teixeira, que acompanhou o dia 4 de abril de 1968 e a repressão da cavalaria da polícia militar aos manifestantes reunidos na Igreja da Candelária no Rio de Janeiro para o velório do estudante Edson Luis. Comprometido com o momento decisivo bressoniano, Evandro Teixeira engaja-se com o movimento dos cavalos trotando sobre as escadarias a acuar os estudantes que sua câmera acompanha desde o alto de um prédio, no ensaio de Ana Cecília Impellizieri Martins sobre o fotógrafo carioca. Se escapar ao cerco era preciso, a transgressão da ordem nas artes daqueles anos foi a regra, que o artigo de André Mesquita comenta: para artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Artur Barrio e outros, as novas correntes artísticas e estéticas dos decênios de 1960 e 1970, contrariando a tradicional noção de arte como campo de representação figurativa ou abstrata, não importa, permitiram uma atuação mais contundente no campo da ação política, tal como a dança dos “Parangolés”, de Oiticica, ou a recirculação de cédulas de dinheiro da época com a frase “Quem matou Herzog?”, de Cildo Meireles. Mas o controle da narrativa política tida como a mais verdadeira não foi disputado apenas pela arte e por um dos lados do conflito. Em busca de legitimação social, a ditadura produziu avanços no campo do ensino universitário simultaneamente à repressão da UNE e dos movimentos estudantis, como propõe o artigo de Daniel Aarão Reis. Muitas das estruturas existentes hoje no âmbito da universidade brasileira, tais como abertura de campi fora de centros urbanos, sistema de créditos para alunos de graduação, carreira acadêmica com dedicação exclusiva e agências de fomento à pesquisa, entre outras, foram propostas apresentadas durante o período da ditadura militar brasileira. Paralelamente, professores e estudantes eram investigados por 1
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Francês Yates, The art of memory, Londres, Pelican Books, 1976.
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suas “atividades subversivas” tendo sofrido perseguições, prisões e tortura, por exemplo, na FAU USP, como depõe Sérgio Ferro. Personalidades importantes de nossa arquitetura, tanto no campo pedagógico e teórico como no campo do exercício profissional, tais como Villanova Artigas, Abelardo Reidy de Souza, Paulo Mendes da Rocha, Rodrigo Brotero Lefrève e Sérgio Ferro, foram atingidos diretamente pela ditadura, com prisões, indiciamentos e aposentadorias compulsórias. No âmbito da educação ginasial, a doutrinação sobre a segurança nacional e os ufanismos pátrios foi feita pela disciplina “Educação Moral e Cívica”, tornada obrigatória em 1969, segundo o artigo de Cleber Santos Vieira. A doutrinação à direita de crianças e jovens lobotomizou toda uma geração e as posteriores, além de vitimar alguns, como Carlos Alexandre Azevedo, um bebê de 1 ano e oito meses torturado pelo DEOPS paulista em 1974 como represália à publicação da monografia de Dermi Azevedo, seu pai. Bira Dantas foi uma exceção. Menino nos anos 1960, Bira trabalhou como desenhista e quadrinista para muitos periódicos, mantendo lado a lado o trabalho voltado ao entretenimento e aquele voltado à militância, particularmente a petista e do movimento sindical, no qual se define integralmente como autor. Se a charge e sua costumeira hiperbolização de fatos e pessoas ofereceu uma forma de resistência à censura, a arte abstrata usada de forma irônica e sugestiva, como a de Maria Bonomi, sobrepunha arietes, barras, anéis e elos, formas em faca serrilhadas e xizes xilográficos completados com títulos e cores alusivas, algumas vezes ao milicos, outras ao Tio Sam à tortura etc. A situação é exposta por Maria em entrevista à Revista, em que expõe detalhes sobre a sua prisão em 1974, assim como a prisão de Lina Bo Bardi e de outros artistas e intelectuais. A continuidade de um trabalho artístico engajado politicamente dentro do país, esgueiriço à censura, principalmente depois da publicação do AI5, e as artimanhas de resistência ao regime militar são temas da conversa entre Maria e Mayra Laudanna, a maior estudiosa da artista. A censura atingiu também outras linguagens artísticas, por exemplo, o teatro, no qual o Abajur lilás, peça de Plínio Marcos, é apagado antes mesmo de ser lançado. Walderez de Barros explica em seu depoimento a estrutura e o funcionamento da censura, o acompanhamento das “duas senhoras” censoras aos ensaios e principalmente do sentimento de frustração e revolta ao ter de se dobrar ante burocratas ignorantes que, em nome do regime e da centralização do poder, viram justificadas as suas vidinhas medíocres. A violência de mulheres contra as mulheres só não foi pior do que a dos homens contra as mulheres. A tortura, hedionda em qualquer situação, independentemente de gêneros, impôs traços singulares de crueldade quando aplicada às guerrilheiras aprisionadas pela ditadura. Darci Myaki é uma de suas sobreviventes, testemunhando para a Comissão Nacional da Verdade as violações físicas e psicológicas sofridas em seu período de cativeiro. A presença e a participação da mulher nos movimentos de resistência foram fundamentais para a guerrilha contra o regime ditatorial, mas deixaram marcas e sequelas profundas nos sobreviventes. Porque ao supérstite neste caso, inversamente ao que preconizou Isidoro de Sevilha em sua Etimologia, não cabe a tranquilidade da alma como prêmio final, seus filhos lhe sobrevivendo. A vida de Darcy é marcada de inúmeras perdas, dilacerando-a a culpa de ter sobrevivido à tortura e a indignação pelo fato das novas gerações não terem sido formadas ou apresentadas convenientemente à história da ditadura militar no Brasil. Este resgate histórico tem sido feito muito lentamente, de fato, em especial por conta da suspensão do acerto de contas graças à Lei de Anistia de 1979. Em relação ao Brasil profundo, Maria Rita Kehl traça um histórico das violações contra os trabalhadores do campo, indígenas e camponeses da região do Araguaia, resultado de pesquisa feita para a Comissão Nacional da Verdade. O artigo é complementado com o depoimento de Egydio Schwade sobre a invasão de terras indígenas da reserva Kiña e a dizimação do povo Waimiri-Atroari, entre 1972 e 1975, num esquema que ficou conhecido como “grilagem paulista”. Finalizamos com a voz da periferia, subproduto na amplificação ufanista do Brasil vendido pelos militares como terra do progresso e do futebol, hoje terra de poetas e da efervescência artística dos jovens, com o poema depoimento de Marco Pezão sobre os Anos de Chumbo. O medo é a sombra de uma garatuja a qual ninguém, de início, dá muita atenção; à espreita, em qualquer lugar, sempre. Fiquemos ligados! Luiz Armando Bagolin Diretor
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Um paĂs
na ponta do fuzil Texto: Ana Cecilia Impellizieri Martins Fotos: Evandro Teixeira
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Na ponta da baioneta, uma nação inteira aparece encarnada na fragilidade de duas libélulas. A imagem, captada durante uma mostra de armas do exército, em 1967, vertia-se com impressionante eloquência em símbolo de um momento dramático do país. Estampada na primeira página do Jornal do Brasil, a fotografia fez que o então presidente Costa e Silva pedisse a cabeça do fotógrafo. A direção não se curvou. E Evandro Teixeira continuou nas ruas captando imagens que se tornariam um dos mais expressivos documentos visuais do período da ditadura militar brasileira. Desde 1963, Evandro, natural do sertão baiano de Irajuba, integrava o prestigiado time de fotógrafos do JB e acompanhava atento as movimentações políticas do país. Na noite de 31 de março de 1964, ainda na casa dos 20 anos, lá estava ele debaixo da forte chuva que imprimia um ar ainda mais melancólico à cena da tomada do Forte de Copacabana pelos militares – primeiro frame do triste filme do Golpe. Cenas piores viriam.
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Evandro era um fotojornalista responsável pela cobertura do cotidiano. Podia acompanhar uma filmagem de Leila Diniz em Ipanema, fazer um retrato de Cartola na Mangueira ou cobrir a visita de uma autoridade internacional. Acontece que o cotidiano do país que vivia entre os acordes da bossa nova e a ponta do fuzil também tinha seus momentos de flagrante violência. O dia 4 de abril de 1968 foi um deles. Após a missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, assassinado pelos militares, o cenário foi de duríssima repressão. Do alto de um prédio era possível acompanhar o avanço da cavalaria da polícia militar, que dobrava a esquina da avenida presidente Vargas
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ritmada com as curvas das pedras portuguesas do entorno da Candelária para encurralar os estudantes que saíam da igreja e seriam, quadro a quadro, derrubados, espancados, presos. Alguns meses depois, na Passeata dos Cem mil, que tomou as ruas do Centro do Rio de Janeiro, as fotografias de Evandro deram rosto a uma multidão que clamava sem medo pelo fim da ditadura. Artistas, estudantes e outros tantos brasileiros anônimos eram um só. O povo em um 3 x 4.
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No fim daquele dia, a imagem de um “momento de trégua” do jovem estudante tombado de cansaço, sem deixar de empunhar sua bandeira, é retrato pungente da inocência de uma geração tão disposta a lutar, sem saber, no entanto, que essa guerra não teria vencedores.
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MARGENS E TRANSGRESSÕES Derivas sobre a arte durante a ditadura militar no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 André Mesquita
André Mesquita é Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador das relações entre arte, política e ativismo. É autor dos livros Esperar não é saber: arte entre o silêncio e a evidência (2015), Insurgências poéticas: arte ativista e ação coletiva (2011) e coautor de Desinventario: esquirlas de Tucumán Arde en el archivo de Graciela Carnevale (2015).
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A vida no limite Quando não isoladas como disciplinas autônomas e especializadas, a arte e a política abrem-se juntas para a expressão de imagens poderosas, para experiências coletivas e novos significados que buscam transformar a realidade. O mundo que se deseja criar é uma questão determinante quando as separações entre o político e o artístico são dissolvidas. Em épocas de incertezas, crises e conflitos, novas estratégias, modos de fazer e de estar emergem juntos de uma prática social cada vez mais inserida no cotidiano, distendendo os seus limites.1 A noção de “vanguarda”, usada inicialmente como referência à “linha de frente” do combate militar, foi amplamente empregada no século XX para indicar uma antiarte que desafiasse o sistema vigente, quebrando convenções estéticas e gêneros estabelecidos,2 produzindo manifestos transgressores e rompendo com cânones tradicionais. Esse foi o caso das chamadas “vanguardas históricas” (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo e Construtivismo). Durante a ditadura militar no Brasil, a composição de uma nova vanguarda artística notabilizou-se por adotar uma posição marginal e experimental – entendida como atividade crítica e de oposição ao que está instituído. O radicalismo de suas propostas estava no comportamental, na ação no ambiente, em programas inconclusos, 1 Sobre esse tópico, ver André Mesquita, Insurgências poéticas: arte ativista e ação coletiva, São Paulo, Annablume/Fapesp, 2011. 2 Neala Schleuning, Artpolitik: Social Anarchist Aesthetics in an Age of Fragmentation, Wivenhoe, Minor Compositions, 2013, p. 255.
*Pela cessão das imagens, agradecemos à Galeria Luisa Strina, à galeria Nara Roesler, aos artistas e à família Oiticica por meio do Projeto Oiticica.
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protótipos acessíveis e proposições abertas a todos. Algo que se opunha e procurava ir além das correntes dogmáticas e nacionais então valorizadas pelos chamados Centros Populares de Cultura. Para Hélio Oiticica, a (contra)cultura marginal que ele relacionava ao seu conceito de “subterrânia” assumiu o subdesenvolvimento de forma proativa, como uma “consciência para vencer a superparanoia, repressão, impotência”.3 As atitudes que impulsionaram o programa experimental da vanguarda artística brasileira nos anos 1960 carregavam a urgência de uma ousadia criativa e revolucionária diante de tempos difíceis, em que militantes de esquerda e opositores políticos estavam sendo presos e torturados, quando não terminavam para sempre desaparecidos. Nesse cenário, artistas e intelectuais não só brasileiros, mas também de outros países latino-americanos que sofreram sucessivos golpes militares e episódios de extrema hostilidade e repressão social, seguiram para o exílio. Dois pontos importantes se destacaram sobre uma prática artística movida pela ação e em face à sociedade brasileira ameaçada pela imposição de um silêncio opressor. O primeiro foi a mudança da posição passiva do público diante de uma obra. O espectador transformou-se em participador e sua presença começou a ser solicitada ativamente em um trabalho a ser vivenciado. Lygia Clark explorou intensamente um inevitável abandono da arte em direção à vida, criando “corpos coletivos” e experiências sensoriais inspiradas pela psicoterapia com a ajuda de Objetos relacionais feitos com materiais banais, acessíveis no nosso dia a dia, a serem usados ou vestidos pelos participantes de acordo com O espectador transformou-se em participador as instruções da artista, reinventando a e sua presença começou a ser solicitada existência contra um sentimento de letarativamente em um trabalho a ser vivenciado gia. Nas palavras de Clark, em uma carta escrita em Paris e endereçada a Oiticica em 1968, essa existência consistia em uma “mudança radical do mundo em vez de somente ser uma interpretação do mesmo”. Já não bastava mais uma obra de arte que representasse ou apontasse problemas, a fim de educar as massas. Contra a alienação, era necessário experimentar um novo contato com a potência da vida em sua totalidade e o que nela é contestado, como afirmou Artur Barrio: “Em meus trabalhos, as coisas não são indicadas (representadas), mas sim vividas, e é necessário que se dê um mergulho, que se mergulhe/manipule, e isso é mergulhar em si”. Imersos nas 3 Hélio Oiticica, “Subterrânia”, em César Oiticica Filho (org.), Hélio Oiticica: museu é o mundo, Rio de Janeiro, Azougue, 2011, p. 145. 18 RBMA 70
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Nildo com Incorporo a revolta, de HĂŠlio Oiticica 70 RBMA 19
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sa (on te adversidades (“da adversidade vivemos!”, atuarem nas ruas e em outros espaços das exclamava Oiticica em tom de revolta), os cidades. Interessava não mais o objeto de artistas criavam para reativar uma outra arte formal, estável, protegido pelas pasensibilidade sobre a realidade. redes de uma sala expositiva e dotado de Barrio levou a vivência de sua arte um único sentido. O uso do corpo e de maao limite de uma explosão e ao aprimorateriais precários significavam uma recusa mento de percepções ao realizar, em maio ao valor comercial da arte e de sua permade 1970, um trabalho em que passou quanência, mas era, principalmente, um modo tro dias e quatro noites deambulando pela de sobrevivência conciliado com o contexto cidade do Rio de Janeiro até chegar a um econômico brasileiro associado ao então total esgotamento de seu corpo. Não exischamado “Terceiro Mundo”. Em um manifesto lançado em 1969 tem registros ou quaisquer imagens sobre contra as instituições e a crítica de arte, 4 Dias 4 Noites, a não ser o relato de BarBarrio contestou o uso de materiais indusrio sobre o que aconteceu naqueles dias. trializados considerados caros para a nossa Se a ditadura havia arrancado drasticarealidade, que estavam, sobretudo, nas mãos mente das ruas as manifestações estudande uma elite e fora do alcance da maioria tis e perseguia os movimentos de esquerdos artistas. Ao reda, o ato individual, vés, Barrio optou pelo silencioso, desgastante O uso do corpo e de materiais precários sigemprego de materiais e solitário de Barrio nificavam uma recusa ao valor comercial da colocava em choque arte e de sua permanência, mas era, principal- perecíveis – lixo, fluidos, papel higiênico uma subjetividade que mente, um modo de sobrevivência conciliado colidia com a rigidez com o contexto econômico brasileiro associa- – para a construção de ações processuais e do tempo, o controle do ao então chamado “Terceiro Mundo” momentâneas, difíceis autoritário do espaço e de serem absorvidas por um pensamento sua atmosfera de intimidação. Se a cidade é pensada como uma linguagem, a deambu- estético hegemônico, lançando um novo “conceito de baixo para cima”. Uma dessas forças lação de Barrio foi o desordenamento desmarginais que, vinda de baixo, evidenciou as sa linguagem como ato de rompimento de linhas visíveis e invisíveis que separam um condicionamentos repressivos, procurando sentir um conjunto de distintas sensações e espaço artístico consagrado do que está fora alcançar uma apreensão total sobre a vida. dele, gerando uma força disruptiva, foi a an O segundo ponto é que essa arte tiarte ambiental levada por Oiticica ao Museu “contra-arte” usava como tática a realizade Arte Moderna do Rio em 12 de agosto de ção de intervenções efêmeras, fora do ter1965, apresentando pela primeira vez na exritório demarcado pelas instituições e seus posição Opinião 65 seus Parangolés formados discursos dominantes. O questionamento do por capas, tendas e estandartes, construídos elitismo de todo um circuito cultural, de sua com fragmentos de plásticos e tecidos. O Parangolé é um evento de particilógica de mercado e de acumulação, levou pação. Sua gênese está no envolvimento de os artistas a sairem do confinamento das Oiticica com o samba na comunidade do Morfronteiras fixas das galerias e museus para 70 RBMA 21
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ro da Mangueira (onde se tornou passista da escola) e na arquitetura improvisada das favelas. O artista decidiu viver na favela e disse que sua escolha veio de “uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão”. Para a experiência coletiva acontecer, o Parangolé precisa ser carregado ou vestido, com o propósito de revelar suas múltiplas nuances e afirmações que se expandem pelo espaço – alguns deles exibem frases como “incorporo a revolta”, “estou possuído” ou “seja marginal, seja herói”. O corpo produz seu movimento, sua expressão poética, que coberto por matizes e palavras, combina dança, cor e protesto. Vestidos com os Parangolés, os passistas da Mangueira foram com Oiticica ao MAM-RJ tocando e dançando samba para a abertura de Opinião 65, contrastando com o protocolo formal da inauguração e do terno e gravata obrigatório dos convidados. O grupo A censura imposta expulsou foi impedido de entrar – aos gritos, Oiticica dizia que a do circuito cultural artistas proibição era um sinal de racismo –, e a ação acabou aconpoliticamente engajados. Os tecendo nos jardins do MAM, recebendo o apoio do público. militares passaram a fechar A anarquia e a surpresa desse gesto de agitação evidenexposições, apreender obras ciaram os afetos e a ligação de Oiticica com uma comunie executar prisões dade socialmente marginalizada. “Foi a primeira vez que o povo entrou no museu. Ninguém sabia se o Oiticica era gênio ou louco e, de repente, eu o vi e fiquei maravilhado”, disse Rubens Gerchman. Se hoje os Parangolés foram engolidos pelo museu e são mostrados como uma vestimenta colocada em cabides e sacralizada como obra de arte, seu poder político foi esvaziado por essa operação estetizante. Quando inertes, perdem toda a sua essência. Parangolés e Objetos Relacionais existem como “trabalhos de arte faça-você-mesmo” que devem ser realizados, usados e mesmo recriados pelas pessoas. Quando manipulados ou vestidos, desmaterializam a própria prática artística para provocar novos acontecimentos. Em agosto de 1968, os Parangolés de Oiticica voltaram à cena para Apocalipopótese, evento realizado no Aterro do Flamengo. A diversidade e simultaneidade de ações executadas ao ar livre ocorreram com um “grupo aberto” formado por artistas, passistas de samba e público criando e vestindo os Parangolés, revivendo o nascer com os Ovos de Lygia Pape (cubos de madeira com panos e plásticos brancos que precisam ser rompidos com o corpo), vendo o show de um domador de cachorros amestrados trazidos por Rogério Duarte – como uma alegoria ao ato da polícia utilizar cães para reprimir manifestantes –, ou quebrando as Urnas Quentes de Antonio Manuel – caixas de madeira que, quando destruídas com a ajuda de um martelo, 22 RBMA 70
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mostravam frases contra a ditadura, notícias e imagens da violência dos militares. Apocalipopótese estava conectado com as manifestações sociais e modos de vida alternativos que despontaram internacionalmente em 1968. Foi uma experiência libertária, mas também aflitiva, uma expressão do inconformismo que pareceu antever o que viria a seguir no final daquele ano, com o recrudescimento do regime militar e a legitimação das práticas arbitrárias de tortura e desaparecimento após a promulgação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.
O ato imprevisível O cerco da ditadura aumentou em 1968 e causou impacto no meio artístico. A censura imposta expulsou do circuito cultural artistas politicamente engajados. Os militares passaram a fechar exposições, apreender obras e executar prisões. Rogério Duarte e seu irmão Ronaldo foram presos em 1968 durante um protesto no Rio de Janeiro, sendo levados pelos militares e torturados durante dias. Em dezembro do mesmo ano, a II Bienal da Bahia foi fechada pelo exército por mostrar obras com conteúdo “subversivo”. Nessa bienal, Antonio Manuel exibiria um painel com imagens de jornais mostrando a violência da ditadura contra estudantes. O painel foi confiscado e nunca mais devolvido ao artista. Em maio de 1969, Manuel participou de uma exposição prévia da representação brasileira na Bienal de Paris. Seu trabalho, Repressão outra vez – eis o saldo, consistia em cinco painéis com fundo vermelho sobre os quais estavam impressos em silk screen capas de jornais alteradas pelo artista retratando a repressão policial nas ruas. Para ver as imagens, era necessário, Foto: Arturo Sánchez
Repressão outra vez eis o saldo, de Antonio Manuel São Paulo, 1968 70 RBMA 23
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Instalação Arte/Pare, foto do artista Paulo Bruscky - Recife, 1973
com a ajuda de uma corda, levantar um pano preto que cobria o trabalho. Antes mesmo da mostra ser inaugurada, os oficiais do exército fecharam o museu. Manuel ainda desafiou a política institucional da arte em 1970 apresentando o seu corpo como obra ao Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM do Rio, sendo recusado pelo júri. Em protesto, o artista despiu-se diante do público no dia da inauguração, foi perseguido por autoridades policiais e provocou o fechamento da exposição. O gesto não foi apenas uma tentativa de confrontar as regras de inclusão e exclusão de um júri de um salão de artes. O corpo nu também lembrava sua condição de alvo notório da tortura exercida pela máquina militar. Em repúdio aos atos de censura e em protesto à ditadura, artistas, críticos e intelectuais brasileiros e estrangeiros promoveram um boicote à X Bienal de São Paulo em 1969. Oitenta por cento dos artistas não participaram do evento e as representações internacionais recusaram o convite da exposição, provocando um desgaste político da bienal e de sua influência, o que se estendeu nos anos posteriores. Instaurados o vazio institucional, as inquietações sociais e a suspensão dos direitos civis, os artistas que estavam ocupando as ruas precisavam realizar atos muitas vezes anônimos, inusitados e violentos. Escapar da coerção do terrorismo de Estado requeria avançar em um território conflituoso, criando rupturas, usando os meios disponíveis e subvertendo a estratégia do inimigo – princípios que norteavam as táticas usadas naquele momento pela guerrilha. Desviar as armas do inimigo para lutar era o que o revolucionário da Ação Libertadora Nacional Carlos Marighella propunha em
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seu Minimanual do guerrilheiro urbano mavam-se das ações realizadas na clan(1969) – texto-chave para as organizações destinidade pela guerrilha, valendo-se de de esquerda e que circulou mimeografado e toda uma mobilidade, da precariedade e da fotocopiado clandestinamente durante o AIsurpresa. No ensaio “Contra a arte afluente: 5, sendo também traduzido e lido por moo corpo é o motor da ‘obra’” (1970), o crítico vimentos de outros países. Uma das instru- afirma que a arte, como uma “forma de emções desse manual dizia que, se há armas boscada”, cria situações tensas e insólitas inferiores às do inimigo, o guerrilheiro deve para o público que é obrigado a “ativar os ser “imaginativo e criativo” para superar sentidos” e tomar decisões. As consequênas dificuldades. “Para compensar por sua cias dessas ações são incertas, tanto para debilidade geral e falta de armas comparado o público como para o artista. Antes de com o inimigo, o guerrilheiro urbano utiliza Morais publicar “Contra a arte afluente” na Revista Vozes, Décio Pignatari assinalou em a surpresa. O inimigo não tem nenhuma forma de lutar contra a surpresa e se torna sua “Teoria da guerrilha artística” (1967) que a força presente da guerrilha está na confuso ou é destruído.” Com poucos resimultaneidade dos ataques que se confuncursos e sobressaltos, era preciso agir sem dem com os próprios eventos que propicia. deixar rastros. A guerrilha ar“É a informação (surpreMeireles propôs disseminar opiniões tística no Brasil criou sa) contra a redundância críticas contra a expansão do capi“situações nebulosas, (expectativa)”. A guerritalismo na América Latina (“Yankees, incomuns e indefinidas” lha, diz Pignatari, aposgo home”) e denunciar os crimes cono cotidiano, segundo o ta na mobilidade e em metidos pelos agentes da ditadura crítico e historiador da uma estrutura aberta de (“Quem matou Herzog?”) arte Frederico Morais. informação agindo denEm Recife, Paulo Bruscky realizou o seu tro e contra a rigidez das hierarquias. Em comum, essas reflexões jogam trabalho Arte/Pare (1973), fechando com entre a tensão e a expectativa, e apontam uma fita vermelha um trecho da Ponte da Boa Vista e impedindo o fluxo dos carros e para a possibilidade concreta de que não apenas o artista, mas que qualquer pesdos pedestres que passavam por ela. Qual soa pode, diante do medo e da necessidade, a reação desse público perante o inesperado? Pegos de surpresa, os transeuntes não construir situações rápidas e imprevisíveis. No mesmo ano em que Pignatari lançou sabiam o que fazer – se era ou não permisua teoria da guerrilha artística, o então tido passar pela fita e seguir adiante. Na integrante da Internacional Situacionista dúvida, alguns pedestres arriscaram e resolveram atravessar a fita sem arrancá-la. René Viénet escreveu na França um texto ainda pouco explorado no legado deixado Com o tráfego interrompido, a intervenção pelo grupo, chamado de “Os situacionistas durou quarenta minutos até que alguém e as novas formas de ação na política e na impaciente decidiu desfazer a faixa. Para Morais, trabalhos como os de arte”. O autor sugere “a promoção de tátiManuel, Oiticica, Barrio e Clark, assim cas de guerrilha nos meios de comunicação como as intervenções de Bruscky, aproxide massas” como forma de contestação, que 70 RBMA 25
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pudessem ser efetuadas não só no terreno dos grupos revolucionários de esquerda, mas também por qualquer indivíduo. Esse uso livre das táticas subversivas nos meios aparece nas Inserções em circuitos ideológicos (1970-1975), de Cildo Meireles – uma intervenção individual dentro de uma escala coletiva e industrial. Meireles propôs disseminar opiniões críticas contra a expansão do capitalismo na América Latina (“Yankees, go home”) e denunciar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura (“Quem matou Herzog?”). Estampadas em garrafas de coca-cola ou carimbadas em cédulas de baixo valor, as inserções são devolvidas para o seu sistema de circulação original e uso social. Elas se utilizam de um circuito existente para compartilhar, de modo descentralizado, informações que não eram veiculadas na mídia controlada por grupos hegemônicos e pela censura dos militares, chegando a um número indefinido de pessoas e atravessando a perversa nuvem de silêncio e indiferença. Embora Meireles seja o propositor das instruções do trabalho, as Inserções em circuitos ideológicos devem ser tomadas como uma prática anônima de uma rede de contrainformação, sendo usada e retomada por outras pessoas quando preciso. A manifestação que sintetizou as ideias de Morais sobre a guerrilha artística foi "Do corpo à terra", organizada por ele entre os dias 17 e 21 de abril de 1970 em Belo Horizonte, com trabalhos de Artur Barrio, Cildo Meireles, Décio Novielo, Dilton Araújo, Eduardo Ângelo, José Ronaldo Lima, Lee Jaffe, Lótus Lobo, Luciano Gusmão e Luiz Alphonsus ocupando a área do Parque Municipal Américo Renné Giannetti, no centro da cidade. Os acontecimentos mais violentos e singulares de "Do corpo
à terra" ficaram por conta dos trabalhos de Cildo Meireles e Artur Barrio. Na área externa do recém-inaugurado Palácio das Artes, Meireles fixou no chão uma estaca de madeira com um termômetro no topo e amarrou dez galinhas vivas. Sobre elas, Meireles derramou gasolina e ateou fogo, sendo acompanhado à distância pelo público. Realizado no dia 21 de abril, o trabalho de Meireles, chamado de Tiradentes: totem-monumento ao preso político, remetia ao personagem histórico da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes), cuja trajetória estava sendo cooptada pelo regime militar como herói nacional. Porém, nome e ação também faziam referência à captura e extermínio dos opositores políticos – o fogo que matou militantes assassinados pelas ditaduras no Brasil e em outros países do Cone Sul, onde os torturadores também usavam como método de desaparecimento a incineração dos corpos das vítimas assassinadas, a fim de eliminá-los definitivamente. Anos mais tarde, Meireles fez o seguinte comentário sobre totem-monumento e os seus efeitos políticos:
Por conta do feriado de Tiradentes e das comemorações na cidade, o ditador da ocasião e todos os políticos pró-ditadura estavam em Belo Horizonte. No almoço solene de abertura do Palácio das Artes, um deputado – segundo uma matéria assinada pelo jornalista Morgan Motta e que foi publicada em um jornal da cidade –, a certa altura, fez um discurso atacando a exposição e, sobretudo, “aquele” trabalho que queimava galinhas. Então, o jornalista
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Cildo Meireles Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula 1975
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termina o artigo com essa frase: “E, terminados os discursos, foi servido o almoço: frango ao molho pardo”. Mais do que nunca aquilo representava para mim o símbolo da hipocrisia que reinava no Brasil.A matéria-prima de Tiradentes: totem-monumento ao preso político é a morte. Mas, evidentemente, sempre por metáfora, ela acaba voltando à vida, quer dizer, o que está ali, morto, estava vivo. E estava sendo novamente “vivo” por meio de pessoas que, naquele momento, estavam vivas. A tortura e a morte tornaram-se rotina na vida brasileira durante o AI-5. Nessa conjuntura, a intervenção de Barrio em Do corpo à terra, denominada Situação T/T,1, conseguiu gerar uma agressiva desestabilização social e sensível sobre a rotina de uma população. No dia 20 de abril, Barrio levou às margens do Ribeirão Arrudas – cuja parte da extensão corta o centro de Belo Horizonte – suas trouxas ensanguentadas. Barrio produziu catorze trouxas usando materiais perecíveis como carne, sangue, ossos e espuma – que enrolados em tecidos e amarrados por cordas, ganharam uma dimensão visual assustadora. Pela manhã, as trouxas foram arremessadas anonimamente nas águas e abandonadas próximas ao rio/esgoto. Mais tarde, por volta das 15h, Barrio retornou ao local com o fotógrafo César Carneiro para documentar as reações do público. Crianças e outros curiosos se aproximavam das trouxas para tentar decifrá-las. Segundo Barrio, “cinco mil pessoas” participaram da
Hélio Oiticica Seja marginal, seja herói 1968
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intervenção acompanhando os seus desdobramentos. Polícia e bombeiros foram acionados para esclarecer a origem daqueles vestígios e desvendar a
trouxas ensanguentadas, sejam os comentários das pessoas, dos críticos de arte que posteriormente falaram sobre as situações de Barrio, ou o que aparecia nos jornais da época, é que elas poderiam ser pedaços de corpos de pessoas torturadas e assassinadas pelo Esquadrão da Morte. Formados por policiais envolvidos em esquemas de extorsão e proteção de traficantes, os esquadrões da morte declaravam à população que era Nos tempos da repressão e até mesmo em nosso preciso presente, quando a sociedade sabe, mas procura fazer evitar falar sobre o extermínio da população uma limpobre, negra e periférica, morta impunemente peza sopela polícia e por grupos de extermínio, a “lei cial para do silêncio” e o esquecimento são regidos como tirar de a condição de uma normalidade sufocante. circulação das ruas a “bandidagem”. Semanalmente, os jornais noticiavam a aparição de “presuntos” – cadáveres sem nome encontrados em locais públicos e que foram executados na calada da noite pelos esquadrões . A intervenção de Barrio ocasionou, com sua violência social e visceralidade, uma desordem do território dominado pelas forças do poder, gerando também uma possibilidade de articulação de uma fala, de expressão coletiva de um segredo público sobre a brutalidade das mortes orquestra“cena do crime”. das por grupos paramilitares que clandesNos tempos da repres- tinamente colaboravam com os órgãos de são e até mesmo em nosso presente, repressão do regime. Na cidade, a situação das trouxas já havia saído dos domínios do quando a sociedade sabe, mas procura eviartista. E outras ações efêmeras, anônimas tar falar sobre o extermínio da população e imprevisíveis que ocorreram no âmbito do pobre, negra e periférica, morta impunemente pela polícia e por grupos de extermí- terror instaurado pela ditadura brasileira recusaram-se a ser capturadas institucionio, a “lei do silêncio” e o esquecimento são regidos como a condição de uma normalida- nalmente, construindo com seus processos e vivências uma contra-história da arte. de sufocante. O que se disse a respeito das 70 RBMA 29
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Repressão, modernização e conciliação: ditadura e universidade no Brasil – 1964-1979
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uma certa memória, a ditadura que durou no Brasil longos quinze anos1 é somente associada à repressão. De fato, a face repressiva é aspecto essencial
da ditadura brasileira, não podendo ser subestimada sua importância na manutenção do regime, enquanto ele durou, e mesmo depois que se encerrou sua existência.2 Essa proposição é válida para qualquer regime ditatorial, mas convém não esquecer que a repressão também existe em outros tipos de regimes e, a rigor, é quase impossível imaginar um Estado, qualquer que seja sua natureza, sem repressão. Por outro lado, as ditaduras não se estruturam apenas e tão somente na base da repressão. Elas também se constituem sobre propostas que objetivam alcançar algum tipo de legitimidade social, suscitando nas pessoas, grupos ou classes sociais, para além do medo e da intimidação provocados geralmente pela repressão, diferentes tipos de atitude que podem ir da adesão entusiasmada, de diferentes nuanças ou graus de conciliação, à sensação de que nada pode ser feito contra o regime ditatorial. Nessa perspectiva, podem se estabelecer interações complexas entre ditadura e sociedade, que, não subestimando a repressão e seus efeitos perversos, não se reduziriam à lógica binária da repressão/medo para explicar a existência e a duração do regime ditatorial.3 É com essas referências que se avaliarão as relações estabelecidas entre a ditadura instaurada em 1964 e a universidade brasileira.4
1 Adotamos aqui a periodização defendida por mim (D. A. Reis, Ditadura e democracia), segundo a qual, instaurada em 1964, a ditadura deixou de existir em 1979, quando se extinguiram os Atos Institucionais, desaparecendo o Estado de exceção, critério determinante para a tipificação de uma ditadura. 2 Nos debates efetuados em 2014, por ocasião dos 50 anos da ditadura brasileira, tornou-se relevante a questão dos legados/heranças da ditadura no atual regime democrático, com especial ênfase, entre outros aspectos, para a militarização das polícias e para a tutela das forças armadas, assegurada por dispositivos constuticionais. 3 Cf. os trabalhos de P. Laborie, Les Français des années troubles. De la guerre d’Espagne à la liberation; e a obra coletiva organizada por D. Rollemberg e S. V. Quadrat, A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. 4 O melhor estudo sobre as relações entre ditadura e universidade, no qual este artigo se apoia,
é quase impossível imaginar um Estado, qualquer que seja sua natureza, sem repressão 70 RBMA 31
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A conjuntura crítica de 1961-1964 e os questionamentos ao sistema tradicional universitário Entre 7 de setembro de 1961, quando João Goulart assumiu a presidência da república, e 30 de março de 1964, quando se iniciou o golpe de Estado que iria derrubá-lo do poder, o Brasil conheceu a conjuntura mais crítica da história republicana.5 Como resultado do grande desenvolvimento econômico e social dos anos anteriores, e dispondo a sociedade de margem inédita de liberdades políticas, desencadearam-se movimentos sociais de distinta natureza. Mobilizaram-se trabalhadores urbanos, estudantes, camponeses e assalariados agrícolas e graduados das forças armadas, reivindicando mudanças na sociedade brasileira que pudessem expandir a cidadania e democratizar o regime político existente, uma democracia liberal eivada de elevada dose de autoritarismo. A partir de um certo momento, construiu-se um programa político – o das reformas de base, chamado assim porque desejava questionar – e reformar – as bases políticas, econômicas e culturais da sociedade: reforma agrária, urbana, eleitoral, bancária e universitária, entre outras. Se fosse cumprido, como queriam seus partidários, o programa iria transformar radicalmente o país. é de R. P. S. Motta, As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Conferir também idem, “As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária”, em D. A. Reis, R. P. S. Motta e M. Ridenti, A ditadura que mudou o Brasil. 5 Para o estudo da conjuntura crítica de 1961-1964, cf., entre outros, D. Assis, Propaganda e cinema a serviço do Golpe, 1962/1964; M. S. Correa, 1964: visto e comentado pela Casa Branca; M. C. S. D’Araújo, C. Castro e G. A. D. Soares, Visões do Golpe. A memória militar sobre 1964; R. Dreifuss, 1964: a conquista do Estado; C. Fico, Além do golpe, versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar; E. Gaspari, A ditadura envergonhada; W. G. dos Santos, Sessenta e quatro. Anatomia da crise.
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Uma das reformas então propostas dizia respeito exatamente à universidade brasileira. Intelectuais e estudantes universitários, liderados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), questionavam o caráter arcaico e reacionário, no sentido próprio da palavra, das instituições universitárias, consideradas elitistas, bacharelescas e alienadas em relação às necessidades e demandas do desenvolvimento nacional. A reforma, definida em três seminários nacionais realizados pela UNE em 1961, 1962 e 1963,6 baseava-se em três eixos principais. Primo, aumentar consideravelmente os efetivos de estudantes e professores das universidades públicas, com a correspondente ampliação das infraestruturas (prédios, laboratórios, bibliotecas etc.), superando os acanhados parâmetros então vigentes.7 Secundo, democratizar a gestão universitária, atribuindo-se aos estudantes, em todos os colegiados e conselhos universitários, uma representação de um terço dos votos. Tertio, e mais importante, reorientar a universidade para a pesquisa dos grandes problemas nacionais, em particular os que condicionavam a vida das camadas populares. Em síntese, queria-se uma universidade pública, democratizada e voltada para confrontar os grandes desafios enfrentados pelo país. O desdobramento mais notável das lutas estudantis pela reforma universitária, e de maior repercussão nacional, foi a greve pela democratização da gestão universitária, chamada “greve do 1/3”, entre junho e agosto de 1962.8 A derrota do movimento grevista desgas-
A derrota do movimento grevista desgastou, mas não eliminou, a luta pela reforma universitária liderada pela UNE
6 Desde 1960, a UNE, liderada por uma frente política congregando católicos de esquerda e comunistas, organizados, respectivamente, na Ação Popular e no Partido Comunista, empenhava-se na luta pela reforma universitária. A proposta seria elaborada em três seminários nacionais, realizados em Salvador (1961), Curitiba (1962), onde se formularia a chamada Carta do Paraná, e em Belo Horizonte (1963). 7 Os efetivos de estudantes universitários reduziam-se à época a algo em torno de 140 mil. Para um país de sessenta milhões de habitants, era demasiadamente pouco. Para os dados, conferir as obras já citadas de Rodrigo P. Sá Motta. 8 Para a luta dos estudantes pela reforma universitária, cf. A. V. Pinto, A questão da Universidade e M. de L. A. Fávero, A UNE em tempos de autoritarismo. Cf. igualmente A. J. Poerner, O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros.
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tou, mas não eliminou, a luta pela reforma universitária liderada pela UNE, que se manteve ativa até o golpe de 1964. No plano institucional, tornou-se também um marco a inauguração da Universidade Nacional de Brasília (UnB). Fundada em 21 de abril de 1962, dois anos depois da Capital, teria como inspiradores e dirigentes dois intelectuais associados às lutas pelas reformas de base, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira.9 Tanto do ponto de vista administrativo, convertida em fundação autônoma, quanto do ponto de vista acadêmico (ênfase na pesquisa), a UnB prometia exercer um papel inovador no ambiente das universidades brasileiras. A ditadura, porém, como veremos, mal começado seu voo, cortou-lhe as asas. É necessário aduzir, entretanto, que o questionamento das estruturas universitárias tradicionais não se resumia às esquerdas. Em 1961, fora aprovada pelo parlamento brasileiro a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, resultado de um longo processo. Fruto de concessões mútuas, aprovado por um Congresso fundamentalmente conservador, a lei seria, porém, considerada um avanço positivo pelas esquerdas. Evidenciou-se, contudo, no debate e nas votações, a existência de setores de direita modernizantes, também interessados no aggiornamento das universidades brasileiras. Distin9 Darcy Ribeiro foi o primeiro reitor da UnB e era chefe da Casa Civil do presidente João Goulart quando do golpe de 1964. Em virtude de sua importância para a fundação da UnB, com o seu nome foi batizado o principal campus da universidade. Para suas reflexões sobre a história da UnB, cf. D. Ribeiro, UnB, invenção e descaminho. Anísio Teixeira foi o primeiro presidente do conselho diretor da Universidade
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guiam-se das esquerdas por criticarem a ênfase destas no caráter público e gratuito do ensino universitário e seu apego aos valores nacionalistas e populares, considerados demagógicos. Mas também não sustentavam as estruturas esclerosadas da cátedra e a dinâmica bacharelesca de um sistema universitário que se tornara incompatível com as demandas do capitalismo brasileiro. O programa das reformas de base suscitou muita inquietação. Com medo de suas consequências, articularam-se tendências heterogêneas. O que as unia, além de interesses específicos, era o medo. Os latifundiários temiam perder suas terras improdutivas. Os banqueiros, o controle sobre o sistema financeiro. Os industriais, o mando discricionário sobre suas empresas. Os políticos profissionais, a hegemonia sobre o processo eleitoral. Os hierarcas civis e militares, a dominação sobre as instituições existentes. Em todos, nascia o medo de que aquele reformismo revolucionário pudesse
A ditadura, de imediato, e enquanto durou, mostrou à universidade uma face repressiva arrastar o país para a órbita do comunismo internacional, como ocorrera em Cuba, depois do triunfo da revolução nacional e democrática de 1959. A aliança entre o Capital, a Espada e a Cruz, mobilizando amplos setores da sociedade, derrotou o movimento pelas reformas de base e ofereceu os alicerces sociais e políticos para a instauração da ditadura em 1964.
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A ditadura mostra os dentes: a repressão policial-militar A ditadura, de imediato, e enquanto durou, mostrou à universidade uma face repressiva. Em particular, foram atingidos os estudantes, cujos principais centros e diretórios acadêmicos foram fechados. A UNE, incendiada por grupos
paramilitares impunes, tendo seus líde-
Salvo exceções, as nidade, de onde tentaria se reorganizar lideranças estudantis consagradas, nos anos seguintes. Meses mais tarde, foi anteriores ao golpe, editada a Lei Suplicy de Lacerda, do desapareceram nome do primeiro ministro da educação res perseguidos, foi para a clandesti-
da ditadura, que remodelou as representações estudantis de âmbito estadual e nacional criando o Diretório Nacional de Estudantes e os Diretórios Estaduais de Estudantes no lugar das União Nacional dos Estudantes e das Uniões Estaduais de Estudantes (UEEs).10 Em várias faculdades, onde fora mais dinâmico o movimento estudan-
til, instauraram-se inquéritos policial-militares, os IPMs, sob o comando de coronéis do exército cuja ignorância dos assuntos universitários só era comparável à truculência com que se comportavam. Viraram objeto de chacota, plas-
mando-se, a partir de então, a caricatura grotesca dos “gorilas”, os rabos felpudos saindo por baixo dos uniformes, a catadura boçal, os dedos curvos com unhas grandes. O deboche alegrava os espíritos da contestação e ajudava a moderar a dor e a amargura da derrota. Mas tinha um efeito nocivo: não contribuía para a compreensão da complexidade do novo poder que se constituíra. Salvo exceções, as lideranças estudantis consagradas, anteriores ao golpe, desapareceram: presas, no exílio ou
na perplexidade em que ficaram com aquela inesperada 10 Cf. lei 4.464, de 9 de novembro de 1964. Salvo em alguns estados da federação, a lei não vingou. Apesar disso, os meios de comunicação foram proibidos de mencionar a UNE e as UEEs, que sobreviviam na clandestinidade. Para driblar a censura, os jornais se permitiriam o ridículo de referir essa entidades como “ex-UNE” e “ex-UEEs”
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derrota catastrófica. No entanto, no fluxo constante que caracteriza o movimento estudantil, brotaram novas lideranças, rebeldes. Para elas, reservou-se um complexo de medidas repressivas: no interior das faculdades, direções
autoritárias e intolerantes advertiam, suspendiam e expulsavam os mais ativos. Quando os estudantes iam às ruas protestar, esperavam-os as bombas de efeito moral e de gás lacrimogêno, os cassetetes e as patas dos cavalos das polícias militares. Entretanto, houve zigue-zagues na prática da repressão. Afinal, os estudantes universitários eram uma elite. A elite de uma elite. Provenientes,
a partir de agosto de 1968, a polícia começou a atirar para ferir e matar os que ousavam ir às ruas
em sua imensa maioria, das classes médias, base social importante do golpe e da ditadura, pelo menos em seus inícios. O fato deve ter pesado, em alguns momentos, na dosagem da repressão. De modo geral, no entanto, até meados de 1968, o pau quebrou nas costas de quem desejava se opor à ditadura. A partir de agosto
daquele ano, a polícia começou a atirar para ferir e matar os que ousavam ir às ruas. Haveria ainda um
último canto do cisne: a tentativa, frustrada, de organizar na clandestinidade o XIX Congresso da UNE, levando à prisão de centenas de lideranças. O movimento estudantil já estava em pleno recuo, que se consolidaria depois do Ato Institucional n. 5, editado em 13 de dezembro de 1968.11 Em fevereiro de 1969, a edição de um decreto específico para as universidades, atingindo estudantes, professores e funcionários, criou a possibilidade de suspensões e expulsões sumárias, dependendo apenas da vontade das autoridades locais.12 11 Para o movimento estudantil até 1968, cf. D. Aarão Reis e P. Moraes, 1968, a paixão de uma utopia e J. R. Martins Filho, Movimento estudantil e ditadura militar, 1964-1968. 12 Cf. decreto n. 477, de 26 de fevereiro de 1969. Os acusados eram imediatamente suspensos. Os processos deveriam durar um prazo máximo de vinte dias, podendo resultar em expulsão, sem recurso e sem direito a reentrar no sistema universitários por três anos (no caso de estudantes), ou por cinco anos (no caso de professores ou funcionários). Segundo o Brasil, Nunca Mais, estima-se que 245 estudantes foram expulsos na vigência do decreto n. 477. Cf. Arquidiocese de
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Depois, foi o silêncio Mas a ditadura manteve-se vigilante. Constituíram-se, em cerca de 35 universidades, as chamadas Assessorias de Segurança e Informação, as ASIs, ligadas às reitorias e ao Sistema Nacional de Informações, com o objetivo de vigiar a comunidade universitária, os olhos e os ouvidos da ditadura no sistema universitário.13 A pressão resultante do binômio repressão/vigilância contribuiria decisivamente para inibir ou impedir determinadas linhas de pesquisa, em particular na grande área
das chamadas ciências humanas. Censura explícita, ameaças veladas e outros procedimentos intimidatórios iriam condicionar a escolha de objetos e temas de pesquisa, bibliografias e métodos de aprendizagem.14
Mesmo setores conservadores já tinham percebido que se criara uma incompatibilidade entre o sistema universitário brasileiro – considerado anacrônico – e as novas demandas postas pelo desenvolvimento econômico-social dos anos 1950 Nesse quadro, a resistência ao regime, sempre e quando existisse, era obrigada a tomar a forma de um processo moSão Paulo, Projeto Brasil: nunca mais. A mão grande da repressão também alcançou professores, estimando-se entre 250 e trezentos professores afastados da universidade nas duas maiores ondas repressivas, ocorridas em 1964 e em 1969. Cf. obras citadas de Rodrigo P. Sá Motta. 13 Cf. R. P. S. Motta, As universidades e o regime militar; idem, “Incômoda memória. Os arquivos das Assessorias de Segurança Universitárias/ASI”, Acervo, n. 16, 2008, pp. 32-50. O autor informa que, ainda na primeira metade dos anos 1980, continuavam a existir, a pleno vapor, cerca de dez ASIs, cf. idem, “As universidades e o regime militar”. 14 Apesar disso, e mesmo nos períodos mais sinistros da ditadura, alguns autores como Marx continuaram a ser editados e circulavam em alguns cursos de Ciências Humanas. Cf. idem, , “As universidades e o regime militar”.
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lecular de rearticulação. O quadro só se alterou a partir de 1977, já no início do ocaso da ditadura, quando as manifestações estudantis retomaram ritmo, mas sem alcançar os patamares de 1967 e 1968.
A ditadura e as reformas modernizantes Como já referido, mesmo setores conservadores já tinham percebido que se criara uma incompatibilidade básica entre o sistema universitário brasileiro – considerado anacrônico – e as novas demandas postas pelo desenvolvimento econômico-social dos anos 1950. Assim, para além das propostas reformistas lideradas pelas esquerdas, criara-se no campo das direitas, mesmo antes de 1964, no que se refere ao debate sobre a universidade, uma anteposição entre direitas modernizantes e direitas arcaizantes. As direitas modernizantes desejavam reformar com viéis próprio, autoritário e privatista, o sistema universitário. As arcaizantes agarravam-se aos
Nesse quadro, a resistência ao regime, sempre e quando existisse, era obrigada a tomar a forma de um processo molecular de rearticulação
privilégios e às tradições consagradas.
Para o primeiro governo ditatorial e, em escala menor, também para os seguintes, a situação complicava-se por duas ordens de razões. Primo, os arcaizantes também haviam participado, e ativamente, do golpe e da sustentação da ditadura. Através de numerosas conexões, nas alturas do Estado, dificultavam o encaminhamento de qualquer tipo de reforma que viesse a questionar as tradições em que se apoiavam.15 Secundo, os movimentos universitários, ativos já a partir de 1965, retomavam, nas novas condições 15 Pedro Calmon é um dos epítomes dessas complexas relações entre direitas arcaizantes e governos ditatoriais. Antes do golpe, era uma espécie de reitor perpétuo da então Universidade do Brasil (UB), transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) depois da mudança da capital para Brasília. Catedrático de Direito, historiador, exerceu o cargo por dezessete anos, de 1949 a 1966, convivendo com diferentes governos. Era tolerante com os estudantes, sendo de sua lavra uma frase famosa: “Polícia só entra na universidade se fizer vestibular”. Graças a suas conexões, permaneceria como reitor depois do golpe. Afinal, afastado, reapareceu, porém, nos festejos dos 150 anos da independência, em 1972, como orador oficial do evento realizado no Museu do Ypiranga, ao lado do general Médici. Cf. J. M. Cordeiro, A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento.
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políticas, as pressões por uma reforma universitária nos moldes do que era defendido antes de 1964. Sob esse fogo cruzado, de direita e de esquerda, o governo protelava decisões concernentes à reforma universitária.
Não obstante, intelectuais e instituições comprometidos com uma modernização da universidade pela direita foram afinando propostas entre 1965 e 1968.16 Entre elas, podem ser destacados principalmente dois textos, o Relatório Atcon e o Relatório Meira Mattos.17 Rudolph P. Atcon, autor do relatório que levou seu nome, de origem estadunidense, foi assessor da Unesco entre os anos 1950 e 1970, especializando-se no estudo das universidades e de suas reformas no continente latino-americano, em especial no Brasil e no Chile. A proposta de Atcon é consistente com a tradição da organização universitária norte-americana.
No nível da graduação, entre outras propostas, previa a criação de cursos básicos articulados com especializações profissionais; sistema de créditos com a individualização dos cursos (cada estudante, dentro de parâmetros definidos, escolhe como decorrerá sua formação); organização por
Não obstante, intelectuais e instituições comprometidos com uma modernização da universidade pela direita foram afinando propostas entre 1965 e 1968
departamentos, com a extinção da instituição da cátedra; matrículas pagas com sistema de bolsas para os estudantes que evidenciarem carências (crédito educativo), assegurado reembolso posterior ao Estado. No nível da pesquisa e da pós-graduação, propunham-se o estabelecimento de relações sistemáticas entre a pes-
16 Cf. R. P. S. Motta, As universidades e o regime militar; idem, “As universidades e o regime militar”; e de M. de L. A. Fávero, A UNE em tempos de autoritarismo. 17 Cf. R. P. S. Motta, As universidades e o regime militar; idem, “As universidades e o regime militar” e V. R. Boschetti, “Plano Atcon e Comissão Meira Mattos: construção do ideário da universidade pós-1964”, Revista Histedbr on-line, n. 27, 2007, p. 222-9. Outros dois textos, no mesmo sentido, tornaram-se conhecidos na época: um relatório fruto dos acordos MEC-USAID, em 1965; e os resultados de uma Comissão Parlamentar do Congresso Nacional, em 1967. Embora o primeiro tenha provocado grande alarido, denunciado pelo Movimento Estudantil como uma ingerência inaceitável dos Estados Unidos na educação brasileira, ambos são considerados de menor importância pelos estudiosos do assunto.
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quisa universitária e as empresas privadas; desenvolvimento de um sistema de pós-graduação articulado com essa concepção; flexibilização na contratação de professores, com previsão de contratação de professores em tempo integral e dedicação exclusiva; autonomia de gestão, com uma estrutura verticalizada de direção – um Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), designados pelo governo federal, com poderes de nomeação de direções intermediárias. Também se previam o aumento dos efetivos de estudantes e professores; criação de um corpo de funcionários qualificados; ampliação das universidades com a construção de campi distantes das cidades. Considerando-se a realidade de então do sistema
universitário brasileiro, tratava-se de uma reforma profunda, orientada pelas referências da
organização departamental (eliminação das cátedras); da individualização (eliminação das turmas
tradicionais); da privatização (pesquisa/empresas e matrículas pagas/crédito educativo); da organização vertical e autoritária “moderna” (estruturas
Apresentado em 1965, o Plano ficou fermentando, enfrentando o bombardeio das direitas arcaizantes que o acusavam de subverter as tradições brasileiras
hierárquicas, constituídas de cima para baixo);18 da eficiência (professores de tempo integral); e do afastamento da sociedade (campi distantes dos centros urbanos).
Apresentado em 1965, o Plano ficou fermentando, enfrentando o bombardeio das direitas arcaizantes que o acusavam de subverter as tradições brasileiras e dos movimentos universitários de esquerda, que o denunciavam como uma cópia do que existia nos Estados Unidos, destacando-se nas críticas o seu caráter autoritário, privatista e imperialista. Em 1968, num contexto de pressões que já transbordavam largamente o movimento universitário, abrangendo 18 Por autoritária, entende-se semelhante à “arcaica”, mas diferente desta, sendo “moderna” pelo modo de constituição e de operação.
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diversos setores médios, em que se faziam representar as direitas arcaizantes, meios de comunicação, empresários e até mesmo greves operárias, o governo Costa e Silva nomeou, em julho de 1968, um Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU), presidido pelo então coronel Carlos de Meira Mattos.19 O grupo teria como missão elaborar com urgência,
num prazo de trinta dias, um projeto de reforma universitária a ser enviado ao Congresso. Meira Mattos era do corpo permanente da Escola Superior de Guerra (ESG), homem da ditadura, já tendo tomado parte
em ações de “choque” sob o primeiro governo ditatorial, mas reputado igualmente pelo prestígio intelecual entre os pares. Ele trabalharia com três intelectuais civis: Hé-
O grupo teria como missão elaborar com urgência, num prazo de trinta dias, um projeto de reforma universitária a ser enviado ao Congresso lio Souza Gomes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jorge Boaventura de Souza e Affonso Agapito de Vasconcelos, ambos quadros de direção do Ministério da Educação. O Grupo de Trabalho cumpriu sua “missão” e preparou o projeto, enviado ao Congresso em outubro. A toque de caixa e de clarins, como era comum na época, o projeto foi aprovado, com poucas modificações, sendo transformado na lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968.
Embora referências do Relatório Atcon tenham sido incorporadas, algumas delas, como a questão essencial da privatização dos cursos das universidades públicas (ma19 Para o ano “quente” de 1968, cf. D. Aarão Reis e P. Moraes, 1968, a paixão de uma utopia.
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trículas pagas), não passaram.20 Em contrapartida, variados estímulos foram concretizados para favorecer a emergência e o desenvolvimento de universidades particulares. A reforma universitária da ditadura compreendeu os seguintes aspectos essenciais:21 aumento do número de vagas nas universidades públicas e incentivos ao crescimento das universidades privadas; construção de novos campi em padrões norte-americanos, ou seja, afastados dos centros ur-
banos; reconfiguração dos vestibulares, substituindo-os por exames classificatórios;22 sistema de créditos em substitução
às turmas, individualizando a inserção do estudante nos cursos universitários; remodelação da organização interna das universidades públicas, com implantação dos departamentos e extinção das cátedras; melhor definição da carreira dos docentes universitários, com ênfase na pesquisa e na dedicação exclusiva; no mesmo sentido, incentivos à criação de um sistema de cursos de pós-graduação; criação de um sistema de bolsas para estudantes e professores, prevendo-se para estes uma formação de pós-graduação, inclusive no exterior; por último, mas não menos importante, a
variados estímulos foram concretizados para favorecer a emergência e o desenvolvimento de universidades particulares
viabilização, através de agências de fomento, de financiamentos para projetos de pesquisa no país.23 20 Ao longo do ano de 1967, experiência piloto de cobrança de anuidades (com dispensa para os autodeclarados “carentes”) fora realizada em várias universidades públicas, gerando grande resistência do movimento estudantil – protestos, passeatas etc. Embora Meira Mattos, pessoalmente, fosse favorável a combinar cobranças de anuidades com bolsas para os carentes, o dispositivo acabou sendo abandonado pelas oposições que poderia suscitar. Cf. R. P. S. Motta, As universidades e o regime militar; idem, “As universidades e o regime militar”. 21 Cf. idem, As universidades e o regime militar; idem, “As universidades e o regime militar”; e M. de L. A. Fávero, A UNE em tempos de autoritarismo. 22 A ideia era eliminar o flagelo dos “excedentes”, candidatos aprovados nos vestibulares mas que não conseguiam vagas nas universidades. A partir da reforma, só os que se classificassem às vagas disponíveis é que teriam direito a ingressar nas universidades. Os vestibulares também seriam modificados, deixando de ser realizados por faculdade. 23 Duas agências já existentes, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), de 1951, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), de 1949, foram transferidas para Brasília e poderosamente dinamizadas. A elas se acrescentou uma outra, o Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), criado em 1964. Com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), de 1969; e o Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT), de 1973, a ação dessas agências ganhou vulto inédito, viabilizando um conjunto de financiamentos de pesquisas e de formação nas áreas de ciência e tecnologia. Para as informações cf. sites das instituições citadas.
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As mudanças fizeram-se rapidamente sentir – aumento exponencial dos estudantes matriculados nos cursos de graduação, dos programas de pós-graduação, de bolsas e financiamentos de todos os tipos.24 Surgiram universidades novas, plasmadas já nos novos critérios, como, entre outras, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), joia maior da reforma universitária implantada pela ditadura. A reforma contribuiu poderosamente, ao lado da repressão, para neutralizar o ímpeto oposicionista do movimento universitário e para esvaziar as universidades públicas como centros de debate, de questionamento e de pressão.
Contemplando demandas, estimulando e financiando pesquisas, abrindo horizontes inéditos, as políticas da ditadura construíram bases importantes para que se estruturasse no âmbito das universidades um processo de conciliação, que não deveria ser confundido com adesismo puro e simples ou colaboração passiva.25 Da parte dos governos ditatoriais, também houve concessões, a maior das quais, já referida, foi a renúncia à política de privatização das universidades públicas. Do ponto de vista acadêmico, houve certa aceitação de autores e/ou temas polêmicos, particularmente em relação aos cursos de ciências humanas. Além disso, o reduzido número de professores alcançados pela repressão26 deve ser interpretado não apenas como fruto do desaparecimento de atitudes oposicionistas, mas também como tolerância, explícita ou implícita, das direções das instituições que, não poucas vezes, “protegiam” professores visados pelos órgãos de repressão.27 24 Alguns dados citados por Rodrigo Motta (As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária; idem, “As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária”) são reveladores: entre 1964 e 1979, o número de estudantes universitários subiu de 140 mil para 1,3 milhão; entre 1964 e 1974, os cursos de pós-graduação passaram de 23 para quatrocentos; entre 1964 e 1976, as bolsas de pós-graduação financiadas pelas agências federais (Capes e CNPq) passaram de por volta de mil para cerca de dez mil. 25 Rodrigo Patto Sá Motta prefere o termo “acomodação”. Cf. idem, As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. 26 cf. nota 12. 27 Cf. idem, ibidem.
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As universidades públicas somente voltariam a adquirir protagonismo político no periodo de ocaso da ditadura, a partir de 1977. O movimento estudantil universitário
desempenharia um certo papel no processo de desgaste do regime ditatorial. Ficaram, porém, as marcas indeléveis
As universidades públicas somente voltariam a adquirir protagonismo político no período de ocaso da ditadura, a partir de 1977 da conciliação e as heranças da reforma universitária empreendida desde 1968. Longe de superadas, umas e outras, mais de trinta anos depois, mereceriam maior estudo e reflexão.
Daniel Aarão Reis* Outubro, 2015
Professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.
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A FAUUSP e a Dit 48_55_FAU_emendado_29_02_lissa.indd 48
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Logo após o 1o de abril de 1964, o reitor Gama e Silva nomeia uma comissão não oficial composta por professores para investigar “atividades subversivas” na Universidade de São Paulo (USP). Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), essa comissão denuncia os professores João Batista Villanova Artigas e Abelardo Reidy de Souza, e o estudante Silvio Barros Sawaia. Afora os professores Paulo Duarte e Florestan Fernandes, quase ninguém protesta. O Conselho Universitário aprova uma moção apresentada pelo professor Alfredo Buzaid de apoio à comissão. Votam contra somente os professores Erasmo Garcia Mendes e Valter Colli, representantes dos ex-alunos e auxiliares de ensino. Todos os catedráticos votam a favor. A comissão é, desse modo, “legalizada”. No segundo semestre de 1964, são instaurados os Inquéritos Policiais-Militares (IPM). Na FAU-USP, eles ocorrem durante o período letivo nas salas de aula requisitadas para esse fim. O professor João Batista Villanova Artigas, fundador, programador e principal arquiteto dessa faculdade, é indiciado e preso diante de professores, alunos e funcionários. O professor Abelardo Reidy de Souza também é indiciado. Os dois serão posteriormente “inocentados”. Os assistentes de ensino Rodrigo Brotero Lefèvre e Sérgio Ferro são interrogados na sala em que ensinavam. Não houve
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nenhum protesto por parte USP, nem da FAU-USP. Em 1969, são aposentados compulsoriamente: em 29 de abril, o professor João Batista Villanova Artigas; em 30 de abril, os professores Jon Andoni Vergareche Maitrejean e Paulo Mendes da Rocha. Afora o professor Ernst Wolfgang Hamburger, Não houve quem protestasse por parte da USP, nem da FAU-USP. Em 2 de dezembro de 1970, os professores Rodrigo Brotero Lefèvre e Sérgio Ferro são presos pela Operação Bandeirante (OBAN). Uma comissão composta por representantes do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos (FAUS), da qual
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os dois professores são também fundadores, e da FAU-USP dirige-se à OBAN para informar-se sobre as prisões. Apesar dos evidentes sinais de torturas praticadas nos dois professores, a comissão retira-se sem nada comentar, nem então nem depois. Não houve protesto algum por parte da USP, nem da FAU-USP. Em 2 de dezembro de 1971, os professores Rodrigo Brotero Lefèvre e Sérgio Ferro são liberados
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sob condições. Apesar de ainda serem oficialmente professores da FAU-USP, não são inscritos no programa de ensino do ano de 1972. Não são nem “aposentados” nem encarregados de nenhuma atividade pela faculdade. O professor Sérgio Ferro, sem nenhum trabalho (salvo um artigo para a revista Veja), deixa o país com autorização da 2a Auditoria Militar. Seu contrato de trabalho com a FAU-USP expira silenciosamente em dezembro de 1973. Pouco depois, o professor Rodrigo Brotero Lefèvre é reintegrado à faculdade graças a um processo que move contra a universidade. Ausente desde 1972 do Brasil, eu, Sérgio Ferro, não tenho conhecimento de declaração oficial ou de alguma ação clara que demonstre repúdio por parte da USP ou da FAU-USP com relação a inquéritos, prisões, torturas ou assassinatos perpetrados contra professores, alunos e funcionários dessas instituições. Espero que me engane. Entretanto, posso afirmar que nem o professor Rodrigo Brotero Lefèvre, nem eu, nunca recebemos palavra alguma dessas instituições condenando ou lamentando o que aconteceu conosco, nem propondo reintegração ou qualquer medida de reparação. A mesquinhez e a indiferença chegam ao ponto de não me atribuírem a pequena aposentadoria a que tenho direito. O silêncio da USP e da FAU-USP quanto às suas lamentáveis atitudes durante a Ditadura faz delas aliadas objetivas de seus crimes.
Grignan, maio de 2015
Sérgio Ferro
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A escolarização do civismo como tática da ditadura militar Cleber Santos Vieira*
Um acontecimento ocorrido em São Paulo tornou-se a expressão mais nítida da importância tática ocupada pela educação moral e cívica na estratégia de poder formulada pela ditadura militar. No dia 15 de janeiro de 1974, Carlos Alexandre Azevedo, então um bebê de 1 ano e 8 meses, foi preso e torturado por agentes do DEOPS paulista. A criança era filho de Dermi Azevedo, preso no dia anterior sob a acusação de difamar o Estado Brasileiro. Seu crime: ser coautor de uma monografia intitulada “Educação Moral e Cívica e a escalada do fascismo no Brasil”. Tratava-se um trabalho realizado em parceria com Darcy Andozia e Maria Nilde Miscelane,1 encomendado pelo Conselho Mundial das Igrejas e que resultou numa compilação de livros didáticos adotados no Brasil após 1964. O testemunho desse episódio foi narrado no livro Travessias, publicado por Dermi de Azevedo em 2013.2 Nesse mesmo ano, 1 Maria Nilde Miscelane destacou-se ao instituir métodos pedagógicos inovadores no período em que dirigiu os Colégios Vocacionais no estado de São Paulo, extintos pela ditadura militar em 1969. Cf: Daniel Ferraz Chiozzini, História e memória da inovação educacional no Brasil: o caso dos ginásios vocacionais (1961-1969), São Paulo, Aprris, 2014. 2 Dermi Azevedo, Travessias torturadas: direitos humanos e
*Professor da Unifesp, desenvolve pesquisas sobre as implicações da cultura impressa na escolarização
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outro acontecimento de grande repercussão veio à tona: seu filho Carlos, não suportando os traumas decorrentes das torturas sofridas,3 cometeu suicídio.4 Simbolicamente, a prisão e tortura de Carlos Azevedo ocorreram no mesmo dia em que o congresso nacional legitimou, com quatrocentos votos, a ascensão do General Ernesto Geisel para o comando da ditadura. Ao praticar o terror de Estado contra uma criança, devido ao fato de seu pai oferecer à sociedade uma reflexão crítica sobre a educação moral e cívica, os agentes da repressão anunciavam que, no esteio da distensão lenta, gradual e segura, os mecanismos de controle social desempenhavam papel muito importante,
ditadura no Brasil (1964-1985), Coleção Memória das Lutas Populares, vol. 2, Natal, Centro de Direitos Humanos e Memória Popular/CDHMP, 2012. 3 Solange Azevedo, 2099, jan. 2010.
A ditadura não acabou. In: Isto é, n.
4 Luiza Villamêa, As marcas da tortura não desaparecem jamais. Revista Brasileiros, n. 68, mar. 2013, p. 64-5. 70 RBMA 57
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mas mantinha a violência na retaguarda. Ao vincular a educação moral e cívica ao fascismo, os autores da monografia atraíram toda a fúria do terror de Estado, pois desnudaram a farsa da educação cívica para a vida democrática enunciada pela ideologia de segurança nacional e revelaram que, para as forças armadas,
a educação era um importante campo de batalha para onde foram mobilizadas muitas armas e deslocados muitos quadros militares, em geral com sólida formação na doutrina de segurança nacional adquirida na Escola Superior de Guerra (ESG). É fato que, ao ser imposta como disciplina obrigatória, em 1969, pelo decreto 869, a educação moral e cívica projetou a formação dos cidadãos em termos de práticas ufanistas e obediência a leis, propósitos bem adequados à imposição e manutenção da ordem social nos parâmetros da disciplina e da hierarquia militares.5 Suas ligações com a doutrina de segurança nacional devem ser pensadas como parte do plano estratégico militar para área educacional a partir de 1964.6 Mas seria afirmação desmedida 5 Maria Aparecida de Freitas Brisolla Oliveira, Política e educação no Brasil: a implantação da obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica no ensino brasileiro em 1969, Dissertação, FEUSP, 1982. 6 Suzeley Kalil Matias, A militarização da burocracia: a participação militar na administração federal das comunicações e na educação (1963-1990), São Paulo, Editora Unesp, 2003. 58 RBMA 70
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atribuir aos militares a invenção da educação moral e cívica no Brasil. O que fizeram foi instrumentalizá-la, extraindo os caracteres liberais que a recobriam no período pré-golpe de 1964 e, em seu lugar, instituindo parâmetros da moral religiosa e militar, com repercussões até os dias de hoje. ... A Instrução Moral é inclusive anterior à Educação Moral e Cívica. Foi instituída em 1854 pela reforma Couto Ferraz com a finalidade de instruir e acompanhar a conduta moral dos alunos matriculados no ensino primário. Ao final de cada ano letivo, além das notas, os professores deveriam entregar um mapa sobre a conduta social e a aplicação da moralidade por parte dos estudantes.7 A referida lei esboçava ainda outros dois pilares que, com a república, seriam transformados em conteúdos da instrução moral e cívica: as festas nacionais e o estudo da história e da geografia pátria.8 A legislação educacional do primeiro governo republicano, conhecida por reforma Benjamim Constant, de 1890, incluiu, por exemplo, a Instrução Moral e Cívica como prática educativa.9 A passagem da Monarquia à República suscitou diferentes possibilidades quanto aos caminhos que levariam à consolidação do novo regime e quanto ao modelo de participação política a ser adotado como pedra de toque da cidadania. Nos gabinetes e escritórios dos expoentes do novo regime, buscavam-se modelos adequados para formar o cidadão, incitando algumas publicações por parte do governo federal. Eram livros de inspiração estrangeira que, de alguma forma, revelavam as ideias cívicas que pairaram pela cabeça de importantes protagonistas do regime instaurado em 1889. Registre-se desde então o notório engajamento de intelectuais e políticos na tradução de livros destinados à formação cívica dos cidadãos em outras experiências históricas. Cite-se as conferên7 Rosa Maria Niederauer Tavares Cavalcanti, Conceito de cidadania: sua evolução na educação brasileira: a partir da república, Rio de Janeiro, Senai, 1989. 8 Um dos intelectuais engajados nesse processo foi Rodrigo Otávio, que em 1893 publicou o livro Festas Nacionaes pela editora F. Briguiet & C. Editores. 9 Circe Bittencourt, Livro didático e saber escolar, Belo Horizonte, Autêntica, 2008. 70 RBMA 59
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cias em defesa da educação cívica de Paul Bert e Jules Ferry; a tradução do Manuel de Instrucion Civique, de Numa Droz,10 membro do Conselho Geral do Parlamento Suíço, realizada por Domingos Jaguaribe Filho; ou ainda A moral para todos, de Adolf Frank,11 cujas compilação e tradução foram promovidas por Ennes de Souza, então presidente da Casa da Moeda brasileira nomeado por Rui Barbosa. Da limitada rede de sociabilidade letrada brasileira, destacaram-se alguns intelectuais engajados na educação cívica. Em certos momentos, divergiram pontualmente sobre a melhor estratégia discursiva a ser adotada na formação cívica de escolares: se uma linguagem literária por onde as representações de mitos, biografias, fatos e lugares da nação provocaria a adesão aos supostos valores e tradições nacionais; ou se textos informativos em que o conhecimento da realidade nacional e a compilação de leis ocupam o primeiro plano. Olavo Bilac, Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Afonso Celso, Silvio Romero e Tancredo Amaral são exemplos do primeiro caso, enquanto Sampaio Dória12 trilhou pela segunda via. Destaca-se aqui a figura de Olavo Bilac, autor do hino à bandeira (1906) e inconteste defensor do serviço militar obrigatório nas campanhas desencadeadas pela Liga de Defesa Nacional no início do século XX. Desde então, o civismo manteve-se latente na história da educação brasileira: ora como prática educativa, ora como disciplina escolar; ora como instrução cívica, ora como educação cívica; ou também educação moral e cívica ou instrução moral e cívica.13 Há de se destacar o Estado Novo (1939-1945), quando os apelos do ufanismo autoritário, açodado pela Guerra Mundial, estimulou maior visibilidade e instrumentalização da formação cívica dos 10 Numa Droz, Manual de Instrução Cívica, Rio de Janeiro, Casa da Moeda, 1890. 11 Adolph Franck, Elementos da Moral Cívica, Rio de Janeiro, Casa da Moeda, 1893. 12 Antônio de Sampaio Dória, Que o cidadão deve saber: manual de Instrucção Cívica, São Paulo, Olgário Ribeiro, 1919. 13 Luiz Antônio Cunha, “Sintonia oscilante. Religião, moral e civismo no Brasil (1931/1997)”, Caderno de Pesquisa, vol. 37, n. 131, p. 285-302, maio-ago. 2007. 60 RBMA 70
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cidadãos. O Departamento Nacional de Propaganda destacou-se com a publicação de livros de conteúdo patriótico nos quais sobressaía a figura de Getúlio Vargas.14 Foi o caso de A história do menino de São Borja contada por Tia Olga (1936). A criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) sistematizou e potencializou esse modelo de educação cívica com uma série de títulos que concentravam o louvor à pátria na biografia e menção às realizações de Vargas. São exemplos: O Brasil é bom; quem fez?15 Essa perspectiva cívica contou com a participação direta de Humberto Grande, autor de Pedagogia do Estado Novo, livro de referência doutrinária e ideológica do autoritarismo que prevaleceu naqueles anos. A Constituição de 1946 estimulou políticos, intelectuais e literatos a promoverem o conhecimento dos elementos da organização política brasileira como condição para o exercício da vida democrática. Naquele contexto, o próprio Ministério da Educação e Cultura promoveu, através da Divisão de Educação Extraescolar (DEE), a publicação de textos cívicos. No início dos anos de 1960, o órgão solicitou ao escritor e educador Thales Castanho de Andrade a preparação de um livro de educação cívica, publicado com o título Ensinando a Constituição.16 O objetivo, de acordo com o diretor da DEE, José Salvador Julianelli, era “ensejar a alunos e mestres a oportunidade de compulsar um texto que em, palavras simples, focalizasse as bases e os fundamentos da Constituição da República”. No breve balanço sobre a história da educação cívica realizado no prefácio da obra, Cândido Motta Filho, ex-ministro da educação (09/1954 a 11/1955) manifestou 14 Tia Olga, História de um menino de São Borja. A vida do presidente Getúlio Vargas contada por Tia Olga aos seus sobrinhos, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda, 1939; Departamento de Imprensa e Propaganda, Quem foi que disse, quem foi que fez, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda, 1941; Dr. Alvaro Bittencourt Berfort, O Estado nacional e a constituição de novembro de 1937 (síntese para uso da juventude brasileira), Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda, 1944 15 Maria Helena Capelato, Multidões em cena. Propaganda política no Varguismo e no Peronismo, 2. ed. São Paulo, Editora Unesp, 2009. 16 Thales Castanho de Andrade, Ensinando a constituição. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, [196-]. 70 RBMA 61
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certa preocupação com os riscos de desaparecimento da educação cívica no Brasil. Cumpre lembrar que, nesse mesmo contexto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, estabelecia a educação moral e cívica como prática educativa no sistema educacional brasileiro. Um dos desdobramentos práticos foi a criação da disciplina OSPB, em 1962, como disciplina complementar a partir da iniciativa do Conselho Federal de Educação, tendo na figura de Anísio Teixeira um dos principais articuladores.17 Processo que encetou a publicação de compêndios didáticos e foi o ponto de partida para a elaboração da Pequena enciclopédia de Moral e Civismo, publicada no âmbito do MEC em 1967. A partir de 1964, os espaços institucionais considerados relevantes para o controle ideológico do sistema educacional e da educação cívica em particular foram paulatinamente ocupados por quadros da ditadura18 com notório apoio da Igreja católica.19 Houve também o esvaziamento ou enfraquecimento de órgãos públicos outrora controlados por educadores importantes, como o próprio Conselho Federal de Educação. Esse quadro ficou ainda mais acirrado com a criação, em 1969, da Comissão Nacional de Moral e Civismo.20 Nesse sentido, é exemplar a trajetória do Departamento de Educação Extraescolar (DEE), órgão criado em 1953 com objetivo de formular e executar políticas de assistência estudantil. O DEE alcançou notoriedade ao publicar, na virada de 1963 para 1964, a Coleção História Nova do Brasil, idealizada por Nelson Werneck Sodré no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Era na verdade um conjunto de monografias elaboradas, entre outros, por Joel Rufino dos Santos.21 Na ocasião, 17 Gildásio Amado, Educação média e fundamental, Rio de janeiro; Brasília, José Olympio; INEP, 1967. 18 José Antônio Miranda Sepulveda, O papel da Escola Superior de Guerra na projeção do campo militar sobre o campo educacional, Tese, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. 19 M. A. de F. B. Oliveira, op. cit., p. 160-173. 20 Juliana Miranda Filgueiras, A Educação Moral e Cívica e a produção didática (1969-1993), Dissertação, PUC-SP, 2006. 21 Joel Rufino dos Santos, Mauricio Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira et al., História nova do Brasil (1963-1993), São 62 RBMA 70
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o DEE era coordenado por Roberto Pontual, ex-aluno de Sodré na Faculdade Nacional de Filosofia e situado na esfera de influência do Partido Comunista Brasileiro. Com o Golpe, não apenas o diretor foi removido desse posto, como todos os participantes da História Nova do Brasil sofreram processos e a própria coleção foi cassada, após ser julgada subversiva por um inquérito policial militar. O ato arbitrário foi saudado no Congresso Nacional pelo deputado Lourival Baptista, da UDN de Sergipe. Para ele, durante
o governo João Goulart, a Divisão de Educação Extraescolar havia se transformado “em autêntico quartel das forças subversivas, e dela saía a hoje condenada coleção História Nova, feita para denegrir nossos grandes vultos históricos e torcer, por completo, a realização dos fatos brasileiros”.22 Há de se destacar que a diretoria da DEE foi sucessivamente ocupada por nomes ligados à Escola Superior de Guerra: Ildefonso Mascarenhas (1966), coronel Jorge Boaventura de Souza e Silva (1967) e Ruy Vieira da Cunha (1968), ex-ministro da saúde interino de Médici. O decreto 58.053, de 1966, inseriu o Setor de Educação Cívica na estrutura da DEE, tendo à frente Humberto Grande, um antigo quadro dos tempos do governo Getúlio Vargas responsável por escrever a Pedagogia do Estado Novo. A reorientação de rumos Paulo, Loyola Giordano, 1993. 22 Lourival Baptista, Diário do Congresso Nacional, Seção 1, 03 set. 1965, p. 7227. 70 RBMA 63
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da DEE incidiu também no campo das publicações, apropriando-se inclusive das estratégias editorias empregadas por antigos colaboradores do ISEB para fazer circular novas perspectivas para o ensino de história no Brasil. Assim, combatendo a HNB, no âmbito da DEE, surgiu a Coleção de Educação Cívica. Entre os títulos publicados, citamos: Educação Cívica e trabalho, de Humberto Grande; Significação da História do Brasil, de João Camilo de Oliveira Torres; Municipalismo como tema de educação cívica e aspirações nacionais, de Eloywaldo Chagas, egresso da ESG e membro da Comissão Nacional de Moral e Civismo. É importante assinalar que durante a III Reunião Conjunta dos Conselhos de Educação, ocorrida em dezembro de 1966, ao resgatar o histórico do emaranhado legislativo sobre a educação cívica desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 até o decreto 50.023, de 1966, o conselheiro Erasmo de Freitas Nuzzi ressaltou as recomendações do Conselho Federal de Educação, descritas no parecer 136/1964 relatado pelo conselheiro Celso Kelly. Entre as indicações, destacou que “a segunda recomendação do CFE é no sentido de o Ministério da Educação promover edições de bons compêndios de Organização Social e Política de estudos brasileiros em geral e biografias de grandes vultos nacionais”.23 Fato que expressa certa continuidade da disposição de educadores em implantar a educação cívica nas escolas brasileiras antes e depois do golpe de 1964, cujas diretrizes foram sendo substituídas pelos elementos norteadores da doutrina de segurança nacional. Procedimento semelhante foi adotado em relação à Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo (PEMC). A obra foi concebida no âmbito da Campanha Nacional do Material Escolar (CMNE) para atender às diretrizes estabelecidas no decreto que criou a disciplina de OSPB, particularmente 23 Conselho Federal de Educação.Reunião Conjunta dos Conselhos de Educação: quinze anos de intercâmbio e colaboração, Brasília, MEC/DDD, 1980, p. 229-30. 64 RBMA 70
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a necessidade de publicação de compêndios de civismo. Pretendia-se transformar a Pequena Enciclopédia na grande obra de referência em matéria de educação cívica. Coube ao padre jesuíta Fernando Bastos D’Ávila a tarefa de organizá-la. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, o padre Fernando D’Ávila era também um antigo colaborador do IPES, assíduo palestrante da ESG e autodeclarado anticomunista. As marcas dessa convicção podem ser vistas no opúsculo Neocapitalismo, socialismo e solidarismo,24 de 1963, saudado pelo coronel Jarbas Passarinho como verdadeiro baluarte anticomunista. Enquanto a primeira edição da enciclopédia ainda trazia certo vínculo com o contexto de criação da disciplina OSPB, a segunda edição expressa com todas as letras a manobra militar no campo educacional. A começar pela nomeação do general Jarbas Passarinho como ministro da educação (1969 a 1974) e do coronel Moacyr Araújo Lopes para a presidência da Comissão Nacional de Moral e Civismo, órgão também criado pela lei 869/69 e responsável por definir os programas e autorizar a publicação de livros didáticos de moral e cívica, OSPB e EPB através do Setor de Exames dos Livros Didáticos dirigido pelo Almirante Ary dos Santos Rangel, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. A repartição pública responsável pela publicação da PEMC, a Fundação Nacional do Material Escolar (Fename), antiga CMNE, passou a ser controlada por Humberto Grande, que assumiu a direção executiva. Órgãos das forças armadas (Comissão Nacional de Moral e Civismo; Estado-Maior das Forças Armadas / Seção do Serviço Militar; Ministério da Aeronáutica / Serviço de Relações Publicas; Ministério da Marinha / Serviço Documentário; Ministério do Exército / Serviço de Relações Públicas) e militares de alta patente, como o 24 Fernando Bastos de Ávila, Neocapitalismo, socialismo e solidarismo, Rio de Janeiro, Agir, 1963. 70 RBMA 65
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então ministro da educação Jarbas Passarinho, passaram a figurar entre os colaboradores da PEMC. A enciclopédia teve ainda uma terceira edição (1978) já em outro contexto. Chama-se Bilac, o homem cívico o livro do general Moacir Lopes de Araújo publicado em 1968 pela Liga de Defesa Nacional, reeditado pela imprensa nacional anos depois (1974). A obra revela que a perspectiva cívica praticada pelos militares inspirou-se também em uma longa tradição inventada por parcelas significativas da intelectualidade brasileira. Ao ocuparem a estrutura do Estado, filtraram essa tradição, recolhendo dela apenas os elementos compatíveis com a ideologia de segurança nacional. Documentos recentemente revelados têm demonstrado que os órgãos de segurança mantiveram o controle sobre pessoas, movimentos e partidos mesmo após a ditadura, inclusive na esfera educacional.25 Naquele contexto, a luta armada deixava de ocupar lugar central no repertório das organizações políticas e movimentos sociais para dar lugar a outras formas de atuação, entre elas a formação do cidadão em valores democráticos através de processos escolares formais e informais. Caso exemplar é o livro OSPB, introdução à política brasileira.26 de Frei Betto, cuja primeira edição é de 1985. O livro revela uma prática social oriunda de tradições políticas que se condensaram a partir dos anos 1960 e que, a partir do final da década de 1970 e do início dos anos 1980, redefiniram suas linhas de ação, portanto, desde a militância na juventude estudantil católica e participação nas revindicações pela reforma de base, passando pela luta armada até o processo de redemocratização. A opção didática de Frei Betto não passou incólume ante os olhos de dirigentes autoritários, assinalando permanências das forças conservadoras na imprensa e em governos constituídos. Na cidade de São Paulo, o prefeito Jânio Quadros proibiu a circulação do livro nas escolas da rede municipal. 25 As projeções desse aspecto no ensino de história pode ser visto em: Kazumi Munakata, "História que os livros didáticos contam depois que a ditadura militar acabou" em Marcos Cezar Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva São Paulo, Contexto, 2001. 26 Frei Betto, OSPB: introdução à política brasileira, São Paulo, Ática, 1985. 66 RBMA 70
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Jarbas Passarinho, ex-ministro da educação, lançou verdadeiro torpedo contra o livro. Em artigo “OSPB: ‘sem ufanismo’”, publicado no Bragança-Jornal-Diário, periódico de Bragança Paulista, município do interior paulista, o general fez um amplo balanço sobre a disciplina Educação Moral e Cívica, bem como sobre a publicação de OSPB: introdução à política brasileira, nos seguintes termos: O que irritava a esquerda era essencialmente um dos itens das “finalidades” expressadas na lei, que criou a disciplina EMC, e que recomendava o “fortalecimento do espírito” democrático, de modo a preservá-lo das ideologias materialistas e contrárias às aspirações brasileiras e dos interesses nacionais. Aí estavam as causas das apreensões esquerdistas, receosos de que o governo instituísse, segundo a norma dos totalitários, uma cadeira de propaganda ideológica. Especialistas em lavagem cerebral, pensaram que faríamos a mesma coisa, numa área que eles trabalhavam intensamente e que lhes deu os melhores quadros da guerra revolucionária que desencadearam entre 68-78. Agora que estão no governo, em parte, no poder, eles nos ensinam como fazer. A cadeira de Estudos de Problemas Brasileiros serve aos seus propósitos. Acabo de ler notícia que a bibliografia marxista está “enriquecida” com um novo livro. Que certamente será muito recomendado aos alunos. O autor é um irmão leigo, dominicano, famoso pela compatibilização que prega do marxismo com o cristianismo. O que não fizemos, e pelo que fomos acusados, será feito com competência, ao reverso, pelos acusadores de ontem. Ainda se chama o êxito da hipocrisia. Sempre de bons resultados, infelizmente.27
Ao negar a obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica como instrumento ideológico da ditadura e atribuí-la aos seus oponentes, o ex-ministro tornou nítida a tática acionada pelos militares na área educacional. Em relação à educação cívica, portanto, a tática consistiu em inseri-la no contexto do que chamaram de guerra psicossocial contra a oposição. Para isso, primeiro ocuparam os cargos públicos responsáveis por implantar e difundir diretrizes educacionais. Depois se apropriaram de uma situação criada no período pré-golpe – educação cívica como prática educativa pela LDB de 1961 e a disciplina Organização Social e Política do Brasil, criada em 1962 pelo CFE – e impuseram seus interesses. Desse modo, criaram uma farsa de educação para a vida democrática no âmago da ditadura. Apesar de moribundo, mas sob olhar atento dos agentes da repressão, o civismo manteve-se oficialmente no currículo escolar até o início da década de 1990. Somente em 1993 as disciplinas EMC, OSPB e EPB foram oficialmente extintas da educação nacional através da lei 8.663/93. 27 Jarbas Passarinho, OSPB sem ufanismo, em Bragança Jornal Diário, 13 jun. 1986, p. 6. 70 RBMA 67
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Entrevista com
Bira Dantas
B
ira Dantas, como ficou conhecido o quadrinista Ubiratan Libanio Dantas de Araújo, nasceu em São Paulo em 3 de março de 1963. Começou a estagiar com Quadrinhos bem jovem, aos 13 anos, no estúdio de Maurício de Souza. Trabalhou no estúdio de Ely Barbosa, responsável pelo gibi dos Trapalhões no final dos anos 1970, foi assistente do desenhista Eduardo Vetillo aos 17 anos e colaborou para as revistas Pântano, Tralha, Porrada, Megazine e O Pasquim 21. Nos anos 1980, principiou a fazer caricaturas para o boletim diario Sindiluta, do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas. Foi sua entrada para a charge política e também para o engajamento. Tanto, que ele continua a fazer desenho para sindicatos e também para algumas campanhas políticas.
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Imagens gentilmente cedidas pelo artista. Acervo pessoal.
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A seguir, em entrevista concedida em 18 de agosto de 2015, o quadrinista – que já recebeu o Prêmio Angelo Agostini duas vezes (Melhor Quadrinista de 2005 e Mestre dos Quadrinhos Nacionais em 2011) e é membro da Academia Brasileira de HQs (onde recebeu Comenda Cultural de Agata Desmond) – fala sobre seu trabalho durante a ditadura, sua história censurada e o engajamento político.
Os primeiros passos na militância “A influência da família na minha militância é grande. Em 1980, tem a fundação do PT, que seria um partido de massa, democrático e de esquerda. Boa parte da esquerda que estava flutuando em grupos e tendências no MDB entram para o PT. Aí, tem uma formação da esquerda mais ideológica, que lia e discutia, se aprofundava nos temas, e a grande maioria era ligada à Quarta Internacional. Tem o pessoal das igrejas, Pastoral Operária, Pastoral da Juventude, Movimento de luta contra a caristia, movimento de saúde, e também o movimento operário, que não tinha ligação com essa esquerda mais ideológica, mas que tinha ligação com todas as incongruências do sistema capitalista, do sistema fabril, do crescimento de São Paulo, do ABC, e contato com sindicalistas de fora do Brasil. Eu entro nessa história a partir dos meus irmãos, que foram ligados à fundação do PT. Eu continuava desenhando Os Trapalhões, mas já acreditava que o PT era o que tinha de mais avançado no momento na luta política por democracia, inclusive democracia sindical. Nessa época, o sindicato dos metalúrgicos de São Paulo teve uma intervenção: a diretoria foi destituída. Antes de sofrerem essa 70 RBMA 71
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intervenção, eles criaram o fundo de greve e arrecadaram dinheiro inclusive para bancar a vida dos grevistas, que ficariam sem receber salário. Hoje em dia, na maior parte das greves que tem embasamento na lei de negociação, quando você tem razão, o seu salário é garantido, mas naquela época, não. E o fundo de greve foi um instrumento importante para manter essas famílias. Eu fui acompanhando essas coisas, me identifiquei e, em paralelo ao gibi dos Trapalhões, comecei a frequentar as oposições sindicais e passei a fazer charges para a Oposição Metalúrgica SP (MOMSP), onde conheci poesia de todos os matizes do ideário operário de esquerda, dos ditos “igrejeiros” basistas, petistas... aos marxistas e anarquistas. O primeiro cartunista sindical que conheci foi o Éton, do Sindicato dos Bancários, que vinha de um histórico de luta anterior. Ele trabalhou para a Frente Nacional do Trabalho (FNT), foi dos Correios. Demitido numa greve, foi perseguido e preso. Quando voltou, não conseguia mais emprego nos Correios. Ele já era um fã do Henfil, desenhava caricaturas e desenvolveu esse trabalho dele na FNT, no Sindicato dos Bancários e no Sindicato dos Marceneiros. Foi trabalhando com vários sindicatos em São Paulo, com a esquerda e com movimentos da Igreja. Esse cara que fez a ponte entre o meu trabalho dos Trapalhões e o trabalho militante gratuito, militante mesmo. Conheci gente de todas as tendências: desenhei para o jornal Em Tempo (da Democracia Socialista) no comecinho da década de 1980, para o jornal da Convergência Socialista (que hoje é o PSTU), para o jornal da LibeESSA lu (tendência trotskista) e para a Causa ESQUERDA Operária, hoje PCO. Então, essa esquerda FEZ PARTE DA MINHA VIDA, E fez parte da minha vida, e faz ainda.”
FAZ AINDA
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A censura na Ditadura Militar “A censura era feita pelos militares, pelos censores, mas ela era feita também pelas editoras, como a gente viu no Estado de S. Paulo, no Globo, na Folha de S. Paulo – que, na época, era Folha da Manhã. Eles davam a desculpa do censor, e essa desculpa era suficiente para alterar a matéria de um jornalista ou parar uma série de reportagens na primeira ou na segunda matéria. Tinha protesto dos editores que colocavam poema de Camões na capa do jornal, e aí era uma tentativa de mostrar para o leitor que alguma coisa não estava certa, não estava bem. Lembro um pouco antes, na década de 1970, o Médici na televisão, passando a impressão de que o Brasil era um país muito tranquilo, no qual as coisas íam muito bem, era só esperar o bolo crescer. Você assistia às novelas e lia nos jornais: de vez em quando, aparecia uma notícia falando de de vez em quando, terroristas, de pessoas aparecia uma que tinham assaltado notícia falando um banco, pessoas pede terroristas, de rigosas. Mas era tudo pessoas que tinham assaltado um banco, muito velado, porque pessoas perigosas. nessa época o discurMas era tudo muito so era meio subterrâneo, velado ao contrário de quando o golpe militar eclodiu em 1964 e os jornais difundiam o “terror comunista”, a tentativa de “cubanização do Brasil”, retratados como algo terrível e iminente. Fazia-se esse escarcéu todo nas manchetes e nas matérias de capa. Em 1975 ou 1976, isso mudou. Continuava-se a fazer a mesma pregação, mas de uma forma um pouco mais velada. Claro que 74 RBMA 70
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os jornais publicavam, às vezes, as fotos dos procurados, dos militantes de esquerda, que eram de grupos que estavam partindo para luta armada, mas eu não entendia muito aquilo. Na verdade, essa discussão política na casa da minha família foi se dando aos poucos, porque meu pai era do MDB, contra a Arena, não gostava dos ditadores militares. Meus irmãos entendiam mais as coisas do que eu (um garoto que ficava lendo gibis de super-heróis), conversavam e eu via que a conversa entre eles era em outro nível. Meu pai falava da resistência do MDB, meus irmãos Libanio e Clovis e meus primos Milton e Paulo falavam já que tinha uma ala do MDB que era mais porreta, querendo ir à luta mesmo. Eu via isso, mas muito de longe. Foi com o movimento grevista do ABC – eu nunca tinha ouvido falar daquilo, milhares de trabalhadores nas ruas, em passeata, indo de uma fábrica a outra – que comecei a me antenar mais nessa coisa política. Aí, de 1979 a 1982, na fase dos Trapalhões, eu comecei a manter em paralelo com os quadrinhos de entretenimento um trabalho mais militante, com o movimento negro, com o movimento de mulheres, com o movimento de saúde da Zona Leste. As pessoas me chamavam para ajudar aqui e ali como militante, e eu fazia charge, fazia tirinha, fazia quadrinhos; muita coisa baseada em experiência de luta dessas populações.”
Greve de super-heróis “Então, o Vetillo me disse que precisavam de desenhistas no gibi dos Trapalhões, e me indicou pra trabalhar direto no estúdio do Ely Barbosa, lá na avenida Indianápolis. O Ely tinha reformulado o gibi em 1978 – 70 RBMA 77
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até então, ele era feito pela equipe do Edmundo Rodrigues no Rio de Janeiro, muito calcado no programa de TV. O Ely refez os personagens todos, mudou o aspecto da revista. Nessa época, os roteiros caíam no nonsense e na irreverência totais. Apesar de ser só desenhista, criei uma história na época das greves no ABC, ainda sob a ditadura militar. Não tinha mais aquela censura forte, pelo menos eu não sentia, mesmo na imprensa sindical. Era uma história com um dos quadros da TV, a Legião dos Super-heróis. Eu resolvi fazer essa Legião dos Super-heróis discutir o movimento de greve, os direitos dos trabalhadores e chamei meu amigo Orlando Costa para fazer o roteiro. Contei a ideia para ele, que era basicamente assim: os super-heróis brigando em uma assembleia porque queriam receber salário – eles não tinham salários, porque super-herói não é considerado profissão –, e aí alguns deles, como o Homem Aranha e o Superman (Didi), estavam ali reclamando, enquanto o Batman e o Homem de Ferro, ricaços, falavam que isso era bobagem, era correr atrás de migalhas. O Zacarias, que era o Capitão América, dizia que ‘você está falando isso porque você é um milionário, você não precisa de nada’. Aí começava uma briga e aparecia um super-herói novo, o Homem-Lula, que era o Lula – na época, ainda um sindicalista. O Homem-Lula chegava e falava ‘companheiros vocês estão brigando aí por quê?, a gente aqui está tudo do mesmo lado. Problema é o seguinte: salário realmente todo mundo tem que ter, 78 RBMA 70
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se você trabalha, você tem que receber por isso, então, se não estão querendo fazer valer os direitos dos trabalhadores daqui, a gente faz uma greve e depois da greve a gente negocia e garante o que os trabalhadores estão querendo. Daí a gente vai até o fim’. Eles entraram em greve e os supervilões de todo mundo aproveitaram essa greve para roubar os grandes monumentos do mundo. Roubam o Maracanã, a Torre Eiffel, as pirâmides do Egito, roubam o Big Ben e causaram aquele terror. Nisso, a ONU oferece uma recompensa para quem recuperasse todos aqueles monumentos da humanidade e os super-heróis furam a greve para correr atrás do prêmio. Eles batem em todos os bandidos, recuperam os monumentos e os devolvem para cada um dos seus países. Só que quando terminam de fazer isso, chega a polícia e leva todo mundo preso, porque estavam em greve e a greve foi considerada ilegal. No último quadrinho, estão todos eles atrás das grades (o Didi, o Dedé, que é Thor, o Zacarias e o Mussum, que é a Nega Maravilha) e o Didi diz: ‘pois é, vida de super-herói brasileiro é assim, sempre atrás dos quadrinhos’, e os quadrinhos são as grades da cadeia.”
História censurada “Essa história foi pro Rio de Janeiro, dentro do gibi, como o Ely fazia todo mês. Ele montava o gibi, fazia um boneco e mandava as páginas originais, que iam ser reduzidas para fazer o fotolito e imprimir nas gráficas da Bloch. Um mês depois o Ely me chama e fala: ‘Bira, tua história deu problema. Devolveram e ela não vai ser publicada, porque está falando em greve’. 70 RBMA 79
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Respondi ‘qual o problema, estão ocorrendo várias greves, é um direito que todo mundo tem’, no que ele disse ‘não, você não está entendendo, os caras da Bloch não querem publicar’. Quer dizer, não foram nem os militares, mas os caras da Bloch que já ficaram com medo de tocar no assunto e disseram que ia ter problema. Ou seja, em 1979/1980, o Pasquim ainda estava sendo publicado, o Henfil, o Ziraldo, o Fortuna não estavam sendo presos como tinham sido antes, mas a gente ainda tinha o regime militar e o que deu para sacar é que a Bloch não quis mexer com os militares. Aí devolveram a história e, no que devolveram, o Barbosa me chamou e falou: ‘está aqui, o que que vocês vão fazer, podem publicar se tirarem a palavra greve e colocarem férias, descanso’. Eu repliquei dizendo que ia mudar o sentido e que eu não podia decidir “ sozinho, devia falar com o Orlando. Mas QUANDO se a gente decidisse não publicar, teENTREI NO MOVIMENTO ríamos que pagar pelo trabalho de SINDICAL, TUDO MUDOU. copydesk, arte final, letreiro, além EU PERCEBI QUE PRECISAVA de devolver o que recebemos. O OrME INFORMAR PARA PRODUZIR CHARGES; SEM INFORMAÇÃO, lando repondeu ‘Bira, nem a pau. NÃO CONSEGUIRIA Vamos mudar esse negócio, porque, PRODUZIR primeiro, pra mim não importa se vai tirar a palavra greve ou não, isso é ideia sua, você que é o comunista aqui da parada, você que é o petista, você que faz questão disso aí. Então, por mim, tira e publica. E publicamos com a mudança.”
O movimento sindical “Quando entrei no movimento sindical, tudo mudou. Eu percebi que precisava me informar para produzir charges; sem informação, não conseguiria produzir. Dois caras que me influenciaram muito foram o Joaquim Carvalho (artista gráfico) e o Valdeci Verdelho (jornalista). Então, alguém me falava que aconteceu alguma coisa na 80 RBMA 70
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previdência, ou no INPS – que é o INSS de hoje –, que o Ministério da Fazenda tinha tomado uma decisão, que o Delfim Neto tinha feito um acordo com o FMI, e eu tinha de entender o que era tudo isso, eu tinha de ler os artigos de economia e política externa. Na época, 1982, já havia as brigas no Oriente Médio, já tinha as tentativas de invasão do Afeganistão, o Iraque já em ebulição, os americanos enviando dinheiro por baixo do pano, armamento para criar briga entre os países. Tudo isso a Esquerda e o jornal Versus – soube recentemente que Toninho Mendes fez parte desse jornal, cuidava da produção gráfica do conteúdo, contou que foi um dos primeiros trabalhos dele. No Versus já tinha quadrinhos e essa leitura foi essencial para eu desenvolver uma visão mais humanista das coisas. Tem muita ERA ALGO PARA MOSTRAR gente que olha para o traO QUE TEM A VER O TRABALHADOR DA FÁBRICA balho dos sindicatos como COM O QUE ESTÁ ACONTECENDO algo meramente reinvindiNO ORIENTE MÉDIO, COM A catório, aquela campanha INVASÃO DE EL SALVADOR, COM A salarial, mas o trabalho LUTA NA NICARÁGUA OU COM O dos sindicatos é bem mais ASSASSINATO DE SANTO abrangente do que isso. No DIAS NA GREVE DOS METALÚRGICOS boletim em que trabalhei, distribuído para todas empresas químicas e farmacêuticas de São Paulo, a gente fazia um conteúdo diário, nos moldes da Folha dos Bancários e da Tribuna dos Metalúrgicos do ABC. A capa sempre trazia notícias gerais e o verso notícias das indústrias. A ideia era levar para os operários essa visão internacionalista das coisas. Era algo para mostrar o que tem a ver o trabalhador da fábrica com o que está acontecendo no Oriente Médio, com a invasão de El Salvador, com a luta na Nicarágua ou com o assassinato de Santo Dias na greve dos metalúrgicos.” 70 RBMA 83
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Chargista, mas não operário “O sindicalista Vitor Gianotti, com quem trabalhei nas oposições sindicais, brigava porque eu era um chargista, e não era um operário, nunca tinha entrado numa fábrica, não sabia como era um torno. O Éton sabia, ele era aquele desenhista meticuloso, desenhava tudo com detalhes. Eu me inspirava muito nos desenhos da Laerte também, que desenhava torno mecânico, desenhava engrenagem. Então, para mim, os caras que conheciam as metalúrgicas eram a Laerte e o Éton; eu era de porta de fábrica, ia fazer panfletagem, era militante mesmo. Esse trabalho na oposição metalúrgica foi importante primeiro porque o Vito levantou a discussão que muitas vezes o
EU FAZIA AQUELE TRABALHADOR DESMILINGUIDO E O PATRÃO GORDO PISANDO NO PESCOÇO DO CARA, E ELE FALAVA “TUDO BEM, OS CARAS FAZEM TUDO ISSO, MAS A GENTE NÃO ACEITA TUDO ASSIM TAMBÉM, LARGADO LÁ NO CHÃO” jornalista que estava lá militando, ajudando a escrever o jornal, tinha uma visão muito esteriotipada das coisas e, na maior parte das vezes, quem escrevia melhor a matéria era o operário. Só que o operário não tinha o conhecimento técnico, de como escrever, como concatenar ideias, como começar uma matéria, como fazer uma manchete. Esse tipo de coisa o Vito Gianotti tinha, porque era um cara que lia muito e lia os outros jornais sindicais, sabia o que o cara dentro da fábrica lia, o que o peão não lia. Então, ele falava ‘esse jornal está cheio de texto, cheio de abobrinha, corta metade dele aqui, vamos jogar uma charge na capa...’. Outra coisa que ele pegava no meu pé é que eu fazia muita charge mostrando o trabalhador sendo esmagado pelo patrão, pelo governo, pelo ministro da Fazenda, e ele fala84 RBMA 70
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va, ‘Bira, o trabalhador não é esse pobre coitado que você desenha, o trabalhador é forte’. Eu fazia aquele trabalhador desmilinguido e o patrão gordo pisando no pescoço do cara, e ele falava ‘tudo bem, os caras fazem tudo isso, mas a gente não aceita tudo assim também, largado lá no chão. Você tem de fazer o trabalhador reagindo, mostrar que o trabalhador é grande, quando ele está junto ele é grande’. Então, fui sacando muita coisa desse jornalismo operário com o Vito Gianotti, foi importantíssimo, e não só para mim. A homenagem a ele que aconteceu no sindicato dos químicos lotou o auditório, as pessoas falaram muito. Então, você vê que foi uma pessoa importante, vibrante... Ele tinha mais consistência política, vivência, e eu era um cara que tinha saído dos gibis dos Trapalhões. Eu acho até que saí do EU FALO PARA PESSOAS gibi por causa disso, senti que QUE SOU UMA PESSOA a minha vontade ia ser de semBEM TRANSPARENTE, NÃO FAÇO POLITICAGEM PARA pre tentar politizar a históCONSEGUIR ESPAÇO. NÃO ria dos quadrinhos. Tanto que GOSTARIA DE TRABALHAR uma das últimas que eu fiz o NA VEJA, MESMO QUE roteiro foi uma adaptação da ESTIVESSE DESEMPREGADO Revolução dos bichos, do Orwell.
Revista Front “A minha experiência com a revista Front já foi sem a Ditadura Militar, no final dos anos 1980 e começo dos 1990. Acho que é a primeira revista em quadrinhos online do Brasil. A ideia era criar uma fronteira de luta, fazer quadrinhos que ajudassem as pessoas a pensar e reavaliar as coisas, suas relações com o mundo. O Kipper é um cara que tem um viés político-filosófico muito grande, um cara que lê muito, é muito inteligente, e quando comecei a participar da Front as hitórias que publiquei lá falavam muito desse sonho de 70 RBMA 85
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poder dos grandes imperialistas. Também fiz uma história contra esse belicismo dos Estados Unidos. Então, a minha tendência tem sido cair para esse viés de fazer histórias em quadrinhos de resistência. É claro que agora a gente não tem a ditadura para cair em cima, não tem essa luta que a gente tinha antes, a vida está mais fácil. Realmente, hoje, as pessoas conseguem sair às ruas, pedir um golpe militar e não acontecer nada. Inclusive, é uma coisa interessante. Lembro de em muita passeata da esquerda ver gente com botom de outro partido passar, falar, xingar alguma coisa, e nada acontecer. Fazia parte da luta democrática você gritar uma coisa, o outro gritar outra e tudo bem. Hoje em dia você não pode gritar. Você tem de ouvir o que o outro está falando e ficar quieto. Na internet é assim mesmo entre amigos; quando você fala ‘eu não gosto desse tipo de postura, eu defendo outra coisa’, você é xingado, toma um block, está deletado. Isso vai formando uma grande corrente de pensamento único.”
Sobre trabalhar em outros veículos “Eu falo para pessoas que sou uma pessoa bem transparente, não faço politicagem para conseguir espaço. Não gostaria de trabalhar na Veja, mesmo que estivesse desempregado. Gosto muito de trabalhar com sindicato, aprendi a fazer charge ali, descobri que a linguagem que sei fazer combina com a linguagem que eles precisam. Muita gente pergunta se eu não quero ir para um jornal, ir para a Folha. Não. E não vejo problema de ficar velhinho desenhando para sindicato, principalmente porque a linha política vai ao encontro da minha. Mas a minha vontade é, no futuro, ir para a praia e ficar pintando tela, aquarela, tomando uma cerveja com peixe frito, sem me preocupar com a vida. E ver os jovens conquistando o que a gente batalhou tanto!”
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depoimento
MARIA BONOMI 88_103_Bonomi.indd 88
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Fotografias Gabriela Lissa Sakajairi
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aria Bonomi nasceu, em 1935, em aldeia que emoldura o Lago Maggiore, próxima a Milão, Meina. Cidadezinha serena, foi convulsionada durante a II Grande Guerra pelas tropas alemãs, que fizeram da casa da família Bonomi Quartel General. Conta a artista que seu pai, oficial italiano, após receber autorização do alto-comando austríaco para levar sua família a Suíça, consternado com os apelos familiares para que não retornasse à Itália, decidiu permanecer distante da batalha. Sua deserção, entretanto, o obrigou a enfrentar uma luta ainda mais pungente. Durante dois anos, até chegarem ao Brasil, em 1946, relata a artista que sua família viveu uma epopeia digna de um enredo de David Lynch, capaz inclusive de colocá-la em contato com o poeta Raul Bopp, então embaixador brasileiro na Suíça, para quem ilustrou, descompromissadamente, Cobra Norato. Esse convívio com arte e artistas, desde a infância, levaram Maria Bonomi a se dedicar primeiramente à pintura. Na capital paulista, estudou com Yolanda Mohalyi, por sugestão de Lasar Segall. Aprendeu encáustica com Karl Plattner e, em 1955, teve seu primeiro contato com a madeira, de fio e de topo, ao se tornar aluna de Livio Abramo.
Desse encontro nasceu uma intensa relação da artista com a gravura, cujas paixão e dedicação a firmaram como um dos mais representativos nomes da arte brasileira. Sua arte se manifesta em vitalidade e modernidade. Para Bonomi, a gravura nasce de um “pensamento gráfico” no qual o sulco é o protagonista, independente do suporte. Do papel ao poliéster, do bronze ao concreto, o que importa para Maria Bonomi é alcançar grandes plateias. Esse ímpeto pela defesa e difusão da arte no Brasil orientou não só a direção artística da gravadora, como também sua postura política. Tanto assim que, já em 1960, em parceria com Livio Abramo, funda ateliê de artes gráficas em São Paulo, o Estúdio Gravura. Centro artístico atuante, mas de vida breve em decorrência da perseguição imposta pelo regime militar brasileiro. Foram justamente esses anos de chumbo que orientaram nossa conversa por mais de três horas com Maria Bonomi. Além do Estúdio Gravura, a artista falou de sua prisão, em 1974, a propósito de uma palestra sobre arte chinesa que proferia junto de Alberto Beuttenmüller no MAM de São Paulo, e das consequências dessas arbitrariedades na sua vida pessoal e profissional. 70 RBMA 91
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O Estúdio Gravura “Eu dividia um ateliê com Lívio Abramo, como sua assistente, nos anos 1960/70, o Estúdio Gravura, na alameda Glete 691. Ali, dávamos aulas de artes gráficas, além de discutir todas as questões contemporâneas... Uma bela manhã, o local apareceu vandalizado, destruído. Fomos acusados de ser subversivos e o ateliê foi encarado como aparelho1 onde ocorriam reuniões clandestinas. A perseguição era uma coisa bem montada, sistemática. Eles mexiam com as pessoas e deviam acompanhar quem ia ao ateliê. Ninguém lá estava andando com arma, mas a gente tinha cara de revolucionário. Mas havia um trabalho subterrâneo que a gente fazia e eles tinham notícia disso. O fato de gravar, imprimir gravura, era suspeito. A gente imprimiu muito cartaz de espetáculos, por exemplo, e isso por si só já era considerado subversivo. Confiscaram umas gravuras do Lívio sobre a revolução espanhola de 1934, alegando que eram comunistas. Quer dizer, a gente imprimia as coisas, eu e o Lívio Abramo, um trotskista doido. A gente imprimiu passaporte... ainda tenho o prelo aqui. Então, eles suspeitavam da gente. Foram lá, quebraram tudo e disseram que era um aparelho.”
“Você é M aria Bonomi, a comunista?” “Foi uma vivência muito difícil e pesada a partir de 1964. O divisor de águas foi tão grande que não mandavam a gente mais para exposição nenhuma. Fui excluída de uma infinidade de oportunidades públicas artísticas e sociais. E tudo isso culminou, para mim, com a prisão em 1974. Quando eu cheguei da viagem à China2 – naquela época, não se podia ir para China, mas foi um grupo de brasileiros e
1 Nome utilizado pela polícia militar para designar um edifício usado como refúgio por um grupo de ativistas políticos contrários ao regime. Esse local servia, geralmente, para a realização de reuniões, guarda de material de propaganda, dinheiro, armas etc. 2 No decênio de 1970, a gravadora dedicou-se a uma série de gravuras realizadas a partir de viagens a Amazônia, China e Japão. Das anotações que fez a partir das pesquisas realizadas nesses locais, Bonomi desenvolveu uma série de xilogravuras que resultaram na série Transamazônica e China. Nesta série, a artista exorbita a dimensão comum da gravura, desenvolvendo-a à escala da natureza, monumental. 92 RBMA 70
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eu fui inserida nele3 –, fui dar uma palestra no Museu de Arte Moderna, lá no Ibirapuera. Estava lá o Alberto Beuttenmüller, jornalista, acompanhando. Eu tinha visto uns rapazes jovens, fortes, sentados na plateia e lembro de ter pensado ‘que bacana isso’, mas... Quando acabou a palestra, chegou uma Veraneio, saíram uns caras e perguntaram ‘você é Maria Bonomi, a comunista?’. Apareceu um baixotinho, era o Raul Careca, um desses cabritos que saíam atrás de gente, e colocou a arma na minha cabeça. Me pegaram, me amarraram, me amordaçaram, me vendaram, me jogaram no chão do carro e saímos andando. E eu vi que também pegaram o Alberto. E teve uma frase sensacional neste momento, que eu gritei para o rapaz do museu – a gente ia jantar, depois da palestra, na casa do presidente do museu na Chácara Flora, um negócio todo chique –, gritei: ‘avisa o presidente!’. Eles devem ter ouvido isso e pensado em outro presidente. Mas eu me referia ao Antônio Bento, presidente do Museu, que estava oferecendo um jantar para esse grupo que tinha ido à China.”
“Se for presa, não corre” “O que me ajudou neste momento foi os conhecimentos que eu tinha. Por exemplo, Niomar Bittencourt Sodré, amiga minha do Rio, ela já tinha me dito: ‘Maria, você vai ser presa. Se for, não corre’. Essa mensagem veio na minha cabeça na hora. Bom, eles me amarraram, me colocaram dentro do carro e rodaram umas duas horas pela cidade de São Paulo. O Alberto, eu não sabia onde é que estava. Eles abriram o carro num lugar que era perto da av. João Dias e lá adiante havia caminhões com soldados, a turma a paisana. O Alberto estava em outro carro e também saiu. A vontade que você tem depois de ficar duas horas presa num carro é de sair correndo, não é? Mas me controlei e fiquei encostada no carro. Ficamos um tempo lá, os homens foram fumar, ficaram conversando... depois, nos colocaram de novo nos carros e, quando a gente saiu de novo, estávamos entrando na rua Tutoia. Eu moro lá do lado hoje em dia, a duzentos metros de onde fiquei presa. Que ironia da vida, não é? Quando entrou na rua Tutoia, me senti aliviada. E eu queria ver militar e não via militar, eles não mostravam a patente. Toda vez que me levavam para a sala de interrogação eu falava ‘quero ver 3 Em 29 de junho de 2014, Maria Bonomi escreveu um depoimento sobre sua viagem a Xangai em 1974 (“Arquivo aberto: a guia de Xangai”, Folha de S. Paulo, 29 jun. 2014, Ilustríssima). 70 RBMA 93
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alguém uniformizado’, eles comentavam ‘você sabe onde está?’, ao que eu respondia ‘sim, aqui não é militar? Eu confio nos militares’.”
“Não pensem que me assustam, eu já fui presa pela G estapo” “Aí, começou aquela coisa, jogaram na cela, aquela gritaria. Pegaram todos os meus caderninhos, as coisas que estavam na minha bolsa e falaram: ‘você só se dá com bicha e com comunista, como esse Farkas’. Foi mais ou menos dois dias antes do Herzog. Foi todo mundo. Fui eu, foi Lina Bardi, foi Antunes Filho. Tudo separado, em dias separados, mas mais ou menos no mesmo momento. Pegaram todos os intelectuais da época que estavam ativos. A Lina também tinha sido presa. Você conhece a história da prisão dela? É fantástica. Quando se entrava na Tutoia, tinha uma espécie de passarela por onde você passava amarrado e encapuzado, só te desencapuzavam lá dentro. Nesse caminho, a Lina teria dito ‘não pensem que me assustam, eu já fui presa pela Gestapo’.”
“Eu era inocente útil” “Eles levaram a gente para uma salinha, colocavam a luz nos nossos olhos... Eu estava apavorada, porque eu não sabia de nada, eu não tinha informações. Quem fazia o que eu fazia não sabia de nada. Quer dizer, eu era amiga da Dulce Maia e sei que ela estava envolvida em toda aquela história; eu fiz um trabalho, Balada do Terror, dedicado a ela. Eu era inocente útil. Aí começou a interrogação, aquele vai e volta: ‘conta pra gente não sei o quê, conta não sei que mais’. E batendo na cara, coisas assim. Numa hora lá, chegou um cara e puxou meu cabelo, que na época já era branco, e falou ‘vamos ver se o outro cabelo dela também é branco’. Olha o requinte de crueldade. Um deles abriu minha carteira e viu uma foto do meu pai, que era militar italiano, e perguntou ‘quem é esse militar aqui?’; respondi ‘meu pai’. Remexeram mais nas minhas coisas, quer dizer eles estavam procurando alguma coisa. O nosso trabalho era só dar suporte, e
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tudo era muito bem planejado de forma que não sabíamos nome, nada. E eles também estavam perdidos, por que me pegaram?”
“Dormi com a cabeça numa escarradeira” “Quando eles me deixaram de novo na cela, estava tão exausta que dormi com a cabeça numa escarradeira. Isso também me salvou, porque ninguém dorme numa situação dessa. A coisa em si não foi tão terrível, foi muito humilhante, brochante, mas a gente sabia de coisas mais terríveis. Durante esse tempo que fiquei presa, eu ouvi gritos. Dizem que quem me soltou foi o Mino Carta. Ele tinha contato com Genebra e veio alguma coisa de lá, um comunicado de que ficaria mal me manter presa. Quarenta e oito horas depois me disseram ‘pode ir embora’.”
O M averick amarelo “Fui embora e comecei a ser seguida durante um mês e meio por um Maverick amarelo com duas pessoas lá dentro. Uma amiga minha que trabalhava no Itamaraty
chegou a me aconselhar a ir ao Cenimar [Centro de Informação da Marinha] que ficava na Nove de Julho, quase esquina com a São Gabriel. Eles achavam, na época, que a Marinha estava acima do bem e do mal. Eu fui lá e pedi para falar com o almirante. Não puderam me atender. Voltei três vezes e só na terceira ele me recebeu. Eu comentei o que estava acontecendo, que estava sendo seguida e queria saber o porquê. Se eu não fui julgada, se eles alegaram que só me pegaram pois eu havia sido chamada e não tinha me apresentado (o que era mentira), por que ainda estavam me seguindo? Ele ficou de me dar uma resposta no dia seguinte. No dia seguinte, ele me disse que eu estava livre, que não tinha nada contra mim, mas não tinha direitos. A cidadania, só vim a receber pelo Fernando Henrique, que fez um processo de devolução de cidadania. Fizeram uma ação coletiva, entrei nela, porque as pessoas tinham sido prejudicadas. Não fui ferida, nem morta, mas moralmente... essa advogada é muito
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Imagens gentilmente cedidas pela artista. Acervo Pessoal
Balada do Terror, E/A 1970 xilografia s/ papel japonĂŞs 223x97,5 cm Acervo da artista 96 RBMA 70
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esperta, chama-se Paula Sapir Febrot. A ação alegava que houve ‘lucro cessante’.”
Delação chinesa “Tem algo mais sobre a prisão que eu ainda não te falei. Quando eles me interrogaram, estavam com uma pasta que continha uma conversa que tive na China, a portas fechadas, com uma mulher. Nessa conversa, eu mencionava que o Brasil estava em ditadura, coisa e tal. E ela me vendeu, claro, uma burguesa a mais ou a menos... ela me vendeu... Eles mostraram essa pasta com o registro da conversa e falaram: ‘olha isso aqui, você vai pegar trinta anos de cadeia’. Mas você vê, oficialmente, o Brasil tinha contato com a China e uma chinesa registrou uma conversa em que o regime foi denunciado e comunicou o governo. Daí você tira suas próprias conclusões. Quando ele me mostrou isso fiquei gelada, eu tinha dito que havia perseguições, que as pessoas estavam sendo torturadas, porque eu estava na China! Em pleno regime de Mao Tsé-Tung. No interrogatório, tentei desconversar, disse que a mulher estava louca, mas, no fim, eles acabaram me soltando. Soltaram também a Lina, soltaram todo mundo.”
Consequências “Na época em que fui presa, meu filho ainda morava comigo aqui no Brasil. A Renina [Katz], quando ficou sabendo da prisão, foi até minha casa e começou a queimar meus livros e tudo o que achou que pudesse ser incriminatório. Meu filho, vendo isso, ficou traumatizado. Sumiu o pai, eu sumi. Ele, sem saber de nada, vê a tia Renina queimando tudo... ele ficou horrorizado. Bem, ele mora fora do Brasil até hoje.”
“Depois que você era preso, ficava mal visto, taxado. A minha antiga clientela no ateliê a na molduraria mudou completamente. Eles sabem que há uma ditadura, sabem que é injusto, mas você fica suspeita. O raciocínio é de que há um poder maior que sabe que você é uma contaminada, que é perigosa. Agora, muitos artistas se deram bem com a ditadura, ganharam exposição no exterior, bolsas etc. Foram aqueles que não tinham opinião, que se mantiveram neutros, não fizeram nada de crítico. Para esses artistas, a situação foi providencial. Eu não vou fazer 'delação premiada', mas tive colegas que começaram a ganhar exposição no exterior, vendiam pra burro. Aliás, estão até hoje bem. Foi um divisor de águas. Quem foi preso, foi para a turma dos malditos, e os outros...”
Os apoiadores “Mas teve gente que quis me apoiar. Como no caso do painel do hotel Maksoud Plaza, que fiz em 1978. E também me chamaram pra fazer a Igreja da Cruz Torta, em 1974. O padre da Cruz Torta era ligado a dom Paulo Evaristo Arns. Tem uma história engraçada sobre isso. Foi um grupo de mulheres visitar dom Paulo Evaristo e, quando souberam que eu faria o painel, fizeram um abaixo-assinado dizendo que eu não podia fazê-lo porque eu era comunista, divorciada e lésbica. Dom Paulo respondeu: ‘mas é uma ótima artista’. Ele era ligadíssimo com o padre Ilson Frossard, da igreja. A Igreja da Cruz Torta é aonde ia todo mundo, saiam da tortura e iam direto pra lá. Tinha os apoiadores e tinha os inimigos. Então, aquele esqueminha de galeria, exposições no exterior, isso morreu. Mas, em compensação, surgiram os 70 RBMA 97
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painéis. Engraçado que eles chamavam exatamente aqueles que iam contra o governo.”
Carreira no exterior “Eu já tinha um nome internacional. É curioso ver isso, em 1978, já estava fora das galeiras, mas, ao mesmo tempo, ganhei a Europa graças a pessoas que sabiam o que estava rolando no Brasil. Não quero dizer que fosse mercado para mim, em termos financeiros, mas fiz meu nome. Então, sabe o que eu fiz? Fui fazer toda a minha carreira no leste europeu. Fui para a exposição de Liubliana, na antiga Iugoslávia, para Praga, Berlin leste, esses lugares assim, levando minhas gravuras debaixo do braço.”
entregar o documento ao então presidente Castelo Branco. Bonomi: Era uma carta pedindo a soltura do Mário Schemberg, do Fernando Henrique e de alguém mais. Mayra: O papel mesmo foi por causa do Mário Schenberg, mas acabou citando outras pessoas que estavam presas inadequadamente, que eram: Fernando Henrique Cardoso e Cruz Costa (um filósofo que pouca gente conhece, mas que foi
[chega M ayra L audanna, professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, estudiosa e amiga de M aria Bonomi, que sugere de falarmos sobre a crítica da artista ao regime através de sua arte]
Bonomi: Na VIII Bienal, em 1965, recebi um prêmio das mãos do Castelo Branco. Com uma mão peguei o prêmio, com outra entreguei um documento... Mayra: Na época da Bienal, tinha sido preso o Mário Schemberg. Então, os artistas da Bienal fizeram uma campanha, um abaixo-assinado em repúdio a essa prisão para que a Maria pudesse
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de importância capital). Quatro pessoas eram citadas, mas o papel era para Mário Schemberg, porque ele, além de físico, era crítico de arte.
Gravura como ação política Mayra: Então, a Bonomi teve essas ações políticas até meio suicidas. Eu até brinco que era muito comum se realizar manifestações artísticas críticas ao regime fora do país, mas aqui no Brasil, com o AI5, ficou
Situação II, E/A 1963 Xilografia s/ papel japonês 73x61 cm LP
muito difícil. Mas a Maria fazia. Não só ela, é claro. Outros também faziam. Ela falava pela liberdade de imprensa, pela educação. Era algo, por exemplo, que o Houaiss também fazia. Era um grupo que lutava. Bonomi: Muito articulado. Até a gravura da campanha das Diretas Já a gente fez, meio às pressas. Foi feita em duas horas. Mayra: Então, quando ela podia, ela fazia gravura denunciando. Por exemplo, a série Situação.
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Liberdade Condicional, 10/10 1965 xilografia s/ papel japonês 116 x 98 cm Acervo da Artista
Bonomi: Mas aí é uma gravura que a gente não tem alegria de gravar. Como eu posso explicar...? Porque gravar é dançar dentro da imagem, com a matéria. Mas quando a temática é essa, a gravura é surda, cega, é só aquele emblema, aquele carimbão, aquela coisa... E nesse contexto, a Liberdade Condicional ganha prêmio na Bienal! A Liberdade é de 1965, ela é a imagem do que estava acontecendo, tapou, deu um X, fechou. É engraçado que, até hoje, você passa ali na rua Tutoia e no lugar eles fizeram um condomínio de militares. Lá tem umas estruturas assim de ferro no chão que parece a imagem da gravura. Mayra: Tem a Águia também. A Águia é muito importante, porque ela é uma espécie de X, mas ela significa uma crítica ao apoio dos Estados Unidos ao regime militar no
Brasil na época, que era contrário ao regime, evidentemente, da Rússia. Você distingue a imagem de uma águia e as cores dos Estados Unidos. E tem uma cena engraçada da Águia, né, Maria, conta pra elas. Bonomi: Essa gravura foi comprada por um militar, que a levou para o quartel e pendurou atrás dele. As pessoas me xingaram “Maria, você vendeu sua gravura para um militar!”. Eu não sabia, quem vendeu foi a galeria. Outra gravura importante é a Balada do Terror, que é de 1970 e também virou um símbolo. Aconteceu aquela história com a Dulce Maia. Ela foi presa, foi torturada e me contou a experiência. A tortura dela é a seguinte: colocaram-na sentada numa lata com um rato dentro, colocaram um ferro em brasa embaixo da lata e o rato subiu nela. E ela
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gritava e cantava para espantar o medo e a dor. Por isso “Balada do Terror”. Então você tem o vermelho, que é o grito, e linhas que representam a expansões da dor, mas você vê que ela não é gravada, prazeirosa... O gravador, quando grava, coloca um ritmo na gravura, como uma dança, você coloca um ritmo na mão, e aqui é diferente. A gravura para as Diretas Já é de 1985, pra campanha, fiz em duas horas, numa madeira bem molinha, foi feita uma tiragem grande... Agora a gente vê tudo isso em outro contexto, não é.
A irracionalidade da tortura Entrevistadora: Pelo o que eu sinto dos relatos, a aparente irracionalidade do ato
é, em si, uma tortura, ela é proposital. Mayra: É complicado, você nunca sabe muito bem quem é quem. Bonomi: De que lado vem o tiro. Como eu dizia, a gente ajudava financeiramente, guardava coisas, mas não sabíamos de nada. Eu acho que o pai do Rubens Paiva passou uma noite na casa. Porque vinha, às vezes, umas pessoas; a gente tinha um quarto meio que preparado e a pessoa dormia lá. A gente também guardava coisas, as pessoas passavam por lá, deixavam pacotes (que a gente não abria, não sabia o que tinha dentro) para outras pessoas virem retirar. Ninguém ia desconfiar da gente.
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Mayra: Mas o regime tinha umas atitudes absurdas. O Lívio tem no DOPs uma gravura de 1934 sobre a revolução espanhola naquelas fichas. Quer dizer, não tem alhos a ver com bugalhos. Era muito à toa. Por exemplo, encapuzar uma pessoa que está dando uma palestra. Não faz sentido.
R epressão
versus criatividade
Entrevistadora: Uma coisa que tenho perguntado para as pessoas envolvidas com arte é se elas concordam com uma ideia meio difundida de que a repressão do regime fez aflorar certa criatividade artística, isso é verdade? E se não, vocês sentem que há um gap geracional, que as novas gerações tiveram uma experiência um pouco empobrecida, porque foram privadas da convivência com alguns mestres? Bonomi: Existiram as exceções. Havia um Brasil ufanista. Havia artistas que eram enviados a mostras coletivas em Paris. Dá pra pesquisar quem são os artistas que vão
participar desses eventos naquele momento. Eles querem manter a arte florida. Não era a gente, muito menos a gravura, apesar de ter umas pessoas no Itamaraty que davam uma força. Teve gente que se saiu muito bem obrigada. Para mim, não foi. Entrevistadora: Mas é possível criar uma arte que seja relevante coadunada com um regime? Você não acaba por perder a liberdade e, portanto, a possibilidade de questionamentos e de uma arte mais transcendente? Bonomi: Aí é que está. Eu fiz um filminho com o Farkas chamado Detritos. Eles me deram a sala especial da Bienal, porque eu havia sido premiada no ano anterior. Recusei a sala especial, recusei participar, por razões óbvias (eles tentavam te seduzir o tempo todo). Mas resolvi apresentar o filme Detritos. O filme é um buraco na parede de onde sai feijão, feijão, feijão, água, água, água; é um vômito. Quem quisesse ver, entenderia. A gente tinha de trabalhar em cima desse tipo de metáfora.
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Mayra: Mas a obra da Maria, como é sígnica, dá algumas leituras que as pessoas podem não perceber, como o caso da Águia, que foi comprada por um militar. Então, é um trabalho, nesse sentido, bom. E, no caso dela, é o dia a dia, uma notícia de jornal, por exemplo, que pode virar gravura, entende? Porque essa linguagem simples, direta, é a que ela quer. Sendo assim, o dia a dia, os acontecimentos, ela coloca lá. Mas, por exemplo, num outro artista, que trabalhe de uma outra forma, a repressão pode ser o momento de ele nunca mais criar. Eu acho que todo o regime... existe esse mito, das saídas etc. Eu, como estudei o fascismo, na verdade o nazismo, mais do que o fascismo... minha cara, te digo, repressão não dá. Não dá, é cortar a mão das pessoas. Na década de 1960, um artista menos metafórico, mais direto, não vai conseguir, mas no caso de uma gravura como a da Maria, o simbólico possibilita mais, é um simbólico criativo, não um simbólico prático. Mesmo assim,
é muito difícil você não achar que ela não tenha se abalado com o regime, mesmo sendo uma gravura simbólica. É impossível. Achar que a opressão alimenta a criatividade? Não mesmo. A única criatividade que teve no nazismo foi o Volkswagen, não é? Claro que tem essas experiências malucas que acontecem, mas é depois. Agora, no ato, é muito difícil. Como é que você vai fazer? Você vai denunciar e como é que vai ser publicizado? Não tem como.
A gente trocou o mercado pela verdade “A gente perdeu um pouco o trem da história, não é? Porque aqueles que tinham sobrevivido naquele pedaço permanecem até hoje. Agora, aqueles que foram um pouco isolados, até hoje continuam isolados, mas são considerados os verdadeiros, os que trabalharam melhor. Quer dizer, a gente trocou o mercado pela verdade.”
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Depoimento
Walderez de Barros Walderez de Barros (Dilma) em cena de Abajur Lilรกs - 1980 Foto: Ruth Toledo
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Nascida
em Ribeirão Preto, estado de São Paulo, Walderez Mathias Martins de Barros – conhecida apenas como Walderez de Barros – iniciou sua carreira quando ainda era estudante de filosofia na Universidade de São Paulo, nos anos 1960. Sua primeira atuação foi em O balanço, dirigida por Fauzi Arap. Logo depois, veio a fazer parte do teatro estudantil do Arena e iniciou estudos de interpretação com Eugênio Kusnet no Teatro Oficina. Como profissional, estreou em 1963, dirigida por Hermilo Borba Filho na peça Onde canta o sabiá, de Gastão Tojeiro, encenada no Teatro Cacilda Becker. Ainda em 1963, casa-se com o ator e dramaturgo Plínio Marcos, passando a participar de empreendimentos do marido. Em 1965, integrou o elenco de Reportagem de um tempo mau, de Plínio Marcos, que foi proibida pela censura federal e teve uma única apresentação no Teatro de Arena, a portas fechadas. Durante a segunda metade dos anos 1960 até quase os anos 1980, assim como outros grupos, atores e escritores, Walderez passou pela frustração de ter várias peças proibidas, algumas às vésperas da estreia, como no caso de Abajur lilás, em 1975 – o texto só pode ser encenado em 1980, como direção de Fauzi Arap. No depoimento a seguir, a atriz conta um pouco o que foi viver esses anos de ditadura; as pequenas vitórias, as lutas e as frustrações de se viver cerceado. Porém, Walderez adverte: “Coisas que aconteceram trinta ou quarenta anos atrás, guardo na memória de uma maneira subjetiva, e muitas vezes me surpreendo incluindo um detalhe que era meu e não do fato. Isso posto, não sou responsável por nada do que eu falar.”
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A
efervescência dos anos 1960
“É tão difícil para as novas gerações, para o pessoal que faz teatro agora, imaginar como é trabalhar com falta de liberdade; perceber o quanto a liberdade é importante, fundamental, no processo criativo. As pessoas hoje não têm noção do que era. Mas, por outro lado, quando você tem um obstáculo muito grande, isso obriga você a se fortalecer para superá-lo e conseguir fazer o que você pretende. No início dos anos 1960, havia uma ebulição artística em todas as áreas. Todas as pessoas que lidavam com a criatividade estavam nesse estado de efervescência. Foi um período, apesar de tudo, muito fértil em todas as áreas. E não só no Brasil, mas no mundo todo. Aqui, particularmente, antes de 1964, já havia um movimento muito forte. Era um momento em que as coisas estavam acontecendo, particularmente no teatro. O surgimento de novos autores, de grupos, do Teatro de Arena, do Oficina, ambos com linguagem completamente diferentes, mas ambos muito fortes. O teatro era... o teatro é uma arte muito viva. Talvez justamente por isso, pelo teatro estar tão forte, tão criativo, ele tenha sido uma das artes mais censuradas.” 106 RBMA 70
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Primeiros momentos “Em 1964, a gente não acreditava muito que aquilo fosse verdade. Eles tomaram o poder, mas a gente ainda conseguia fazer assembleias, se reunia, lutava. Se havia peças proibidas, fazíamos passeatas para liberá-las. Era possível. Até 1968. Aí, em 1968, eles mostraram a cara realmente. Era coisa criminosa, muito bem feita. Então, acabou a brincadeira. A partir de 1968, a coisa mudou mesmo, e foi piorando. Antes a gente ainda lutava, negociava e tentava liberar, mas a partir da década de 1970, muitos textos, a maioria, nem voltavam, já eram proibidos de cara. Mas a gente continuava mandando. Ninguém deixou de escrever.”
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A
censura no teatro
“O processo de censura ao teatro foi bem específico e também muito duro, muito violento. Funcionava assim: eu resolvo montar uma peça, por exemplo, Abajur lilás; mando para Brasília, para o departamento de censura, que vai demorar um tempo – porque são burocratas – e você não vai ter a sua resposta na hora. Então, você fica esperando para saber se a peça vai ser liberada ou não. Ela pode ser totalmente proibida, você não pode montar ou pode ser liberada com cortes. Se tiver sido mutilada, não dá para montar e você vai ter de negociar. Então, você já precisa ter um produtor que tenha esse tempo de ir até Brasília fazer essa negociação: “olha, você cortou essa cena aqui inteira. Não dá pra ficar se a gente fizer assim ou assado?”. Aqui ainda estamos no texto. Agora, você tem um prazo de validade dessa censura. Daí, se você não começou um processo de produção antes, se eles demoram para dar a resposta, demoram para negociar, daqui a pouco o prazo de validade acaba. Portanto, geralmente, a gente começava empiricamente uma produção esperando a censura, pois se liberasse só com alguns cortes já daria para montar. Aí você vai arrumar o dinheiro da produção, você vai contratar os atores, o diretor, juntar as pessoas, o cenógrafo, o fi108 RBMA 70
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gurino, alugar um teatro – que nunca foi barato. Ou seja, você tem gastos de produção pesados. Aí você ensaia uns dois meses mais ou menos e tem de marcar um ensaio para a censura.”
As
“duas senhoras”
“Geralmente, eram duas censoras aqui de São Paulo – não me lembro mais os nomes – que marcavam ensaio para a censura às oito da manhã. Você tinha de fazer o espetáculo pronto, não é que você ia fazer uma leitura. Não! A produção estava pronta. Elas não admitiam ninguém na plateia. Eram só as duas que sentavam ali, no meio da plateia, com o texto na mão e a gente fazia o espetáculo para elas. Isso para mim era uma tortura. Era como o pau de arara. Oito horas da manhã, você se apresentar para pessoas que não estão nem ligando para sua interpretação, se o texto é bom ou ruim. E a gente, nesse ensaio, respeitava à risca o script aprovado pela censura, não falava os “merdas”, não falava os “porras”. Aí, você dependia da aprovação delas, porque o espetáculo poderia conter, ainda, algumas coisas que a censura não queria. Além da palavra, poderia haver uma ação, ou mesmo um cenário ou figurino que não seriam aprovados. Esses elementos poderiam conter alguma crítica ao regime militar ou sei lá o quê, e o espetáculo poderia ser proibido.” 70 RBMA 109
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“Bom, acaba esse ensaio, elas não aplaudem, despedem-se e vão embora. E você fica esperando novamente para saber se foi ou não aprovado. Porque só com o carimbão dessas duas senhoras é que você podia estrear uma peça. Então, era um processo que, além de cruel do ponto de vista artístico, do ponto de vista da falta de liberdade para você realizar sua arte, implicava em um custo econômico muito alto. Digamos que elas proíbam, você perde tudo que foi realizado e gasto até então. Todo o investimento de dinheiro, de tempo das pessoas envolvidas, que deixaram de fazer outro trabalho porque estavam envolvidas com aquilo e, de repente, ficam desempregadas.”
A
frustração “Eu sempre disse que eu fui um pouco amadora na minha profissão, nunca tive uma coisa de ‘vou fazer carreira, quero fazer isso, quero fazer aquilo’. Sempre fui mais levada a fazer coisas do que andar em linha reta e chegar num ponto. Mas o que eu quero dizer é o seguinte: apesar dessa postura mais solta, a frustração que dá quando você começa um processo de trabalho, um ensaio de uma peça, ou um texto que você quer fazer, ou você chega até um ponto, para e não consegue mostrar... Porque o teatro só acontece com o público. Quando você está ensaiando, está só ensaiando, ainda não é teatro. O teatro é palco e plateia. Se você não tem plateia, você não tem teatro. Então, quando você está com tudo pronto, ali, 110 RBMA 70
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para fazer o teatro, para chegar até o público, e é impedido, é uma frustração terrível, leva um tempo para assimilar. Principalmente, sabendo que o que você está fazendo é uma coisa boa. Boa em todos os sentidos, não só do ponto de vista artístico, mas uma peça pode fazer as pessoas pensarem a respeito de si mesmas, dos outros, do país onde mora, da sua cidade, da sua rua, do seu vizinho. Enfim, de alguma maneira vai despertar a pessoa que assiste àquele espetáculo. Você está com tudo isso na mão e joga no lixo. Em qualquer situação em que não consiga ir até o fim de um processo, isso é doloroso. Agora, quando isso é imposto por causa de uma ditadura, não é fácil.”
A
violência
“Esse processo de censura era muito cruel em todos os sentidos. E era revoltante. Por que marcar oito, nove horas da manhã o ensaio, sabendo que muitas vezes a gente ensaiava de madrugada (pois a gente ocupava o teatro como podia, até para ficar mais barato)? Você ter o poder nas mãos, o poder sobre outras pessoas, principalmente sobre os artistas... Imagina essas senhoras pensando: ‘Eu vou marcar às 8h30 da manhã e dona Fernanda Montenegro terá de estar lá e representar para mim’. Essa senhora que provavelmente teve uma vidinha bem mixa vai se sentir poderosíssima. A pior coisa são esses pequenos poderes. É também, claro, o grande ditador, mas essas pessoinhas que 70 RBMA 111
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têm esses pequenos poderes são as que decidem a sua vida. É impensável.” “O que eu queria dizer era isso: para o teatro, a censura era violenta em todos os sentidos. Então, muitas vezes, você não tinha fôlego para começar esse processo. Você precisa de dinheiro, você precisa da produção, você precisa de alguém que se disponha a produzir correndo um risco violentíssimo de investir o dinheiro e perder tudo, como aconteceu muitas vezes. Então o que acontecia? Por exemplo, o Abajur lilás, quando foi proibido, imediatamente a gente inventou uma outra peça para fazer com aquele elenco, pegando a grana, o teatro que estava alugado, para pelo menos tentar ganhar um dinheiro e salvar para o produtor alguma parte do investimento dele.”
Resistência “Havia vários caminhos. Tentávamos todos os caminhos possíveis. E um desses caminhos era, novamente, negociar. Então, se o espetáculo era proibido, procurava-se saber o porquê, entrava-se com recurso, ia-se até Brasília. Falava-se com deputado, com não sei quem. E mais grana era investida. Além da trabalheira que já é montar um espetáculo, ou produzir qualquer obra de arte, você tinha todo esse trabalho extra. Esse trabalho periférico, que era o mais desgastante.” “Mesmo quando não tínhamos condições, fazíamos meio como guerrilha. A gente não tinha mais
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possibilidade de alugar um teatro. Então, nós fomos fazer teatro no sindicato dos têxteis, lá no Brás. Era um auditório que era cedido para nós. Esse foi um período de resistência da gente. Pensamos: ‘temos de continuar fazendo, e se não temos condições de fazer no teatrão, fazemos aqui no sindicato’. Ou então, às vezes, você montava uma comédia. A gente não fazia, mas muita gente fez e eu acho válido, afinal você tem de sobreviver com a sua profissão, entendeu? Então, você tem de usar aquilo que é possível. Você tem de se reinventar para continuar fazendo aquilo que você quer. Se hoje, com liberdade, com tudo, já é difícil montar uma peça, imagine com a possibilidade de ela ser proibida.”
Reportagem de um tempo mau e o luto “A gente ia fazer, em 1965, no Teatro de Arena, numa segunda-feira, alguma coisa assim, num horário alternativo, uma peça do Plínio chamada Reportagem de um tempo mau. Essa peça estava na primeira leva de peças que foram proibidas, e nós já estávamos com o espetáculo pronto. Resolvemos estrear mesmo assim como um ato de não aceitação da censura. Fizemos o espetáculo a portas fechadas, deixando entrar pessoas importantes que pudessem dar um depoimento a respeito da peça. Esse era um procedimento usual no começo 70 RBMA 113
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do regime militar: chamávamos intelectuais, artistas e pessoas neutras que pudessem opinar sobre a peça e ajudar na luta pela liberação. Nesse primeiro momento, no começo do regime militar e quando o processo de censura ainda não estava totalmente estabelecido, a gente ainda lutava, fazia assembleias, ia à rua, fazia passeata. “Voltando à estreia de Reportagem de um tempo mau, a gente sabia que aquela apresentação seria a única... A gente ensaiou até de madrugada para fazer a estreia no dia seguinte, à revelia da censura. Nessa época, minha mãe estava muito doente e, quando cheguei em casa, de madrugada, depois do ensaio, soube que ela tinha morrido. Então, ficou uma situação assim... Eu conto isso para mostrar os limites a que a gente chega quando está numa situação de opressão como era o regime militar. Claro que todos, o Plínio, o elenco todo, falaram ‘não vamos fazer o espetáculo’. Acontece que eu sabia que seria a única oportunidade de fazer essa encenação e a gente conseguir de alguma maneira lutar para liberar a peça. Então, enterrei minha mãe de tarde, fui para o teatro e fiz o espetáculo de noite. Você tem situações limites que são fortes para caramba, mas das quais não pode abrir mão, porque é a sua vida que está ali. Eu pensei que minha mãe – que era uma mulher maravilhosa – com certeza apoiaria minha atitude. Claro que eu estava fragilizada, estava péssima, mas era necessário. Assim como esse ato meu, houve outros. Pessoas que chegam no seu limite, mas pensam ‘é preciso fazer’, não dá pra ser fraquinho, você tem de enfrentar a situação.”
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Eu vou continuar, vou fazer o que eu tiver de fazer na minha profissão. Não é nem “vou continuar lutando”, é “vou continuar vivendo”
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“Não sei se eu vou falar bobagem, mas eu tendo a achar que é verdade. A gente convivia com isso, mas não acreditava muito. Sabe quando você tem um fantasma, mas você decide não enxergar? Isso não vai alimentar meu medo. Sempre que a gente pensa numa situação como a que a gente viveu, ou mesmo em outras experiências de repressão de outros países, pensamos ‘como essas pessoas conseguiram viver?’ É que você continua levantando, comendo, na luta. Quer dizer, a vida é forte o bastante para nos manter de pé. E você, de certa forma, esquece a conjuntura, não vive em função disso. ‘Eu vou continuar, vou fazer o que eu tiver de fazer na minha profissão’. Não é nem ‘vou continuar lutando’, é ‘vou continuar vivendo’. Havia o momento de lutar, por exemplo, se eu tiver de brigar com a censura pra liberar uma peça, eu vou lutar com a censura para liberar uma peça.”
Autocensura “Mesmo na época, eu não acredito que ninguém, um autor teatral falasse: ‘eu vou escrever uma peça, mas, para não ser censurada, vou maneirar’. Isso não acontecia. O que acontecia, muitas vezes, era um processo posterior de negociação. Um exemplo: Navalha na carne, quando foi proibida, a discussão era ‘tem 25 ‘porra’, vinte ‘merda’’; ‘tá bom, tem vinte merda, vamos deixar por cinco?’; ‘não pode tudo isso de porra, deixamos dez?’. Estou fazendo piada, mas o sentido da coisa era esse. Você podia negociar ou tentar negociar quando a peça era proibida com cortes. Porque, às vezes, 116 RBMA 70
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mutilavam a peça e não havia condições de você fazer. Essa negociação podia acontecer, mas ninguém criava já pensando na censura. Autocensura não havia, só em coisas que eram dispensáveis. No fundamental, todo mundo tinha uma posição muito forte. Isso fortalecia o pessoal do teatro, as produções, os textos, e permitia que houvesse um vigor. Na música, acho que o mesmo acontecia. “Eu posso dizer por experiência própria. Eu nunca vi o Plínio deixar de escrever uma peça porque ele supunha que pudesse ser proibida, mesmo no auge da ditadura, quando a gente sabia que não havia nenhuma possibilidade de respiro. Eu não sei falar por todo mundo, mas em relação ao Plínio nunca houve. Ele nunca teve a menor autocensura. Já a captação de recurso é outra coisa. Aí, realmente, você precisava de pessoas corajosas pra fazer.”
A censura e o público “O regime não afetou a ida do público ao teatro, porque o teatro era muito bom. Essa é que é a verdade. O teatro que fazíamos na época tinha autores maravilhosos, elenco primoroso. A gente tinha público, e que nos apoiava. Porque quem ia ao teatro eram pessoas bem informadas em relação ao que estava se passando no país. Então, raramente alguém ia ao teatro assistir Navalha na carne, de Plínio Marcos, sem saber... Aliás, tem uma história
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folclórica já no teatro sobre uma apresentação de Navalha na carne em que o Plínio atuava. Um casal levantou e começou a reclamar dos palavrões, ao que ele respondeu: ‘Escuta aqui, você não leu? Não sabe o que é Navalha na carne?’. Isso foi dois anos depois da estreia da peça. Não é que era estreia ‘não sei do que se trata’. Geralmente, quem ia ao
“Eu posso dizer por experiência própria. Eu nunca vi o Plínio deixar de escrever uma peça porque ele supunha que pudesse ser proibida” 118 RBMA 70
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teatro, estava sabendo. Mesmo hoje, você se informa do que se trata a peça antes de ir ver. Você pode ter uma decepção, ou não, com o espetáculo, mas você sabe mais ou menos o que é. Então, o público que a gente tinha, em geral, era muito bom, tanto em quantidade como em qualidade. E a gente sempre diz “uma boa temporada teatral é aquela em que você tem vários gêneros, você tem o musical, a comédia, o besteirol, a peça clássica’. Enfim, você pode escolher o que quiser. Eu posso querer ir ao teatro para ver uma bobagem, quero me divertir.”
Um processo ceifado “Historicamente, como eu dizia, antes de 1964, o teatro já estava em ebulição, você não consegue imaginar aonde chegaríamos se não tivesse havido essa ruptura. A partir de 1968, a coisa só piorou. Para retomar aquele processo, custou, demorou. E nem foi a mesma coisa. Você não teve um desenvolvimento como poderia ter sido se não houvesse essa ruptura. É triste você ver, historicamente, uma coisa que poderia ter sido tão grandiosa, tão exuberante... Havia pessoas criativas, gênios atuando nas áreas artísticas que simplesmente foram podados. Essa ruptura foi lamentável. Eu não desejo para ninguém o que passou no período da ditadura. Que pedido de exercer a profissão que escolhido para fazer. As pessoas
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ditar que isso não é bom. Mesmo quando você está com o poder na mão, não é bom. Não é bom nem para quem é censurado nem para quem censura. O processo não é enriquecedor para ninguém. Se você realmente pensa na vida como um processo de aprendizado, de aprimoramento, como indivíduo, como ser humano, como espírito, como alguma coisa além de uma vidinha mixa, então você tem de entender que um processo de opressão não é bom para ninguém. Então é bom sempre evitar um caminho que possa levar a isso. E prestar muita atenção, porque a tendência da gente é exercer esse pequeno poder.”
Tônia Carrero, Nelson Xavier e Emiliano Queiroz em Navalha na Carne Foto: Carlos Moscovicks
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Textos proibidos “A gente tinha produção, mas realmente, perdeu-se muita coisa. Muitas peças não foram montadas, permaneceram proibidas. É uma perda sempre. Eu lamento muito essa ruptura no processo histórico nosso, acho que foi a coisa mais cruel que aconteceu. Porque o vigor que havia, a criatividade, as pessoas envolvidas, tanto as que faziam arte como as que consumiam arte. Todo mundo estava empolgado, envolvido com esse processo, que foi simplesmente cortado. “Não sei dizer a quantidade de textos que foram realmente proibidos, mas muitos foram.1 Não importa se bons ou ruins, não é esse o julgamento. Não existe ‘ah, uma porcaria de um texto, ainda bem que foi proibido’. Não, ainda bem, não! Porque o autor do texto supostamente ruim, se o tivesse montado, teria a oportunidade de perceber seus erros. A única maneira de um autor de teatro evoluir é montando seus textos, não há outro jeito. O texto de teatro é diferente de um romance, ou da literatura, você precisa ver no palco. O texto de teatro é bom quando ele cabe no palco, quando ele é feito para o palco. Se ele é muito literário, ele não é bom. Na montagem, vai ter de cortar, adaptá-lo para a linguagem teatral. E a única maneira de o autor perceber as qualidades ou defeitos do texto é montando. Então, mesmo a 1 Em 1968 – o ano que não terminou (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 285), Zuenir Ventura menciona que, em dez anos, cerca de 450 peças de teatro foram proibidas, sendo dezoito de Plínio Marcos. 70 RBMA 121
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proibição de textos ruins ou não tão bons foi um crime contra aquele autor que não viu seu texto montado. Esse tipo de coisa, censura, tortura, não tem desculpa, são coisas inaceitáveis.”
Consequências nefastas “O resultado de tudo isso se faz sentir mais nos anos 1980. O ímpeto havia sido totalmente podado, as pessoas estavam cansadas, e mesmo quem estava respirando e ainda fazendo tinha perdido algo. O momento tinha passado. Então, até você retomar o fôlego, até você se juntar novamente com as outras pessoas, até retomar, inclusive, o sentido do coletivo – uma coisa muito forte antes do golpe... As pessoas ficaram isoladas com tudo isso que acontecia. A década de 1980 era uma coisa meio ‘acabou a ditadura... mas não acabou’. Era coisa que ainda estava aqui na garganta. A partir de 1990, começa uma retomada, mas é do zero. Você pensa nas décadas de 1950 e 1960 e pula para 1990... Para onde teríamos ido se aquele movimento tivesse continuado? “As pessoas por trás da ditadura são responsáveis pelo o que aconteceu com a arte no Brasil. É uma responsabilidade muito grande. E não é uma questão de política de esquerda, de direita, comunismo. Tudo isso é besteira, sabe? Os grandes textos levantavam problemas sociais, não eram necessariamente políticos. O autor podia ter uma posição política, mas a obra levantava questões 122 RBMA 70
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“É, inclusive, uma falta de curiosidade, de se conhecer as coisas, de ver realmente como elas são e não acreditar em besteiras que se falam por aí. Vai lá pesquisar” 124 RBMA 70
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sociais, sempre. Essa coisa política é uma das mentiras que se propaga. Essa coisa ‘a ditadura veio para impedir o comunismo’... [riso nervoso] Eu não aguento nem mais discutir isso, sabe? E quando vejo essas pessoas infelizes que ainda acreditam nisso, penso ‘nossa, não serviu pra nada, não entenderam nada, não sabem de nada’. E jovens que deviam conhecer a própria história, deviam ler, pesquisar. Vocês acham isso? Peguem os textos do Plínio ou de outros grandes autores que nós tivemos e leiam. Em que momento os textos do Plínio sugerem qualquer coisa semelhante? É, inclusive, uma falta de curiosidade, de se conhecer as coisas, de ver realmente como elas são e não acreditar em besteiras que se falam por aí. Vai lá pesquisar. Mas pesquisa é uma coisa que ninguém faz, ainda mais agora, com celular etc. A escola deveria fomentar essa curiosidade, mostrar a importância da pesquisa.”
E por fim, um recado “Mas não adianta mais chorar, passou. E que não volte! E que as pessoas fiquem muito atentas ao momento em que estamos vivendo, porque muitas não sabem o que foi a ditadura. Então, desejar a volta de um regime de opressão, como foi o nosso regime militar... A volta da tortura, matar, enforcar as pessoas, não queiram! Quem passou por isso sabe, não é nem um pouco agradável. É revoltante.”
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“SOBREVIVER, COMO É DIFÍCIL SOBREVIVER” Entrevista com Darci Miyaki*
*Este depoimento foi concedido à Glenda Mezarobba, doutora em Ciência Política pela USP, responsável pelo Grupo de trabalho Ditadura e Gênero da CNV (2012-2014)
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arci Miyaki nasceu em São Paulo logo após a Segunda Guerra Mundial. Ainda menina, teve de conviver com os valores então vigentes em uma família japonesa tradicional. A austeridade, a extraordinária determinação em cumprimento ao dever e o pouco apreço à individualidade condicionavam a vida na comunidade nipônica que se instalou no Brasil. Os tempos eram especialmente difíceis para esses orientais cujos antepassados
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fonte: https://uniaoanarquista.wordpress.com/2014/06/04/a-luta-camponesa-e-a-ditadura-civil-militar-brasileira-o-papel-da-repressao-e-da-tutela-sindical-sobre-os-trabalhadores-do-campo/
vinham de um país inimigo do Brasil na guerra da qual saíram derrotados, depois de bombardeados com armas atômicas. Discriminados, não foram poucos os que se converteram à religião dominante no país, o catolicismo, em busca de integração. Foi assim que, antes do Concílio Vaticano II, quando tudo ainda era eminentemente “pecado e inferno”, Darci saiu de casa para viver, interna, em um colégio de freiras. Depois de anos de rotina austera, veio a descoberta do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, em seguida, o encontro com a Ação Libertadora Nacional (ALN), organizações marxistas e leninis-
tas em que o sacrifício e a disciplina revolucionária constituíam arcabouço central. Olhando retrospectivamente, parece inevitável constatar que se desenhava, ali, o quadro político em que se moveria durante toda a militância contra a ditadura militar (1964-1985). Silenciosa, discreta, quase invisível, cumpriu seus deveres com método, organização e fidelidade sem limites à causa. Pouca gente, mesmo dentro da organização, sabia quem era “Cristina”. Na sua pele, Darci pouco apareceu e sempre foi considerada uma militante segura. Em 1968, foi obrigada a abandonar o curso de Direito
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do largo São Francisco e, em janeiro de Vamos começar tratando do papel desem1972, presa e torturada de todas as forpenhado pela mulher durante a ditadura mas no DOI-Codi da Guanabara e de São militar (1964-1985)? Paulo. Resistiu até o último dia dos seus sete meses nesse centro de torturas e ao No início da década de 1960, as mulheres período de mais de um ano no presídio já estavam presentes em várias áreas da Tiradentes. Em sua trajetória, não há es- vida política do país. Na rural, por exempaço para suspeitas de que poderia ter se plo, elas estavam nas Ligas Camponesas “comportado mal” diante da violência a e nos sindicatos. Na área urbana, contesque foi submetida. Tornou-se estéril. Adtando a Aliança para o Progresso desenvogada aposentada, volvida pelos Estados aos 70 anos carrega Unidos e implantada as sequelas da viono Brasil a partir de lência com a ajuda de 1961, com uma veste uma bengala. E não pseudoassistencial, Para o imperialismo, no economiza coragem, que buscava atencaso do nosso país, a como demonstra seu der aos objetivos da testemunho perante Guerra Fria. Para preocupação maior era a a Comissão Nacional o imperialismo, no da Verdade, órgão caso do nosso país, de que não se repetisse criado pela Presidêna preocupação maior a revolução cubana cia da República para era a de que não se investigar as graves repetisse a revolução violações de direitos cubana. Isso tudo era humanos ocorridas matéria de grandes durante a ditadudebates, não apenas ra militar e que funcionou entre 2012 e no meio militante, cultural e artístico, 2014. Em audiências privadas ou públimas também no movimento estudantil cas, expôs o caráter sexual da violência que, ao mesmo tempo, analisava e discupraticada contra mulheres e homens, tia o acordo MEC-USAID, tão nefasto para reconheceu torturadores e incentivou oua educação em geral, mas principalmente tras mulheres a contar o horror sofrido. para o ensino público. Não se pode esqueDurante uma semana, no Rio de Janeiro, cer, também, do trabalho de alfabetização fez questão de oferecer sua solidariedade e de educação sanitária, com ênfase nas não apenas às companheiras, conhecidas questões de higiene e cuidados preventiou não, que se dispuseram a registrar a vos, desenvolvido, já antes do golpe, em barbárie vivenciada, mas também à equi- favelas e na periferia das grandes cidades pe de pesquisadoras que se revezou na do país, principalmente pelas mulheres. escuta desses testemunhos mais de doze horas por dia. Nesta entrevista, Darci Ou seja, havia espaço para as trata, sobretudo, da militância feminina. mulheres na militância de esquerda.
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A convergência das mulheres militantes nas várias áreas de atuação pré-ditadura só poderia, como caminho natural, desembocar na contestação e militância contra a própria ditadura. Muitas optaram por organizações ligadas à Igreja católica, caso das militantes da Ação Popular. Outras, para organizações dissidentes do PCB que, ante o acirramento, a censura e as perseguições policiais, optaram pela luta armada. No início, a militância se dava de forma legal. Como as mulheres ainda não eram “visadas”, nem integravam as listas de procuradas por órgãos de repressão como DOPS ou Oban, seguiam suas vidas “normalmente”, ao lado da vida estudantil, do trabalho profissional, e também continuavam a alfabetização pelo método Paulo Freire. Dessa maneira, aprendemos noções de primeiros socorros em hospitais, frequentamos cursos de tiro, de manufatura de explosivos e de falsificação de documentos, entre outros. Assim como os homens, as mulheres participaram de ações armadas envolvendo, por exemplo, o furto de placas de carro, ou mesmo de um carro, levantamento de locais para futuras ações, expropriações de supermercados e bancos. Ao se tornarem alvos da repressão, as mulheres também se viram obrigadas a passar para a clandestinidade. A que fatores você atribui o posicionamento político que mulheres como você adotaram? A minha geração foi privilegiada, acompanhou mudanças radicais no mundo. Refiro-me, por exemplo, às considerações expostas no Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, que analisa a ideologia de poder imposta a nós, mulheres, a dependência
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econômica e as “funções” próprias das mulheres. Sem falar no contrato de casamento, que, durante muito tempo, envolvia, obrigatoriamente, um dote – até no casamento, uma mercadoria com preço ajustado, algo de segunda categoria, existindo uma total dependência econômica que levava à totalidade de outras dependências. Além de Simone de Beauvoir, não podemos esquecer a figura de outra mulher: Rosa Parks. Negra, segregada e que inicia e propaga, com a greve dos ônibus, a tomada de consciência dos direitos dos negros, desembocando mais tarde no Movimento dos Direitos Civis dos Negros, nos Panteras Negras, no Black Power e mesmo no movimento dos hippies, que, embora lembrados tão e somente por suas roupas coloridas e o uso de drogas, em sua essência tinham como filosofia a igualdade social e a oposição à guerra do Vietnã. Foram figuras e movimentos que marcaram nossa geração e, certamente, influenciaram a nossa formação sociocultural. Por outro lado, a tomada de consciência política nos impôs pesadas obrigações. Tivemos, ante o golpe militar, de tomar uma posição. Posição essa que era quase que definitiva e nada fácil, implicando em distanciamento do conforto de nossas casas, o afastamento da família, dos amigos, dos estudos. Quando fomos obrigadas a entrar para a clandestinidade, em certo sentido, enfrentamos muita solidão. Natais, Ano Novo, dia das mães, enfim, datas que normalmente eram comemoradas se tornaram lembranças distantes, impraticáveis e saudades doloridas. Muitas de nós tiveram pai, mãe ou irmão que faleceram e sequer puderam ir ao enterro. Ao lado disso, havia a tensão natural da condição de perseguidas, com a consciência de que a qualquer momento poderíamos ser presas, torturadas ou assassinadas. A clandestinidade ou o exílio tornaram-se presentes, com suas naturais consequências. A vida clandestina já foi narrada por algumas militantes, mas o exílio também exigiu muito das combatentes. Além do distanciamento de familiares, amigos, hábitos, a impossibilidade de ouvir o próprio idioma ou de ligar um rádio e ouvir a nossa música brasileira era algo que doía. Parte dos exilados passou por diversos países, muitas vezes fugindo ou sendo presos em países que também sofreram golpes militares. A falta de emprego foi algo corriqueiro no início do exílio. Quando você sai de seu país para trabalhar ou estudar legalmente, a qualquer momento, quando apertam as sau70 RBMA 131
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dades, você pode retornar. Não era o caso dos exilados. O retorno significava pena de morte. Assim, o exílio era um verdadeiro banimento. Mas tínhamos consciência das consequências de nossas opções e da tomada de posição política.
o nosso aprendizado, nas tarefas da luta armada, foi feito gradualmente e ombro a ombro. Aprender a atirar, cursos de táticas, observação, obtenção de informações, ações de desapropriações e falsificação de documentos foram, desde o início, tarefas compartilhadas entre homens e mulheres. Como era a participação da mulher na Em praticamente todas as ações, desde as luta armada? mais simples até as que eram consideradas mais complexas, A presença da munossa participação lher era essencial esteve presente. Da na luta armada. A mesma forma, a preMas, assim como o importância dessença feminina apredos rapazes, o nosso sa participação foi, sentou-se nos mais desde o início, contivariados setores da aprendizado, nas tarenuamente assinalada organização. Na ALN fas da luta armada, foi e exigida por dirihavia mulheres fafeito gradualmente e gentes como Carlos zendo levantamento Marighella. Não só de objetivos para ombro a ombro por ele, mas pelos ações, no trabalho de quadros oriundos do massa, escrevendo PCB. Rolando Frattextos, imprimindo ti, Joaquim Câmara panfletos, trabaFerreira, Argonauta lhando em escolas, Pacheco e José Luiz Del Roio, por exemno setor de inteligência com objetivos plo, sempre buscaram e destacaram a estratégicos, em hospitais para possíveis necessidade da participação feminina na emergências ou partos. Foram várias as luta armada. Já no momento de formação companheiras que chegaram tanto ao da Ação Libertadora Nacional (ALN), tecomando regional como nacional da ALN. mos Zilda Xavier Pereira em sua direção Além de Zilda, podemos citar, como exemnacional. É difícil dimensionar o tamanho plo, Guiomar Silva Lopes, Lidia Guerlanda da participação feminina, mas, em sua e Ilda Gomes. A Vanguarda Popular Revotese de doutorado, a historiadora Maria lucionária (VPR) e a Vanguarda Armada Cláudia Badan, após entrevistar dezenas Revolucionária (VAR) Palmares também de mulheres da própria ALN, ressalta que tiveram o comando de mulheres. elas desenvolveram distintas atividades Lugares ermos e matas, como o Pico sob a forma de apoios, como “pombo cordo Jaraguá e a região de Guarapiranga, reio”, na imprensa clandestina, além das em São Paulo, eram locais que usávamos ações propriamente ditas. A participação para treinamento de tiros; para desmonera menor do que a dos homens, naturaltar, montar e limpar as armas. Revólvemente. Mas, assim como o dos rapazes, res, pistolas e metralhadoras eram feitas 132 RBMA 70
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em casa. Em geral, ao menos nessa fase inicial, não houve problemas de detecção pela repressão ou por populares. Lembro que em setembro ou outubro de 1971, acho que foi na região de Santo Amaro, encontrei alguns companheiros e, entre eles, Lidia Guerlanda, que havia participado de um treinamento com minas caseiras. Ela estava com o rosto, o pescoço e os braços praticamente cobertos de ferimentos, com os pontos pretos da pólvora e dos estilhaços. Um dos braços estava enrolado em um pano, sem a mão, e ela estava com a fisionomia de grande dor. Mas o que mais me impressionou foi a sua expressão de determinação, de coragem. Alguns dias depois, soube que foi feita uma ação e um médico sequestrado para
lhe amputar a mão. Essa cirurgia foi feita em um aparelho, claro que em condições precárias. Mas, em geral, foram poucos os acidentes durante os treinamentos. E a luta contra o machismo? O machismo, por mais que lutássemos contra, tanto em homens como entre nós, mulheres, era algo que estava arraigado. Querendo ou não, fomos educadas e educados na ideologia da submissão: homens provedores e seus salários, tabu da virgindade, meninas normalistas etc. Havia resquícios dessa formação. Entretanto, na organização, pela formação e orientação de nossos dirigentes, mostrou-se a importância da participação e a igualdade da mulher. 70 RBMA 133
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Realizamos diversas tarefas. Maria Amécondições. A partir de então, as combatenlia e eu, por exemplo, fomos as primeiras tes enviadas a Cuba passaram a participar mulheres a treinar em Cuba. O nosso grupo do treinamento de guerrilha rural. Esse foi o de treinamento era formado por 26 rapacaso de Suzana Lisboa, Gastone Lucia Belzes e nós duas, as únicas mulheres nesse trão, Maria Augusta Thomaz, Isis de Oliveira coletivo. A orientação que recebemos de e várias outras. Marighella era a de que não nos envolvêsAs mulheres desempenharam um papel resemos, amorosamente, com nenhum dos levante, ainda não plenamente conhecido. companheiros enquanto durassem os treinamentos. À primeira vista, pode parecer Estudando a história brasileira, poucas mualgo por demais rigoroso, mas analisandolheres são citadas como pessoas ativas ou -se a tensão dos treinamentos, a idade em protagonistas. Quando delas se fala, são as que estávamos, no auge da juventude e redentoras bondosas da sexualidade, racomo a princesa Isabel zão houve para essa que são lembradas. orientação. Durante a A presença da mulher foi Não se citam as ações militância, e mesmo decisivas e conflina fase de treinamende grande importância tantes em meio aos to em Cuba, não sentinão apenas na observação cenários políticos de mos preconceitos por distintas épocas. Da parte dos brasileiros. e no levantamento mesma forma, pouco é O interessante é que dos mais diversos conhecida a figura de sentimos o machismo objetivos, mas também Anita Maria de Jesus partindo dos cubanos. Ribeiro – Anita GariQuando foi decidida nas grandes ações baldi. Popularmente, a ida para Piñar Del ela é lembrada como Rio, para treinamento mulher valente, mas de guerrilha rural, principalmente como nós duas fomos impemulher do grande herói Giuseppe Garibaldi. didas de participar dessa parte do curso, Ignora-se sua atuação na guerra do Urusob a alegação de que teríamos restrições: guai e, mais tarde, na Itália. No geral, as porque menstruávamos. Porque para fazer mulheres de nossa história são apresentaas necessidades biológicas, tínhamos de das como companheiras, coadjuvantes ou baixar as calças. Outra desculpa era que vítimas. Na luta armada aqui no Brasil, a o treinamento destinava-se aos homens. Assim, não fizemos esse curso. Mas o curso mulher foi protagonista essencial em disnão realizado entrou na pauta de discussão tintas organizações, atuando em vários setores. Em 1968, por exemplo, Carlos dos dirigentes e aos cubanos foi enviada Marighella, inimigo público número um da uma categórica e longa cobrança por parte ditadura, morava em uma pequena casa de nosso comandante Carlos Marighella. O geminada, no Rio de Janeiro, onde qualquer combinado era que fizéssemos todos os curruído um pouco mais alto era detectado pesos, mulheres e homens, em igualdade de 134 RBMA 70
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los vizinhos. Nessas condições, Marighella pediu a Iara Xavier Pereira, então com 17 ou 18 anos, que fosse comprar um gravador, o melhor que existisse. Com o gravador de rolo, Iara fez as entrevistas e gravações preciosas que hoje podem ser ouvidas no cd que acompanha o livro Radio Libertadora – a palavra de Carlos Marighella. Às vezes sorrio ao imaginar como eram feitas essas gravações. Não podiam falar alto por causa dos vizinhos, era complicado lidar com o gravador de rolo e acho que nenhum dos dois tinha experiência com essa máquina, “a melhor e mais moderna”. A presença da mulher foi de grande importância não apenas na observação e no levantamento dos mais diversos objetivos, mas também nas grandes ações. A sua presença ativa permitia o fator surpresa. Imagine a atenção que um homem ou um grupo de homens, parado em determinado lugar,
atraía – o que, aliás, era proibido. Já os casais conseguiam se deslocar ou entrar em bancos, por exemplo, de forma despercebida. Em praticamente todas as ações, houve a participação feminina. Interessante é que algumas mulheres eram magrinhas, baixinhas, do tipo mignon e entravam nos locais das ações portando as pesadas e grandes submetralhadoras. Há tarefas e missões desenvolvidas por mulheres ainda hoje praticamente desconhecidas. A ida de Maria Amélia A. S. para Guiné Bissau, por exemplo. Ela é a única mulher brasileira que, após curso de guerrilha em Cuba, participou, efetivamente, da guerra que se desenrolava na Guiné-Conacri. Médica, especializada em ginecologia e obstetrícia, trabalhou também como socorrista em hospitais de São Paulo, e a experiência adquirida uniu-se a uma nova vivência em precários hospitais fundados por Carmem Pereira, símbolo da mulher
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africana na luta pela libertação de seu país – e que, anos depois, viria a se tornar a primeira mulher a presidir a Guiné. Nesses hospitais, Maria Amélia iniciou seu aprendizado sobre a guerra em zonas de ataques militares, com bombas caindo, pernas estilhaçadas, crianças com as tripas de fora. Também deu sua contribuição ensinando pronto atendimento aos feridos da guerrilha e orientou as mulheres africanas a realizar partos e a cuidar dos nascituros. Ao mesmo tempo, com a experiência adquirida em São Paulo, realizou cirurgias e deu formação de enfermagem às mulheres africanas, quase todas semianalfabetas. Emocionante foi ouvir seu relato sobre o encontro com Amilcar Cabral, dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC). Maria Amélia não ficou apenas na área urbana, embrenhou-se nas matas da Guiné ao lado dos combatentes guerrilheiros, levando seu fuzil e a mala de equipamentos médicos. Mata fechada que, segundo seu relato, tinha, entre tantos outros, mais um inimigo: as cobras. Não aquelas que rastejam ou se entocam em buracos, mas cobras que ficavam nas copas das árvores, aguardando a passagem das pessoas para morder seus pescoços, causando morte quase instantânea. Maria Amélia enfrentou várias dificuldades: a crueldade dos soldados colonialistas, o idioma – porque a maioria dos africanos falava apenas o seu dialeto, pouco sabendo da língua dos dominadores –, o analfabetismo, a falta de noções de higiene, a escassez de medicamentos. Muito
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Marighella, a guerra era a nossa guerra, recebeu e também deu a sua contribuição que deveria ser feita por nós. Sim, era de como combatente internacionalista. O remáxima importância a solidariedade insultado de sua atuação se fez sentir, mais ternacional, mas não sob a orientação ou tarde, no entrelaçamento e estreitamento direção de outro país. Então Joaquim Câdos laços com o PAIGC. mara Ferreira mudou sua rota e de Cuba Outra tarefa pouco conhecida foi voltou para o Brasil como comandante designada a mim. Quando do assassida ALN. Alguns meses mais tarde, denato de nosso comandante Carlos Materminou a minha ida à Coreia do Norte, righella, em 4 de novembro de 1969, país dividido, artificial e militarmente, Joaquim Câmara Ferreira encontravapelo paralelo 38. Nas primeiras semanas, -se em Paris a caminho da Coreia do pude conhecer um pouco da realidade coreNorte. Quando recebeu a trágica notíana e sua história. Vi cia, em companhia crateras de bombas, a de Aluizio Nunes destruição de cidades Ferreira, mudou seu inteiras. Visitei escoroteiro, seguindo Ademais e principallas, hospitais, fábricas para Cuba, onde esmente, como máxima e só depois se iniciatava nosso grupo de preconizada por ram as conversações brasileiros, já no térpolíticas que podem mino do treinamento Carlos Marighella, ser resumidas no comde guerrilha rural. a guerra era a nossa promisso de solidarieEntre nós havia um dade de ambos os laclima tenso, ocasioguerra, que deveria ser dos. Depois dessa fase, nado pelo desejo de feita por nós fui fazer treinamento alguns cubanos vipara o setor de intelirem para o Brasil, gência estratégica. como combatentes ou comandantes, e Como era lidar com a violência, conviver com a intenção de designar um comancom a possibilidade de ser presa e torturadante brasileiro. Não concordávamos e da, lidar com o medo? não poderíamos aceitar tal cogitação. O Brasil é um continente, certo é que faAo entrar para uma organização, já existe lamos a mesma língua, mas há hábitos uma opção política. Há a certeza de que e costumes, sotaques, termos de linguaa atuação é a correta. A ação armada, gem, características físicas diferentes naquela conjuntura, era a única possíde cada região. Dada a grande extensão vel. Então, quando se participava de uma de nosso país e a diversidade de clima, ação, inicialmente havia, sim, apreensão, geografia, topografia, até para nós, a expectativa, a tensão natural ao estar brasileiros, era necessária certa adapde posse de uma arma, de que algo pode tação. Não poderíamos ser um corpo dar errado, mas a maior preocupação era estranho. Ademais e principalmente, a de, de repente, você ter de atirar para como máxima preconizada por Carlos 70 RBMA 137
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se proteger. A tensão maior era pensar em capciosas são detectadas com relativa facilipossíveis vítimas inocentes, na ação não dade. Enquanto você está levando choques, ser bem-sucedida. A sensação de medo não na cadeira de dragão ou no pau-de-arara, existia e o interessante é que, conversanvocê sente dor, e como essas dores são do com algumas companheiras, o que eu quase insuportáveis, você vai sentindo o sentia era o que elas sentiam: expectativa, seu limite humano. Não é medo, é o inexoos sentidos aguçados, a preocupação de que rável. Mas medo, realmente o medo, você tudo ocorresse da forma planejada. Não sente nos intervalos entre uma tortura e medo. Depois, um profundo cansaço físico, outra, imaginando o que virá depois. Medo a busca de uma cadeira ou banquinho para é ouvir os gritos de outros sendo torturasentar. Embora eu, pessoalmente, tivesse dos e querer saber quem tinha sido preso, certeza de que morreria no momento da quanto resistiria, se morreria, se falaria prisão, tinha de considerar, também, a pos- seu nome, se daria algum dado referente a sibilidade de ser prevocê. É sempre o “se”, sa viva. No instante é o imponderável que em que fui sequesmais causa medo. trada, pelo DOI/Codi Agora, finalmenSim, como é difícil ser da então Guanabara, te, ao me permitir pensobrevivente, porque o estava desarmada. sar naquele período, sobreviver tem suas seA equipe de busca e lembro-me das vezes apreensão primeiro em que, após as “diquelas, é algo que traz arrancou a minha ligências”, era levada em si até mesmo o remorbolsa e, depois, agarpara matagais e me rada pelos braços, fui mandavam correr. so por estar viva. É a jogada no chão de um Simplesmente ficava sequela do medo Opala. Medo é sentiparada, não era medo mento, é algo abstrao sentimento, era a to. Não senti medo. impotência que levaPensei, vão me matar va à resignação. Era e quero morrer logo. Hoje, analisando o que como se estivesse anestesiada, sem emoseria “o querer morrer logo”, com a dignições, tão somente impotente, esperando dade de uma militante, vejo minha total e pelos tiros. Mais tarde, fora dos presídios, completa impotência. Morreria quando eles senti medo. Era o medo novamente da inquisessem, seria torturada como, por quan- cógnita, da espera, ainda que subjetivo ou to tempo e das formas mais tenebrosas deobjetivo, achava que a liberação determiterminadas por eles. Eu era um objeto, não nada pelo Superior Tribunal Militar (STM) mais senhora de mim fisicamente. Impoten- era mais um artifício para um atropelate. Era dona, somente, mas principalmente, mento. Era o medo do desconhecido, da de minha mente, das minhas convicções. E impotência. Até que chega um momento de é interessante como, nessa situação limite, indiferença, mas, no fundo, ainda o medo. a sua mente pensa com rapidez, o raciocíEntão o medo, até irracional, acompanhounio parece que fica mais agudo, perguntas -me por muitos anos, décadas. Atrás, falei 138 RBMA 70
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sobre como era mais fácil morrer. Seriam dias, horas ou minutos, sofridos, com muita dor, muito sangue, mas com um final. Sobreviver, como é difícil sobreviver. A repressão brasileira da época ditatorial aplicou toda a metodologia da tortura, métodos comprovadamente estudados, analisados, edificados e textualizados por médicos, psicólogos, torturadores da repressão francesa na Argélia, do III Reich e dos técnicos e especialistas em informações dos Estados Unidos. Toda essa metodo-
logia foi aqui aplicada, sendo um dos seus objetivos o de inutilizar um militante, de quebrar sua estrutura mental e psicológica, inutilizando-o para o resto da sua vida. Ser sobrevivente. Ter sobrevivido. Brancos em sua memória, períodos e fatos que ficam sepultados em algum lugar da sua mente e não querer ou ter condições de contar o que ocorreu com você. Por décadas deixar de ser o que era, apatia, isolamento, trancada em casa por meses sem querer ver pessoas, não participar de festas ou, em outras fases, simplesmente beber até perceber que você poderia se tornar uma alcoólica. Assistir as aulas da faculdade, estar ouvindo sem apreender o que está sendo dito, ler um livro e voltar páginas e páginas e ver que você não captou. Onde foi parar sua memória, as centenas de livros lidos, e agora esse branco, onde está sua mente que era, não digo brilhante, mas, uma mente boa? Não saber o que está acontecendo com você, ser, apenas, uma pessoa “esquisita”. Sim, como é difícil ser sobrevivente, porque o sobreviver tem suas sequelas, é algo que traz em si até mesmo o remorso por estar viva. É a sequela do medo. E a vida privada das militantes? Havia espaço para a maternidade, por exemplo? Em geral, a visão que se tem das mulheres militantes é a da companheira, esposa, mãe, apoio do marido ou companheiro e que servia para dar uma aparência de família comum, de normalidade. Novamente, a ilusão de que eram meras codjuvantes. De fato, havia mulheres que não sabiam das atividades de seus companheiros, mas eram casos raros. Não sei se em algum momento se analisou ou 70 RBMA 139
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se pensou que, na realidade, a militância das mulheres implicava em opções complexas, profundas e mais agigantadas. Pode se dizer que com o engajamento político e a maternidade era ainda maior a responsabilidade, o sofrimento e o perigo. Há casos como o de Ilma Maria Horsth Noronha, mulher de Rômulo Noronha, que estava preso na Ilha Grande. Mãe de uma criança de tenra idade, morava na mesma casa, com Hélcio Pereira Fortes, dirigente nacional da ALN. Aparentava, para os vizinhos, ser casada com Hélcio, mas na realidade era militante ativa, o que implica em dizer que, além das tarefas de combatente, ainda tinha de cuidar da casa, fazer comida, zelar pela filha e cuidar dos documentos, do dinheiro e dos armamentos armazenados na casa, o que exigia atenção redobrada para que a criança não se ferisse. Quando presa, em janeiro de 1972, foi extremamente torturada, mas tortura maior foi não saber o que estava acontecendo com a filha, onde se encontrava e se estaria sendo maltratada.
Assim, as atividades das mulheres não eram como as de hoje, de jornada dupla. Eram jornada e responsabilidade multiplicadas por quatro ou cinco. Há que se lembrar da saga de Damaris Lucena, militante da VAR Palmares, que vivia com o marido e os filhos em uma casa que também era um aparelho com armas, munição e documentos. Damaris trabalhava como feirante para garantir a alimentação da família e de companheiros, que, muitas vezes, tinham de permanecer por dias na sua casa. E viu seu marido ser assassinado ali na casa mesmo, com mais de trinta tiros, na sua frente e de seus pequenos filhos. É chocante pensar na brutalidade de ver o corpo do marido sendo arrastado, esvaindo-se em sangue e depois vê-lo jogado num porta-malas. Damaris também foi presa com os filhos, no DOI/Codi, e brutalizada com requintes de extrema crueldade. Foram tantos os socos e pontapés que sua dentadura grudou na gengiva. Banida, foi submetida a diversas cirurgias e levou mais de noventa pontos.
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Na guerrilha do Araguaia, as mulheres das boas memórias que foram apagadas, se embrenharam em uma região de matas daqueles brancos da mente. Na verdade, e rios, de condições inóspitas. Aprenderam minhas lembranças estão num pequeno a viver nessas condições, cortavam lenha, ateliê, da rua Oscar Freire, onde a Lila cultivavam vegetais para sobrevivência, Galvão Figueiredo trabalhava na pomportavam metralhadoras, participavam de ba estilizada que se tornou, mais tarde, combates. Várias foram capturadas, tortusímbolo da nossa bandeira pela anistia. radas e assassinadas, como Maria Lucia Ateliê onde tantos assuntos eram coloPetit, Sueli Yumiko Kanayama, que levou cados e discutidos; quantas ideias iam e quase uma centena de tiros, e Dinaelza vinham antes das reuniões! A Terezinha Santana Coqueiro. Criméia Alice Schmidt de Zerbini, mais as meninas recém-formaAlmeida foi uma das primeiras a ir para o das em jornalismo e outras tantas muAraguaia e é uma das poucas sobrevivenlheres... Quanto trabalharam fazendo as tes. Saiu da área de guerrilha por causa de pautas, angariando fundos, vendendo o sua gravidez, mas jornal de mão em mão. acabou sendo presa e Mais tarde o surgimenNão é medo, é o torturada. Depois do to do jornal Nós Mulheparto, pôde amamenres... Foram mulheres inexorável. Mas tar seu bebê por apeque deixaram de ser medo, realmente o nas 52 dias, antes de coadjuvantes. Foram ser separada do filho. protagonistas de um medo, você sente nos momento histórico que intervalos entre Passados tantos permitiu a liberação uma tortura e outra, anos, como avaliar dos presos políticos, a as escolhas volta dos exilados, a imaginando o que daquela época? promulgação de uma virá depois Constituição Cidadã, da Quando há uma granLei Maria da Penha. de tempestade, com No entanto, da mesma ventos fortes, somos como o bambu, fino e forma que nós, militantes, temos nossas aparentemente frágil, parecendo prostrado e cicatrizes, o retorno à democracia também sem condições de levantar. Mas se ergue. Ele tem grandes e profundas marcas negatise verga e, pouco após, volta a estar ereto. vas. As décadas de ditadura se refletem E assim aconteceu conosco. E como foi váliaté os dias de hoje. Cientistas, professoda a nossa experiência, nossa luta e nosso res, médicos, políticos, estudantes, líderes sofrimento! Quantas militantes, ex-presas sindicais, militantes agrários, filósofos, políticas, abertamente ou nas sombras, conartistas plásticos, músicos, escritores tinuaram sua militância, de forma diversa, foram obrigados a partir para o exílio. mas ainda militância. Alguns anos atrás, a Esse hiato, por quase trinta anos, repreAmelinha Teles falou de um encontro nosso, senta duas ou três gerações que viveem uma reunião do jornal Brasil Mulher. ram sob censura em todos os níveis: nas Eu não lembrava. Estava em algum lugar formações intelectual, política, ética e 70 RBMA 141
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científica. Há um preço que se pagará por muitos anos. O ensino público, e mesmo o privado, que já estava sendo sucateado pelo programa do MEC-USAID, continuou se deteriorando. Não houve a preocupação dos governantes em dar atenção especial à formação das novas gerações. Não se formaram novas lideranças políticas. Para os jovens, ou mesmo para as pessoas na faixa dos 40 ou 50 anos, o que foi a ditadura militar? Quais crimes foram cometidos? O que é um crime de lesa humanidade? Quais os torturadores condenados? É importante estudar essa fase da história pátria? As mulheres, tanto na fase ditatorial quanto posteriormente, foram realmente protagonistas. Grande parte do retorno à democracia se deve a elas. No entanto, apesar da Lei Maria da Penha, da criação das delegacias das mulheres, que cumprem horário reduzido e, em geral, ficam longe das periferias, poucos resultados efetivos têm sido apresentados quando se pensa na problemática da violência contra as mulheres. É alarmante, por exemplo, a estatística recentemente apresentada pelo Ministério Público e pelo Instituto Patrícia Galvão indicando que a maioria dos abusos, da violência e dos assassinatos ocorrem dentro dos lares onde vivem essas mulheres. Apesar dessa estatística terrível, a realidade é que poucas apresentam queixas. A maioria tem medo. Enquanto persistir a ideologia da dominação e o machismo for tolerado, esse será o quadro que vai prosperar. Depois de tanta luta, é isso que queremos deixar para as novas gerações?
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poucas apresentam queixas. A maioria tem medo. Enquanto persistir a ideologia da dominação e o machismo for tolerado, esse será o quadro que vai prosperar. Depois de tanta luta, é isso que queremos deixar para as novas gerações? fonte: http://revistatpm.uol.com.br/revista/82/ 70 RBMA 143 páginas-vermelhas/maria-da-penha.html
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Ilustraçþes: Gabriela Lissa Sakajiri 144_171_indios.indd 144
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PRÓLOGO Criada pela lei 12.528/2011 com a finalidade de apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre setembro de 1946 e outubro de 1988, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) é instituída em 16 de maio de 2012 e tem seus trabalhos prorrogados até dezembro de 2014. Ela foi dividida em três grandes subcomissões, sendo uma delas a de Pesquisa, composta por treze grupos de trabalho. Três deles – Violações no Campo, Violações de Direitos dos Indígenas e Araguaia – ficaram sob a responsabilidade de Maria Rita Kehl. Nesta edição da Revista da Biblioteca Mário de Andrade, contamos com um artigo em que a pesquisadora resume os achados desses dois anos de trabalho. O artigo é complementado por entrevista concedida por Egydio Schwade (membro da Comissão Estadual da Verdade do Amazonas) em 15 de julho de 2015. No decorrer da pesquisa que antecedeu a entrevista, e depois do recolhimento dos testemunhos de Schwade, apareceram discordâncias da Comissão Estadual em relação ao trabalho da Comissão Nacional no que concerne à questão indígena na Amazônia. Tentamos aqui mostrar todos os lados envolvidos, já advertindo para ausência de relatos de um ator central no assunto, José Porfírio de Carvalho. Nossa viagem até Manaus tinha o intuito de conversar com ele, mas um imprevisto familiar o impediu de estar presente e, infelizmente, não conseguimos mais remarcar a conversa. Feita a ressalva, segue nosso intento de contar um pouco do que descobrimos. 70 RBMA 145
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CAMPONESES E INDÍGENAS NO RELATÓRIO DA COMISSÃO DA VERDADE Maria Rita Kehl
DOIS CAPÍTULOS INESPERADOS Quando a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída, em 2012, os sete membros se reuniram para escolher os capítulos que cada um desejava investigar durante os dois anos seguintes. Escolhi o tema das graves violações de direitos humanos contra camponeses por duas razões. Primeiro, porque meus colegas da Comissão tinham sido todos militantes de Direitos Humanos ou advogados de presos políticos durante a Ditadura Militar de 1964-85, enquanto eu fui apenas uma jornalista que escrevia em tabloides de oposição ao regime. Cabia a eles, portanto, os capítulos ligados à repressão contra opositores da Ditadura Militar, predominantemente urbanos. Em segundo lugar, porque, desde 2006, tenho uma relação de grande simpatia e alguma militância como psicanalista de membros do MST, através da Escola Nacional Florestan Fernandes. Por isso, também, já tinha noção da brutalidade com que o Estado interveio, durante a Ditadura e depois da redemocratização, na repressão aos movimentos de luta pela terra. Não me dei conta de que, desde a lei que criou a CNV, a pesquisa das graves violações de direitos humanos contra camponeses estava vinculada à pesquisa sobre as violações contra populações indígenas. Ao começar o trabalho de investigação e fazer contato com pesquisadores da questão indígena, descobri não apenas que, em termos numéricos, os índios foram as maiores vítimas de políticas de Estado conduzidas pelos governos militares no período 1964-1985. Descobri também que o padrão de violações contra populações indígenas e camponesas revela as mesmas práticas injustas, brutais e ilegais por parte de agentes do Estado brasileiro tanto no período democrático 146 RBMA 70
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da investigação da CNV (1946-1963) quanto no período ditatorial (1964-85). O que se segue é um breve resumo de alguns dos principais resultados de minha pesquisa.
O PAPEL DO ESTADO NOS CONFLITOS PELA DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS NO BRASIL É no modo de ocupação de terras no interior do Brasil que se verifica com nitidez o caráter civil-militar da ditadura de 196485, assim como a aliança dos governos democráticos pré-64 com o latifúndio, tanto no nível nacional quanto no estadual. Aliança que se estende ao período que também coube à CNV investigar, após o final da ditadura, entre 1985 e 1988. A luta pelo direito à terra no Brasil tem sido, desde a colonização, decidida pela lei do mais forte. O que me interessou ao escrever o capítulo sobre a repressão no campo foi oferecer uma rápida análise das formas tradicionais de resolução e/ou repressão dos conflitos agrários no interior do país, de maneira a ampliar a compreensão das violações de direitos humanos ocorridas no período entre 1946 e 1988. É sabido, graças às obras de estudiosos como Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e muitos outros pesquisadores do assunto, que a concentração de grandes extensões de terra nas mãos de poucos proprietários determinou tanto a constituição social e econômica da nação brasileira quanto as estruturas formais e informais de poder e mando, caracterizadas, pelo menos até meados do século XX, como semifeudais ou, no mínimo, pré-modernas. Parte desse atraso foi mantido ativamente pela ditadura civil-militar de 1964-85, revelando uma contradição no seio de seu projeto: se por um lado os governos militares investiram na modernização do país a partir de grandes obras de infraestrutura, iniciativas de apoio à indústria nacional e, sobretudo na década de 1970, de grandes empreendimentos de ocupação da Amazônia, por outro lado, trabalharam com o objetivo evidente de impedir – com brutalidade quando necessário – a modernização das relações de trabalho e a democratização das condições da posse da terra.
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Já nos primeiros dias que se seguiram ao golpe militar de 31 de março de 1964, temos notícias de prisões e torturas de lideranças camponesas, a começar por Gregório Bezerra, capturado em 2 de abril de 1964, aos 64 anos, e arrastado por um jipe pelas ruas de Recife enquanto era espancado por militares sob comando do coronel Darcy Villocq. Ou de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, então deputado federal por Pernambuco, que teve o mandato cassado logo após o golpe, foi perseguido e ficou preso até 1965.1
O CASO DAS LIGAS CAMPONESAS
Para entender a formação das Ligas Camponesas no Nordeste do Brasil na década de 1960, é fundamental que se conheça a situação de pobreza em que viviam os agricultores naquela região. Tento ilustrar a situação a partir de duas notícias de jornal: entre os dias 22 de outubro e 1o de novembro de 1960, o jornalista norte-americano Tad Szulc escreveu duas reportagens para o New York Times a respeito da “ameaça comunista” encabeçada pelo líder Francisco Julião, organizador das Ligas Camponesas.2 Para explicar o perigo representado por elas, Szulc oferece ao leitor informações sobre a miséria no Nordeste, onde vinte milhões de pessoas viviam com recursos de, em média, menos de cem dólares por ano, e onde a desnutrição e as doenças provocadas por péssimas condições sanitárias impediam que a expectativa média de vida ultrapassasse os 30 anos. Segundo o jornalista, em algumas regiões áridas do Nordeste a média anual de ganho era de cinquenta dólares. Cerca de 75% dos nordestinos eram analfabetos. O consumo médio de calorias era de 1644 por dia e a expectativa de vida, de 28 anos para os homens e 32 anos para as mulheres. Metade da população morria antes de completar 30 anos. Quanto às crianças, a maioria dos recém-nascidos morria no primeiro ano de vida em decorrência de diarreias e outras doenças gastrointestinais; em dois vilarejos no estado do Piauí, escolhidos aleatoriamente como exemplo, nenhuma criança viveu além de um ano.3 1 Informações sobre as prisões de Bezerra e Julião em Ana Carneiro e Marta Cioccari, Retrato da repressão política no campo 1962-1985. Camponeses torturados, mortos e desaparecidos, Brasília, Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2011. 2 Tad Szul, “Northeast Brazil Poverty Breeds Threat of Revolt”, New York Times, 31 out. 1960; idem, “Marxists are organizing peasants in Brazil”, New York Times, 1 nov. 1960. 3 Idem, “Northeast Brazil poverty breeds threat of revolt”. 148 RBMA 70
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Quanto às condições de trabalho dos adultos, Tad Szulc escreve que os pequenos agricultores residentes nas terras dos engenhos muitas vezes eram forçados a trabalhar três ou quatro dias para o proprietário, sem qualquer pagamento. Diante desse quadro desalentador, o jornalista conclui: “Se algo não for feito rapidamente pelo Nordeste em termos de mudanças básicas em sua estrutura econômica e social, uma irrupção revolucionária de grandes dimensões pode ser inevitável dentro de poucos anos”.4 O artigo é bastante representativo da posição não apenas dos Estados Unidos, mas também das autoridades brasileiras, a respeito da desigualdade no Nordeste. Ao descrever a miséria e a exploração dos trabalhadores do campo, Tad Szulc não revela preocupação com a reparação das injustiças ou com a criação de políticas para minorar os efeitos da monstruosa desigualdade, e sim evitar que o sofrimento dos camponeses resultasse em mobilizações “revolucionárias”. “A pobreza no Nordeste do Brasil engendra ameaça de revolta” é o título do artigo, que revela apreensão com o governador “esquerdista” de Pernambuco, Miguel Arraes, assim como com a emergência da liderança do advogado Francisco Julião. Este, ao regressar de uma visita a Havana, teria discursado para a massa de camponeses miseráveis: “queremos uma solução pacífica para seus problemas, mas se não a conseguirmos, voltaremos aqui para pedir a vocês que peguem em armas e façam uma revolução”.5 O economista paraibano Celso Furtado, encarregado pelo governo do presidente Jânio Quadros de administrar o plano quinquenal para o desenvolvimento do Nordeste, planejava criar uma rede de açudes artificiais para tentar irrigar, nos três anos seguintes, uma vasta área seca de 89 mil hectares. Uma verba de 425 milhões de cruzeiros tinha sido destinada para o plano, que previa também a transferência de cerca de vinte mil famílias de regiões do sertão nordestino para as áreas “mais favoráveis” do Maranhão e do sul da Bahia, de modo a estancar o problema crônico da desnutrição em lugares descritos por Furtado como das regiões com “mais precárias condições de sobrevivência no mundo”. O artigo seguinte publicado por Tad Szulc no New York Times, no dia 1o de novembro de 1960, “Marxistas estão organizando camponeses no Brasil”, tem como foco a organi4 Idem, ibidem. 5 Idem, ibidem. 70 RBMA 149
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zação das Ligas Camponesas.6 O repórter foi até o Engenho da Galileia, que abrigava 1093 pessoas e foi a “primeira propriedade (no Nordeste) concedida aos camponeses, depois de uma revolta civil (organizada) pela Liga Camponesa”. O jornalista, presente à reunião de associados das Ligas ocorrida na Galileia, reportou a ênfase dos participantes em uma “solução pacífica” para os repetidos conflitos entre agricultores e fazendeiro, e constatou que a emergência de qualquer forma de organização em defesa dos direitos dos camponeses explorados seria inevitável. Mas a ênfase do artigo recai sobre o perigo comunista representado por Francisco Julião: “Os cantadores do Nordeste, que antes cantavam os amores e as divergências do orgulhoso povo daqui, agora cantam sobre a reforma agrária e outros temas políticos. Eis o refrão: ‘O açúcar que vendemos/ à América capitalista/ se adoça o leite da Espanha franquista/ vai servir prá adoçar o vinho do mundo socialista’”.7 Os dois artigos revelam tanto a posição do governo e da sociedade norte-americana diante do “perigo da reforma agrária” no Brasil, quanto a posição da elite brasileira, a começar pelos latifundiários da região. O projeto de distribuir parte da terra concentrada na mão de poucas famílias entre agricultores sem terras ameaçou as bases de sustentação da ordem no Brasil e das relações do país com os Estados Unidos. A “ameaça” de reforma agrária foi, com efeito, um dos fatores determinantes para o apoio norte-americano ao golpe militar de 1964. Entre a criação das Ligas Camponesas e o golpe de 1964, a imprensa brasileira também publicou uma série de reportagens sobre a situação dos trabalhadores rurais do Nordeste, a exemplo dos artigos escritos por Antonio Callado para o Diário da Manhã (RJ) entre os dias 10 e 23 de setembro de 1959, em 29 6 Idem, “Marxists are organizing peasants in Brazil”. 7 Idem, ibidem.
de novembro e em 2 de dezembro do mesmo ano. Depois de percorrer o interior de Ceará, Paraíba e Pernambuco, Callado denunciou a “indústria da seca”: o uso das verbas para prevenção da falta de água nos municípios nordestinos em benefício exclusivo dos grandes fazendeiros locais – por exemplo, a privatização do acesso aos açudes criados pelo governo. As reportagens de Callado atendiam a interesses do presidente Juscelino Kubitscheck, que buscava conquistar apoio do Congresso para implementar o projeto Operação Nordeste (origem da criação da Sudene), elaborado por Celso Furtado para resolver o problema da grande seca de 1958. Durante o período pesquisado pela CNV, constatamos que apenas uma parte das mortes no campo foi motivada por conflitos políticos, no sentido maior da expressão. Agentes do Estado reprimiram, com violência, posseiros que se organizaram para tentar obter o direito de permanecer em terras devolutas (ainda quando desconhecessem que a lei os protegia em sua condição de uso da terra para sustento das famílias); ou que se uniram a companheiros de pobreza para combater, com ou sem um projeto político mais amplo, a exploração de seu trabalho pelos fazendeiros. Foram os casos da repressão à Guerrilha de Porecatú (Paraná, 19501957), à ocupação de Trombas e Formoso (Goiás, 1949-1964) – com a prisão e desaparecimento do líder José Porfírio – e às Ligas Camponesas no Nordeste (1960-1964). Ou das prisões e torturas dos camponeses que apoiaram direta ou indiretamente os guerrilheiros no Araguaia (1972-75). No caso do Araguaia, prisões arbitrárias, torturas sistemáticas e assassinatos foram praticados mesmo contra camponeses que desconheciam o projeto de guerrilha dos “paulistas”. O terrorismo de Estado praticado contra camponeses no Bico do Papagaio prosseguiu depois do extermínio dos guerrilheiros – a matar e torturar líderes de sindicatos rurais e reprimir com violência associações de pequenos lavradores que
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não queriam perder a terra onde trabalhavam, assim como a ação de padres e freiras que os defendiam. O mesmo se repetiu na prelazia de São Félix, em Mato Grosso, sob responsabilidade de dom Pedro Casaldálig – também ele ameaçado de morte. Antes do Golpe Militar, o Estado já reprimia camponeses que lutaram por direitos trabalhistas recém-conquistados (década de 1950), sempre no sentido de favorecer as práticas inconstitucionais dos grandes proprietários de terra. Da mesma forma, o Estado brasileiro esteve quase sempre ao lado dos grandes invasores de terras e dos beneficiários de fraudes cartoriais – fossem empresas ou famílias tradicionais – contra os posseiros que tiravam das terras devolutas sua sobrevivência. Governos estaduais e prefeituras, o exército e a polícia, o governo federal e o sistema judiciário viraram sistematicamente as costas para as necessidades do trabalhador rural e para a luta dos pequenos agricultores pelo direito de cultivar um pedaço de terra. As terras do meio rural do Brasil eram consideradas sem dono, a contrapelo da lei e à revelia das populações que viviam nelas e as cultivavam. Vale também apontar a negligência sistemática do Estado em apurar e punir criminosos e mandantes, e em particular a impunidade com que o Poder Judiciário garantiu aos mandantes e executores de crimes praticados por pistoleiros de aluguel – o número de assassinatos de autoria “desconhecida” sugere o descaso dos representantes da lei em apurar os crimes contra trabalhadores rurais. Tal posição do Estado diante dos conflitos pela terra, sempre em apoio aos grileiros e grandes proprietários, a criminalizar sistematicamente as tentativas de resistências de posseiros, estende-se até
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o final do período das investigações atribuídas à CNV: o ano da constituinte democrática de 1988. Foi quando a democracia incipiente do governo do presidente José Sarney, aliado aos governos dos estados de Goiás, do Pará e do Maranhão, deu seu consentimento tácito às ações armadas comandadas pelos membros da UDR (União Democrática Ruralista), criada por fazendeiros de Goiás, mas que logo se expandiu para todo o país. A UDR tornou-se o agente ideológico e o articulador político da violência do latifúndio, que, em defesa de suas terras, passou a fomentar de forma sistemática e organizada a violência no campo e promover assassinatos de posseiros, sindicalistas e advogados de causas dos camponeses. Enquanto os camponeses que tentavam defender suas posses continuaram a ser reprimidos como “terroristas”, uma organização armada criada por fazendeiros recebeu uma espécie de aval não declarado do Estado para reprimir e matar, à margem dos dispositivos legais, em nome do direito de defesa da propriedade – fosse ela legítima ou tomada à força das famílias de posseiros.
OS ÍNDIOS E A DITADURA MILITAR Quase todos os índios do Brasil viviam em suas “nações”, distantes do poder central. Durante os 21 anos de ditadura militar, em que as populações indígenas sofreram violências e assassinatos em massa equivalentes a genocídios, não se pode afirmar que todos os grupos vitimados tenham lutado direta e intencionalmente contra o governo. De acordo com os depoimentos que tomamos em visitas a aldeias mais distantes dos grandes centros, grande parte desses brasileiros – que hoje representam apenas 0,47% da população – nem sequer sabia que o país vivia sob poder de militares; aliás, não sabiam sequer que suas terras pertenciam a um “país” governado por gente de outra etnia que, por sua vez, ignorava quase tudo a respeito da existência deles. Vejam o depoimento do líder Davi Yanomami quando visitamos sua aldeia pela CNV: Eu não sabia que existia governo. Veio chegando de longe até nossa terra: são pensamentos diferentes de nós. Pensamentos de tirar mercadoria da terra: ouro, diamantes, cassiterita, madeira, pedras preciosas. Matam árvores, destroem a terra mãe, como o povo indígena fala. Ela é que cuida de nós. Ela nasceu, a natureza grande, para a gente usar. Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. Não só os Yanomami: o povo do Brasil. A estrada é um caminho de invasores, de garimpo, de agricultores, de pescadores. Tiram 'biopirataria' sem avisar nós. Estradas que o governo construiu começaram lá em Belém, depois Amapá, Manaus, Boa Vista. Mataram nossos parentes Waimiri-Atroari. É trabalho ilegal. O branco usa palavra ilegal. 152 RBMA 70
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As violações de Direitos Humanos contra povos indígenas ocorreram durante todo o período de 1946 a 1988, mas começaram muito antes disso. No entanto, a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, foi pautada pela máxima ditada pelo Marechal Rondon para as frentes de aproximação com tribos isoladas: “morrer se preciso, matar nunca”. Nos primeiros vinte anos de existência do SPI, nenhum índio foi morto por indigenistas, embora muitos desses servidores tenham morrido na aproximação com tribos isoladas. Mas as aproximações pacíficas de agentes do SPI abriam caminho para invasões de colonos, criadores de gado e garimpeiros. Só o contato com os brancos e as doenças que eles traziam incubadas já vitimava grande parte das populações indígenas. Darcy Ribeiro chegou a denunciar os efeitos devastadores de epidemias de gripe, sarampo e outros agentes mórbidos levados por pessoas civilizadas para as populações indígenas. E quanto às tribos “integradas” ao modo de vida da sociedade não indígena? Darcy Ribeiro observa que os índios eram considerados “minoria indesejável, [...] expulsa de territórios que antes eram seus de direito e forçada a vagar de um lugar para outro [em...] condições mais precárias de vida, na maior miséria”.8 E não conseguiam se “assimilar” à cultura branca. Havia um passo final que não conseguiam dar. Menos mal para os índios que até o final dos anos de 1950 a população brasileira se concentrava de maneira absoluta no litoral. A partir da construção de Brasília é que o país se interioriza e, então, a vida de grupos indígenas se transforma num inferno. Em 1968, o relatório final da “CPI do SPI”9 apontou inúmeras maldades no trato com os índios, principalmente no atual Mato Grosso do Sul, onde ocorria cessão de terras para explo8 Darcy Ribeiro apud Janice Hopper, Indians of Brazil in the Twentieth Century, Washington DC, Institute for Cross-Cultural Research, 1967, p. 79. 9 O relatório ficou conhecido como “Relatório Figueiredo”. O documento ficou oculto por mais de quarenta anos e foi redescoberto no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 2013. É possível acessar o documento de mais de sete mil páginas, divididas em trinta volumes, totalmente digitalizado, em vários locais na internet. Indicamos um deles: http://www.janetecapiberibe.com.br/component/content/article/33-relatoriofigueiredo/20-relat%C3%B3riofigueiredo.html. 70 RBMA 153
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ração agropecuária. Ali o habitante indígena virava mão de obra barata ou trabalhava em condições análogas à escravidão. Um dos principais responsáveis por desvios de verba, perseguição a funcionários e outras práticas irregulares foi o então diretor do SPI, tenente coronel Moacyr Coelho, que após o golpe de 1964 tornou-se um dos fundadores do SNI (Serviço Nacional de Informações) e, mais tarde, diretor-geral da Polícia Federal. Na verdade, o SPI nem acreditava nos ideais de assimilação dos índios. A política indigenista brasileira, entre 1930-1967, tinha como pressuposto ideológico a crença de que o fim dos índios era inevitável. As pesquisas da CNV mostram que os índios foram as maiores vítimas da ditadura militar de 1964-88 se considerarmos o total de mortes causadas pela aproximação, descuidada ou agressiva, de grupos brancos com participação de agentes do Estado: a soma dos casos que pesquisamos indica que cerca de cinco mil indivíduos teriam sido mortos só no período de 1964 a 1985. Se considerarmos a partir de 1946, ano-base da pesquisa da CNV, a cifra do extermínio pode chegar a mais que o dobro. A partir da década de 1970, a questão indígena foi incluída na pauta dos protestos contra a Ditadura e parte da sociedade brasileira se mobilizou em defesa da demarcação das terras indígenas. Alguns líderes indígenas também participaram, em nível nacional, da campanha pela demarcação das terras dos povos originários. O capítulo do relatório da CNV dedicado às graves violações de direitos humanos contra povos indígenas revela as seguintes motivações políticas dos governos militares na direção das ações deliberadas de extermínio das populações originárias do Brasil: 1. O trato autoritário, para não dizer brutal, dos conflitos pela terra no Brasil, perpetuando injustiças históricas e reprimindo demandas justas e razoáveis com a mesma
mão pesada com que os militares reprimiram os grupos que faziam oposição política contra o governo. Nesses conflitos, foram mortos centenas de indígenas e camponeses, além de padres que tentavam proteger essas populações mais vulneráveis da violência de fazendeiros e garimpeiros. 2. A relação dos governos militares com certos grupos econômicos “presenteados” com grandes fazendas na Amazônia, assim como com donos de empreiteiras escolhidas para tocar grandes obras mal planejadas. Nossa pesquisa revelou, por exemplo, a abertura de uma estrada inútil, que invadiu a terra Yanomami e até hoje está inconclusa (o trecho da Perimetral Norte, em Roraima) e uma hidrelétrica (Balbina) construída na área dos Waimiri-Atroari. Essa obra, aliás, é um caso de consenso único no Brasil: todos concordam que tenha sido um desastre na área da engenharia e no campo da ecologia. São obras que revelam o contexto arbitrário e corrupto da ditadura civil-militar, com um imenso custo em números de vidas indígenas. 3. O desprezo e a irresponsabilidade dos órgãos públicos frente as populações mais frágeis do país, que eram expulsas de suas terras sem reparação, em um período em que a censura à imprensa impedia que a sociedade urbana e politizada soubesse disso. Vale acrescentar a irresponsabilidade da própria Funai durante a ditadura, que enviava seus funcionários em frentes de “atração” sem vaciná-los contra as doenças que vitimavam as populações indígenas e sem ao menos fornecer medicamentos que pudessem minimizar os efeitos do contágio. Antonio Cotrim foi um agente da Funai que, em 1972, demitiu-se e deu uma corajosa entrevista à revista Veja na qual dizia: “Não quero ser coveiro de índios”. Nas mais de 120 tribos isoladas que habitavam áreas da
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Amazônia e do Centro-Oeste, os indígenas continuaram a ser dizimados por epidemias trazidas pela aproximação descuidada dos brancos. São casos em que a CNV pode acusar o Estado brasileiro de participar, por omissão deliberada, do extermínio de um enorme contingente da população indígena do interior do país. Mas também no período democrático (1946 a 1964), o Estado brasileiro participou, por ação direta ou por omissão, de outros tipos de violações de direitos contra povos indígenas. É o caso dos Xavante do Mato Grosso, dos Pataxó do sul da Bahia e de muitos outros que prestaram depoimentos à CNV.
A CRIAÇÃO DA FUNAI A Funai foi criada em 1967 para substituir o SPI na tarefa de contribuir com os grandes empreendimentos estatais e particulares, a ser desenvolvidos em vastas áreas ainda “desocupadas”10 na Amazônia e no Centro-Oeste, onde a presença indígena era considerada obstáculo ao progresso. É evidente a contradição entre os objetivos da Funai e os interesses do órgão ao qual ela era subordinada (Ministério do Interior). A Funai deu continuidade ao ideal evolucionista e assimilacionista do antigo SPI ao assumir a missão de intermediar a inevitável assimilação dos povos indígenas ao modo de vida do homem branco. Nos primeiros anos da década de 1970, os comandantes militares da Funai passaram a facilitar a remoção de populações indígenas e a apropriação de suas terras para execução das grandes obras estatais e particulares de ocupação da Amazônia. Nos primeiros anos de sua criação, a Funai deveria se guiar pelos princípios dos irmãos Villas-Bôas no Parque Nacional do Xingu: a inviolabilidade dos territórios indígenas e a “aculturação espontânea” dos índios. Mas, a partir de 1970, os planos de desenvolvimento econômico e de integração nacional exigiriam mudanças na política indigenista a fim de cumprir dois propósitos incompatíveis: preservar a integridade dos povos indígenas do Brasil, de modo que o Regime pudesse manter uma boa imagem no exterior e, ao mesmo tempo, impedir que grupos indígenas se tornassem obstáculos aos projetos que atingiriam seus territórios.11 10 Os certificados de “não presença indígena” eram com frequência concedidos pela Funai a partir de fotografias aéreas de regiões, na Amazônia, onde a alta copa das árvores impedia a visão das aldeias que a floresta abrigava. A Funai certamente sabia disso. 11 Trecho de pesquisa do estagiário Marcelo de Souza Romão para a CNV. 70 RBMA 155
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A intervenção deliberada do Estado em terras indígenas a favor de grandes obras de infraestrutura provocou graves impactos sobre as etnias afetadas, levando a acentuado decréscimo populacional por doenças infectocontagiosas trazidas pelos “civilizados”, entre os quais, os próprios integrantes (inadvertidos) das “frentes de atração” da Funai. Além do contágio por doenças, as invasões das terras indígenas por fazendeiros, posseiros e garimpeiros ocorreram sempre com uso de violência para expulsar os ocupantes históricos daquelas regiões. As tentativas violentas de assimilação dos índios aos costumes da dita “civilização” foram consideradas pela CNV como ações etnocidas. Ninguém impede o indivíduo de origem indígena de viver nas cidades, arrumar emprego, tornar-se cristão, comprar comida no supermercado. Mas vale perguntar por que tão poucos desejam isso, mesmo com a presença da televisão a fazer propaganda da sociedade de consumo em muitas aldeias. Como observou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: No Brasil todo mundo é índio exceto quem não é. E quem não é? Aqueles que a feitiçaria capitalista e a máquina colonial conseguiram transformar em "pobres" (perdeu, índio! Dançou, negro!), ou aqueles que querem fazer os pobres um pouquinho menos pobres, justo o necessário para que eles possam, como bons trabalhadores [...] comprar (a crédito, claro) o celular e a TV importados da China. Mas antes que consigamos, aqui e "lá fora" transformar todos os índios do mundo em pobres, os pobres terão se transformado em índios.12
Penso que o foco da questão está equivocado. A defesa das terras indígenas visa a preservação de culturas e modos de vida que integram a diversidade e a riqueza 12 Eduardo Viveiros de Castro, “O índio em devir”, Baré: povo do rio, São Paulo, Edições Sesc, 2015, p. 13.
cultural brasileiras, das quais também nós, “brancos”, não deveríamos nos esquecer, pois temos muito a aprender com elas. ALGUNS CASOS DE ETNOCÍDIO CAUSADOS A PARTIR DE GRANDES OBRAS GOVENAMENTAIS “Uma área rica como esta [Roraima] com ouro, diamantes e urânio não pode dar-se ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas que estão atrasando o desenvolvimento do Brasil” General Fernando Pereira, O Estado de S.Paulo, mar. 1975 “Os índios não podem impedir a passagem do progresso [...] dentro de dez a vinte anos não haverá mais índios no Brasil” Ministro do Interior Rangel Reis, jan. 1976
1. TRANSAMAZÔNICA E HIDROELÉTRICA DE TUCURUÍ. Os Parakanã (Awareté) sofreram uma redução de duzentos para noventa indivíduos. As sindicâncias de 1972 e 1976 foram abafadas pela Funai. 2.BR-80 (XAVANTINA-CAXIMBO). Os Kaiapós (Txukarramães) tiveram muitas perdas em mortes por sarampo. O sertanista Cláudio Villas-Bôas acusou o então presidente da Funai, general Jerônimo Bandeira de Mello, de responsabilidade pelo conflito. “Esse general corrupto não só favoreceu o desvio da estrada para o interior do parque como também expediu 102 certidões atestando que não havia índios em 102 áreas habitadas por tribos.” 3. BR-165 (1971 – CUIABÁ-SANTARÉM) – KREEN-AKARÔRE (PANARÁ). Documento de Ezequias Heringer relata o contato indiscriminado com não índios, inclusive com militares do Nono Batalhão de Engenharia de Construção do Exército (9o BEC) responsáveis pela obra. A situação da “Aldeia Nova”, última a ser contatada pela
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equipe de atração, em 10 de dezembro de 1973, é particularmente dramática pelo fato de todos os índios, segundo ambos os documentos, estarem gripados. O velho chefe Iakil, bastante doente, nos implorou que trouxéssemos comida para as crianças, o que nos impressionou bastante. Além disso, encontramos os índios todos gripados [...] contaminados na estrada, recentemente. Atualmente, tem-se uma média de dez índios diariamente na estrada, que são sistematicamente alimentados, festejados e até escondidos pelos estradeiros, para que fujam à ação da Funai. É quando o índio deixa de ser gente para ser simples objeto curioso. [...] A preocupação maior vem da certeza do hábito adquirido da cachaça e da possibilidade da prostituição.13
4. PERIMETRAL NORTE – 1974. O CASO YANOMAMI: Começou a ser aberta em 13 Relatório do técnico indigenista Ezequias Paulo Heringer Filho, lotado na frente de atração Peixoto de Azevedo, 28 dez. 1973. BR. AN, BSB AA3. PSS. 63, p. 14-18/175, Fundo: ASI-Funai (Arquivo Nacional).
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1974 a BR-210 (Perimetral Norte) que atingiria grande trecho do território Yanomami. O contato feito sem os devidos cuidados vitimou muitos índios dessa tribo. Em 1974, um comunicado da Missão Catrimami (RR) dá notícia de doenças provocadas pelo contato de índios com trabalhadores da estrada.14 Desde o início dos contatos com a estrada, há continuamente muitos casos de gripe e ultimamente muitas doenças de pele devido ao uso de roupas usadas dos trabalhadores da Perimetral Norte. Ainda há muitos casos de malária. Solicito providências urgentes para controlar os contatos dos índios com os trabalhadores, visando reduzir os abusos e salvar aquilo que é ainda possível, pois há já suspeita de doenças venéreas em duas mulheres Yanomami do rio Ajarani.15 14 Comunicado (Prelazia de Roraima/Missão Catrimâni), de ir. Carlo Zacquini I.M.C (responsável), 29 dez. 1974. BR. AN, BSB AA3. dti. 23, p. 134, Fundo: ASI-Funai (Arquivo Nacional). 15 Relatório de Atividades de Saúde-Missões religiosas (Funai; DGPC; Divisão de Saúde), de ir. Carlo Zacquini I.M.C. (responsável), 1 jan. 1975. BR. AN,
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Um documento de 1980 demonstra os profundos impactos sociais que a rodovia trouxe para os Yanomami seis anos após o início das obras, a começar pelo grande número de casos de prostituição das índias pelos soldados encarregados da obra. A estrada chegou sem preparação nenhuma, ninguém veio avisar os índios, foi truculento. Logo depois apareceu uma matéria no Estado de São Paulo: "Tratores encontram índios nus", "Ninguém sabia que havia índios lá". Como alguém, com o mínimo interesse no assunto, diria uma coisa dessas? Foi descaso da Funai. Era de propósito, ou a Funai acabou com os índios? [...] Não vi socorrerem doentes de uma epidemia de tuberculose. [...] No Ajarani, antes da estrada, havia catorze ou quinze aldeias. Ao final da estrada restaram só cinquenta índios [...]. Até hoje a população original é muito pequena. Quando essa parte da estrada ficou pronta, vinham ônibus de turistas para verem os "índios pelados". Não sei se a estrada pasBSB AA3. DTI. 23, p. 132, Fundo: ASI-Funai (Arquivo Nacional). Ver resposta da Funai ao documento citado anteriormente: Ofício n. 004/10ª DR/75 (Funai), de José Muniz Carneiro (Delegado Substituto da 10ª DR), para Diretor do dgo, 8 jan. 1975. BR. AN, BSB AA3. dti. 23, p. 133, Fundo: ASI-Funai (Arquivo Nacional).
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sou sobre malocas, mas sim sobre as roças deles. A abertura da Perimetral foi de 1973, 1974, até 1976. Em 1976, começou a faltar dinheiro e a Camargo Correia foi embora. Os índios que sobraram ficaram mendigando dinheiro dos peões... Quando foram embora, os índios passaram fome porque não tinham mais suas roças.16
5. BR 174 – OS WAIMIRI-ATROARI. 17 Em função da construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista), ocorreu um brutal decréscimo populacional que vitimou os Waimiri-Atroari no espaço de pouco mais de uma década. Entre 1970 e 1986, mais da metade da população desapareceu. O que teria acontecido com essas pessoas não é satisfatoriamente esclarecido. Aproximadamente em uma década, os Waimiri-Atroari sofreram um decréscimo populacional próximo da faixa de 50%. Porfírio Carvalho, ex-agente da Funai e atual coordenador do projeto W-A, afir16 Trecho do depoimento do missionário Carlo Zacquini à CNV. 17 Por sugestão de Maria Rita Kehl, tentamos entrevistar, a respeito dos Waimiri-Atroari, José Porfírio de Carvalho. Não conseguimos uma entrevista, mas conseguimos um depoimento de Egydio Schwade, que também nos forneceu os dados obtidos pela Comissão Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas. A transcrição da conversa e um resumo dos fatos apresentados no livro A Ditadura Militar e o genocídio do povo Waimiri-Atroari serão apresentados na próxima matéria.
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ma: “O governo passou a estrada atropelando direitos e pessoas. Em 1981, quando terminou a estrada, encontrei na mata dezessete crianças isoladas, escondidas, sem nenhum adulto com elas. Dormiam grudadas comigo”. Aos poucos as terras próximas da rodovia foram ocupadas, assim como as áreas no entorno da reserva, ilhando as terras indígenas e reduzindo as possibilidades de “fuga”. Esse processo era estimulado pelo próprio governo, graças a projetos de colonização e reforma agrária previstos no Plano de Integração Nacional.18 Em 1979, foi construída a Hidroelétrica de Balbina, que, segundo a Eletronorte, inundou trinta mil hectares de terras indígenas, forçando a transferência de duas aldeias das áreas atingidas pela inundação.19 Uma hidroelétrica de pequena vazão e pouca utilidade. 6. REFORMATÓRIO KRENAK E GUARDA RURAL INDÍGENA. Um dos casos mais graves de violações contra indígenas, o reformatório foi implantado sob a adminis18 Relatório (Funai), de Kazuto Kavamoto (delegado regional da 1 a dr); Noraldino Vieira Cruvinel (antropólogo dgpc); Marcos José de O. Martins (auxiliar técnico de topografia); Sebastião Nunes Firmo (sertanista coordenador Plano de Atração Waimiri-Atroari), 20 ago. 1977. Processo: UNAI/BSB/2625/81, fl. 63; Assunto: Identificação e delimitação da terra indígena Waimiri-Atroari, localizada no município de Airão, Estado do Amazonas. I Volume (Sedoc-Funai). 19 Programas indígenas: impactos provocados. Disponível em: http://www.eln.gov.br/opencms/opencms/ pilares/meioAmbiente/programasIndigenas/index. html. Acesso: 24 ago. 2015.
tração do capitão da PM de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinheiro. Para lá eram levados os índios que se opunham aos ditames dos administradores de suas aldeias. Ali eram submetidos a castigos físicos, trabalhos forçados, repressão por parte da PM de Minas Gerais e de índios da Guarda Rural Indígena (GRIN). Essa aberração foi criada no final de 1969 para “manter a ordem interna nas aldeias”. Para isso, tiveram formação para se tornar policiais, inclusive com aulas de tortura. Um filme em super 8 feito pelo fotógrafo alemão Jesko Putkamer, encontrado por Marcelo Zelic, mostra um desfile de indígenas fardados com uniforme da Guarda Rural Indígena aplaudidos pelos que assistiam (inclusive militares) enquanto dois índios seguram um companheiro pendurado no pau de arara, como demonstração de técnicas repressivas aprendidas pela GRIN. Um agente da cia, Dan Mitrioni (assassinado depois por Tupamaros no Uruguai), ensinou tortura para soldados indígenas do Mato Grosso. O Estado de S. Paulo relatou crimes da Guarda Rural Indígena na Ilha do Bananal, inclusive orgias sexuais forçadas. Mas os índios da GRIN também devem ser considerados vítimas por terem sido treinados a torturar à força. Na Cadeia Krenak, criada em 1969, em Resplendor, Minas Gerais, os Xavantes, como “guardas”, prendiam os Terena e os Guarani, os Kraô, Maxacali e Pankararu, e os enviavam para o Presídio Krenak. Os motivos de prisões eram desde assassinatos e roubos até embriaguez e desobediência às ordens dos chefes de postos da Funai. Os índios viviam ali confinados. Pescar, só com autorização do capitão Coelho. Caçar, não se podia. Não podiam sair das aldeias (“território tribal”) sem autorização, do contrário seriam presos. A pederastia era crime. Um índio Urubú foi preso e tentou suicídio com corte de gilete no abdômen. 70 RBMA 159
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Foi hospitalizado, depois ficou sete meses no reformatório. A polícia batia em índios que não entendiam nem falavam o português, para que confessassem os crimes. Há mortos e desaparecidos nesse processo. 7. RELATÓRIO DOS SURUÍ-AIKEWARA À CNV – OUTRO CASO GRAVÍSSIMO. O Exército coagiu os Suruí para participar das buscas aos guerrilheiros do Aragauaia. Os índios nem sabiam quem eram os “terroristas”: Entre 1972 e 1974, ocorreu a expedição mais repressiva à Guerrilha do Araguaia, que exterminou todos os guerrilheiros aprisionados e ocultou os cadáveres. Além de terem sua aldeia cortada por uma estrada operacional, por onde as tropas se locomoviam no combate à guerrilha, os Suruís foram “recrutados” para servir de guias das forças do governo na selva. Eles foram defendidos pelo frei Gil Gomes, que entrou em atrito com a Funai (favorável à nova atividade dos Suruís) e depois com os militares. Frei Gil fez de tudo para evitar o emprego dos índios como guias, por isso, os soldados chegaram a receber ordens superiores para prendê-lo, sem consideração com a Igreja. Vários índios jovens, velhos e adultos foram obrigados por militares a guiá-los dentro da mata à procura de guerrilheiros que eles desconheciam. Nessas expedições, cujo objetivo eles não compreendiam, os homens sofreram ameaças e espancamentos, além de graves privações de sono, de abrigo e principalmente de alimentos. Na aldeia, crianças e mulheres ficaram confinadas pelo exército, tiveram suas colheitas e casas incendiadas, sofrendo fome e privações. Com seu território ocupado pelas forças repressivas, proibidos de ir à roça, caçar, coletar, pescar e fazer seus rituais, os Aikewara tiveram destruídas suas bases materiais e simbólicas de existência. 8. INUNDAÇÃO DAS TERRAS DOS AVA GUARANI DO OESTE DO PARANÁ PARA A CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA DE ITAIPU. Outro caso de remoção forçada de grupos indígenas se deu durante a construção da usina hidroelétrica de Itaipu (UHE Itaipu). Em 1982, os Guarani que habitavam a região a ser inundada foram removidos para uma exígua faixa de terra à beira do lago de Itaipu, sem qualquer paridade em tamanho e condições ambientais com o território ocupado anteriormente, o que também violava a legislação indigenista vigente. Nesse local, a população guarani foi acometida por surtos de malária e doenças decorrentes do uso de agrotóxico pelos colonos vizinhos que dizimaram parte da população.20 Ao longo desse processo, a população Guarani lutou intensamente contra tal supressão de direitos, recorrendo a advogados, antropólogos e ao próprio Banco Mundial (financiador da UHE Itaipu), denunciando as sucessivas fraudes de que foi vítima e cobrando justa reparação pelo prejuízo sofrido. Muitos indígenas morreram durante esse conflito. 20 Cf. laudo antropológico sobre a TI Oco’y, assinado por Maria Lúcia Brandt Carvalho, em anexo (MJ/Funai, 2005). 160 RBMA 70
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CONCLUSÃO Sabemos que a investigação da Comissão Nacional da Verdade, empreendida no curto período de dois anos e meio e sem nenhuma cooperação dos ex-agentes da repressão remanescente do período ditatorial, não conseguiu dar conta do total das violações contra camponeses e indígenas. Por causa da extensão do território nacional, da falta de documentação acessível sobre as ações dos governos militares contra essas populações mais frágeis e isoladas, do longo período de tempo decorrido desde o final da ditadura até a criação da CNV (que provocou a destruição/desaparição de muitos documentos e a morte de várias testemunhas), nossa investigação deixou muito a desejar. Mas não me arrependi de ter escolhido esses dois capítulos, que não poderiam ter ficado de fora do relatório final da CNV. Além disso, a experiência das visitas a regiões onde houve revoltas camponesas e a terras indígenas ainda preservadas mudou a visão que tinha do país em que vivo. Descobri que o Brasil é muito mais interessante e mais rico culturalmente do que eu imaginava. Por fim, devo mencionar e agradecer a inestimável colaboração de Pedro Pontual (secretário executivo da CNV em 2012), Marcela Telles e Wilkie Buzatti (pesquisadores da UFMG), Vincent Carelli (cineasta especializado na questão indígena), Inimá Simões (estudioso da questão indígena) e da única historiadora contratada pela CNV, professora Heloísa Starling, também da UFMG. Devo muito também à enorme generosidade dos grupos de pesquisa indígena ligados ao Instituto Sócio Ambiental: Beto e Fany Ricardo, Marcelo Zelic e, em particular, os pesquisadores do Centro de Trabalho Indígena (Inês Ladeira, Daniel Pieri, Ian Packer e muitos outros). A todos eles, minha homenagem pela qualidade da pesquisa e meu forte agradecimento.
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O CASO DOS WAIMIRI-ATROARI: DEPOIMENTO DE EGYDIO SCHWADE Em 1968, o Governo Militar invadiu com a rodovia BR-174, Manaus-Boa Vista, o território Kiña (Waimiri-Atroari). Em 1975, pelo menos duas mil pessoas já haviam desaparecido, todos pertencentes ao povo Kiña. Isso porque se opunham ao processo de invasão de seu território imposto pelos Militares. Entre 1972 e 1975, a população Kiña reduziu de três mil para menos de mil pessoas. Em 1981, o governo federal iniciou a construção da usina hidrelétrica de Balbina e, para tanto, desmembrou a parte leste do território Waimiri-Atroari. A usina inundou cerca de trinta mil hectares do território, implicando na remoção de, pelo menos, duas aldeias. O desmembramento da terra visava também ceder vastas porções do território a companhias mineradoras, que, desde a década de 1970, pediam autorização para prospecção mineral na área. Além da atividade mineradora, as terras dos Waimiri-Atroari foram ainda invadidas por posseiros e fazendeiros que se instalavam às margens da BR174 e ao sul da reserva. Segundo estudo da Funai, em 1981, o governo do estado do Amazonas já havia emitido 338 títulos de propriedade incidentes sobre a área da reserva Waimiri-Atroari. O esquema ficou conhecido como “grilagem paulista”. No bojo desse processo, o governo militar apoiou ainda iniciativas de colonização do território Waimiri-Atroari, com financiamentos de atividades agropecuárias.21 Em 1987, o Governo Federal passou o comando da política indigenista para a Eletronorte, que apenas mudou de estratégia, continuando o controle das informações e a política de isolamento dos índios como no tempo dos militares. O resultado de tais medidas foi devastador, segundo dados coletados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), “em 1987 eram somente 420, tendo chegado a 350 em 1983”.22 21 Brasil. Comissão Nacional da Verdade (CNV), Relatório: textos temáticos, Brasília, CNV, 2014 (Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. ii), pp. 235-6. 22 Schwade, Egydio, “A atual política indigenista brasileira permanece nos moldes deixados pela ditadura militar”, entrevista disponível em: http://www.ihu.unisinos. br/entrevistas/528748-evangelizacao-e-o-que-ajuda-los-a-lutar-pelas- suas-terrasentrevista-especial-com-egydio-schwade. Acesso: 21 fev. 2015. 162 RBMA 70
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Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e membro do Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas, afirma em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), em 2014,23 que “desapareceram nove aldeias na margem esquerda do médio rio Alalaú; pelo menos seis aldeias no vale do Igarapé Santo Antônio do Abonari; uma na margem direita do baixo rio Alalaú; três na margem direita do médio Alalaú; as aldeias do rio Branquinho, que não aparecem nos relatórios da Funai; e, pelo menos, cinco aldeias localizadas sobre a Umá, um varadouro que ligava o baixo rio Camanau (proximidades do rio Negro) ao território dos índios Wai-Wai, na fronteira guianense. Pelo menos uma delas foi massacrada por bombardeio de gás letal, com apenas um sobrevivente”. 23 idem, ibidem.. 70 RBMA 163
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Fotos: Gabriela Lissa Sakajiri
Essa é uma das histórias envolvendo os povos indígenas e a Ditadura Militar no Brasil. Casos semelhantes podem ser observados com os índios Krenhakarore do Peixoto de Azevedo no Mato Grosso, os Kané (tapayuna ou Beiços-de-pau) do rio Arinos no Mato Grosso, os Suruí e os Cinta Larga de Rondônia e Mato Grosso e outros. No entanto, nenhum desses homens, mulheres e crianças é citado nas relações dos desaparecidos da Ditadura. As investigações da CNV levaram a um número estimado de 8.350 indígenas mortos entre 1945 e 1988 em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos afetados foi analisada.24 A seguir, transcrevemos a conversa que tivemos com Egydio Schwade em sua residência em Presidente Figueiredo (AM), a 15 de julho de 2015, sobre o genocídio do povo Waimi-Atroari perpetrado durante a Ditadura Militar. 24 Brasil. Comissão Nacional da Verdade (CNV), Relatório: textos temáticos, Brasília, CNV, 2014 (Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. ii), p. 205.
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PRIMEIRO CONTATO E PROGRAMA DE ALFABETIZAÇÃO “Eu acompanho a tragédia sofrida pelos Waimiri-Atroari desde a década de 1980. Eu e minha mulher já havíamos feito contato clandestino com eles. Em 1985, com apoio de um grupo de trabalho formado pela Funai, pelo Cimi e pelos próprios indígenas, foi desenvolvido um programa de alfabetização na língua nativa dos Waimiri-Atroari. Nós, eu e minha esposa, nos oferecemos para a realização da tarefa e iniciamos o trabalho. As atividades eram fiscalizadas regularmente pela Funai por meio do único linguista que eles tinham na época no Brasil. O projeto também contou com a ajuda da Universidade de Brasília, que assumiu o trabalho de pesquisa antropológica que já vinha sendo realizado pelo professor Stephen Baines. Esse representante da Funai chegou a declarar que, se a instituição quisesse fazer uma ação a favor dos Waimiri-Atroari, não nos deixasse atuar apenas numa aldeia, mas que coordenássemos toda a ação de educação na área. Então, tínhamos já um trabalho realmente novo. Os índios nem imaginavam que sua língua pudesse ser escrita, foi uma alegria enorme descobrir isso, e em quatro meses já havia uns dez ou doze que já escreviam frases na língua deles. Eles mesmos construíam o alfabeto a partir de desenho etc. E tudo estava indo bem assim, quando de repente o programa foi interrompido com menos de dois anos, um ano e meio mais ou menos, e nós fomos retirados compulsoriamente.” O FIM PREMATURO “O pesquisador da UNB de que lhe falei [Stephen Baines] tentou continuar o trabalho, e os índios exigiram que o método utilizado fosse o nosso, mas ao final, ele também acabou expulso. Quando nós fomos expulsos, já havia toda uma articulação entre Funai e Eletronorte que entregava a gestão da política indigenista à empresa. Então, eles criaram esse
Programa Waimiri-Atroari, alijando tudo que tinha sido construído por nós, o que, inclusive, matou, em nível nacional, todo o projeto de mudança política que se tentou organizar. Naquele momento inicial, esses funcionários tentaram uma mudança, tentaram realmente construir, no nível nacional, uma perspectiva realmente diferente e nova. Mas entre os funcionários bons, havia também dois filhotes da ditadura militar: um deles era o superintendente daqui, que veio a substituir Gilberto Pinto. Esse sujeito queria, junto com o exército, mudar a política indigenista da Funai usando metralhadoras, granadas etc. Ele dizia isso abertamente. Aí tem uma grita nacional, nós todos nos levantamos, o país, a imprensa, e ele foi afastado. Ele acabou ressurgindo ao final da ditadura – aparentemente teria mudado de posição, e acabou sendo superintendente da Funai aqui em Manaus. Esse camarada chamava-se José Porfírio de Carvalho.” AMAZÔNIA COMO ALMOXARIFADO “Desde os portugueses, a Amazônia é vista como um almoxarifado, em que se pode ir e se abastecer do que for e partir, como se não houvessem pessoas lá. Isso até hoje. Por exemplo, o governador quer oferecer água para Nordeste e São Paulo; está oferecendo a água da Amazônia para lá. Quer dizer, todas essas hidroelétricas não estão sendo construídas pra abastecer comunidades da Amazônia, é para ligar com o Sul. Então, é a mesma política das especiarias dos portugueses, e depois o ciclo da borracha. Agora, o presidente que queria mudar as coisas, justamente esse que assinou os ofícios que criaram o grupo de trabalho, foi simplesmente afastado da Funai e em seu lugar chegou esse Romero Jucá, uma figura que ninguém conhecia e que até hoje está mostrando suas garras. Quer dizer, ele quer só minério nas áreas indígenas. O poder local, o federal estão todos nesse negócio 70 RBMA 165
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de simplesmente espoliar as áreas indígenas. Aqui dentro da área Waimiri-Atroari, tem a maior reserva de minérios estratégicos em ação no mundo inteiro, já desde 1981. Tanto assim que em outras áreas do mundo se fecharam minas de criolita – na Groelândia, por exemplo –, porque aqui se encontrou com muito mais facilidade. Agora vai atrás... Quero ver se vocês descobrem quantos quilos de criolita ou de tântalo, ou de nítrio, ou de colúrio extraídos foram registrados aqui. E há investimentos de mais de quarenta milhões de dólares para pesquisa em torno disso, já dos anos 1980, está nos jornais inclusive. Quer dizer, a Funai fica dando simples e puramente cobertura para tudo isso. É uma exploração econômica que não reverte em nenhum benefício para as comunidades.” CRÍTICAS À COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE “Na nossa opinião, minha e da Comissão Estadual, o trabalho da CNV foi muito fraco. O que eles fizeram foi pegar, de última hora, o nosso relatório do Cimi nacional e recorrer rapidamente à uns trabalhos daquele comitê lá de São Paulo, aquele Marcelo Zelic. E não se definiu nada quanto à continuidade dessa pesquisa, ao contrário. Aliás, isso exigiria que se garantisse as terras indígenas e se levasse avante uma política indigenista diferente. Mas nada disso vai acontecer, porque não há uma coisa consistente como há sobre outros crimes da ditadura, em outras áreas ocorridas, como o caso da guerrilha do Araguaia, das torturas etc. A questão indígena foi abordada de maneira muito modesta e incipiente. A CNV sabia da existência do nosso trabalho no Comitê da Memória, da Verdade e da Justiça do Amazonas e que nos tínhamos como objetivo principal, específico, a questão indígena, não só, mas principalmente. Nós formamos o primeiro relatório coletivo e nós o enviamos à comissão. Então, não há desculpa que não tinha dados e etc. Mas praticamente não houve sequer manifestação
de recebimento do relatório. Veio, então, a Maria Rita Kehl, encarregada da violência da ditadura no interior, principalmente indígenas e agricultores. Ela chegou, tomou o contato conosco, e nós já estávamos preparados, nós queríamos que fosse uma equipe, um grupo do comitê acompanhá-la, porque, com o poder que ela tinha, representante de uma comissão formada pela presidente da república... Mas ela disse é que não, que não podia aceitar, porque o encarregado da política do programa Waimiri-Atroari não permitia, que era o Porfírio Carvalho. Já ficamos decepcionados. Nós insistimos que, pelo menos uma pessoa, um representante da Universidade do Amazonas, pudesse acompanhar. Ela consultou o Porfírio para ver se ele permitia. E ele não permitiu. Claro, “os culpados são os índios”, é claro que não, é tão inventado isso. A CNV deveria ter respeitado o comitê, nós trabalhamos como voluntários, ninguém foi pago, tanto jornalistas quanto professores.”
O TRABALHO DO COMITÊ ESTADUAL DE DIREITO À VERDADE, À MEMÓRIA E À JUSTIÇA 25 “Nós temos muita documentação, depoimentos, sobre os Waimiri-Atroari. Boa parte foi publicada no livro, mais muita coisa ainda não foi. Tem um trabalho consistente feito aqui, e não entendemos por que foi ignorado. O comitê aqui era formado por jornalistas, o presidente era eu e o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Amazonas; fomos os coordenadores do comitê. Tinha também professores da universidade estadual, da federal e de várias entidades. Fizemos um vasto recolhimento de documentos e depoimentos dos próprios índios; levantamos dados demográficos... O relató25 Os trabalhos de comitê estadual resultaram no livro A ditadura militar e o genocídio do povo Waimiri-Atroari.
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rio foi apresentado em 2012 à Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Amazonas e logo encaminhado à CNV.” O INÍCIO DAS TENSÕES “O problema dos Waimiri-Atroari começou em 1968, quando, para abrir caminho para construção da BR-174, o Departamento de Estradas e Rodagem do Amazonas (DER/ AM) começa a expedir relatórios mensais com pedidos de armas e munição, com a desculpa de que serviram como medida de segurança e manutenção da ordem. Oficialmente, a Funai era encarregada da política indigenista, mas logo ficou evidente que a área Waimiri-Atroari ficaria sob o controle militar. Em junho de 1968, o padre João Calleri, nomeado pela Funai para a direção dos trabalhos de atração, fez um plano minucioso para os primeiros contatos e posterior fixação dos índios fora do roteiro da construção da estrada. No entanto, foi obrigado pelo major Mauro Carijó, diretor do DER/AM, a mudar o seu plano. Isso causou a trágica morte do padre e seus auxiliares em confronto com os indígenas em outubro de 1968 o que possibilitou uma intensa campanha de repúdio aos Waimiri-Atroari, criando uma situação favorável à intervenção militar brutal. No final de 1968, o Comando Militar da Amazônia instalou um quartel no igarapé Santo Antônio do Abonari, que passou a controlar a vida e o destino dos índios. A partir daí, a Funai se tornou apenas um joguete do governo militar.” O GENOCÍCIO “O abastecimento de armas e munição ficou a cargo do Exército, não demandando mais autorização especial. Trabalhadores, soldados e funcionários da Funai invadiam a área indígena empunhando armas e utilizado-as contra os indígenas. Revólveres, metralhadoras, cercas elétricas, bombas, dinamite e gás letal foram algumas das armas utilizadas nessa guerra.
Em 1971, a estrada começou a penetrar o rio Abonari, e trouxe uma nova onda de violência. À época, tinha, pelo menos, umas sete aldeias à margem direita da BR, todas essas aldeias sumiram ‘misteriosamente’. Finalmente, ainda brigamos uns seis anos, dizendo que existiam mais duas aldeias lá que a Eletronorte negava a existência; até que conseguimos, por pressão internacional na época, principalmente a Anistia Internacional, e eles tiveram que reconhecer a existência. No fim, criaram esse Programa Waimiri-Atroari (PWA). A primeira ação deles foi mais um crime: a transferência fora da lei, porque os indígenas não foram indenizados como deveriam; foram simples e puramente transferidos dentro do território da região dessas duas aldeias.” ÍNDIOS SILENCIADOS “Não que eu seja contra o PWA como um todo, mas há algo de estranho. Os índios estão silenciados, não têm mais voz própria, suas falas são sempre monitoradas por alguém do projeto. Por exemplo, outras aldeias podem ser facilmente visitadas, em todos os estados, praticamente, existe a Casa do Índio, e aqui também. Mas os Waimiri-Atroari não podem frequantá-la, porque eles têm uma casa própria deles, garantida pela Eletronorte com dinheiro público, para eles não poderem tomar contato. Ou seja, silenciados, nunca você viu um Waimiri participar dessas movimentações nacionais, eles estão cooptados, pelo jeito, com o dinheiro da Eletronorte. Estão dentro de uma situação que se criou e não se tem como reagir. Eles me conhecem, fui professor lá por quase dois anos. Fomos a primeira família que esteve morando com eles; antes, os funcionários da Funai nunca levavam família junto, porque a etnia era descrita como assassina nos jornais, ‘criminosos Waimiri-Atroari’, ‘Terror no 70 RBMA 167
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Rio Negro’. E nós vivemos na alegria, na festa, de repente a gente morou lá dentro e desmistificou totalmente esse negócio. Quer dizer, eles têm a maior alegria em me ver, mas se eu vou sozinho eles logo pegam o telefone e perguntam para o pessoal do programa se eles podem falar comigo.” CRÍTICA AO PROGRAMA WAIMIRI-ATROARI “Eu digo que os Waimiri mudaram de linguagem por causa da presença de um sujeito que representa os resquícios de ditadura e os interesses da Eletronorte. Isso é muito difícil, muito complicado, e deveria ser rompido. E depois, ele diz que, por causa do programa, os índios teriam crescido. Cresceram, mas veja onde começou, isso é interessante até, eles chegaram a 332 pessoas, e começou exatamente na época que nós estávamos lá, quando co-
meçou o grupo de trabalho. Os dois anos antes do programa chegar, os anos da ditadura, foram os anos em que eles proporcionalmente mais cresceram, então não tem nada que ver com o programa. Claro que tem a ver no sentido de todas as benesses que eles tiveram, mas deus sabe se isso um dia vai terminar. Eles agora estão no comércio, é uma doutrinação comercial, mercantil, terrível. Eles têm loja em Novo Barão, aqui em Presidente Figueiredo, em Manaus, em Brasília. Mas no momento em que o programa cai, cai isso e não tem futuro esse negócio comercial. Não é por aí que caminha o futuro dos povos indígenas, vender a sua cultura. Isso pode até ser um subproduto qualquer, uma outra coisa, mas a sustentabilidade deles está dentro da relação deles com a terra. Tudo isso não pode ser colocado em questão. Então, ficou esse programa em cima de educação e saúde, e a educação lá
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nos moldes dele. Completamente diferente do que o grupo de trabalho tinha, que era baseado em Paulo Freire, em que eles organizaram o alfabeto deles. Para nós, evangelização é anúncio da boa nova, e a boa nova se contrapõe a uma má nova. Essa má nova pros índios é o quê? Perda da cultura e perda da autodeterminação.” HOMENAGEM NA ASSEMBLEIA E NOVAS LUTAS “As coisas estão muito complicadas por aí, por isso achei importante aceitar essa homenagem que fizeram na Assembleia,26 não como honraria pra mim, mas por toda essa movimentação de jornalistas e entidades que se criaram para defender os povos indígenas desde a Ditadura: 26 Em 7 de julho de 2015, Egydio Schwade recebeu o título de Cidadão do Amazonas durante sessão especial na Assembleia Legislativa do Amazonas por seu trabalho na defesa e na busca de justiça para os povos indígenas.
Amazônia Nativa, Cimi, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Comissão Pró-Índio, a Universidade e a própria sociedade civil. A homenagem ajuda a recuperar a discussão e essa movimentação. É uma conquista nesse sentido. Hoje você vê que o IBGE fala de quase um milhão de pessoas, então isso é um ressurgimento de povos. Lembro que quando visitei o Nordeste só se tinha notícia de um povo, agora temos mais de trinta; e em Maranhão e Pernambuco também se tem notícias de mais etnias. É uma grande mudança. Foram tempos de verdadeira germinação de uma nova política, que desde 1500 a gente não viu. A gente tem de registrar. Temos a possibilidade de construir um novo paradigma para o mundo, e principalmente na América latina, de políticas para os povos indígenas.”
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RECOMENDAÇÕES FINAIS DA CNV O segundo volume do Relatório da Comissão Nacional da Verdade é dedicado aos textos temáticos. O texto 5 versa sobre a “Violação de direitos humanos dos povos indígenas”. Abaixo, reproduzimos as considerações finais dos redatores e a lista de “Recomedações” que encerra do capítulo. “Tais violações [de diretos humanos dos povos indígenas] perduraram até a promulgação da Constituição de 1988 e muitos dos seus efeitos permanecem até os dias atuais, apontando para a necessidade de completar o processo de justiça transicional aos povos indígenas, ainda em curso no Brasil. Ao superar juridicamente o paradigma do integracionismo, que concebia os ‘modos de ser’ indígenas como condição a ser superada, a Constituição de 1988 se apresenta como principal marco de anistia aos povos indígenas. A ação direta e deliberada do Estado visando impedir os povos indígenas de exercerem seus ‘modos de ser’ fere os direitos mais fundamentais da democracia, tais como os de liberdade de pensamento e liberdade de culto, para citar apenas dois. Constitui-se, em verdade, em negação de direitos humanos básicos, porquanto representa a tentativa de extinção de povos enquanto coletividades autônomas. “É notório ainda, e reconhecido no texto constitucional atual, que o ‘modo de ser’ de cada povo indígena depende da garantia de suas terras, de forma a promover as condições para a proteção e o desenvolvimento de seus
‘usos, costumes e tradições’. Desse modo, enquanto não houver a reparação por todas as terras indígenas esbulhadas durante o período de estudo da CNV, não se pode considerar que se tenha completado a transição de um regime integracionista e persecutório para com os povos originários desta nação, para um regime plenamente democrático e pluriétnico. [...] “I) Recomendações - Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos. - Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas visando a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena. - Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo. - Promoção de campanhas nacionais de informação à população sobre a importância do respeito aos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição e sobre as graves violações de direitos ocorridas
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no período de investigação da CNV, considerando que a desinformação da população brasileira facilita a perpetuação das violações descritas no presente relatório. - Inclusão da temática das ‘graves violações de direitos humanos ocorridas contra os povos indígenas entre 1946-1988’ no currículo oficial da rede de ensino, conforme o que determina a Lei no 11.645/2008. - Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por órgãos públicos e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e educativa, incluindo-se investigações acadêmicas e obras de caráter cultural, como documentários, livros etc. - Reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas no período investigado pela CNV, visando ampla divulgação ao público. - Reconhecimento pela Comissão de Anistia, enquanto ‘atos de exceção’ e/ou enquanto “punição por transferência de localidade”, motivados por fins exclusivamente políticos, nos termos do artigo 2o, itens 1 e 2, da Lei 10.559/2002, da perseguição a grupos indígenas para colonização de seus territórios durante o período de abrangência da referida lei, visando abrir espaço para a apuração detalhada de cada um dos casos no âmbito da Comissão, a exemplo do julgamento que anistiou 14 Aikewara-Suruí.
- Criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para organizar a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas atingidos por atos de exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, bem como aos demais casos citados neste relatório. - Proposição de medidas legislativas para alteração da Lei 10.559/2002, de modo a contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos indígenas. - Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva. - Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988. - Recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas e degradadas como forma de reparação coletiva pelas graves violações decorrentes da não observação dos direitos indígenas na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos realizados entre 1946 e 1988.”27 27 Brasil. Comissão Nacional da Verdade (CNV), Relatório: textos temáticos, Brasília, CNV, 2014 (Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. ii), pp. 252-4. 70 RBMA 171
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Quando a redentora chegou, não percebi o que estava acontecendo. Era um moleque de 13 anos, nascido na Vila Sônia, sudoeste da capital. Lembro-me, antes, das eleições que elegeram Jânio Quadros presidente. Dos comícios nas ruas. Os balões e rojões. TV, nem pensar. O velho e bom rádio era o agito. Os santinhos e propagandas impressas esparramadas. O cheiro ficou em mim.
o Jani ! IOU C N U EN
R
Comunista mata criancinha pra fazer sabao!
1961, Brasil, o jovem país do futuro. São Paulo, de no máximo três milhões de identidades. O jornaleiro passava nas ruas gritando as manchetes do jornal. Logo, em agosto, ouvimos: o presidente Jânio renunciou! O vice-presidente João Goulart assumiu em meio à conturbada cena política. – Comunista mata criancinha pra fazer sabão! E a democracia brasileira que ainda engatinhava, em 1964, nem vinte anos depois do fim da ditadura Vargas, tomou o golpe que calou fundo. Os militares assumiram o poder, e o desaparecimento de pessoas de ideias divergentes tornou-se progressivo, frequente.
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to de desaparecimen as pessoas de idei diferentes
Estabelecido o domínio, a paga. O investimento americano, em dinheiro, chegou a rodo: o milagre brasileiro. Futebol campeão do mundo, ame-o ou deixe-o, a transamazônica, o verde amarelo propagado pela era das TVs, a Embratel e a imagem colorida. Salvaguardando a democracia, diziam. Calado Congresso. Esquadrões da morte. Manifestações e greves proibidas. Subversivos eram aqueles que contrariavam a expressa ordem, a eles, o DOI/CODI. Ler somente o permitido. Aí, a professora Alai, no Campo Limpo, que, em sério risco, nos estimulou outras leituras, o teatro, a poesia. E por esse trabalho teve seu nome taxado, e como prêmio, a prisão. A liberdade prisioneira. A palavra estagnada. Buscávamos notícias em metáforas nos rebeldes nanicos, Pasquim, EX e Movimento, que, juntos aos nossos livros, um dia viraram fogueira, tal era o temor da perseguição.
o mila gr brasil e eiro
Passado trinta anos do término da Ditadura Militar, o maléfico legado deixado nos dezenove anos de cala boca, surte efeito, hoje, na educação e na cultura do país. Foi um período em que a indústria do medo chegou ao seu auge, Wladimir Herzog. Das fardas aos paletós. Hoje empunhando um microfone nos saraus, incentivando a leitura, a poesia escrita e falada, percebo, a oralidade da literatura periférica incomoda. Então, me dou conta que a sombra daquele medo ainda em mim persiste.
Marco Pezão
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Revista da Biblioteca Mário de Andrade Volume 70, outubro de 2016 Prefeito do Município de São Paulo Fernando Haddad
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Biblioteca Mário de Andrade
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Biblioteca Mário de Andrade Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: departamento Biblioteca Mário de Andrade, 1992anual. Continuação, a partir do n. 50 de 1992, do Boletim Bibliográfico. issn 0104-0863 1. Literatura – Periódicos cdd 805 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n° 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei n° 9.610/1998 Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização dos editores Impresso no Brasil 2016
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Esta publicação de número 70 foi composta no ano de 2016 por Gabriela Lissa Sakajiri e Rafael Micheski e impresa em Munken 120g pela Ipsis Gráfica e Editora no ano de 2016. A tiragem é de 1.000 exemplares. Esta edição impressa é de inteira responsabilidade da Biblioteca Mário de Andrade.
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