Cemitério dos elefantes

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SERGIO GARSCHAGEN

Cemitério

dos elefantes EXCLUSÃO DE JORNALISTAS VETERANOS DAS REDAÇÕES

PREFÁCIO

VALÉRIO FABRIS


e V o c êe s t ár e c e b e n d ou mao b r a e mv e r s ã od i g i t a l d aB O O K L I N K s o me n t ep a r al e i t u r ae / o uc o n s u l t a . N e n h u map a r t ep o d e s e r u t i l i z a d ao ur e p r o d u z i d a , e mq u a l q u e r me i oo uf o r ma , s e j ad i g i t a l , f o t o c ó p i a , g r a v a ç ã oe t c . , n e ma p r o p r i a d ao ue s t o c a d a e mb a n c od ed a d o s , s e maa u t o r i z a ç ã od o ( s ) a u t o r ( e s ) . V e j ao u t r o st í t u l o sd i s p o n í v e i sd oa u t o r , d eo u t r o sa u t o r e s , e d i t o r e sei n s t i t u i ç õ e s q u ei n t e g r a mon o s s os i t e . C o l a b o r eep a r t i c i p e d aR E D ED EI NF O R MA Ç Õ E SB O O K L I NK( B O O K NE WS ) ed en o s s aR E D ED ER E V E ND AB O O K L I NK . C a d a s t r e s en os i t e .



TĂ­tulo do autor em nosso catĂĄlogo: CemitĂŠrio dos elefantes

homepage / e-mail do autor: www.booklink.com.br/sergiogarschagen sergio.betim@gmail.com



Copyright © 2009 Sergio Magalhães Garschagen Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, por qualquer meio ou forma, seja digital, fotocópia, gravação etc, nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem a autorização do autor. Capa Cris Lima

Editores Glauco de Oliveira Bruno Torres Paraiso Direitos exclusivos desta edição Booklink Publicações Ltda. Caixa postal 33014 22440 970 Rio RJ Fone 21 2265 0748 www.booklink.com.br booklink@booklink.com.br G244c

Garschagen, Sergio, 1949Cemitério dos elefantes: exclusão de jornalista veteranos das redações / Sergio Garschagen – Rio de Janeiro : Booklink, 2012. 216p. ; 20,5cm. ISBN: 978-85-7729-117-5 1. Jornais – jornalismo. 2. Trabalho – mercado - exclusão etária. 3. Notícia. 4. Cibermedia. I. Garschagen, Sergio. II. Título. CDD 070.422-053.9 (043)


Ă€ neta Clara.



Agradecimentos

Agradecimento especial à psicóloga e professora Laura Frade pela dedicação e didática; ao amigo, professor doutor e articulista Alexandre Barros, que leu e me incentivou a prosseguir nas pesquisas; ao jornalista e editor Bruno Torres Paraíso, pela leitura dos originais; ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, Brasília, pela ajuda no levantamento de dados; e à coordenadora do Observatório do Mercado de Trabalho do Ministério do Trabalho, Paula Montagner, que realizou pesquisas especiais sobre o mercado para jornalistas especialmente para este livro. Finalmente, o meu muito obrigado póstumo ao dedicado amigo, jornalista, editor de Economia e colega de O Globo, Ismar Cardona, pela atenção com que sempre me atendeu e incentivou.



O jornalismo é a prática diária do caráter. Cláudio Abramo



Sumário

Jornalismo : presente e futuro Valério Fabris .................................................................... 13 Introdução ................................................................................... 33 1. O maravilhoso mundo plano ....................................... 36 2. A imprensa no Ocidente: uma longa maratona ..................................................... 45 3. A imprensa no Brasil: começo tardio ..................................................................... 49 4. A imprensa em Brasília: desafio no Planalto Central .................................. 56 5. Jornalismo moderno: construção de linguagem própria ..................... 60 6. Jornais no Brasil: as novas concorrências ............................................. 65 7. O novo jornalismo e a ética: questão cadente ............................................................... 70 8. Liberdade e mais-valia .................................................. 79 9. Algo de novo no front : a oligopolização ............................................................. 85


10. As novas patologias do jornalismo ................................................................... 95 11. Doutrinação empresarial ........................................... 101 12. A imprensa e o poder .................................................... 107 13. Sociologia do trabalho: juventude e velhice ....................................................... 115 14. O impacto da informática:

tecnologia desagregadora ...................................... 121

15. Insegurança nas redações: publijornalismo e internet ................................... 126 16. Crise de pertencimento e Síndrome de Burnout ................................................ 133 17. Encruzilhada midiática ............................................ 137 18. Jornais procuram caminhos ....................................... 145 19. Revolução digital: midiamorfose ........................ 154 20. O desaparecimento dos jornais ............................. 160 21. O novo jornalismo .......................................................... 166 22. Corte de pessoal nas redações ............................ 170 23. Esvaziamento das redações .................................... 174 24. Pesquisa de campo: anamnese e respostas ................................................ 179 25. Depoimentos de jornalistas .................................. 188 Conclusão ...................................................................................... 198 Referências bibliográficas ............................................. 207


Jornalismo : presente e futuro *

Valério Fabris

Há dois episódios que assinalam, didaticamente, o início de uma fase de distanciamento entre a imprensa brasileira e os poderes da República, que até então se fundiam em um pacto de cooperação recíproca de quase duzentos anos. São eles o anúncio, em 11 de maio de 2004, da cassação do visto de permanência, no país, do correspondente do The New York Times, Larry Rother e, em 30 de julho de 2009, a censura imposta ao jornal O Estado de S.Paulo, impedindo-o de continuar a publicar reportagens com denúncias envolvendo Fernando Sarney. A simbiótica associação entre os interesses da imprensa e do Estado tem sido o modelo brasileiro, inaugurado em 10 de setembro de 1808, quando D. João VI colocou em circulação o primeiro jornal impresso no país, a Gazeta do Rio de Janeiro. A imprensa, as oligarquias e os governantes constituíram as três partes do corpo brasileiro: a cabeça, o tronco e os membros de uma intrincada e bem amarrada teia, que com* Valério Fabris é jornalista. Presidente da Rádio Inconfidência, em Belo Horizonte, MG. Trabalhou na Gazeta Mercantil, na revista Veja e nos jornais capixabas A Gazeta e A Tribuna. 13


binava coronelismo, escravidão, manipulações eleitorais e golpes de Estado. Mesmo no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), considerado o mais democrático do período que se estende da proclamação da República, em 1889, ao golpe militar de 1964, a promiscuidade entre Estado e imprensa se manteve inabalada. O escritor Autran Dourado, redator dos discursos do presidente Juscelino, conta em seu livro de memórias, Gaiola aberta, como foi portador da mala de dinheiro do Banco do Brasil, entregue ao jornalista Pompeu de Sousa, do Diário Carioca: “Quando cheguei à casa do Pompeu, ele veio logo me atender. Ao ver a mala, não resistiu, gargalhou que não acabava mais”. Pompeu de Sousa é reverenciado como o introdutor, na imprensa brasileira, da técnica americana do lead, que vem a ser a abertura da matéria. Deve conter, em duas ou três frases, as informações essenciais, totalizando cerca de 350 toques, com espaço. Em 1981, na fase final da ditadura militar, Millôr Fernandes1, ao conceder entrevista à revista gaúcha Oitenta, reconhecia que a imprensa brasileira havia alcançado uma qualidade técnica comparável ao que de melhor se fazia no mundo, mas ressalvava: jamais foi independente. “Nos falta até o contraste, que existe em países supercapitalistas, como os Estados Unidos, onde o choque de interesses é tão violento que faz da imprensa americana a melhor do mundo. Quando o New York Times não quer dar cobertura a um setor, o Washington Post vai em cima. A França tem dois fenômenos da boa imprensa: são Le Monde e Le Carnard Enchainé, prova de que a chamada imprensa burguesa, ou a imprensa nos países burgueses, pode ser realmente a expressão de absoluta liberdade, Jornalista, escritor, tradutor, dramaturgo e cartunista, nasceu Milton Fernandes, em 16 de agosto de 1923, e faleceu em 28 de março de 2012, no Rio de Janeiro.

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maior do que em países socialistas (nestes não há imprensa: há boletins)”, disse Millôr à revista Oitenta. Os indícios são, afinal, de que pelo menos os grandes jornais brasileiros começam, agora, a mudar uma história de dois séculos, em que a imprensa serviu ao poder, e dele se serviu. A cobertura que dedicaram ao episódio de Larry Rother, no tom de repulsa à atitude do Estado brasileiro, também prevalecente na imprensa internacional, acabou marcando um ponto de inflexão na monótona linha cronológica que se traçou a partir do lançamento da Gazeta do Rio de Janeiro, com o selo da Corte. A resposta do Estadão à censura que lhe foi imposta, escancarando-a à opinião pública, descerrou o véu da hipocrisia que invariavelmente encobria a dissimulada arrogância dos governantes, sejam eles os da Monarquia ou os da República. Se o Brasil agora se apresenta, orgulhosamente, como a sexta economia, por que não se incluir, também, entre os países mais democráticos? Ou seja, incluir-se entre os países que são referenciais na separação dos poderes da imprensa e dos governos. O jornalista Matias Molina na introdução do seu livro, Os melhores jornais do mundo (Editora Globo), coloca a questão nos seguintes termos: “The Times de Londres foi o primeiro jornal a definir, em meados do século XIX, a distância que separa os jornais do governo. Escreveu que ‘os propósitos e obrigação dos dois poderes – governo e imprensa – estão separados, são geralmente independentes e às vezes diametralmente opostos. A dignidade e a liberdade da imprensa ficam afetadas no momento em que ela aceita uma posição ancilar. Para desempenhar suas obrigações com inteira independência (...), a imprensa não pode entrar em aliança com os governantes do dia, nem pode ceder seus interesses permanentes às conveniências do poder efêmero de qualquer governo’. Acrescentou que a imprensa existe para divulgar informações: tudo o que chega a seu alcance se torna parte do conhecimento e da história de nossos tempos”. 15


Oito anos após a entrevista de Millôr, a história mundial começou a passar por uma surpreendente reviravolta, com a queda do muro de Berlim, em 1989, que separava a Alemanha Oriental e a Ocidental, e com o fim das ditaduras em países do Leste Europeu, que adotaram o pluripartidarismo e a economia capitalista. Em 1994, o Brasil criou sua décima moeda, o real2. Nos três anos seguintes, até 1997, iniciou o processo de delimitação entre o público e o privado, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, o regime de metas da inflação, as agências reguladoras. Derrubou monopólios, privatizou empresas estatais, saneou bancos, regulou o sistema financeiro, adotou programas de combate à pobreza. No plano privado, as companhias brasileiras, mais expostas à competição interna e global, entraram na era do enxugamento (downsizing) e da reengenharia. Os grandes jornais, por sua vez, cerraram as portas das sucursais instaladas na maior parte das capitais do Sul e do Sudeste, mantendo estruturas leves no Rio de Janeiro, em São Paulo e Brasília. O mercado de trabalho dos jornalistas sofreu seu primeiro grande baque, ao mesmo tempo em que proliferavam os cursos de comunicação e se expandiam as assessorias de imprensa. O impacto da difusão global da internet desorientou a imprensa brasileira e mundial. Desaparecem dezenas de jornais nos Estados Unidos, entre 2008 e 2009. Na França, o Le Monde foi salvo da falência, em novembro de 2010, graças à injeção de 100 milhões de euros, aportados por novos acionistas, entre A primeira moeda cunhada no Brasil foi o florim, durante o domínio holandês em Pernambuco. As demais moedas foram: mil-réis (em grande parte do período colonial, estendendo-se aos primeiros 52 anos da República, isto é, até 1942), cruzeiro (1942/67), cruzeiro novo (1967/70), cruzeiro (1970/86), cruzado (1986/89), cruzado novo (1989/90), cruzeiro (1990/93), cruzeiro real (1993/94), real (a partir de 1º de julho de 1994). Ao longo de sua história, o país teve oito constituições.

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eles Pierre Bergé, um dos criadores da marca Yves Saint Laurent. A imprensa de qualidade ainda permanece atônita e hesitante, sem saber como vender seus serviços no espaço da internet para que assim consiga sustentar a plataforma da mídia impressa. É esta, enfim, que ainda sustenta a tradição de suas marcas e, com elas, a identificação da origem das notícias que chegam aos leitores do papel e das telas. Os nomes dos jornais e das revistas atestam a procedência das notícias, conforme os respectivos padrões de qualidade e de fidedignidade, de acordo com a reputação dos produtos de cada empresa jornalística, sejam eles – entre os tantos disponíveis no Brasil e no exterior – o Estadão, o Globo, a Folha, a Bravo!, a Exame, a Piauí, o Le Monde, a Foreign Affairs, o Financial Times, o Corriere della Sera, o El País ou o Asahi Shimbun. Os menos afetados pela falta de um rumo seguro, na bifurcação que leva ao impresso e ao digital, são os jornais e as revistas voltados ao universo corporativo. Os empresários e seus executivos se mostram mais aptos e propensos a pagar as assinaturas dessas publicações, recebendo, adicionalmente, a senha que lhes dá acesso privilegiado, pela via digital, às informações e análises de refinado apuro e de rigorosa exclusividade, como é o caso da emblemática revista inglesa The Economist. Em meio às turbulências do mercado e à vertiginosa expansão da tecnologia digital, um novo jornalista entrou em cena. Ele tem disposição, apetite e traquejo para absorver e incorporar ao seu cotidiano as ininterruptas inovações que chegam ao mercado em intervalos de tempo cada vez menores. Enquanto a maioria dos jornalistas mais moços jogam nas telas, em tempo real, os breves e secos informes, editando-os com agilidade e desenvoltura, os profissionais de maior experiência e de melhor formação cultural escrevem para as versões impressa e web, hierarquizando as notícias, contextualizando-as em elaboradas análises, estabelecendo conexões de causa e efeito. 17


Abre-se, com o jornalismo analítico e interpretativo, um bem demarcado território da qualidade, para as várias gerações da intelligenza: professores universitários, gente da cultura e das ciências, tecnólogos, arquitetos, designers, lideranças empresariais e comunitárias, ambientalistas, médicos e profissionais liberais em geral. Desenha-se cada vez mais a tendência de o mercado se repartir em duas segmentações: a da mídia de conteúdo e a da mídia zero, que tem nos jornais populares e nas televisões de massa a sua grande audiência. “A posição zero é a força da televisão, não sua fraqueza. É ela que representa o seu valor de uso. O espectador liga o aparelho para se desligar”, escreve o ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger no livro Mediocridade e loucura. Os veículos de comunicação só alcançam grandes audiências se desprovidos de conteúdos. O espectador da massa, segundo Enzensberger, sabe exatamente o que quer: “Ele é impermeável a qualquer ilusão de programa. Longe de permitir que seja manipulado (educado, informado, esclarecido, advertido), é ele quem manipula a mídia para implementar seus próprios desejos. Qualquer um que não concorde com esses desejos é punido com a negação do amor e com o aperto do botão; qualquer um que os realize e leve em consideração é recompensado com maravilhosos índices de audiência. Para o espectador é bastante claro que ele não está com um meio de comunicação, mas sim com um meio para a recusa de comunicação, e ele não permite que qualquer coisa perturbe essa sua convicção. Aos seus olhos, exatamente aquilo do que se acusa a mídia zero é que constitui sua maior atração”. Os intérpretes da chamada pós-modernidade lançam seus diagnósticos em livros que falam do Mundo líquido (Zygmunt Bauman), d’ A era do vazio (Gilles Lipovetsky), d’ A corrosão do caráter (Richard Sennett), d’A sociedade do espetáculo (Guy Debord). São unânimes em apontar para a pulverização das identida18


des, a fragmentação e multiplicação de escolhas, a vertiginosa proliferação das fontes de informação, as possibilidades combinatórias nas relações sexuais e nos rearranjos familiares. A debilitação do papel ordenador e articulador do Estado, concomitante ao esmorecimento de Deus e da figura patriarcal, expõe o sujeito a um acelerado e paradoxal cenário de liberdade e desamparo. Assiste-se à escalada da criminalidade, da corrupção na esfera pública, do consumo de drogas, da violência contra os pobres, dos crimes ambientais, do abuso sexual até contra as crianças. Seria este o momento de a imprensa brasileira virar a página de uma história de atrelamento e de subserviência aos donos do poder, para que, no lugar do personalismo e da “tão malsinada primazia das conveniências particulares sobre os interesses de ordem coletiva”3, haja instituições transparentes e visíveis. “Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil sempre foi lamentável mal-entendido”4. Somente cem anos depois da proclamação da República, o país atingiu, em 2010, a inédita marca de pelo menos duas décadas de estabilidade no sistema democrático, com seis sucessivas eleições diretas para presidente, sem quarteladas. A recém-instalada democracia brasileira já tem tanto tempo de vida quanto a ditadura militar, que se estendeu de 1964 ao final de 1984. E, no entanto, destacados profissionais da imHolanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, Companhia das Letras, São Paulo, 26. ed., 2006. 4 Idem. 3

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prensa atravessaram, admiravelmente, o percurso que os conduziu de um ambiente a outro: dos plúmbeos anos da ditadura à democracia, da máquina de escrever ao laptop, do telex aos smartphones e tablets, do jornalismo ideologicamente engajado a uma posição de distanciamento crítico, de um posto fixo em determinada redação aos vários lugares do leque multimídia. É o caso da jornalista Miriam Leitão, 59 anos, que tem coluna diária no jornal O Globo, faz comentários para a rádio CBN e para a TV Globo, apresenta um programa de entrevistas na Globonews e já publicou dois livros, sendo Saga brasileira o mais recente deles, lançado em julho de 2011. As redações de hoje não exibem a movimentação de trinta ou quarenta anos atrás, quando eram agitadas pelo contínuo entra e sai de jornalistas, ávidos em serem os primeiros a dar as últimas notícias. Deve-se ressalvar, contudo, que a imprensa brasileira, embora acalorada e discursiva, não se notabilizava pela independência em relação às forças políticas e econômicas. O inédito fato histórico é que a imprensa começa a se deslocar, desde o início da década de 2000, para a posição que deveria ter sido sempre a de uma instância crítica em relação aos governantes. Trata-se de um movimento ainda incipiente, uma vez que está circunscrito a alguns dos grandes veículos de abrangência nacional. As estruturas de poder reagem, procurando criar mecanismos para controlá-los. Excetuando-se os jornalões, as duas maiores editoras de revistas e alguma emissora de rádio e TV, especializada em notícias 24 horas, é irrefutável que, no geral, a imaturidade cultural prevalece nas redações de hoje, e isso tem significado, também, ambientes assépticos, politicamente corretos, descolados (cool), marcadamente sensíveis às agendas do consumo, do entretenimento, do comportamento e dos cuidados com o corpo. No saldo, o número de profissionais traquejados e culturalmente 20


bem-dotados decresceu, em uma curva inversamente proporcional à escalada da frivolidade. A juventude não é – e jamais foi – sinônimo de superficialidade ou de despreparo, tanto assim que muitos jornalistas, situados na faixa dos 30 anos de idade, assumiram, em tempos recentes, postos de relevo na cobertura internacional, como os correspondentes do Estadão em Nova York e Paris, Gustavo Chacra e Andrei Netto. Da mesma forma, mulheres situadas no degrau dos 30 anos são correspondentes da Folha em Nova York e Washington: Verena Fornetti e Luciana Coelho. É do nosso costume, desde há muito, que jovens assumam posições de alta responsabilidade nas redações, ao contrário do que se verifica nos Estados Unidos e na Europa. O Estadão e o Jornal do Brasil, os diários brasileiros de maior tiragem, nas décadas de 50 e 60, tiveram, naquela época, memoráveis comandantes editoriais: Cláudio Abramo, que foi empossado na secretaria de redação quando tinha 29 anos, e Alberto Dines, que se tornou editor-chefe aos 30 anos. Hoje, a maior concentração de profissionais maduros, experientes e culturalmente bem encorpados, deve-se reiterar, localiza-se nas empresas jornalísticas que se constituem exceções à regra, como as editoras Globo e Abril, a TV Globo, e os grandes jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico. A evidência salta aos olhos, por exemplo, na tela da Globo e da Globo News. Os seniores, assim denominados no mais amplo sentido, aparecem seguidamente no vídeo: Jorge Pontual, Lucas Mendes, Renato Machado, Alexandre Garcia, Leilane Neubarth, Tonico Ferreira, Chico Pinheiro, William Waack, Luís Fernando Silva Pinto, Edney Silvestre, Sandra Passarinho, Maurício Krubrusly, Sandra Moreyra, Sílio Boccanera, Zileide Silva, Marcos Uchôa, Ilze Scamparini. Esse, porém, não é o panorama geral da imprensa brasileira, sobretudo no âmbito das empresas jornalísticas estaduais, mesmo as que editam os jornais de maior circulação nas 26 capi21


tais e no Distrito Federal. Há duas realidades distintas quando se analisam as transformações ocorridas na imprensa nacional, especialmente a partir de 1990. O maior retrocesso ocorreu nos mercados regionais. O mercado de trabalho foi duramente atingido e alterado pelo fechamento de sucursais da Agência Estado/Estadão, de O Globo, da Editora Abril, do Jornal do Brasil, e assim por diante, em praças tradicionalmente importantes, como Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Recife. Eliminaram-se correspondentes nacionais e internacionais. As casas editoras de São Paulo reduziram o tamanho das sucursais no Rio de Janeiro; revistas e jornais do Rio e de São Paulo fizeram o mesmo em Brasília. Simultaneamente, aí sim, promoveu-se, no conjunto dos jornais estaduais, em uma geografia quase continental, do Oiapoque ao Chuí, a compactação e a jovialização das redações. A cena econômica e empresarial, como um todo, virou pelo avesso. Em meio à onda de fusões, incorporações, privatizações e fechamento de empresas, decorrente da maior abertura da economia brasileira ao mundo, desapareceram anunciantes de peso nos mercados regionais, como, por exemplo: Bamerindus, malas Ika, lojas Prosdócimo e Hermes Macedo, em Curitiba; Banco do Estado de Minas Gerais, Casas do Rádio e Água de Cheiro, em Belo Horizonte; Banco Econômico, em Salvador; Varig/Rio Sul, Banco Meridional, Copesul, Aracruz Celulose, em Porto Alegre. Como se não bastasse a evaporação dos anunciantes de peso, a imprensa regional foi atingida pelo exaustão da mina de ouro dos anúncios classificados, que cederam lugar às profusas informações, disponíveis gratuitamente no espaço da internet. A imprensa carioca foi castigada por uma sucessão de abalos em sua estrutura, a começar pela transferência da capital da República, em 21 de abril de 1960. O Rio, outrora Distrito Federal, 22


ficou a vagar, sem rumo nem prumo, sem eira nem beira, bem de acordo com uma cultura que confere valor ao improviso, ao jeitinho brasileiro. Se não, vejamos. Em junho de 1991, quando os alemães decidiram que sua capital, depois da reunificação, seria transferida de Bonn para Berlim, firmaram o propósito de que a antiga sede dos poderes federais ganharia novos ares com a mudança. Bonn, cidade natal de Beethoven, foi reestruturada, transformando-se em um dos maiores centros econômicos, científicos e culturais da Europa. Bonn recebeu indenização de 1,4 bilhão de euros, aplicados, maiormente, em centros de pesquisas, que hoje são referência para a comunidade científica mundial. Substituíramse os 14 mil postos de trabalho, perdidos com a mudança da capital, por outros 20 mil. Além disso, seis ministérios ainda permanecem em Bonn. Resultado: Bonn tem o menor desemprego e a maior taxa de natalidade da Alemanha reunificada, contrastando com uma população, no restante do país, cada vez mais idosa. Já a cidade do Rio de Janeiro, que havia sido transformada em Estado da Guanabara, não foi deixada em paz, sequer depois da improvisada e atabalhoada mudança da capital federal. Passados dez anos do golpe militar de 1964, o ditador de ocasião, general Ernesto Geisel, resolveu fazer a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, juntando ré com cré, em que a mesma pessoa foi calçada com um par de sapatos novos, sendo os dois pés com numeração diferente. O caminhar da cidade tornou-se ainda mais trôpego e desengonçado. Entre uma vicissitude e outra, o governo militar resolveu acrescentar mais um dissabor ao Rio, submetendo o Correio da Manhã, a partir de 1964, a uma torturante asfixia, por meio da supressão dos anúncios governamentais e, ainda, pela indução à iniciativa privada para que adotasse igual represália. Exaurido financeiramente, o jornal foi arrendado a um grupo de 23


empreiteiros governistas, que colocou em prática um processo de degradação editorial, que culminou com seu fechamento, em 15 de junho de 1968. Sepultava-se um dos símbolos da imprensa brasileira, fundado em 1901. O caso do Correio da Manhã mostrou que o jornal sobreviveu enquanto seguiu a trilha da subserviência ao poder, iniciada com D. João VI. Tendo apoiado o golpe, o Correio da Manhã viu selada sua sentença de morte quando contrariou a formação brasileira, passando a tomar uma atitude de independência, que durou pouco. Prevaleceu o legado da herança colonial. É como escreve Alexis de Tocqueville5: “O homem achase inteiro, por assim dizer, entre as cobertas de seu berço. No caso das nações, verifica-se algo de análogo. Os povos guardam sempre as marcas de sua origem. As circunstâncias que acompanharam o seu nascimento e serviram ao seu desenvolvimento influem sobre todo o resto da sua existência”. O arquiteto e urbanista Jaime Lerner6 costuma repetir uma frase que, aliás, se encaixa, precisamente, à recusa de Tocqueville em considerar válidas as teorias deterministas e evolutivas, como as que moldaram, desde o final do século XIX, o cerne do pensamento acadêmico brasileiro. Diz Lerner: “Cultura não é destino; cultura, a gente muda”. Mas, para se quebrar a trama neurótica, à qual parece estarmos enredados para todo o sempre, devemos enxergar em cada um de nós a capacidade de mudarmos o curso da história, em sintonia com o aforismo que Jaime Lerner criou na medida do pensamento tocqueviliano: “Tendência não é destino”. É com o imobilismo e a lamúria que nos vingamos Tocqueville, Alexis de. A democracia na América, Folha de S. Paulo, São Paulo, 2010. 6 Jaime Lerner, planejador urbano, foi presidente da União Internacional de Arquitetos (UIA), prefeito de Curitiba, em três mandatos, e governador do Paraná, em dois mandatos. 5

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de nossos fantasmagóricos credores de reconhecimento e de afeto. E nesse interminável rondó ficamos confortavelmente instalados na zona do desconforto. Os algozes da nossa infelicidade são muitos: a herança colonial, o Consenso de Washington, a grande imprensa monopolista e golpista, Steve Jobs, Bill Gates, a reengenharia e a internet, as bulas papais e as minissaias de Mary Quant. Muitos jornalistas saíram do carrossel das redações. Há os que se queixam. Outros se regozijam com a perspectiva de uma vida nova, às vezes até mudando de ramo, tornando-se editores de livros ou proprietários de restaurantes. É como se passa no episódio do fechamento de um jornal que faliu, contado no romance Os imperfeccionistas7: “Uma parte dos funcionários tinha emprego garantido, porém a grande maioria não. Alguns programaram férias. Outros planejaram deixar o jornalismo. Talvez essa fosse uma bênção disfarçada, comentaram, embora ninguém soubesse dizer bem sob que aspecto”. É inegável que os empregos perdidos geram comoções e traumas, sobretudo para os que não conseguem metabolizar a perda e, assim, ficam sem condições de dar a volta por cima. Sergio Garschagen aponta, com este Cemitério dos elefantes, o drama que se abateu sobre jornalistas do país afora, a partir dos anos 90, em todas as unidades da federação. O declínio se deu, mais notadamente, com a perda de vigor dos jornais regionais e, nas praças de maior importância para a imprensa nacional, com o fechamento de sucursais. Em Brasília, onde se transcorreu a maior parte da extensa e reconhecida atuação do jornalista Sergio Garschagen, é muito comum que profissionais da imprensa, outrora notáveis, tenham deixado de ser influentes atores da Praça dos Três Poderes, tornando-se quase anônimos figurantes das 7

Rachman, Tom. Os imperfeccionistas, Record, Rio de Janeiro, 2011. 25


assessorias parlamentares ou dos tantos blogs que se encontram em qualquer esquina da planetária teia digital. No jornalismo, há uma regra não declarada e não escrita, segundo a qual o jornalista que tomou o rumo das assessorias raramente é admitido de volta ao ambiente da redação e da reportagem. Deve-se considerar, ainda, que muitos jornalistas trocam as redações pelas assessorias, como uma alternativa por melhores salários. As redações não costumam aceitar a volta dos desertores. Se algum jornalista é promovido a executivo da empresa, saindo, portanto, do cotidiano da redação, é como se tivesse mudado de profissão. Se demitido, dificilmente reencontra seu lugar de repórter, redator ou editor nas demais empresas jornalísticas. Pode-se, de longe, imaginar que bons repórteres e editores do extinto Jornal do Brasil tenham sido contratados pelo O Globo. Mas é menos provável que algum jornalista do JB, que lá se converteu em executivo da empresa, tenha encontrado a mesma facilidade em ser admitido no corpo da redação de O Globo. Em outras palavras, é o seguinte: quem abandonou o barco da redação, torna-se um renegado. É como se um jogador de futebol virasse cartola; dificilmente retorna aos gramados. É assim que os desafortunados personagens dessa novela podem sentir que se tornaram moradores do cemitério dos elefantes, a que alude Sergio Garschagen. O Rio é uma praça em que a percepção da existência do cemitério dos elefantes seja, talvez, tão intensa quanto a que se sente em Brasília. O fim do Jornal do Brasil, ocorrido com a última edição impressa, em agosto de 2010, encerrou quase cinquenta anos de uma benfazeja e revigorante disputa que o prestigioso e influente diário travava com O Globo, e vice-versa. Certamente, a extinção do Jornal do Brasil foi mais um revés sofrido pela cidade do Rio de Janeiro, somando-se aos demais infortúnios, como a transferência da capital da Repú26


blica, o fechamento do Correio da Manhã, a fusão com o Estado do Rio de Janeiro. O jornalismo, na verdade, está mais para o cerrado e as estepes do que para as escarpas. É planície ondulada que se estende ao horizonte etário. Millôr Fernandes morreu no dia 29 de março de 2012, aos 88 anos de idade, tendo parado de trabalhar somente quando ficou doente, em fevereiro de 2011. Armando Nogueira, falecido aos 79 anos, em novembro de 2006, também trabalhou até o limite de sua capacidade física. Barbosa Lima Sobrinho morreu, aos 103 anos, no exercício da presidência da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O cemitério dos elefantes são os pântanos. Neles, os mais velhos, já com os dentes molares gastos pelo tempo de muito roer, encontram fartura de alimentos que conseguem mastigar, porque molhados e macios. Os pântanos oferecem mais uma apreciável vantagem para os elefantes idosos, que é a da comida ao alcance da boca, pois se tornaram menos ágeis, incapazes de acompanhar o ritmo das manadas. E assim, na serenidade dos pântanos, deixam escoar os anos que lhes restam. Quando os elefantes não dão mais conta da vastidão das savanas e do embrenhado das matas, refestelam-se em suas instâncias hidrominerais da terceira idade. Poucos de nós, humanos, podemos nos presentear com esse luxo. Mesmo que o destino nos contemplasse com a herança bem recheada, ou com a aposentadoria estatal de alta linhagem, será que nos sentiríamos tão confortáveis como os elefantes dos pântanos? O título deste livro é provocativo. Sergio Garschagen usa a metáfora do cemitério dos elefantes para designar aqueles que, se sentindo meio mortos, meio vivos, sem energia para se reinventarem em um ambiente de competitividade turbinada pelas novas tecnologias, recolhem-se aos aposentos de lembranças boas e amargas, deixando-se consumir pela irrefreável passagem do tempo. 27


Indiferente às ruminações dos descontentes, o desenvolvimento tecnológico persistirá, todavia e por todas as vias, na sua sina bipolar de aliviar e de provocar dores, de promover a guerra e a paz, de ligar os elos entre os paladinos do bem e do mal. O mundo precisará, cada vez mais, de instâncias mediadoras; como a imprensa, movida por jornalistas que prefiram cultivar a pulsão de vida à pulsão de morte. O gênero homo carrega dentro de si, desde que se converteu em sapiens, o imenso buraco do desejo. Há o sujeito que não mede limite e consequências para tentar enfiar a mão nessa cacimba que não tem fundo, passando por cima de tudo e de todos, buscando incessantemente atingir o ponto final do desejo sem fim. A consagração desse imperativo do prazer individual, com “o engrandecimento do eu à custa do outro, esvazia a dimensão alteritária da existência, que nos dias que correm tem sido desqualificada pela moral do hedonismo, pela exigência do gozo imediato”8. No polo oposto à massiva conclamação ao prazer inesgotável, ainda subsiste, na sociedade contemporânea, o legado cultural de pelo menos duas correntes espirituais que, cada uma a seu modo, relaciona a busca pela felicidade à resistência aos apelos do desejo. A primeira nasceu aos pés do Himalaia, com o budismo, lá pelo final dos anos 500 antes de Cristo. A “Verdade da Cessação”, um dos quatro princípios do budismo, condiciona a remoção do sofrimento à eliminação de sua causa: o desejo. Ou seja, quando cedemos ao desejo de tirarmos mais da vida do que temos direito, só colhemos pesar9. Birman, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006. 9 As Quatro Nobres Verdades ensinadas por Buda são: A Verdade do Sofrimento, A Verdade da Origem, A Verdade da Cessação, A 8

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A segunda mencionada vertente espiritual surgiu e se difundiu com a reforma protestante do século XVI, especialmente com o advento da igreja presbiteriana de João Calvino, que lançou as bases para a uma nova cultura do capitalismo, legitimadora e balizadora do desejo do lucro. Sobretudo no calvinismo, louva-se o lucro, mas condena-se a agiotagem, a fazenda improdutiva, a ostentação e qualquer intenção pessoal de, mesmo com a riqueza acumulada, se levar uma vida sem trabalho: “Também ao homem de posses não é permitido comer sem trabalhar, pois se ele de fato não precisa do trabalho para cobrir suas necessidades, nem por isso deixa de existir o mandamento de Deus, ao qual ele deve obediência tanto quanto o pobre”10. A civilização está fundada em regulações da vida coletiva, por meio de um conjunto de exigências morais que, em resumo, tem a denominação de cultura. As sociedades mais avançadas são as que conseguiram instituir controles a partir da vontade comum, expressa pela maioria dos seus membros, em uma calibragem que preserva, em elevado grau, a vida particular das pessoas. São culturalmente mais desenvolvidas as sociedades que edificaram atributos como estes: respeito à faixa de pedestre, espaços públicos limpos e bem equipados, elevados níveis educacionais, boa distribuição de renda. A liberdade de cada um, em conformidade com o contrato social instituído democraticamente, não contempla a imunidade a excessos individuais que afrontem o espaço do outro. A permissão para que todos os impulsos se manifestem livre e publicamente, como almejavam os militantes franceses nas manifestações de maio de 1968, na base do “é proibido Verdade do Caminho. In Schoch, Richard. A história da (in)felicidade, Best Seller, Rio de Janeiro, 2011. 10 Baxter, Richard. In Weber, Max. A ética protestante e o “Espírito” do capitalismo, Companhia das Letras, São Paulo, 4. ed., 2006. 29


proibir”, pode conduzir à anarquia e à abolição das “distâncias sagradas”11 intrínsecas a uma sociedade em que o regime político é o “poder visível da democracia”12, entendida como “o governo do poder público em público”. Uma obsessão? Talvez. Há palavras que latejam na alma dos jornalistas: instituição, liberdade, lei. Os jornalistas são, assim: mais modernos do que pós-modernos, porque filhos diretos do iluminismo, da livre iniciativa, da social democracia. O jornalista Alberto Dines reuniu no capítulo final do livro O papel do jornal uma lista de conselhos que transmitiu aos seus repórteres, nas diversas redações pelas quais passou, como, por exemplo: Quem disse que isenção é frieza? O jornalista pode impregnar-se de emoção e, ao mesmo tempo, oferecer um balanço equilibrado do acontecimento. A grande regalia do jornalista é poder dispensar as regalias. Há um quociente de humildade na profissão. A busca do poder, opulência e importância são antagônicos ao espírito jornalístico. Se um jornalista começar a falar mal dos intelectuais, desconfie deste jornalista.

O perfil do profissional não tem a ver, segundo Dines, com os estereótipos que o cinema consagrou: “O jornalista necessariamente não deve compor o tipo expansivo, entusiasta, ágil, cuja imagem o público já mentalizou. Ele até pode ser quieto, calado e delicado. O que deve possuir intimamente é um espírito inconformado e inquieto. O jornalista não Lasch, Christopher. A rebelião das elites e a traição da democracia, Ediouro, Rio de Janeiro, 1995. 12 Bobbio, Norberto. O futuro da democracia, Paz e Terra, São Paulo, 5. ed.,1992. 11

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pode contentar-se com a primeira informação, impressão ou interferência, nem acomodar-se ao primeiro obstáculo. Quantas vezes a não notícia é uma excelente notícia? Basta trabalhá-la. Pejorativamente, diz-se que o jornalista é um cavador. Diríamos melhor que o jornalista é um permanente buscador. Jornalista conformado não é jornalista. O profissional de imprensa pessimista ou filosoficamente cínico, prejulga, não acredita no que pode acontecer, pois já sabe o que vai acontecer. Quem não acredita na notícia, não a persegue e não a encontra”.

O Cemitério dos elefantes, de Sergio Garschagen, não se ancora no ponto de vista de que houve, nas redações brasileiras, deliberada e calculada exclusão dos profissionais maduros, plenos de saúde física e mental, aptos a prestar sua contribuição à melhoria de qualidade da imprensa. Ele apenas lança a questão e, concomitantemente, registra depoimentos sobre o tema. O autor desenha um arco que se estende do nascimento da imprensa brasileira aos nossos dias. Deixa entrever que falta a outra metade da curvatura para que a imprensa se insira no círculo virtuoso da sustentabilidade financeira, da independência em relação aos governos e anunciantes, da informação como o registro diário da história, da reflexão e da análise crítica. A imprensa brasileira deslocou-se ainda mais, na última década, para o espaço do entretenimento e do consumo, esvaziando-se de conteúdo. Convocou a juventude para essa empreitada quase mecânica. A fronteira do jornalista qualificado e culturalmente maduro, seja ele jovem ou não, são os jornais e as revistas de referência, formadores de opinião, mais independentes e influentes. Quando a internet abre amplas e renovadas dimensões para o jornalismo qualificado, os três grandes jornais brasileiros, que têm esse perfil, recuam às suas cidades e aos seus estados de origem, desdenhando as demais regiões do país, o que ficou evidente com a eliminação de sucursais e de vagas 31


de correspondentes. Até mesmo as ações de marketing e de relações públicas se restringem, hoje, ao entorno geográfico em que se confinaram. A área de manobra dos veteranos encolheu. Aos jovens restou a alternativa do jornalismo de massa, que é operado como um callcenter da notícia, um centro de atendimento para quem demanda a diversão e o consumo. Isso não é jornalismo, porque carece de inteligência. O jornalista Matias Molina, em entrevista ao site Observatório da Imprensa, em 18 de janeiro de 2008, pontua a questão: “Há também jornalistas jovens bons, bem preparados. Na minha visão, para ser um jornalista tem que ter cultura, muita cultura”. Se há três jornalistas que indicaram ao Brasil o caminho da imprensa de qualidade, são eles Cláudio Abramo, Matias Molina e Alberto Dines. Coincidentemente os três, tendo Abramo como superior hierárquico, realizaram, em 1975, a reforma gráfica e de conteúdo que promoveu a Folha de S.Paulo, e consequentemente os concorrentes diretos, a um patamar de qualidade mais elevado. “Cláudio mostrou ao Frias (Octávio Frias de Oliveira, proprietário do jornal) que, para ele ganhar mais dinheiro, precisava de influência, e para ter influência tinha que ter um bom jornal”, afirmou Alberto Dines a Letícia Nunes. Ela citou a frase no artigo intitulado Quando a Folha se tornou a Folha, postado na edição do Observatório da Imprensa, de 4 de julho de 2005. Qual a moral da história? A resposta está na máxima de Cláudio Abramo, que Sergio Garschagen traz ao primeiro plano deste livro: “O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter”.

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