Ensaio sobre os três tédios

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Ensaio sobre os três tédios e outras ficções

Ensaio sobre

os três tédios

e outras ficções André Rangel Rios

André Rangel Rios

André Rangel Rios escreveu romances, contos, artigos e ensaios. Doutor em filosofia pela Universidade Livre de Berlim, é atualmente professor no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

...lá está Heidegger numa estação de trem feia e sem graça (in einem geschmacklosen Bahnhof) de um ermo ramo de estrada de ferro. O próximo trem só virá em quatro horas! A região é desinteressante (reizlos). Ele até trouxe um livro em sua mochila, mas nem tem ânimo para ler (...also lesen? Nein).Tampouco tem disposição para aproveitar o tempo de espera para pensar algum problema filosófico (...ein Problem durchdenken? Es geht nicht). O que ele faz? Fica lendo os horários dos trens e suas conexões ou estuda as indicações sobre as diferentes distâncias desta estação até outros lugares que, aliás, também não conhece nem pretende conhecer. Então olha para o relógio e constata que se passou um quarto de hora. Olha para a estradinha que chega à estação. Anda para lá e para cá. Conta quantas árvores ladeiam a estradinha. Mas nada ajuda. Quando olha novamente o relógio, constata que se passaram só mais cinco minutos (...fünf Minuten).

Escrever um ensaio é viver do risco de experimentar a linguagem na sua abertura para algo que se encontra em geral fora das instituições culturais de sentido. O ensaio vive, sobretudo, da leveza argumentativa para se manter na respiração do pensamento. Respiração que permite ao texto passar, sem maiores atropelos, da história da filosofia para os jogos de ficção em Borges, Beckett e Egan, deixando-nos na dúvida de se a história da filosofia já não seria, desde o início, um jogo de ficção, enfim, se ela já não seria, tal como para os metafísicos de Tlön, “um ramo da literatura fantástica”. O leitor fica convidado a seguir a aventura do gênero ensaio. Com alguma serenidade, poderá se deixar embrenhar no itinerário proposto, animando-se a empreender sua própria incursão no universo do pensamento, fazendo suas próprias avaliações sobre o tédio profundo heideggeriano. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho

Capa: Cecilia Leal Foto do autor: Tiago Rios

SÉRIE ACADÊMICA

SÉRIE ACADÊMICA


e V o c êe s t ár e c e b e n d ou mao b r a e mv e r s ã od i g i t a l d aB O O K L I N K s o me n t ep a r al e i t u r ae / o uc o n s u l t a . N e n h u map a r t ep o d e s e r u t i l i z a d ao ur e p r o d u z i d a , e mq u a l q u e r me i oo uf o r ma , s e j ad i g i t a l , f o t o c ó p i a , g r a v a ç ã oe t c . , n e ma p r o p r i a d ao ue s t o c a d a e mb a n c od ed a d o s , s e maa u t o r i z a ç ã od o ( s ) a u t o r ( e s ) . V e j ao u t r o st í t u l o sd i s p o n í v e i sd oa u t o r , d eo u t r o sa u t o r e s , e d i t o r e sei n s t i t u i ç õ e s q u ei n t e g r a mon o s s os i t e . C o l a b o r eep a r t i c i p e NE WS ) d aR E D ED EI NF O R MA Ç Õ E SB O O K L I NK( B O O K ed en o s s aR E D ED ER E V E ND AB O O K L I NK . C a d a s t r e s en os i t e .


Ensaio sobre

os três tédios

e outras ficções


Série acadêmica (Ciências Humanas e Artes) Ensaio sobre os três tédios e outras ficções

Conselho editorial André Rangel Rios (IMS / UERJ) Andréa Bieri (DFCS / UniRio) Cristina Pape (ART / UERJ) Edson Peixoto de Resende Filho (ICHS / UFRRJ) Eduardo Guerreiro B. Losso (DTL / UFRRJ) Luiz Fernando Medeiros de Carvalho (UFF / CES-JF) Marilena Villela Correa (IMS / UERJ) Rafael M. Viegas (FL / UFRJ)

homepage / e-mail do autor: www.booklink.com.br/andrerangelrios andre.rios35@gmail.com


André Rangel Rios

Ensaio sobre

os três tédios

e outras ficções

Série acadêmica


Copyright © 2011 André Rangel Rios Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, seja digital, fotocópia, gravação etc., nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem a autorização do autor. Capa Cecília Leal/ Conexão Gravatá

Editores Glauco de Oliveira Bruno Torres Paraiso

Direitos exclusivos desta edição: Booklink Publicações Ltda. Caixa Postal 33014 22440 970 Rio RJ Fone 21 2265 0748 www.booklink.com.br booklink@booklink.com.br Rios, André Rangel, 1958Ensaio sobre os três tédios e outras ficções / André Rangel Rios – Rio de Janeiro : Booklink , 2011. 100p. ; 20,5 cm. ISBN: 978-85-7729-128-1 1. Literatura e Medicina. 2. Filosofia. 3. Teoria Literária. 4. Tédio 5. Subjetividade. 6. Melancolia. I. Rios, André Rangel. II. Título. CDD 180


Para Tiago e Alice, que tanto tĂŞm me ensinado sobre arte.


SUMÁRIO

Apresentação ................................................................ 9 Prefácio O ensaio como risco

Luiz Fernando Medeiros de Carvalho (UFF/CES-JF)

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1. Tédio e escrita literária (I) Borges e Krapp ............ 17 2. Tédio e escrita literária. Heidegger: do tédio ôntico ao tédio ontológico ...................... 25 3. Sentimento fundamental e eurocentrismo ............. 47 4. Fundamentação racional cartesiana e sentimento fundamental heideggeriano .......... 59 5. A melancolia entre o ôntico e o ontológico .......... 69 6. Tédio e escrita literária (III). Greg Egan: tecnologia e serenidade ......................................... 75 7. Tédio e escrita literária (IV). Borges, Krapp, Mark e Heidegger ..................... 93


APRESENTAÇÃO

No processo de escrita deste ensaio, parti de várias leituras literárias e acadêmicas, reunindo pouco a pouco anotações que, basicamente, compõem as partes 1, 2, 6, 7. Alguns breves trechos do texto preliminar foram apresentados em aulas, colóquios e conversas com colegas professores. As demais partes reúnem excursos e discussões sobre temas correlatos, decorrentes desses encontros. Uma vez que, desde o início, a proposta era a de publicar um ensaio – com suas idas e vindas, provocações e conclusões provisórias –, pareceu-me possível que o texto final acolhesse alguns desses debates ocorridos em momentos diferentes e com pessoas diversas. Para evitar as repetições próprias a discussões orais e a anotações, por vezes, apenas rascunhadas, acredito ter, ao revisar algumas passagens do texto, substituído a vivacidade de comentários improvisados por frases longas, intrincadas e, talvez, ainda menos esclarecedoras. Sem deixar de reconhecer o caráter de improviso de algumas passagens e sem tentar fazer da incompletude virtude suprema, ainda assim, creio poder aproveitar a ocasião para recomendar que meus amigos e amigas, literatas ou acadêmicas, também busquem praticar a escrita ensaística, que, a meu ver, apesar de inevitáveis tropeços, pode, não poucas vezes, proporcionar tanto 9


prazer na escrita quanto ideias e, ao mesmo tempo, motivação para futuros diálogos e debates. Por fim, não posso deixar de agradecer o incentivo de amigos e amigas para a publicação deste livro, bem como as atenciosas observações e sugestões de Rafael Viegas e o generoso prefácio de Luiz Fernando. Agradeço, em especial, o apoio de Glauco de Oliveira, editor da Booklink, e o de Cecília Leal, que, com seu criativo design, me tem acompanhado em diversos momentos de minha trajetória crítica e literária. A. R.

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PREFÁCIO O ensaio como risco Luiz Fernando Medeiros de Carvalho (UFF/CES-JF)

O ensaio começa com Borges e Beckett, passa a Heidegger comentando o tédio, alude também a O lobo da estepe. O texto soa, assim, até quase sua metade, estranhamente retrô, transportando-nos a uma época em que, entre tantas paixões políticas, ainda havia quem tivesse tempo e disposição para cultivar o tédio. Mais à frente, no entanto, vem a virada para o futuro com o conto de ficção científica “Reasons to be cheerful”, de Greg Egan, de 1997, surgindo em um curioso diálogo pensante com o Heidegger de 1928, estabelecendo uma provocativa conversa entre o tédio existencial e a oscilação depressão-euforia diagnosticada e, a princípio, tratada a partir de um locus orgânico: essa patologia, agora ultramedicalizada, leva a que o eu narrativo considere criticamente a calculabilidade médica tecnocientífica que determina o horizonte de opções de seu engajamento afetivo no mundo. Assim, o ensaio apresenta sucessivas meditações sobre a melancolia, em suas diversas roupagens, sobretudo a do tédio profundo heideggeriano, além de problematizar e potencializar seu caminho especulativo com digressões diversas tais como as sobre o ato de publicação, a identidade autoral, a fama, o eu11


rocentrismo, a megalomania cultural, a filosofia enquanto parte do projeto intelectual hegemônico europeu, a intuição do universo de Schleiermacher, a medicalização do psíquico e a interação entre literatura e filosofia. Desse modo, é um aspecto notável deste livro que ele se arrisque pelo que é a vocação do gênero ensaio como um empreendimento não totalizante (diferente, por exemplo, de uma palestra ou de uma monografia sobre tema pré-definido). O risco do ensaio como gênero discursivo está em movimentar uma pletora de enunciados de alguns campos privilegiados e pressionar suas delimitações conceituais e históricas. É nesse jogo do discurso ensaístico que André Rios interpreta minuciosamente o conto de Greg Egan. Essa meditação sobre o ficcional em Egan possibilita ao autor atualizar Heidegger no contexto contemporâneo das estratégias para controlar o tédio ou para, supostamente, atingir uma vida com serenidade. Esse ensaio sobre o tédio apresenta uma narrativa hermenêutica que, curiosamente, se desenvolve em mão dupla: Heidegger é interpretado através de Egan; e Egan, através de Heidegger. Escrever um ensaio é viver do risco de experimentar a linguagem na sua abertura para algo que se encontra em geral fora das instituições culturais de sentido. O ensaio vive, sobretudo, da leveza argumentativa para se manter na respiração do pensamento. Respiração que permite ao texto passar, sem maiores atropelos, da história da filosofia para os jogos de ficção em Borges, Beckett e Egan, deixando-nos na dúvida de se a história da filosofia já não seria, desde o 12


início, um jogo de ficção, enfim, se ela já não seria, tal como para os metafísicos de Tlön, “um ramo da literatura fantástica”. O leitor fica convidado a seguir a aventura do gênero ensaio. Com alguma serenidade, poderá se deixar embrenhar no itinerário proposto, animando-se a empreender sua própria incursão no universo do pensamento, fazendo suas próprias avaliações sobre o tédio profundo. Assim, em meio a ironias e argumentações, num balanço final, o texto de Heidegger de 1928 continua se mostrando motivante, mantendo-se ombro a ombro com textos literários bem posteriores, só para, no entanto, sermos surpreendidos pelo alquebrado Krapp despontando na reta final, correndo por fora, como que para, num último sprint, chegar à frente, erguendo o Golden Bowl do tédio.

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...I knew From intimate impulse, and therefore... John Milton, Samson Agonistes


1. Tédio e escrita literária (I). Borges e Krapp

Quando jovem, Borges lia. Lia muito. Também escrevia. E passou a publicar. Mas, em “Borges e eu”, expressa sua estranheza frente a um Borges das publicações; a um Borges que surgiu em algum momento e se apropriou delas, sendo agora, exatamente por causa delas, grandemente reverenciado1. Teoricamente, sempre se pode fixar historicamente a primeira publicação impressa: em que jornal, em que livro o texto surgiu originalmente. Hoje, com a internet, também se poderia estabelecer um primeiro momento de postagem. Mas isso é uma questão de documentação, de arquivismo. Também é uma questão jurídica especificar o que é uma publicação, enfim, qual é o ato que assegura os direitos autorais. No entanto, o ato de publicação sempre pode ter começado antes de sua materialização física ou digital. E sempre pode ter se consumado muito depois dessa sua, por assim dizer, corporificação inaugural. Kafka, aparentemente, considerava Brod como metonímia do público: a leitura atenta de Brod valeria, assim, “Borges e eu” em: J. L. Borges, Obras completas, São Paulo, Editora Globo, 1999, vol. 2, p. 206. 1

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tanto quanto a publicação2; talvez valesse, até mesmo, mais do que se dez mil exemplares tivessem sido vendidos. Segundo Kafka, Dostoievski, apenas com a leitura e aprovação do crítico literário Nekrassov de seu texto inédito e ainda manuscrito, Gente pobre, já foi arrebatado pelo sentimento de ser um grande escritor3. Para muitos escritores, a aceitação para publicação já é o mesmo que a publicação. E, às vezes, o livro publicado vender pouco não é decepção, mas confirmação da sofisticação ainda por ser consagrada. De fato, para um poeta, a consagração por parte de colegas pode valer mais do que a vendagem, muitas vezes pífia, de seu livro. Mas, em algum momento, a despeito da vendagem ou da obra já ter sido impressa, o escritor ou escritora sente o dique transbordar e aceita se ver como tendo ido a público, como tendo superado seu eu, como não estando mais escrevendo só para si. É como se já tivesse cumprido essa missão, a de ir a público: como já tendo transposto um limiar, imaginário ou real, o ato de publicação. Krapp só vendeu 17 exemplares, o que autoironiza como sendo um fracasso4. Qual é o fracasso? Vender A. Rios, O ato de publicação, Rio de Janeiro, Booklink, 2007, p. 176 e ss. 3 Ver: F. Kafka, Die Briefe, Frankfurt am Main, Meltzer/ Zweitausendeins, 2005, p. 951-952 [trata-se de uma carta à Milena do ano de 1920]. Comento essa passagem no ensaio “Kafka e o ato de publicação” em: A. R. Rios, op. cit., p. 171-181. 4 “Krapp’s last tape” em: S. Beckett, Samuel Beckett: The Grove centenary edition, New York, Grove Press, 2006, vol. 3, p. 219 e ss. [1ª ed. de “Krapp’s last tape” foi escrito originalmente em inglês, em 1958]. A peça começa com Krapp, com 69 anos, em sua moradia acabrunhante, ouvindo, no gravador de rolo, trechos grava2

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pouco? Era o dinheiro que importava? Ele fala, pode-se entender assim, como se sua publicação tivesse falhado, como se o ato de publicação fosse nulo. Nesse caso, o livro teria sido publicado – afinal, tornou-se algo impresso, um objeto material –, mas não seria mais do que um conglomerado de papel e tinta, largado em algum depósito: Krapp continuava só, sem público, sem ser realmente publicado, só Krapp, Krapp só. Se Borges estranhava ver seu nome em um dicionário biográfico5, Krapp só poderia ver seu nome em seus próprios documentos. “Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas”6, mas é a Krapp, ali no escritório em sua casa, bebendo uísque e comendo bananas, que coisas se sucedem. O livro impresso não o redimiu. Não o redimiu de quê? É um longo assunto a ser discutido, mas, considerando apenas um aspecto, podemos dizer que não o redimiu dele mesmo, do sentimento de autenticidade de ser ele mesmo, de ser finito, de ser para a morte, de ter de prestar contas a ele próprio de seu inexorável esquecimento, esquecimento dos outros e dele mesmo, esquecimento desse ele mesmo de que ele recorda, tentando retê-lo e revivê-lo, recorrendo, para isso, àquele meio eletrônico então sofisticado, ao gravador de rolo. Ele recorda a si mesmo por meio da fita gravada, por assim dizer, publicada para ele mesmo. O mundo não o esquedos por ele em anos anteriores; ao longo da peça, pode-se perceber alguns momentos de sua vida, quais eram suas ambições, quais são suas frustrações; vê-se ainda que Krapp também é afeito a comer bananas e beber uísque. 5 Borges, loc. cit. 6 Idem. 19


ceu de todo, pois ele parece ter o suficiente para pagar as contas e comprar bananas. Implicitamente, ele atua no mundo, ao menos cuidando de suas rendas. Nisso, aparentemente, não é mal sucedido, pois chega até a ter algo que, para as décadas de 40 e 50, era moderno: o já mencionado gravador7. Mas o gravador, que registrou sua voz, não lhe serve como metonímia do público, de um público, de um público ouvinte, que ele poderia ter tido, de um público que, se ele tivesse tido, o teria atirado no burburinho dos jornais e dos lançamentos, nos aborrecimentos e vaidades das críticas de jornais. 17 exemplares não foram suficientes para que entrasse na roda-viva da inautenDe fato, o gravador de rolo, na época da estreia/ publicação da peça é uma tecnologia up-to-date. No entanto, o texto da peça começa com uma frase que, para o leitor atual, soa estranha: “A late evening in the future”. As pessoas se perguntam por que “no futuro” se tudo o que aparece nas encenações atuais (e assim também na estreia em Londres, em 1958) indica o período do final da década de 1950. A meu ver, Beckett busca, com essa primeira frase, pôr de lado um problema que o incomodava (embora, pelo visto, não chegue a ser percebido pela crítica e pelo público, até hoje), ou seja, ele tenta dissimular uma inconsistência intradiegética referente ao ato de encenação/ publicação da peça. Essa inconsistência é exatamente o gravador de rolo: Krapp, no momento da peça, está completando 69 anos, o que nos leva a concluir que ele estaria ouvindo gravações de sua voz feitas na segunda década do século XX, quando ainda não havia gravadores de rolo. A rigor, a peça deveria estar sendo encenada por volta de 1990. De certo modo, portanto, a peça poderia ser considerada ficção científica; afinal, em relação a sua data de publicação, sua ação se desenvolve mais a frente no futuro do que o conto “Reasons to be cheerful”, de Greg Egan, que comentarei mais adiante. Por ora, porém, estou seguindo a interpretação usual da peça e considero o gravador de rolo apenas como uma tecnologia up-to-date.

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