Memórias de Cachoeiro

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Da abundância do coração

Entrevistas com Adelson Moreira, Arthur Frölich, Athayr Cagnin, Dalton Penedo, Eunice Vivacqua, Guilherme Tavares, Margarida Vivacqua, Nelson Sylvan, Ormando Moraes, Waldemar Mendes Andrade, Deusdedit Baptista, Francisco Madureira, Gil Gonçalves, Hélio Athayde, Nilo Neves, José Nogueira, Maurício do Piston, Raul Sampaio, Miguel (Lito) Jacques, Maninho Leal, Joaquim Pires do Amorim, Manuel Gonçalves Maciel, Wilson Rezende, Olga Rubim, Jáder Coelho, Alcenir Souza, Jair Bala, Anna Graça Abreu, Yedda Braga Miranda, que ajudaram a fazer a história da cidade.

ISBN85-88319-76-4

Sérgio Bermudes* m abril de 2002, publiquei o livro As uvas da raiva. Reuni nele um E conto e uma coletânia de textos não-

Marco Antonio de Carvalho

Antonio de Carvalho, jornalista grande, que entende do riscado e, por isso, soube fazer trabalho de primeira. Cachoeiro renasce e revive na palavra de testemunhas da sua história, como Margarida Vivacqua, Adelson Moreira, Waldemar Mendes Andrade, Deusdedit Baptista, que se tornou uma instituição cachoeirense; o dr. Dalton Penedo, em cujas mãos eu nasci; o dr. Wilson Resende e o dr. Athayr Cagnin, professores admiráveis do Liceu, testemunhas do registro civil do meu nascimento. Os depoimentos das minhas amigas Yedda Braga Miranda e Anna Graça Abreu falaram saudosos do irmão Rubem Braga, sem dúvida o maior dos cachoeirenses, pela vida e pela obra que, como já escreveu transformou a crônica num gênero literário autônomo e fez das dele um veículo das suas memórias e do seu lirismo. Eu não sabia que Rubem deixou Cachoeiro por causa do incidente com o prof. Ávila Júnior, outra instituição da cidade. O episódio, narrado por dona Gracinha, confirma que a vida prega as suas peças e termina afastando pessoas que tinham tudo para gostar uma da outra, até pelo temperamento. Prof. Ávila, tal como Rubem, no depoimento da irmã, “era virado para dentro”. Errará feio quem supuser que este livro só interessa aos cachoeirenses, no seu bairrismo (uma forma de patriotismo, conforme Afrânio Peixoto) e na sua saudade. Nada disso. Pelo contrário, dos depoimentos que encerra, colhidos, selecionados e editados por Marco Antonio de Carvalho, a quem aplaudo com entusiasmo, esta obra reconstitui uma cidade do interior, no desenrolar de um século. Por isso perde o caráter paroquial para interessar como contribuição de feições históricas, sociológicas e políticas, à compreensão do Brasil. É claro que este livro nos emociona a nós, cachoeirenses, porque atiça as nossas lembranças. Ele ajuda a explicar o nosso orgulho, traduzido em manifestações como esta, feita numa das páginas do meu livrinho: “Diga com sinceridade: de quem é a vantagem? Deles ou nossa, que conhecemos Paris, depois de ter vivido em Cachoeiro de Itapemirim?”

Marco Antonio de Carvalho 9788588319769

jurídicos, muitos inéditos, outros publicados na minha coluna quinzenal, na revista eletrônica. No “Como estas páginas aspiram à categoria de crônica, e várias delas falam em Cachoeiro de Itapemirim, dedico este livro à memória de Rubem Braga, fiel à nossa terra, como eu tento ser”. Assim escrevi na pequena nota introdutória. Uma das crônicas, “A devoção de Gil Gonçalves”, lembra o comentário de uma amiga: “Não se pode ler uma página sua, ouvir uma aula, assistir a uma palestra, conversar um pouco com você, sem que logo apareça a sua terra”. Respondi que se compreendem as reminiscências da terra natal porque o homem entesoura no coração as suas boas lembranças. “Naturalmente, as evoca amiúde, “porque da abundância do seu coração fala a boca” (São Lucas, 645). Estas Memórias de Cachoeiro, de Marco Antonio de Carvalho, provam a verdade da minha resposta. Elas enfeixam depoimentos sobre a “doce terra onde eu nasci”, como no verso da música de Raul Sampaio, cantada aos quatro ventos, num sucesso retumbante, por Roberto Carlos, para falar de dois conterrâneos ilustres. Cachoeirenses de nascimento ou de adoção, todos muito ilustres e representativos, escolhidos com todo acerto, abriram o coração e tiraram dele as suas lembranças sobre diferentes aspectos da história, das instituições e da cidade. Dá gosto ler e reler estes depoimentos, colhidos com perseverança e depois editados com a competência de Marco *Advogado e professor de Direito na PUC/RJ


e V o c êe s t ár e c e b e n d ou mao b r a e mv e r s ã od i g i t a l d aB O O K L I N K s o me n t ep a r al e i t u r ae / o uc o n s u l t a . N e n h u map a r t ep o d e s e r u t i l i z a d ao ur e p r o d u z i d a , e mq u a l q u e r me i oo uf o r ma , s e j ad i g i t a l , f o t o c ó p i a , g r a v a ç ã oe t c . , n e ma p r o p r i a d ao ue s t o c a d a e mb a n c od ed a d o s , s e maa u t o r i z a ç ã od o ( s ) a u t o r ( e s ) . V e j ao u t r o st í t u l o sd i s p o n í v e i sd oa u t o r , d eo u t r o sa u t o r e s , e d i t o r e sei n s t i t u i ç õ e s q u ei n t e g r a mon o s s os i t e . C o l a b o r eep a r t i c i p e NE WS ) d aR E D ED EI NF O R MA Ç Õ E SB O O K L I NK( B O O K ed en o s s aR E D ED ER E V E ND AB O O K L I NK . C a d a s t r e s en os i t e .


Mem贸rias de

Cachoeiro


TĂ­tulo do autor em nosso catĂĄlogo: MemĂłrias de Cachoeiro

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Marco Antonio de Carvalho

Mem贸rias de

Cachoeiro


Copyright © 2005 Marco Antonio de Carvalho Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, seja digital, fotocópia, gravação etc., nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem a autorização do autor. Programação visual Waldyr Freitas Filho (Didinho) Revisão historiográfica Fernando Carvalho Gomes ISBN 85-88319-76-4

Direitos exclusivos desta edição: Booklink Publicações Ltda. Caixa Postal 33014 22440 970 Rio RJ Fone 21 2265 0748 www.booklink.com.br booklink@booklink.com.br


Apresentação Sérgio M. Garschagen A leitura dos originais do livro Memórias de Cachoeiro, do jornalista Marco Antonio de Carvalho, me fez recordar, em diversas passagens, a doce figura do mestre João Madureira. Guru de três gerações de estudantes cachoeirenses, João Madureira Filho transformava a cozinha de sua casa em prolongamento natural das salas de aula do Liceu. Entre rodadas de suco de manga e cafezinhos servidos pela Jandira, discutia-se da maiêutica socrática à profundidade do porto de Vitória. Além de médico ele era professor de geografia. A política cachoeirense e os fatos históricos nacionais também eram temas constantes daquelas aulas informais. Dr. João, com seu humor ora fino ora cáustico, antecipava acontecimentos e nos ensinava a fazer conexões entre fatos e informações. Daquelas reuniões vespertinas – muitas prosseguiam noite adentro, na Praça Jerônymo Monteiro – guardo muitas recordações. Dois ensinamentos, entretanto, ambos ligados aos temas tratados neste livro, me marcaram mais fortemente. O primeiro, premonitório, quando ele anunciou que a esquerda cachoeirense se dissolveria e a direita iria se consolidar como liderança única no Sul do Estado. O segundo era uma simples observação, que ele repetia à época da escolha do Cachoeirense Ausente n. 1. Dizia: “Ser ausente é fácil. Difícil mesmo é ser presente”. Essa reflexão não era uma crítica aos que deixavam a cidade e muito menos à idéia de Newton Braga em homenagear, todos os anos, um cachoeirense na festa da cidade. Era a constatação de quem já percebia a perda de importância econômica de Cachoeiro. Permanecer era mais penoso que sair. Foram décadas em que a cidade, como bem observou ou5


tro mestre, Deusdedit Baptista, “liderava e não admitia ser liderada”. Os cachoeirenses, culturalmente ligados ao Rio de Janeiro, eram orgulhosos, conscientes da influência que tinham na política capixaba. Como bem lembrou Ormando Moraes, “Vitória só ficou importante após os anos 60”. Para recuperar a memória de épocas já passadas, Marco Antonio abandonou a sua carreira jornalística em São Paulo e Rio de Janeiro e, durante sete anos, se dedicou a gravar entrevistas e a pesquisar histórias cachoeirenses. Na verdade, seu objetivo era conhecer mais profundamente o caldo cultural que influenciou e ajudou na formação de Rubem Braga, principalmente entre as décadas de 20 e 30, quando as transformações sociais brasileiras se fizeram sentir intensamente na cidade. As pesquisas foram tão produtivas que renderam este livro sobre a vida do cronista em nossa cidade e material para um segundo, que ainda escreve, sobre a ascensão do cronista como um dos maiores jornalistas brasileiros. Memórias de Cachoeiro contém 29 entrevistas de companheiros, amigos e parentes de Rubem e Newton Braga. Livro de leitura fácil, desperta a atenção a repetição de fatos narrados por diferentes testemunhas, a recorrência das lutas políticas, algumas violentas, das esquerdas contra os integralistas. Rubem Braga não tinha a simpatia dos comunistas, segundo revela o professor Waldemar Mendes Andrade, e participou ativamente dos acontecimentos. Foi um dos fundadores da Aliança Libertadora Nacional, na década de 30 e do Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1945. Eram partidos contrários à ditadura de Vargas, mas independentes do “partidão”, como era chamado o PC até recentemente. À proporção em que o leitor mergulha nos depoimentos, passa a entender como os eventos políticos que revolucionaram o Brasil dos anos 30 influenciaram a vida cachoeirense. Por essa razão, devemos louvar o paciente trabalho de garimpagem do autor, que muitas vezes teve de insistir nos pedidos de entrevistas, devido à desconfiança de amigos e paren6


tes da família Braga. Impressiona imaginar que muitas revelações, algumas inéditas, poderiam ter sido perdidas. Quatro entrevistados – Gil Gonçalves, Deusdedit Baptista, Francisco Madureira e Yedda Braga, irmã de Rubem Braga – felizmente não nos deixaram órfãos de suas histórias. Partiram, mas foram generosos ao registrar suas memórias neste livro. Nessa época atual de transmissão instantânea de informações globalizadas, em que há uma tendência natural em valorizar acontecimentos provenientes dos países mais ricos e de esquecer fatos recentes, é importante preservarmos a nossa própria história. Os cachoeirenses sempre foram bairristas e orgulhosos da fama de cidade exportadora de talentos. A leitura dos depoimentos selecionados reforça a certeza de que a antiga efervescência política de Cachoeiro já não existe mais. O cenário comprova os acertos da profecia do Dr. João quando, há quase 30 anos, previu o esvaziamento da oposição às lideranças de centro-direita em nossa cidade. Por isso tudo, lamento que o mestre João Madureira, que também nos deixou prematuramente, seja o grande cachoeirense ausente neste livro. Testemunha e protagonista de uma época importante da nossa história, ele não podia nem pode ficar de fora. Por isso, homenageio-o nesta curta e despretensiosa apresentação, relembrando esses episódios. Apesar de ter sido um dos seus discípulos menos aplicados, tenho certeza de que, se ele pudesse ler este livro, mudaria a sua opinião sobre a dificuldade de ser um cachoeirense presente. Por certo concordaria com a nossa tese de que Marco Antonio é um típico caso de um cachoeirense ausente que se fez presente para resgatar páginas importantes da memória de Cachoeiro de Itapemirim.

Sérgio M. Garschagen é jornalista.

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Sumário Política Adelson Moreira .................................................................................. 11 Arthur Frölich ...................................................................................... 17 Athayr Cagnin ...................................................................................... 23 Dalton Penedo ..................................................................................... 29 Eunice Vivacqua .................................................................................. 36 Guilherme Tavares .............................................................................. 43 Margarida Vivacqua ............................................................................ 49 Nelson Sylvan ....................................................................................... 56 Ormando Moraes ............................................................................... 65 Waldemar Mendes Andrade .............................................................. 72

Colégio Pedro Palácios Deusdedit Baptista .............................................................................. 79 Francisco Madureira............................................................................ 86 Gil Gonçalves ...................................................................................... 93 Hélio Athayde .................................................................................... 101 Nilo Neves ......................................................................................... 109

Música José Nogueira .................................................................................... 116 Maurício do Piston ............................................................................ 123 Raul Sampaio ..................................................................................... 129

Força Expedicionária Brasileira (FEB) Miguel (Lito) Jacques ........................................................................ 138 Maninho Leal ..................................................................................... 146

Memória da Cidade Joaquim Pires do Amorim .............................................................. 155 Manuel Gonçalves Maciel ................................................................ 161

Liceu Muniz Freire Wilson Rezende .................................................................................. 168


Caçadores Carnavalescos Clube Olga Rubim ........................................................................................ 175

Fábrica de Pios Jáder Coelho ...................................................................................... 182

Futebol Alcenir Souza ...................................................................................... 188 Jair Bala ............................................................................................... 193

Os Irmãos Braga: Newton e Rubem Anna Graça Abreu ............................................................................ 199 Yedda Braga Miranda ....................................................................... 214 Posfácio ............................................................................................... 227 Outras palavras .................................................................................. 230

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ADELSON MOREIRA “Attílio Vivacqua foi o maior político que a cidade já teve”

ilho de Gil Moreira – proprietário da mais antiga loja comercial da cidade, fundada em 1912 e que só desapareceu em 2000 –, Adelson Moreira se confessa um falastrão e não deixa de dizer o que pensa: “Getúlio Vargas foi o maior cretino da história política do Brasil”. Com sua voz que ele mesmo chama de “improvável”, Moreira conta o que foi a luta para se formar em Direito num tempo em que a ditadura Vargas vigiava de perto a todos que, de alguma forma, discordassem do getulismo. Fala das suas fugas para não ser preso e critica a ingenuidade do trabalhador 11


brasileiro, que venerava Getúlio por este ter criado a legislação trabalhista: “Mussolini e Hitler já tinham feito a mesma coisa”. E com um único intuito: silenciar os sindicatos. Em Marataízes e na Gil Moreira, pouco antes da loja cerrar suas portas em definitivo, Adelson Moreira contou o que sabe – de forma crítica e irônica, sem esconder nada do que pensa sobre alguns dos personagens e de fatos que presenciou na cidade durante o século. Quando foi que você nasceu, Adelson? Nasci em Cachoeiro, em 1917, filho de Gil Moreira e Nívea Rebello. Trabalhei muito tempo na loja de meu pai, na praça Jerônymo Monteiro, fundada em 1912. Cresci ali. A loja vendia artigos finos, para damas. Mas anos depois passou a vender somente materiais de construção, sempre no mesmo local. Seu pai foi também dono do único banco que a cidade já teve. O Banco da Cidade é de 1928, fundado por Armando Braga, irmão de Newton e Rubem. Armando foi o único Braga que conseguiu ganhar dinheiro, fez fortuna ali. Cobrava uma porcentagem enorme para descontar os pagamentos dos professores do estado, numa época que ninguém tinha dinheiro. Do que é que você se lembra da sua adolescência, no final dos anos vinte? A situação mundial era desastrosa, muito pior do que a globalização atual. Mas Cachoeiro era diferente, tinha um comércio forte, serviços, agricultura e pecuária, tanto que foi possível manter um banco durante décadas. O que fez com que a cidade empobrecesse? A crise de 1929 quebrou muita gente, o preço do café caiu, meu pai quebrou, muitos fazendeiros quebraram. O Banco Pelotense, um dos maiores do país, quebrou. Pouco tempo depois, nem banco havia mais na cidade. Como foi que o Banco da Cidade sobreviveu? Quem tinha cem contos de réis ficou milionário, como foi o caso do Gilberto Machado, que comprou propriedades que 12


valiam muito mais. Nessa época, Armando Braga era o único banqueiro que havia por aqui. Mas pouco depois foi chamado pelo interventor João Punaro Bley para ser secretário de governo e vendeu o banco para Gil Moreira, meu pai, em 1933. Em 1966, o banco foi vendido para o Nacional. E a loja? Como foi o início? Em 1912, ela se chamava Casa Benjamin, em homenagem ao sócio, Benjamin Silva, mais tarde conhecido como poeta. Ficava em frente ao Bernardino Monteiro, ao lado da praça Jerônymo Monteiro, com os fundos para o Itapemirim. No início, vendiam-se artigos femininos, mas uma vez uma dama entrou para comprar alguma coisa que ninguém nunca conseguiu descobrir o que seria. E saiu falando mal. Então, meu pai resolveu mudar de ramo e passou a vender material de construção. E a empresa de construção? Quando surgiu? Meu pai criou a primeira companhia de construção civil do estado. Nos anos 20 e 30 era preciso pegar os prefeitos à unha, não tinham percebido ainda que as ferrovias estavam obsoletas, eram todas precárias demais e que era necessário criar rodovias para escoar a produção. Como era a relação de Gil Moreira com Fernando de Abreu, líder político da cidade e da região? Fernando de Abreu era atrasado, meu pai tinha que pegar o Fernando e colocar no velho Ford 29 pra provar que era possível abrir estradas pelo sul do estado todo, até Castelo, Muqui, Mimoso do Sul. Meu pai foi o Departamento de Estradas de Rodagem do sul do estado. As estradas foram abertas com dificuldade, a partir dos caminhos dos antigos tropeiros. Mas a prefeitura nunca pagou o que devia ao meu pai. E o lado político de Fernando de Abreu? Ele era autoritário, um déspota, um homem violento, fruto de Getúlio Vargas, que foi o maior cretino da história política brasileira no século XX. Antes da guerra, o governo brasileiro acenava com simpatia para Hitler e Mussolini e para 13


movimentos como o integralismo de Plínio Salgado. Mas o Brasil não era fascista nem nazista. Era Getúlio quem simpatizava com as propostas autoritárias. Mas depois Vargas deu uma guinada em suas simpatias. Como foi que você sentiu essa mudança, quando da entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados? O que aconteceu foi que o cretino do Getúlio teve que se definir: ou ficava ao lado do nazi-fascismo ou das democracias. Mas permaneceu indeciso durante um tempo: certo dia fez um discurso francamente fascista a bordo de um hidroavião e, mais tarde, foi encontrar o presidente Roosevelt, em visita ao Brasil, e fez um outro discurso, bem diferente, afirmando o contrário do que tinha dito antes. Era um safado, manipulava todo mundo com seu gênio político. Mas o trabalhador brasileiro, em grande parte e até hoje, considera Getúlio Vargas quase um santo por ter criado a legislação trabalhista. Como você vê esse fato? Bobagem e desinformação. Mussolini e Hitler, dois ditadores e assassinos, fizeram a mesma coisa na Itália e na Alemanha. Criaram a legislação para atrair e calar os trabalhadores. Vargas virou um santo para o trabalhador brasileiro e, na verdade, era só um manipulador. Você atuou politicamente na época da ditadura do Estado Novo? Fui aluno da Faculdade de Direito do Catete, no Rio, uma escola onde poucos tinham coragem de ser oposição a Getúlio. Havia um clima de delação e dedo-durismo nas salas, entre os colegas. Depois de outubro de 1937, quando foi instalado o Estado Novo, tive que fugir do Rio. Por qual motivo? Eu era um dos três ou quatro socialistas da turma e vivia sob tensão. A polícia, comandada pelo Filinto Müller, não pensava duas vezes ao encontrar quem não concordava com Vargas. Foi Roberto Lyra, meu professor de direito penal e simpatizante do getulismo, quem me alertou sobre a hora de 14


fugir: “Estão de olho em você”. Como foi essa fuga? Eu tinha um amigo que era policial e trabalhava no gabinete do Filinto. Um dia cheguei na pensão onde morava, no Catete, e a dona me falou: “Ligou um moço umas quatro vezes. Disse pro senhor não sair que ele vai ligar de novo”. Depois, novo telefonema: “Adelson, some!” Taquei fogo nos papéis, peguei os livros e saí. Peguei o bonde na Correia Dutra, fui pra Lapa, depois peguei outro e fui parar em Nova Iguaçu. Às nove da noite peguei um trem pra Cachoeiro. Havia perigo em Cachoeiro, também? Pouco. Meu pai era um homem respeitadíssimo e o delegado de polícia era o Miguel China, que era amigo dele e protegia os filhos dos amigos. Mas um dia ouvi o Darcy Pereira, líder dos integralistas, na porta do Bar Vitória: “Mas o que é que você está fazendo aqui? Fugiu do Rio?” Parti pra cima dele. Quem me segurou foi o Jeremias Sandoval. Mas depois você voltou ao Rio? Voltei e passei algum tempo atuando no escritório de advocacia de Attílio Vivacqua, sem dúvida o maior nome político que Cachoeiro já produziu. Era um homem de uma integridade absoluta, tanto que nunca ficou rico nem com a política nem com a advocacia. E a visão de Attílio sobre a educação? Ele era um visionário, um homem com interesses múltiplos, em educação, política, direito e cultura. Attílio foi um dos maiores secretários de Educação que o Brasil já teve e pouca gente se lembra disso. O Jardim da Infância, em Cachoeiro, é criação dele. Só que aqui ficou tudo no nome de Raymundo Andrade. Ele também lutou pela criação do Aeroporto? Sim. Mas fomos nós, da Gil Moreira, que fizemos aquilo. Tínhamos as máquinas e em quatorze meses construímos tudo. Mas até hoje não recebemos o que o Ministério da Aeronáutica tinha que pagar. E tem gente que ainda diz que foi o Raymundo Andrade quem fez o Aeroporto. Não foi. Ele 15


era somente o gerente do Banco do Brasil, na época. Era quem repassava o dinheiro. Na verdade, não há nada em Cachoeiro com o nome do Attílio Vivacqua. E com o nome de Gil Moreira só a rodoviária. Há uma lenda que é repetida na cidade, de que Attílio Vivacqua teria algo a ver com a morte da irmã, Dora, conhecida como Luz del Fuego. Como que você vê essas afirmativas? É um absurdo, uma maldade. Dora morava na casa dele, no Rio. Ele a protegeu enquanto pode. Mas ela era uma espiroqueta, fazia as embrulhadas dela e ele ajeitava tudo. É um crime dizer uma coisa dessas. Attílio amava a irmã. Quando ela foi assassinada, em 1967, ele já tinha morrido. Você também se envolveu com o Partido Socialista? O partido foi criado em 1946, logo após o fim da Segunda Guerra e da queda de Getúlio. Tínhamos uma orientação socialista, mas éramos homens de elite, idealistas, Robin Hoods. Elegemos Deusdedit Baptista duas vezes para vereador. Esse foi o único partido que conheci de gente pura, inocente. Rubem Braga foi quem trouxe a proposta da criação do partido, em 1945. Como foi sua relação com ele? Anos depois fomos a um baile no Caçadores e passamos a noite bebendo um Johnny Walker. Foi uma das poucas vezes que ele foi a um baile. Só eu falava. Contava casos da cidade, piadas, falava de pessoas que o Rubem conhecia. Ele só ouvindo. Lá pras tantas, ele, enfim, disse alguma coisa: “Secou, hein?” E mostrou a garrafa de uísque vazia. Levantei-me e disse: “Estou perto de casa, eu busco outra”. E então? Peguei uma segunda garrafa e continuamos ali. Lá pelas três da manhã, esta ficou também vazia. “E agora?”, perguntou o Rubem, que estava ainda mais silencioso. “Agora vamos beber um uísque daqui mesmo”, eu falei. Trouxeram o uísque, o Rubem bebeu uma dose e a cabeça caiu e bateu na mesa. Eu tive que ser carregado pra casa. Ainda assim, dias depois ele contou o que aconteceu numa crônica publicada no Rio. Não sei como, mas se lembrava de tudo. 16


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