Belo Horizonte, 11 a 17 de junho de 2021
BRASIL
99
Imunidade de rebanho por contágio: a ideia errada que seduziu o governo Bolsonaro PANDEMIA Teoria de que contaminação em massa pode controlar surtos de doenças é cientificamente equivocada e eticamente inviável Alex Pazuello - GovAM / Fotos Públicas
Nara Lacerda Desde os registros dos primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus no Brasil, o governo federal propagou o entendimento equivocado de que deixar uma grande parcela da população se infectar naturalmente vai controlar a pandemia da covid-19 no Brasil. Nos debates sobre o tema, o termo imunidade de rebanho se popularizou para nomear a ideia. A medida seria uma forma de frear a propagação do vírus naturalmente - sem os custos de medi-
Mortes entre os mais jovens já são maioria das de prevenção e da compra de vacinas. “É o famoso barato que sai caro. Esse barato implica em mortes. Torna-se impagável”, afirma o médico Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Marco Túlio explica que a imunidade coletiva preci-
sa ser possibilitada por meio da vacinação em massa. De outra forma, não há evidências de sucesso. “A gente não tem cura para a covid-19, tem controle. Esse controle se dá pela diminuição de exposição, imunização pela vacina e máscara”, alerta. Importância das vacinas Já é de conhecimento da ciência o fato de que os vírus sofrem mutações e podem voltar a atingir pessoas que já foram infectadas anteriormente. Há ainda o risco de contaminação de pessoas nascidas após o período em que a imunização natural teria ocorrido. Em muitas doenças e casos, a proteção não passa de mãe para filho. O vice-presidente da SBMFC lembra: “foi visto logo no início que imunidade de rebanho não é uma estratégia adequada para a covid.
Controle da covid se dá pela diminuição de exposição, imunização pela vacina e máscara
Se você tem uma exposição maior, várias pessoas vão se contaminar, vão ser internadas, hospitalizadas e vão chegar à morte”. Esses fatores ajudam a explicar por que a humanidade ainda está sujeita a doenças que são ameaça há milhares de anos, como a raiva, o sarampo, a varíola e diversas outras. Nenhuma delas foi controlada pela imunidade de rebanho por contágio. Sem a vacinação todas podem voltar a sair do controle. As duas doenças infecciosas
Código Penal considera crime “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos que foram consideradas erradicadas, a varíola e a peste bovina, teve o controle feito por meio das vacinas. Variantes e crítica de cientistas Conforme a vacinação avança entre os grupos prioritários e as variantes tomam conta do globo, o perfil das vítimas da covid muda drasti-
camente. No Brasil, as mortes entre os mais jovens já são maioria, por exemplo. Mas mesmo antes da imunização e das novas cepas, a proposta de imunização natural foi fortemente criticada pela comunidade científica. Um grupo de 80 cientistas do mundo todo, de diversas áreas, publicou um artigo afirmando que a imunidade de rebanho é “uma falácia perigosa sem evidência científica”. Os pesquisadores alertavam para o fato de que a estratégia “daria lugar a epidemias recorrentes, como ocorreu com numerosas doenças infecciosas antes do desenvolvimento de vacinas”.
CRIME PREMEDITADO Mesmo que houvesse alguma possibilidade de controle do coronavírus por meio da infecção em massa, esse movimento causaria um número de mortes gigantesco e esgotaria a capacidade de atendimento do sistema de saúde. Nenhum desses argumentos, no entanto, pareceu suficiente para convencer o governo federal, capitaneado por Jair Bolsonaro. Segundo a plataforma Aos Fatos, a suposta eficácia da imunidade de rebanho é a segunda desinformação mais recorrente no discurso do presidente. Em abril do ano passado, ele já afirmava que o Brasil estaria imunizado quando a infecção atingisse entre 60% e 70% da população.
DECISÕES PARA PROPAGAR O VÍRUS Nas decisões de governo, também fica cada vez mais explícito para pesquisadores, juristas e estudiosos que houve ação deliberada para propagar o vírus. Um levantamento do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), colocou essa percepção no papel. O estudo trouxe uma análise de mais de 3 mil decisões da gestão de Jair Bolsonaro sobre a pandemia. São leis, medidas provisórias, decretos e outros mecanismos. A conclusão de que há uma ação proposital para impedir o combate ao coronavírus fica explícita em uma linha do tempo trazida pela publicação. Em fevereiro, juristas brasileiros entraram com uma representação criminal na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Jair Bolsonaro por crimes contra a saúde pública. O grupo aponta que o governo “aposta na disseminação do vírus como estratégia de enfrentamento à pandemia”. O artigo 267 do Código Penal Brasileiro, considera crime “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”.