O SONHO DE ÍCARO

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Para Lou.

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Esta NÃO é uma história sobre grandes feitos heróicos realizados por alguém com superpoderes. Esta é só a minha história. Ou seja, tudo o que aqui está contado, de uma maneira ou de outra, realmente aconteceu. Mas, como quando era criança, eu sonhava em aparecer na capa de uma história em quadrinhos, aí está.





nunca vou entender o metrĂ´. 14


Um trem que anda debaixo da t erra, cuspindo gente de estação em estação, sempre me pareceu esquisito.

Talvez pense assim porque, de onde eu venho, o único ser que caminha debaixo da terra é a minhoca. 15


Exato, não sou daqui. Venho de bem longe. E, sempre que saio do metrô, volto a me sentir igual a primeira vez que pisei em Buenos aires.

Da mesma maneira que poderia se sentir uma minhoca ao olhar a superf ície, se ela tivesse olhos, claro.

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Sou um extrangeiro vivendo na Argentina.

Mas hoje eu percebo que sempre me senti assim, l igeiramente deslocado.

E ser extrangeiro ĂŠ se sentir alheio, ĂŠ viver sem pertencer. 17


Jรก me sentia um extrangeiro em minha prรณpria pรกtria.

E, por me sentir assim, passei a vida tentando fugir para algum outro lugar.

Um lugar que eu pudesse chamar de meu.

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“Ainda que me fechem o caminho por terra e mar, o céu pelo menos está aberto, irei por aí.” Dédalo

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Toda histรณria tem um comeรงo, a minha foi no ano de 1982.

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Quando meus pais descobriram que esperavam um novo f ilho.

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Mas antes disso, em 1950, outro casal também descobria que iria ter um bebê.

Agora, sim, vamos ter um rapazinho.

Eu acho que estou grávida.

Se o f ilho que levava fosse homem, seria batizado com o nome do santo.

Eles já tinham 3 filhas, então ela fez uma promessa.

E, por essas coincidências que muitos chamam de milagre...

nasceu o meu pai. 24

Abençoado até no nome, Benedito.


Dorme tranquila, que estamos te esperando.

De volta a 1982, aquele menino com nome de santo já é um homem.

Ele e sua esposa já tem um f ilho, agora querem que este seja uma menina.

Menos mal que o meu pai não seguiu o exemplo da minha avó e não fez nenhuma promessa pra def inir o sexo da criança. Porque assim eu pude nascer. Um outro garoto.

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Nasci em Belém, no extremo norte do Brasil.

Localizada na baía onde o Rio Amazonas encontra o Oceano At lântico.

Uma cidade de sabores exóticos.

Perdeu, otário. me da tudo o que tu tem!

´ NÃO, DA PRA MIM! E de uma gente que usa a proteção divina para enf rentar a violência. 26


Um lugar onde o clima é constante, sem estações def inidas.

Onde há apenas uma estação em que chove muito, e outra onde chove mais Sempre com um calor insuportável e úmido. Até no inferno se deve suar menos que em Belém

Mas como Deus é misericordioso, todos os dias abre a torneira do céu

E molha a cidade com chuva. 27


Não é só água que cai do céu em Belém

Também caem mangas Das mangueiras que estão distribuídas pelas principais avenidas da cidade

Plantadas ali em uma época em que não existiam carros.

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Esta é Belém, a cidade que ninguém sabe aonde f ica.

N ão! Fica mais ao norte.*

Ah! Eu fui a Salvador. Fica perto?*

Eu conheço o Rio de Janeiro. Fica perto?*

Não, não. Fica ainda mais ao norte.*

No verão eu fui a Floripa. Fica perto?*

Não, isso é sul, e eu já disse que venho do norte.*

*Traduzido do espanhol. 29


Então, para acabar com qualquer dúvida, é daqui que eu venho.

Mas, apesar de ter nascido em Belém, passei minha infância em uma pequena cidade chamada Abaetetuba.

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Uma cidade no meio da f loresta.

Onde não existe uma f ronteira clara entre realidade e fantasia.

Onde todos sabem que devem ter cuidado com o monstro que vive na mata, o MAPINGUARI.

E que devem estar preparados para o dia em que a COBRA GRANDE, que está dormindo debaixo da cidade, acordar, fazendo Abaetetuba afundar no rio.

E que não devem se assustar se cruzarem com o CURUPIRA. 32


Ainda que lhes custe pronunciar seu nome, assim se chama a cidade em que cresci.

É uma palavra de origem tupi-guarani e quer dizer “Terra de homens f ortes e valentes”, mas eu nunca estive nem pra um, nem pra outro. Estava mais para o tipo “gordinho nerd”. Tinha tudo o que caracterizava um.

Brinquedos de heróis.

Muitos quadrinhos.

Desenho animado japonês.

E óculos.


Vivíamos em uma casa grande e debaixo ficava a loja de ferragens do meu pai.

Aquele lugar era meu parque de diversões.

Minha imaginação transformava cabos elétricos em serpentes, vassouras em espadas e caixas empilhadas em luxuosos castelos. 34


De repente eu era um dono de terras domando touros ferozes, vacas rebeldes e bezerros.

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Em frente de casa ficava o porto, cruzando a rua ficava a cruz gigante, que abençoava todos que desembarcavam na cidade, e mais adiante havia uma carniceira, que vendia alguns tipos de carne pouco comuns.

Os porcos eram sacrif icados ali, ainda posso escutar seus gritos.

também tinha carne de pirarucú, o maior peixe de água doce do mundo.

além de carne de jabuti, a tartaruga de terra da Amazônia.

E carne de jacaré-acu, uma espécie que pode medir até 4,5m de comprimento.

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Sentia pena daqueles animais, porque me lembravam as mortes trágicas dos meus animais de estimação.

Como o nosso cachorro, que um dia desapareceu. O coelho, que tinha o xixi mais fedorento do mundo

E que por isso foi dado. E um macaquinho que, de tanto dar voltas com a sua coleira presa ao pescoço, Acabou se suicidando.

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Em frente de casa ficava o rio, cheio de embarcações que ditavam o ritmo da cidade.

Todas as noites se escutava o som do Navio Rodrigues Alves, avisando a todos que tinha chegado e logo partiria.

Era lindo ver aquele colosso de metal cheio de luzes, ref letindo no rio as cores das redes.

Parecia até uma árvore de natal iluminando a escuridão da noite.


um dia decidi ter meu próprio negócio.

Além de abençoados, eles poderiam sair com algo doce na boca.

Uma banca de bombons, debaixo da enorme cruz que abençoava os viajantes.

Parecia um “negoção”.

Mas não durou muito, porque eu era meu principal cliente. 39


´ 6, ia Assim como os ingleses tomam o chå das 5 eu, as assoviar para os botos.

Alguns dias da semana, eu tinha um compromisso.

E eles, com pontualidade britânica, sempre saltavam curiosos para saber quem chamava.

O boto ĂŠ um primo distante do golf inho. 40


Dizem que nas noites de lua cheia o boto se transforma em homem e sai por aí elegantemente vestido de branco para seduzir as mulheres.

Mas, na transformação em humano, ele preserva o orifício por onde respira, escondido sob um chapéu.

Já escutei muita gente contar que conhecia alguém que tinha um filho do boto.

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Um talento que nunca tive foi o esportivo.

Apesar de brasileiro, sempre fui um desastre com a bola no pĂŠ.

Por isso, nunca me escolhiam para jogar.

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AtĂŠ que um dia decidi comprar uma bola.

passei a ser o primeiro escolhido.

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Talvez por minha falta de talento esportivo

preferia ficar em casa desenhando e lendo

Era uma andorinha maior do que o normal.

Aquela visita surpresa me lembrou de outra história.

Até que um dia recebi uma visita inesperada.

O mito de Ícaro e seu pai Dédalo, confinados na prisão de Creta. eles também eram visitados por pássaros.

E foi observando esses passáros que descobriram como fugir. 44


Ver aquela andorinha também me fez descobrir algo.

A andorinha é um pássaro sem lar, um eterno extrangeiro em movimento.

Percebi que eu também era assim.

Pela primeira vez me sentia diferente da minha realidade.

E essa sensação singular ia me acompanhar pelo resto da vida. 45


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Antes de seguir com essa história, queria lhes apresentar minha família. Este é o meu pai, meu Dédalo. Dédalo era um artista, um engenheiro e arquiteto famoso em toda Grécia pelas suas obras e talento. Meu pai não, é um homem simples e anônimo do interior da Amazônia, conhecido apenas por aqueles que o amam.

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Esta é a minha mãe. Ícaro nasceu de Náucrate. Náucrate se apaixonou pela inteligência e astúcia de Dédalo, mas a ele lhe interessava mais as sus obras. Em pouco tempo Dédalo se foi, levando seu f ilho. No meu caso, meu pai segue do lado de minha mãe até hoje. Quem se foi, deixando os dois, fui eu.

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Este é meu irmão. Assim como eu, Ícaro teve um único irmão, Yápige. Sua f igura na mitologia clássica não é clara, não se sabe se eram f ilhos do mesmo pai e da mesma mãe, ou se compartiam parentesco apenas por Dédalo. Já meu irmão e eu, somos f ilhos de mesmo pai e mãe e nos conhecemos muito bem.

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E este sou eu. Alguns def inen Ícaro como desastrado e teimoso. Alguém sem a inteligência ou o talento do seu pai Dédalo. Se isso é verdade, temos algo em comum.

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Em nenhuma página da história foi escrito se Ícaro pôde se sentar a mesa com sua família. Se ele não pôde, sinto pena dele.

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Essa era a minha maneira de escapar dali, de viajar a outros lugares.

Passava muito tempo lendo quadrinhos e desenhando.

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Assim fui crescendo.

A cada traço via algo estranho crecer em mim.

Viajando em cada linha. Vivendo em realidades alheias.

Percorrendo, entre cada pequeno quadro, grandes distâncias.

Uma sensação de aquele não era o lugar, que a vida meus pais não era a eu queria.

Que vivia em uma realidade que não era a minha.

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que meu dos que


Ele havia acumulado uma dívida, com o banco, que lhe deixou totalmente falido.

Até que descobri que o talento do meu pai para vender, não era o mesmo que ele tinha para administrar as coisas.

Não saber como resolver aquilo o deixou doente. Esteve semanas sem conseguir melhorar daquela febre de dívidas. 64


Em um aniversário seu durante esse período, economizei o pouco dinheiro que tinha para lhe comprar um DVD do único cantor que ele escutava. Quem sabe isso poderia lhe levantar o ânimo. Ao lhe entregar o presente, dizendo feliz aniversário, me respondeu:

Quanto custou isso? Por que tu não me destes esse dinheiro pra ajudar na casa? E se foi.

Assim percebi, que não queria ser como ele. Então me vi com gostos distintos aos seus, pensando de outra maneira, com outras atitudes e até torcendo para o time contrário. Mas agora, como adulto, me vejo com gestos que poderiam ser seus e encontro detalhes do seu rosto no meu. Porque é assim, se tem algo que agente não pode mudar, é o próprio sangue. E agora, quanto mais velho vou ficando, mais me orgulha estar cada vez mais parecido com ele.

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Então meus pais decidiram vender a casa com tudo dentro para começar a vida em um novo lugar.

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A principal rota da Amazônia é o Rio Amazonas e seus braços sinuosos que ligam um ponto a outro na região.

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E as distâncias não são medidas em quilômetros, mas em tempo, mais especificamente em semanas e dias.

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Pelos rios da Amazônia se t ransporta de tudo. Inclusive as expectativas e esperanças daqueles que navegam em suas águas.

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Foi em BelĂŠm que entrei na vida adulta.

Comecei a universidade, parei desenhar e comecei a trabalhar.

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de


Nessa época um dia acordei com o grito da minha mãe.

FILHO, VEM VER!

Corri para ver o que estava acontecendo com ela.

Mas não, algo estava acontecendo com o mundo.

Éramos espectadores da história. 77


Naquele mo mento o mu perdia um ndo mudava pouco do , seu brilho .

Assim se to como a min rnan do ca ha vida, q da ve z mais ue estava cinza .

or, sentia uele horr . Em meio aq va caindo ta es ĂŠm que eu tamb

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Como Dédalo, eu também estava preso.

Tinha feito da minha vida a minha própria prisão.

Em um labirinto que eu mesmo havia construído.

E, enquanto caminhava por aqueles corredores sem saída, com um trabalho que não gostava e em uma vida que não queria, via meus sonhos e planos ficando pelo caminho. 79


Até que numa manhã de sábado...

LEVAN TA!

Acordei com o estrondo da porta do meu quarto sendo aberta a´ força.

Era distinta a voz que gritava, uma que nunca tinha escutado.

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Senti algo gelado na testa.

Por um segundo pensei que era uma brincadeira do meu irmĂŁo.

Que queria me assustar com um cubo de gelo.

Mas nĂŁo era ele.

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O que tu tá fazendo?

É só um short.

Não tenta nada!

Viu?

Se tentar algo, te queimo!

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Havia mais alguém armado lhe vigiando. Nunca a tinha visto tão assustada. Alí estava a minha mãe com o Bigú, nosso cachorro.

Diferente do Bigú.

Calma, Bigú. Calma!

CALA A BOCA DELE, SE NÃO... 83


Falava com eles para poder gravar seus rostos na minha memória

Mas, o que vocês querem? O que me preocupa é que vocês façam algo com a gente.

Se vocês f icarem t ranquilos, prometo que fazemos nosso t rabalho aqui e vamos embora.

Mas eles não tinham me dado tempo de pegar meus óculos.

E a miopia me deixava ver apenas duas manchas desfocadas.

Mas, se tentarem algo, eu vou ter que ferir vocês.


Vieram pelo cof re que o meu pai tinha.

Aqui está o que queríamos.

Vai buscar as ferramentas pra tentar abrir esse cofre.

Onde ele guardava suas economias, Além de outras coisas que não queria que a minha mãe visse.

Eu me encarrego deles.

E NÃO ESQUECE DE NADA!

Bem, agora faz a tua parte do trabalho que eu vou fazer a minha.


Assim que a gente abrir esse cof re, l iberamos vocês.

Viemos buscar o que está no cofre.

Era uma tortura escutar aquele barulho.

Estamos de acordo?

Mas meu pai não tem muito dinheiro guardado aí.

Vocês tem minha palavra que pegamos o que tá aí dentro e vamos embora.


Eu também tenho.

A senhora não tem fé?

Tenha fé que tudo vai sair bem.

Tudo posso naquele que me fortalece, Filipenses 4:13.

Preferimos creer que aquela situação ridícula de um bandido citando a bíblia era um bom sinal.


Não, não pode ser, agora não.

Me lembrei que não tinha ido ao banheiro.

j usto nesse momento.

Agora? Ok, mas não tenta nada.

E era praticamente impossível aguentar.

Perdão, mas preciso fazer xixi.


Vem que eu te levo.

M ija de porta aberta e não esquece. Eu tô aqui fora com a arma apontada pra ti.

Até então realmente me sentia calmo.

Ou, pelo menos, era o que eu pensava.


Era a campainha.

O que ĂŠ isso?

Vamos, garoto!

Tu vai abrir a porta e vai atuar normalmente.

E a senhora que f ique caladinha, se ama seu f ilho.

Por favor, f ilho, tenha cuidado.


Não esquesce que estou atrás de ti.

Oi, o teu irm...

Não, aqui não tem ninguém.

Que mal educado!

Tchau, vaza!

Bom garoto. Tu já pode voltar com a tua mãe.


e O cofre seguia gritando.

Esse cof re é muito duro, tá todo torcido mas não abre.

E tu, como vai o teu trabalho?

Vai buscar o maçarico. Pronto, já tenho aqui.

Vamos ver se agora abre.


Já fazia 2 horas que estávamos assim.

Que cofre de merda, que se abra essa mer…

Abriu.


Enquanto eles juntavam o seu saque.

nos Começamos a sentir mais aliviados.

Parecia que aquela tortura finalmente estava terminando.

Olha isso, rapaz! Parece que sabiam usar muito bem esse cof re.

Pronto, vocês já t em o que vieram buscar.

Olha o que guardavam aí dentro.

Tu me destes a tua palavra que quando tivessem o que queriam, iam ir embora.


e Essa foi a parte mais tensa de todas.

Tu tem razão. Venham os dois.

Eles já tinham o que tinham vindo buscar.

Então ficava a dúvida.

Pronto, estamos aqui. E agora?

O que eles iriam fazer com a gente?

Entrem que lhes digo.

Eu vou trancar a porta do quarto, mas como se comportaram, não vou amarrar vocês.


Calma, que já termina.

Principalmente quando voltaram alguns ruídos.

Agora é só esperar que o teu pai chegue, ou o teu irmão.

Não sabíamos se realmente eles tinham ido embora.

E com os ruídos, o medo.

São eles de novo!

Vou tentar escutar alguma coisa. Eles voltaram!

Finalmente encont rei vocês.


Aquela manhã de sábado terminava assim. Os ruídos que escutávamos pela porta eram do meu pai, que ao entrar v iu a casa toda bagunçada e não nos encontrou.

Não me perdoaria se algo lhes acontecesse.

Então ele voltou a rua, justo quando passava uma viatura policial. Quando eles chegaram, os bandidos já tinham fugido. Mas deixaram uma eterna sensação de insegurança.


Anos depois daquela manhã de sábado, seguia acordando com a mesma sensação.

O cubo de gelo na testa, o susto.

Mas, ao abrir os olhos, percebia que era só um pesadelo. Tinha feito da minha vida um labirinto e, agora, finalmente estava frente a frente com o meu minotauro.

Mas não podia lhe ver a cara, pporque a única coisa que via eram duas manchas desfocadas.





Toda matéria no universo é formada por átomos

Micropartículas compostas por um pequenino núcleo dentro de uma nuvem de elétrons.

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Ou seja, qualquer coisa que toques, cheires, proves, é composta quase que totalmente...

Uma estrutura que tem 99,999% de vácuo na sua composição.

por nada. E eu era capaz de sentir todo esse vazio ao meu redor.

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Eu tinha umA vida cheia de nada.


AtĂŠ que desse nada...

saiu ele.

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Vinícius de Moraes. Ou, simplesmente, o “Poetinha”.

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Oi, garoto. Posso sentar na sua mesa?

Obrigdo. O que você está tomando? Coca, Te sirvo?

Claro.

Obrigado.

Não. Garçom me traz um whiskinho.

Agora, sim. Brindamos.

Por essa nova amizade.

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Na Amazônia peruana, os chamãs usam nos seus rituais de cura espiritual um tipo especial de canto sagrado ancestral, por meio do qual dirigem e transferem parte da sua energia vital às outras pessoas.”.

E por uma simples coincidência, esses cantos se chamam “ícaros”.

A poesia de Vinícius era exatamente isso para mim, ícaros de curação.

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Antes, desenhar me fazia viajar a outros lugares.

Agora, era a mĂşsica de VinĂ­cius que me levava para longe. 110


Agora precisava definir um destino.

Então pensei em algumas opções.

Primeiro, São Paulo. Mas ali a fumaça não deixa enxergar o céu.

Depois, pensei em Lisboa. Mas cruzar o Oceano Atlântico era demais para meu primeiro voo.

Então, escolhi emigrar para o sul. Meu destino seria Buenos Aires.

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Mas parecia que ninguém era capaz de me entender.

E que a solidão, no meu caso, mais que um estado, era a minha condição.

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Até que apareceu alguém que realmente me ajudou.

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AlguĂŠm que me fez atĂŠ voltar a desenhar.

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AtĂŠ que pensei que estava pronto.

Assim foram passando os dias, semanas e meses.

Chegou a hora. Devo ir.

Mas um vĂ´o como esse necessita de um grande salto.

Vamos.

Muito bem, jĂĄ sei aonde te levar.

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Dissestes que necessitavas de um grande salto. Conheço o lugar perfeito.

Mas aonde vamos?

Vamos, entĂŁo.

Sem saber aonde Ă­amos, me deixei levar.

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Pronto, chegamos.

EstĂĄvamos diante de um g igante. O edif Ă­cio mais alto da cidade.

Parecia o lugar ideal.

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ou pela idade que tinha aquele velho elevador.

NĂŁo sei se por minha ansiedade

Aquela viagem foi a mais longa da minha vida.

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JĂĄ estamos chegando.


Finalmente estamos aqui.

Estรกvamos no ponto mais alto da cidade.

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Finalmente tinha chegado o momento.

Mas, por algum motivo, fiquei em dĂşvida.

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S em dizer nada, nos olhamos.

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Tomei coragem e voltei Ă borda.

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Então o vi.

Ali estava ele, se erguendo no meio da cidade, mais alto que qualquer edifício.

É daquela árvore que eu tenho que saltar.

Tem certeza?

Sim.

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Vamos que eu sei aonde f ica.

Era no Jardim Botânico.

Tem certeza de que é por aqui?

Acho que sim, vamos.

Então entramos em busca a maior árvore da cidade. 125


Eståvamos dentro de um pedaço da floresta amazônica em plena cidade.

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Ali estรก. Vamos que jรก quase chegamos.

Era muito impressionante ver aquela imensa รกrvore pela primeira vez.

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Una castañera milenaria que parecía estar ahí mucho antes de que cualquier hombre caminara sobre la tierra.

El árbol más grande que había visto en mi vida.

Allí estaba él.


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Tínhamos o caminho preparado.

Mas parecia que não éramos os primeiros a querer subir nela.

Uma árvore ancest ral que fazia nos sent ir pequenos ao lado da natureza.


O primeiro homem a ter asas não foi um anjo, tão pouco um x-men.

Foi alguém que teve suas asas preparadas pelo seu pai.

Seu nome era Ícaro e sem saber que estava contribuindo para um destino fatídico, ajudou ao pai nessa tarefa. 130


Recolheu algumas plumas e amoleceu a cera dourada com o seu próprio polegar.

E Dédalo, quando deu os últimos retoques na sua obra, aconselhou ao filho: “Te aconselho, Ícaro, que deves voar à meia altura, para evitar que as ondas encharquem tuas asas se voares muito baixo...”

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“voa entre céu e mar.”

“e que o calor do sol às queime se voares muito alto.”

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Enquanto ele dava essas instruçþes, acomodava as estranhas asas sobre os ombros do filho e lhe dava beijos que nunca mais voltaria a dar.

NĂŁo tenhas medo.

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Fechei os olhos.

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Vi a cidade desaparecer diante de mim.

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E como a ave que do ninho lanรงa ao ar sua cria, eu me lancei ao salto.

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Ícaro vivia o sonho do pai de fugir dali.

Mas, por um segundo, ao sentir que estava voando, se esqueceu disso. Eu fazia o mesmo. Aquela sensação única do vento no rosto.

Das asas no ar. Do mundo visto de cima.

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Mas como Ícaro, também falhei. Assim como o calor do sol amoleceu a cera que grudava as plumas das asas de Ícaro, o medo amoleceu as minhas.

E então eu caí.

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Ícaro caiu movendo seus braços, numa últ ima tentativa Ícaro caiu no mar e teve seu desesperada de se salvar. corpo engolido pelas águas azuis do Mediterrâneo.

Eu não, me resignei e quieto Eu também caí em um mar, o me deixei cair. mar verde que formava a floresta abaixo de mim. 142


Floresta que pouco a pouco foi amortecendo a minha queda.

Até chegar ao chão.

Diferente de Ícaro, não tive ninguém gritando por meu nome, procurando me salvar.

Fiquei ali, prostrado no chão, quebrado e só.

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Ícaro morreu tentando fugir.

Eu, não. Apesar de algumas contusões e ossos quebrados, estava feliz de pelo menos ter tentado.

Então veio um longo tempo de recuperação.

tempo de deixar as feridas do corpo fecharem e y as lesões internas sararem.

Então me dei conta que caí porque não estava preparado.

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Caí porquetive medo.

E me faltou fé.

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Eu tinha aprendido minha lição.

Meu próximo voo seria, digamos, mais seguro. Então tive que decidir, entre minhas coisas, o que era mais importante.

No final, decidi levar só o essencial.

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Me despedir da minha famĂ­lia foi o mais dif Ă­cil.

Me doeu mais que qualquer outra ferida ver os meus pais chorando como se estivessem perdendo um filho.

Mas, o que para eles era um velĂłrio, para mim era um novo nascimento. 149


Muito obrigado por tudo!

E, no final, ela também ficou Eu devia seguir.

Bem-vindo e que tenhas um ótimo vôo.

Obrigado.

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Deixava tudo para trĂĄs.

Fala parceirinho. Preparado para voar?

VinĂ­cius viajava comigo. 151


Vi as aeromoças fazendo seu baile tradicional sem música, alertando os passageiros.

Escutei o capitão dando as boas vindas e in formando sobre as condições climáticas do voo.

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Senti o avião fazendo aquele típico movimento brusco ao tomar velocidade ainda na pista.

Aproveitei a sensação de alívio ao decolar. E desf rutei de cada um daqueles detalhes. Finalmente estava voando.

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Da janela do avião vi se aproximarem avenidas e ruas entrelassadas que formavan um organismo vivo que brilhava e batia na escuridão da noite, como um coração ao rítmo de um bandoneom nervoso.

Depois, tive que passar pelos olhares desconf iados dos guardas.

Retirar as malas naquela cinta infinita de voltas sem fim.


Preencher o formulårio da alfândega cheio de perguntas ridículas.

E ver as portas se abrirem sozinhas na minha frente

Para sentir que havia chegado ao meu destino.


Estava em Buenos Aires.

´ TAXI.

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¿Qué lento que va, no?

Algo debe haber pasado.

Aquele parecia o grupo de boas vindas mais mal-humorado da história.

No meu primeiro ano aqui, houve mais protestos que dias no calendário.

Son estos piqueteros de nuevo cortando la ruta.

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Assim descobria uma qualidade que só os argentinos têm, ninguém xinga tão bem como eles.

Se xingar fosse um esporte reconhecido pelo Comitê Olímpico Internacional, a Argentina seria uma potência olímpica mundial.

Não se destacam só pela sua originalidade e intensidade ao xingar, mas também por sua criatividade.

Além disso, inventaram algo único no mundo, os potencializadores de xingamento: re, contra, digníssima, mil, entre tantos outros.

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ANDATE A LA RE-CONTRADIGNISIMA-PUTA MADRE QUE TE RE-MIL-CONTRA-PARIÓ, ´ GRANDISISIMO PEDAZO DE PIQUETERO PELOTUDO. E ent re os argentinos, ninguém xinga como os taxistas.

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Cheguei ao apartamento, assinei o contrato e comecei a desfazer as malas. Então descobri que aquela viagem ia ter um custo alto, o preço da SAUDADE.

Uma palavra sem tradução exata para outras línguas. O resto do mundo sente falta de algo ou alguém, mas em português este sentimento é substantivo.

O brasileiro sente algo com nome def inido, algo com o que tem que se acostumar a conviver.


Antes só me sentia um estrangeiro, agora realmente o era.

Não conhecia as estrelas nas capas das revistas.

Nos jornais, a única coisa que via eram as fotos. Não entendia o que diziam na televisão.

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Tinha me mudado para a Argentina

ÂżQuerĂŠs un sorbete?

mas sem saber falar nem uma sĂł palavra em espanhol.

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O que me fez passar por algumas situações um pouco confusas.

¡Pero qué tarado! Fijate por donde andás.

¡Perdón!

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Então as folhas nas årvores começaram a mudar de cor enquanto eram levadas por um vento que a cada dia ficava mais frio.

E, pela primeira vez, fui formalmente apresentado ao inverno.

Assim descobri o prazer de pisar em folhas secas. 166


Vi o vapor sair da boca e descobri que era real e nรฃo sรณ efeito especial de filme.

E que sรณ passava com o aquecedor.

Assim como era real a dor nos joelhos que o frio me fazia sentir nas madrugadas. 167


Rapidamente aprendi a me vestir como uma cebola, em camadas. 168


Com o tempo as palavras foram ganhando sentido.

E fui me adaptando a minha nova realidade.

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Uma nova vida, um novo curso: criatividade publicitĂĄria.

Pensei que assim poderiam me pagar pelas minhas ideias.

Era uma classe cheia de estrangeiros, alĂŠm de alguns argentinos. 170


Um dia, na aula, encontrei algo.

Era uma pluma diferente.

Mas de quem poderia ser?

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Me passa o lápis?*

Tchau. Até amanhã.

Te acompanho até o ponto de ônibus. *traduzido do espanhol. 172


Qual o seu nome? Me chamo Lourdes.

Como? NĂŁo entendi. Lou, pode me chamar de Lou.

Prazer, Lou.

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Ela me disse que dançava f lamengo, e aquilo me pareceu incrível. 174


Tchau, gente, até amanhã.

Um dia, depois de sair com alguns amigos, fui lhe deixar na sua casa.

Pronto, na porta, sã e salva.

Bom, estamos a poucas quadras de casa. Então percebi algo.

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Cuidado, a porta do edif ício foi forçada.

Tem uma viatura na esquina.

Alguém a arrombou.

Eu vou perguntar o que aconteceu.

Espera, eu vou contigo.

Roubaram o edif ício ao lado e fugiram por aqui. Mas agora está tudo bem. 176


Então ou você vem comigo ou eu f ico. Então f ica.

Parece que foi só isso, mas tenho medo.

Fica tranquila, já passou. Vou tomar um vinho para me acalmar.

É que f iquei nervosa.

Vou colocar algo que meu pai cantava para eu dormir.

Você quer?

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E aí, aparecia ele de novo. A canção de ninar que o seu pai lhe cantava era Valsinha.

Uma música que Vinícius de Moraes começou a compor em Mar del Plata e que Chico Buarque de Holanda terminou no Rio de Janeiro.

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“Um dia ele chegou tão diferente Do seu jeito de sempre chegar”

“Olhou-a de um jeito muito mais quente Do que sempre costumava olhar”

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E entre uma taรงa de vinho e outra.

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Percebi que pela primeira vez em muito tempo não me sentia um estrangeiro.

Assim, descobri que um lar não tem que ser um lugar, também pode ser algo ou alguém.

“E não maldisse a vida tanto Quanto era seu jeito de sempre falar E nem deixou-a só num canto Pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar” Este livro foi meu refúgio por muito tempo. Enquanto o estava fazendo, me sentia em casa. Assim como ao lado dela.

“E então ela se fez bonita Como há muito tempo não queria ousar Com seu vestido decotado Cheirando a guardado de tanto esperar Depois os dois deram-se os braços Como há muito tempo não se usava dar E cheios de ternura e graça Foram para a praça e começaram a se abraçar Finalmente estava em casa.

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Então agarrei sua mão.

Lhe rodei dançando no ar.

“E ali dançaram tanta dança Que a vizinhança toda despertou E foi tanta felicidade Que toda cidade se iluminou E foram tantos beijos loucos Tantos gritos roucos como não se ouvia mais Que o mundo compreendeu E o dia amanheceu em paz”

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E, juntos, nos transformamos em algo mais.

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O sonho de fugir daquele labirinto não era de Ícaro, mas do seu pai. Foi Dédalo que elaborou as asas para ele e o seu f ilho.

Parece que o sonho de Ícaro era outro.

Ele não era prisioneiro do labirinto junto com seu pai, mas da admiração que sentia por Dédalo e da culpa por não ter nascido tão inteligente como ele.

Ao saltar, se sentiu livre pela primeira vez na vida e se embriagou com aquela sensação de liberdade, até se esquecer das indicações de Dédalo.

Ou talvez não, talvez tenha feito isso intencionalmente, para se entregar ao abraço de liberdade eterna da morte.


Agora, que tinha encontrado meu lugar no mundo, queria viver o mesmo sonho de liberdade de Ă?caro, mas sem desistir da vida.




Oi.

Não sou um extranho.

Não posso falar com estranhos.

Eu sou você no futuro. Então acho que posso falar contigo.

O que estás fazendo?

Vim te perguntar uma coisa.

O HomemAranha.

O quê?

Viu? O que queres fazer quando crescer?

Quero fazer quadrinhos.

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Desenhando.


Vou te dizer uma coisa.

irás fazer um.

Daqui a muitos anos...

Obrigado “eu do futuro”, isso me deixa muito feliz.

De nada.

Tchau.

Continua desenhando.

191



Este sou eu aos 5 anos de idade, quando sonhava em fazer uma histรณria em quadrinhos.




Esta não é uma h istória sobre grandes feitos heróicos real izados por alguém con superpoderes, vest indo um colã colorido com uma cueca sobre a calça, capaz de salvar o planeta. Esta é apenas a histór ia de um tipo comum, vest indo roupas normais, tentando encont rar o seu l ugar no mundo. Um eterno extrangeiro, buscando um lugar para se sentir em casa.


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