Comida e hieraquia entre PMs

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Um Paper da Tese de Doutorado

“J4 - JULIET QUARTA”: COMIDA E HIERARQUIA ENTRE POLICIAIS MILITARES

Trabalho antropológico sobre a conduta policial militar em serviço e os recebimentos alimentares em seu turno de trabalho. Fernanda Valli Nummer Trabalho vinculado inicialmente ao PPGA da UFRGS.

Porto Alegre 2010


“J4 - JULIET QUARTA”: COMIDA E HIERARQUIA ENTRE POLICIAIS MILITARES1

Fernanda Valli Nummer, Doutoranda do PPGAS-UFRGS, Porto Alegre, RS, professora do Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, RS

Resumo A comida como dádiva permite perceber trocas para além das hierarquias constituintes dos universos sociais e, por isso, é também um meio de sociabilidade e de traçar distinções sociais. Neste texto a comida é analisada como uma dádiva na economia das trocas simbólicas entre policiais militares, durante seus turnos de serviço, e destes com pessoas da sociedade, “os paisanos”. J4 significa refeição no código utilizado em comunicações via rádio entre policiais militares e informa quando os policiais de uma guarnição (“Gu”) que está no policiamento ostensivo estão almoçando ou jantando. Algumas refeições durante o expediente de trabalho são oferecidas gratuitamente por algum “contato”. O “contato” é alguém ou alguma empresa que oferece a alimentação em troca de uma atenção especial ao seu estabelecimento durante as atividades de rotina do policiamento. Esta prática é valorizada por muitos policiais, especialmente os mais antigos, que consideram uma vantagem não precisar gastar o auxílio vale refeição com alimentação durante os turnos de trabalho. Em contrapartida, outros desmerecem esta prática por considerarem que os beneficentes sentem “pena” dos policiais ou que a aceitação gera um dever de retribuição, que nem sempre poderá ser cumprido. Qualquer comida doada por civis para policiais em serviço é aceita e dividida igualmente entre os membros da guarnição, independentemente de suas relações hierárquicas internas. A comida doada é analisada como categoria cultural que traduz relações sociais em que as hierarquias que compõem a visão e a di-visão do mundo social entre o grupo de policiais militares são superadas em nome da alquimia das trocas simbólicas. Palavras-chave Alimentação, Polícia Militar, Dádiva.

A comida como dádiva entre policiais militares

A Brigada Militar (BM), Polícia Militar do Rio Grande do Sul, atualmente conta com mais de 60% de seu efetivo composto por soldados, que representam o primeiro nível, numa escala ascendente, de uma hierarquia dividida em graduações e postos. A Brigada Militar é vinculada administrativa e operacionalmente à Secretaria de Justiça e Segurança do Estado do Rio Grande do Sul e estrutura-se em Órgãos de Direção-Geral, 1

Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.


Órgãos de Apoio e Órgãos de Execução. Assim, um Órgão de Policia Militar (OPM) é um órgão de execução, responsável pelas atividades administrativo-operacionais. Entre estes estão: de Polícia Ostensiva, de Bombeiros, de Ensino, de Logística, de Saúde e Especiais. A pesquisa está sendo realizada em uma OPM de Polícia Ostensiva, o 22º Batalhão de Polícia Militar (22º BPM), que é subordinada a um Comando Regional (CRPO), no caso o CRPO do Vale do Taquari. O grupo de soldados estudados faz parte do 22º BPM, que tem sua sede na cidade de Lajeado e apresenta de cerca de 220 soldados atuantes em Lajeado e em outros 23 municípios do Vale do Taquari. As etnografias foram realizadas durante 2007 a 2009 no 22º Batalhão de Polícia Militar em Lajeado, especialmente em situações em que a pesquisadora participava de alguma guarnição de serviço, uma “Gu”, motorizada, composta de 1 a 3 policiais, responsáveis pela execução de serviço de policial militar durante a jornada de trabalho. As “Gu’s” exercem atividades de averiguação, advertência, prisão, assistência e autuação, ou seja, atuam diretamente com o público e são compostas, em sua maioria2, por soldados e sargentos que representam o primeiro nível, numa escala ascendente, de uma hierarquia dividida em graduações, para praças e postos para oficiais. Este trabalho pode ser considerado mais um estudo de caso sobre segmentos da classe trabalhadora urbana em que o foco está na análise das práticas e representações de consumo alimentar, objetivando compreender como o grupo significa seu modo de vida e sobrevivência. Segundo Canesqui (1988) estes estudos têm como foco a família trabalhadora, a inserção no mercado de trabalho de seus membros, os rendimentos familiares e o orçamento doméstico comum. Os policiais militares interlocutores deste estudo são soldados da polícia militar do Rio Grande do Sul, Brigada Militar, que recebem um salário entre R$ 1.000,00 e R$ 1.500,003. Exercem outras atividade remuneradas, “bicos”, e que ou auxiliam no orçamento da família, no caso dos solteiros, ou que são responsáveis pela maior parte do orçamento familiar, ou que parte de seus salários são para manter filhos de casamentos anteriores, os “320”4 no contracheque, além da família atual. Desta forma, compreender as práticas de consumo alimentar é compreender especificidades e heterogeneidades: 2

Em todos os turnos existem a “Gu” do oficial de serviço, que é composta, geralmente, por um praça e um oficial, responsável pelo apoio as demais “Gu’s” em serviço. 3 O salário base de um soldado da Polícia Militar do Rio Grande do Sul é de R$ 247,43 acrescido 222% deste valor como risco de vida. 4 Este termo nativo refere-se ao art. 320 do Código Civil Brasileiro, Seção III Do Objeto de Pagamento e sua Prova, que regula a quitação de dívidas “Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante.

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As práticas de consumo [...] devem ser entendidas no conjunto de práticas dos diferentes grupos sociais, com o cuidado de não particularizá-los e isolá-los dos determinantes de ordem sócio-econômica e de natureza ideológica que modulam a própria produção, distribuição e o consumo em nossa sociedade, comportando especificidades e heterogeneidades conforme realiza-se concretamente o modo de produção capitalista (Canesqui, 1988, 214).

A comida a que este texto está se referindo são geralmente sobras de comida preparadas de eventos comemorativos ou prontas, mas que são apresentadas de uma forma diferenciada daquela para a venda ao público em geral no caso de bares, restaurantes e empresas de produtos alimentícios. A exceção, no caso estudado, de uma empresa da região que oferece um número limitado de refeições no seu refeitório, junto com seus funcionários. São cerca de 5 almoços e 5 jantas, que informalmente foi definido que apenas alguns dos cerca de 10 policiais que estão em serviço naquele horário podem usufruir. As relações que envolvem a comida são analisadas a partir da concepção antropológica da dádiva em que a obrigação de dar não é tão importante como a de receber e retribuir, pois a recusa a dar ou a recusa a receber equivale a recusar vínculos sociais. A economia dos bens simbólicos, para Bourdieu (1996a) envolve a dádiva como algo gratuito, ou seja, o dar, receber e retribuir é baseado na illusio do desinteresse e que através do intervalo de tempo que transcorre entre cada ato “os dois trocadores trabalham, sem sabê-lo e sem estarem combinados, para mascarar ou recalcar, a verdade objetiva do que fazem” (p.160). Assim, o autor define as duas principais características da economia das trocas simbólicas: as trocas têm sempre uma verdade subjetiva e uma objetiva e declarar a verdade da troca é anulá-la5. A teoria do dom de Bourdieu leva em consideração o intervalo de tempo entre o dom e contradom, o dar e o retribuir, e a incerteza da troca: A análise do dom que apresentei em Outline of a Theory of Practice e em The Logic of Practice (e que, para evitar repetições, dou por conhecida) se afasta das teorias anteriores, sobretudo da fenomenológica e da estruturalista, em três pontos fundamentais: leva em consideração o tempo — ou, mais exatamente, o intervalo entre o dom e o contradom — e a incerteza; introduz uma teoria do agente e da ação que considera, como princípio da prática, as disposições constitutivas do habitus, e não a consciência ou a intenção; e remete a troca de dons a uma lógica muito particular, a da

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Várias são as passagens, quanto tratada sobre a economia das trocas simbólicas, em que Bourdieu, destaca a contribuição de Mauss para sua teoria. Por exemplo: “O que faz com que o sistema funcione é aquilo que Mauss chamava de crença coletiva. Mauss dizia a respeito da magia: ‘A sociedade sempre paga a si mesma com a falsa moeda de seu sonho’” (Bourdieu, 1983, p.160).

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economia dos bens simbólicos e da crença específica (illusio) que a fundamenta (Bourdieu, 1996b, p. 7) .

“Ser brigadiano” e “Trabalhar na Brigada”: profissão e identidade

Ao longo da carreira militar o policial segue a conduta militar como uma espécie de bem que deve ser preservado e perseguido:

O zelo por uma conduta militar querida como ‘exemplar’ e o esforço cotidiano realizado para seu aprimoramento, servem como instrumentos de contraste entre os policiais militares. São acionados como uma importante referência simbólica para todos os integrantes, um requisito indispensável para a aquisição de prestígio junto aos superiores e para legitimar o emprego carismático e meritório da liderança (Muniz, 1999, p. 98 e 99).

O cotidiano vivenciado pelos policiais, o perigo e os riscos em que enfrentam nos casos atendidos, são compartilhados somente com o grupo, o que favorece o sentimento de cumplicidade e solidariedade. A disponibilidade para conviver com o perigo e o contato com situações inesperadas, instigam a idéia de companheirismo entre os policiais: Esses dispositivos afetivo-morais operam como recursos estratégicos que ajudam a administrar a tensão expressa, ora no tédio da espera por um episódio inesperado ou violento em uma ronda que, até então, seguia monótona e previsível, ora no estresse de experimentar, de forma ininterrupta, toda sorte possível de interações descontínuas e fugazes com os cidadãos (Muniz, 1999, p.101).

Os quartéis transmitem aos policiais em formação a importância da solidariedade no trabalho policial com a concepção de unidade de corporação (Nummer, 2005). E, talvez o elemento risco, faz com que este ensinamento seja colocado em prática. Para Muniz (1999, p.102) “o processo de formação das praças e dos oficiais enfatiza o sentimento de unidade inclusive no próprio adestramento militar”. A comida vai aparecer no contexto das relações sociais dos policiais com a comunidade e entre eles como dádiva que circula em benefício dos vínculos sociais e para as quais se tem certas liberdades de escolhas e obrigações e que pode unir e colaborar neste sentimento de unidade ou marcar diferenças hierarquicamente. A dádiva é uma experiência que efetiva a relação entre indivíduo e sociedade e também entre liberdade e obrigação, pois desta forma a sociedade é vivida como comunidade. Estabelece-se uma relação de força simbólica em que a dominação econômica transforma-se em dependência pessoal: “eis aí o âmago da transmutação que 4


constitui o fundamento do poder simbólico, como poder que se cria, se acumula e se perpetua em virtude da comunicação, da troca simbólica [...]” (Bourdieu, 2001, p. 242). É preciso compreender as disposições sociais dos agentes que os tornam aptos ou não a participar destas trocas que suscitam relações duráveis de dependência. Quem são os que aceitam esta relação? Podemos afirmar que a compreensão de que a comida dada não representa uma troca em que a retribuição é explícita é mais comum entre aqueles que “são brigadianos”, ou seja, aqueles que apresentam um nível de adesão maior ao modelo de comportamento prescrito da profissão, o que não significa que alguns entre aqueles que “trabalham na Brigada” também compartilhem desta representação. “Ser brigadiano6” e “trabalhar na Brigada” são modelos analíticos construídos através da análise de diferentes formas de adesão a uma identidade profissional, diferentes níveis de adesão ao comportamento prescrito e origens sociais diferenciadas. A denominação das categorias faz parte da auto-identificação nativa utilizada no contato com “os de fora”. Importante destacar que ainda existe a auto-identificação “ser policial militar”, também incorporada no discurso da mídia que se refere aos soldados como policiais militares e as demais graduações ou postos refere-se ao nível hierárquico. “Ser policial militar” não pode ser considerada uma terceira categoria analítica, pois nela se encontram tanto aqueles que vamos classificar aqui como “brigadianos” como aqueles que “trabalham na brigada”. Assim, esta seria uma categoria mista que incluiria tanto um grupo quanto outro. Há sem dúvida um corte geracional, com um número maior de “brigadianos” entre os “veteranos” com mais de 10 anos de corporação. Isso não significa que entre os “novatos” não existam aqueles que “são brigadianos”, pois esses sentidos de pertencimento à profissão não são determinados exclusivamente ao “tempo de serviço”. Estes geralmente apresentam uma adesão, no sentido de valorização e incorporamento, do comportamento prescrito, que não representa um modelo hegemônico e sim um tipo idealizado.

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Importante destacar que a profissão recebe a designação de policial militar ou servidor público estadual militar. O termo brigadiano ou brigadiana é específico do Rio Grande do Sul e pode ter diferentes significados de acordo com o contexto e com quem o pronuncia. Por exemplo, pode unificar quando relacionado à Brigada Militar enquanto corporação, pois não distingue os membros do grupo por seus níveis hierárquicos, pode ser pejorativo quando pronunciado por um civil e associado a estereótipos da profissão como truculência ou baixa escolaridade.

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Percebe-se o reconhecimento de um roteiro público formal que define o que é “ser brigadiano”, ou seja, apresentar os valores da corporação:

1. Honestidade e integridade em todas as atividades; 2. Probidade e Zelo no trato das coisas públicas; 3. Hierarquia e Disciplina nas ações e operações; 4. Ética e virtude nas relações; 5. Dedicação ao Serviço Policial Militar; 6. Respeito irrestrito à Lei e à dignidade humana; 7. Justiça e imparcialidade na solução das demandas; 8. Profissionalismo e sensibilidade, tendo a força da família; 9. Integração às Instituições e a Comunidade; 10. Camaradagem e autoridade (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2008)

Nesta categoria teremos policiais com mais de 30 anos, que tiveram uma formação mais voltada ao militarismo, uma representação de que são policiais “24 horas por dia”, percebe-se sua hexis corporal7 é muito semelhante com ou sem a farda, seus projetos estão mais vinculados à família, um valor importante para a corporação, suas origens sociais estão mais próximas das camadas rurais ou urbanas de regiões Centrais e de Fronteira do Estado da de baixa renda e suas concentrações de capitais mais associados à profissão. Concomitantemente, há outros roteiros públicos êmicos, que atribuem diferentes significados ao roteiro hegemônico, com papeis significativos na elaboração das identidades destes sujeitos. Nenhum dos roteiros é exclusivamente determinante dos estilos de vida. Existem possibilidades heterogêneas de viver sendo brigadiano, especialmente se outros sentidos de pertencimento estão compondo as identidades. Na categoria “trabalhar na Brigada” teremos um grupo de profissionais mais jovens, com escolaridade mais alta, mais questionadores da estrutura e dos valores da profissão, cuja possibilidade de “seguir carreira” raramente é vista como uma opção entre seus projetos de vida, sua hexis corporal foi adestrada no curso de formação e a farda é um índice simbólico sem o qual muitos não conseguem mantê-la, suas origens sociais são mais próximas e camadas médias urbanas de baixa e média renda oriundas

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Aqui hexis corporal tem o sentido adotado por Bourdieu (1999) de habitus incorporado, ou seja, de uma concepção de mundo social incorporada que cria um estilo particular de cada grupo de se relacionar com o corpo.

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do próprio Vale do Taquari, do Vale do Rio Taquari e das regiões Centrais e de Fronteira.

A comida dada: vínculos entre policiais e civis

Nessa relação de trocas simbólicas, em que a sociedade civil doa comida para policiais militares e em troca receberiam uma atenção maior no policiamento de rotina ou uma agilidade no atendimento de ocorrências nem sempre é vista como suborno. Para alguns, é comum esta relação de troca, pois “sempre foi assim” e seu significado é o de consideração ao trabalho prestado à comunidade. Alguns reconhecem que pedem esta comida outros afirmam que foi o doador que ofereceu. Ouvi de um soldado de uma Unidade de Porto Alegre, uma história sobre sua infância: Quando eu era pequeno adorava levar suco para os brigadianos que estavam trabalhando na rua. Meu pai dizia que eles deveriam estar com sede e que assim seriam meus amigos para sempre (Diário de Campo, junho de 2008).

Para outros essa troca cria vínculos dispensáveis, representado na expressão: “A pior coisa é dever favor para paisano”. Esta expressão geralmente segue a explicação que a retribuição pode prejudicar o policial, pois ele pode ser convocado a “aliviar o lado”, deixar passar e não fazer o registro de uma ocorrência ou a prisão, do doador quando este é flagrado em situação de crime ou delito ou envolver um colega na retribuição e passar a dever uma retribuição para este também.

A comida dada dividida: solidariedade entre os policiais militares

As participações nas “atividades de linha” permitiram perceber como a comida é um elemento importante desta relação de solidariedade quando dividida entre o grupo que compõe a Gu:

Os guris me disseram que minha primeira atividade com eles era fazer escolta para a empresa X. Logo me lembrei do Sgt que dizia que era a atividade mais perigosa e que eu não devia participar, mas os guris da minha Gu não falaram nada a respeito e pareciam felizes em me levar na empresa e depois até o centro da cidade na Caixa Federal. Enquanto esperávamos o carro da empresa que iria levar o malote de dinheiro até o banco, ouvi um dos guris dizer ao segurança da empresa: Hoje estamos em três! Achei que ele se referia, em tom de brincadeira, que era mais uma pessoa a garantir a segurança do dinheiro e do funcionário da empresa, mas logo o segurança

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apareceu na janela da viatura e entregou 3 refrigerantes para o patrulheiro. Ele me perguntou se tomava aquele refrigerante e eu respondi que com aquele calor e de colete já estava com sede apesar de ter tomado chimarrão no quartel. Ele dividiu os refrigerantes, percebi que as latas estavam amassadas, e depois que tomamos me pediu que “escondesse” as latinhas no banco de trás (Diário de Campo, janeiro de 2009).

Não é objetivo neste texto analisar a relação da pesquisadora com o grupo pesquisado e como esta relação pode ter interferido nesta divisão, mas é importante destacar que em outras situações, percebi que minha negativa em aceitar alguma doação de comida não era bem vista, mesmo quando alegava estar de dieta a insistência era para que aceitasse ao menos um pedaço ou um gole “só para provar”. Em uma situação de campo quando recebi um convite para tomar sorvete durante o turno de serviço e perguntei: Pode? Obtive uma resposta agressiva e afrontadora: Tá calor! Nós não somos gente? Assim, percebe-se que todos que estão na viatura devem participar da divisão do alimento, pois todos estão vivendo naquele momento uma mesma condição que justifique a comida como um alento, seja fome, seja calor, ou qualquer outra situação em que o alimento sirva não só para aliviar sensações do corpo, mas também como um prazer para aliviar sensações de mal-estar, ansiedades, desamparo, cansaço, impotência diante de situações cotidianas, frustrações entre outras, mesmo que o regulamento formal proíba a alimentação dentro da viatura. Nesta condição a comida serve para reforçar e/ou estabelecer vínculos entre aqueles que devem preservar a camaradagem, não só como regra formal, estabelecida nos códigos, mas também como garantia de solidariedade na execução do trabalho de policiamento ostensivo. Solidariedade esta que pode custar à vida em ocorrências que envolvam grande risco físico, que também garante fidelidade em casos de punição ou que cria vínculos de amizade para além do serviço. A divisão da comida torna-se um importante elemento para a ritualização do companheirismo: “na origem da palavra ‘companheiro’ está: o pão partilhado. O vocábulo vem de cum panis que significa comer o mesmo pão, comer junto” (Nascimento, 2007, p. 83). A comida dividida entre o grupo nem sempre é aquela que alimenta o corpo, mas também aquela que consola, conforta, passa o tempo nos períodos de sentinela: “a comida envolve emoção, trabalha com a memória e com sentimentos” (Maciel, 2001, p. 151). Nesse sentido ela passa a ter um significado acessório, tal como define Barthes, em estudo sobre a psicossociologia da alimentação ao discutir os valores de circunstância e a substância do ato de alimentar na sociedade contemporânea. Para o

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autor, as circunstâncias do ato de alimentar-se atenuam o sentido nutricional do alimento e enfatizam os significados acessórios (Barthes, 1970 apud Montanari, 2008). A comida dada que não é aceita na divisão entre o grupo tende a excluir e a estigmatizar aquele que não a aceita, pois depois de aceita por um dos membros da “Gu”, deve ser aceita a sua divisão entre todos.

A comida dada e a comida dividida: a dádiva que hierarquiza e iguala

Considerados pela Constituição como auxiliar e de reserva do Exército, a polícia militar é regida pelo militarismo e seus preceitos básicos de hierarquia e disciplina. A histórica estrutura militar do Exército, aplicada à polícia, desencadeou uma cultura militarista, que de acordo com Muniz (1999, p. 119) compromete a tentativa de compreendermos “com excessiva nitidez se o modelo militar teria levado à consolidação do imaginário militarista, ou se a concepção militarista da segurança pública sedimentada no Brasil teria poluído esse modelo, exagerando as suas limitações”. Assim, a hierarquia está na base da formação e da adesão a uma identidade policial militar. Nesta relação, a comida representa um papel de intermediadora de relações sociais em que a hierarquia entre civis e policiais militares e entre os próprios policiais se manifesta ou se dissolve. Encontramos entre o grupo representações semelhantes às apontadas por Woortmann (1978) sobre a comida nos centros urbanos. O almoço e a janta por serem realizados durante os turnos de serviço são considerados as refeições mais importantes do dia e precisam ter “sustança”, por isso são muito valorizados aqueles recebidos pela empresa. Interessante notar que café preto, chimarrão e “besteiras” são alimentos valorizados como comida, ou seja, que tem propriedade de alimentar, logo seus doadores terão a mesma importância dos demais. Se fora da viatura a comida dada pode ser interpretada como uma manifestação de uma condição de dependência e por conseqüência de inferioridade, dentro dela, ela representa um rompimento temporário da hierarquia entre os policiais e destes com a pesquisadora. Na relação com o mundo civil, a comida serve como prestígio ou como suborno. Na relação entre colegas de uma “Gu”, o acordo tácito é o de que a comida dividida reforça os vínculos de companheirismo e de reconhecimento de que a comida serve como alento às pressões da vida e da profissão. Assim podemos afirmar que a comida intermedia relações hierárquicas: em determinada circunstância alguns policiais 9


se consideram privilegiados e outros depreciados e outras ela serve para apaziguar relações hierárquicas constitutivas da própria profissão.

Referências BARTHES, Roland. Pour une psyco-sociologie de l’alimentation contemporaine.In: HÉMARDINQUER, Jean-Jacques. Pour une histoire de l’alimentation. Paris: Armand Colin, 1970. BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. 3. ed. Campinas: Papirus, 1996(a). BOURDIEU, Pierre. Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, out. 1996(b). BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Disponível em: <www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/11/2002/10406.htm>. Acesso em jun. 2010. CANESQUI, Ana Maria. Antropologia e alimentação. Revista Saúde Pública. v. 22, n.3, 1988. GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Segurança Pública RS. Brigada Militar. Disponível em <http://www.brigadamilitar.rs.gov.br/institucional/brasoes.asp>. Acesso em 02 de jun de 2008. NASCIMENTO, Angelina Bulcão. Comida: prazeres, gozos e transgressões. 2.ed. Salvador, UFBA, 2007. NUMMER, Fernanda. V. Ser polícia, ser militar: o curso de formação na socialização do policial militar. Niterói: EDUFF, 2005. MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-savarin? Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: UFRGS, n. 16, dez. 2001. MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. São Paulo: SENAC, 2008. MUNIZ, Jaqueline. “Ser Policial é, sobretudo, uma Razão de Ser": cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Sociologia, IUPERJ, 1999.

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WOORTMANN, Klaus. Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda: relatório final. Série Antropologia, n.20, Brasília, 1978.

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