Não somos
obrigados Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@grupoatarde.com.br Ilustrações BRUNO AZIZ
Estranhamento e desinformação marcam a vivência de pessoas que afirmam não sentir atração sexual, mas, além das diferenças entre elas, há iniciativas em busca do reconhecimento da orientação que não a caracterize como uma doença
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inda na infância, o youtuber Cup, de Ilhéus, percebia que não tinha os mesmos interesses dos amigos. Não falava muito em namoricos ou beijos escondidos. Na adolescência, sentia-se ainda mais diferente: quase que oposto aos colegas,quepareciamnãoteroutroassunto,nãopensava em sexo. Para Cup, que é agênero (não se identificacomgêneroalgum)epreferenãousaronomede batismo, beijar só por beijar, transar só por transar não tinha qualquer sentido – e ainda não tem. “Não tinha aversão ao sexo, mas não sentia atração sexual”, conta. Sorte dele que existe a internet. Com a ajuda do Google e das redes sociais, ele conheceu o termo assexualidade, ainda estranho para muita gente. De começo, a definição é simples: assexuais são pessoas que não sentem atração sexual. Ponto. E, para um país famoso por hipersexualizar de tudo um pouco, os números até que surpreendem. De acordo com uma pesquisa de 2008, a mais recente sobre o assunto, realizada pelo Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex), da Universidade de São Paulo (USP), 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens não pensam em sexo nem sofrem por isso. No total, são 10,5 milhões de pessoas. Como os estudos ainda são poucos, não se sabe bem o por quê de as mulheres serem maioria. Na opinião da enfermeira e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, Olga Garcia, é mais uma questão cultural. Os homens, incentivados a explorar a sexualidade desde novos, não têm coragem de confessar – ou até mesmo de pensar sobre o desinteresse. “Eles acham que têm um papel social a desempenhar. Desde criança, o pai mostra na rua: ‘Olha que mulher gostosa!’. Não ter desejo sexual acaba parecendo inaceitável”. Mas, como avisado, a definição é simples só de começo. O psicólogo Gilmaro Nogueira, pesquisador em cultura e sexualidade na Universidade Federal da Bahia (Ufba), explica que, quando se fala em sexualidade, não existe oito ou oitenta. “É mais como um degradê, um espectro, existem níveis diferentes de atração. Cada um vivencia a sexualidade de um jeito diferente, assim como a assexualidade”. Nesse degradê, os assexuais se espalham em quatro grandes grupos. Eles podem ser românticos, que procuram um relacionamento, mesmo sem pensar ‘naquilo’. “Relacionamentos são sobre amor, companheirismo, não apenas sobre sexo. Então, você pode estar num relacionamento em que não haja sexo”, explica Cup. Tem os demissexuais, que até sentem atração sexual, mas só se, antes disso, já houver um sen-
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timento muito forte pela outra pessoa. Há os arromânticos, que, como o nome já diz, não querem saber de namoro. E, por fim, os gray-a (ou área cinzenta), que podem sentir desejo em situações bem específicas, mesmo que sem romance. É com esse último que Cup se identifica. Claro, essas definições não são camisas de força. É possível, sem muito compromisso, transitar entre elas. Nesse trânsito todo, fomos lembrados de que os assexuais também têm libido. Nogueira explica que essa dúvida é comum: “Existem várias formas de vivenciar a sexualidade, que não necessariamente com sexo.Umbeijo,umabraço,umcarinhotambémlibera a libido. E tem a masturbação”. Sim, é isso. A questão, diz Cup, é mais ligada à relação com o outro, não consigo mesmo. “Assexualidade diz respeito a não sentir interesse em se relacionar sexualmente com outra pessoa, não é uma questão biológica. Nossos corpos funcionam perfeitamente. Aliás, muitos assexuais se masturbam para saciar a libido e, mesmo assim, não se interessam em se envolver em relações sexuais”. E expliquemos: o termo certo é assexual, não assexuado. Assexuadas são aquelas plantinhas que não têm órgãos reprodutores. Outra sorte de Cup é ter vindo numa família acolhedora. Com eles, nunca sofreu preconceito. “Acho que todos já percebiam que eu não experienciava a atração sexual da mesma forma que a maioria das pessoas, pelo fato de não demonstrar esse interesse ou não ter me relacionado com ninguém ainda. Só foi uma questão de dar um nome a isso”, lembra. Mas na internet nem sempre há tanta receptividade. É preciso coragem para se mostrar. Cup já publicou vídeos sobre os mitos da assexualidade, contou como foi ser uma criança livre das fantasias românticas e dos príncipes encantados e deu dicas de como perceber os sinais de que você talvez também prefira comer bolo – brincadeira de quem está no degradê e diz escolher chocolate a sexo. O fato de ele ser virgem dá gás a quem define tudo isso como frustração e falta de experiência. “Já acusaram diversas vezes que a minha assexualidade é apenas uma justificativa por eu ainda ser virgem, ou que é algum trauma com que eu não soube lidar. Isso é motivado pela desinformação. Meus familiares e amigos nunca acharam isso, pois sempre expliquei bem para eles”. Desse jeito, diz ele, leve e sem traumas.
LIBERDADE Mesmo que separados por alguns muitos quilômetros de estrada, Cup e Michele Costa, que vive em Sal-
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vador, têm histórias parecidas. No começo da adolescência, ela, que hoje tem 18 anos, percebeu que não se apaixonava. “As minhas amigas só falavam disso, mas eu não tinha interesse, ficava calada só ouvindo”. Descobrir a assexualidade não foi um fardo, não trouxe medo. Foi mais uma libertação. “Aceitei muito bem porque tirou um peso grande das minhas costas”. Das vezes em que tratou do assunto entre amigos, teve que encarar aquele discurso de que faltam boas experiências. “As pessoas dizem: ‘Mas como você sabe, se nunca provou?’. Mas é uma sexualidade como outra qualquer”. Logo, também percebeu que é arromântica. A quem, por ventura, decida tentar um relacionamentocomMichele,eladiz:“Nãosoucapazde me apaixonar como as outras pessoas se apaixonam, para mim é diferente”. Outrodiscursoquetambémprecisaencararéaquele que diz que a falta de desejo só pode ser doença. Nesse mundo tão sexualizado, explica o antropólogo Felipe Fernandes, pesquisador na área de sexualidades, dizer “não” é uma falha. “Vivemos num período histórico em que o sexo e a sexualidade têm muita relevância. A gente vê sempre isso na mídia, na televisão… sempre há meninas e mulheres colocadas como objetos sexuais. Mas os assexuais tomam uma posição e dizem: ‘Essa dimensão, que é central para a maioria, não é para nós’”. Assim, é difícil acreditar que a recusa é normal. Nos manuais de psiquiatria, a assexualidade, diz Fernandes, foi regulamentada como uma desordem patológica, que aparece nas formas de problemas hormonais ou psicológicos. Mas os estudos antropológicos mais recentes têm fugido disso tudo e defendido que acausadetantadesinformaçãoéessanossamaniade entregar tudo para a biologia. “Nós tentamos trazer a sexualidade para o campo cultural. Não é a biologia que define o seu comportamento sexual, é uma série de fatores, como os costumes de onde você vem, religiosidade, família, questões políticas. A sexualidade sempre foi um campo muito regrado”. Assim, ele conclui, quem segue outro caminho é um problema. Um problema médico. Foi o que aconteceu com o advogado paulista Walter Neto, 31 anos, quando disse à psicóloga que, para ele, sexo é indiferente. Logo, ela pediu que ele desse um jeito de lhe entregar um exame de sangue. E rápido. “Ela não aceitava que eu me encontrei como assexual. Quando o exame chegou e ela viu que as taxas estavam perfeitas, disse que deveria ser algum trauma. Ela não considerava a minha sexualidade, é como se não existisse. Nunca mais voltei lá”, brinca. Tratar os assexuais como doidos, seja lá em qual
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espectro estejam, é o que faz com que eles apareçam tão pouco. No grupo do Facebook “Assexuais da Bahia” há 147 membros. No nacional, são 4.118. E foram poucos os que se sentiram à vontade para falar com a reportagem. “É um estigma muito grande, as pessoas sentem vergonha. Acham que nem existimos, que é só uma fase, que somos doentes ou frustrados”, lamenta Walter.
REDES SOCIAIS Mesmo que já vivesse a alegria de finalmente ser quem é, Walter se sentia sozinho. Sobrava aquela vontade de compartilhar tudo isso com outras pes-
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soas. E não seria na escola, na faculdade, na família. De novo, vamos agradecer a sorte de termos internet. O primeiro estudo sobre assexualidade foi conduzido num tempo em que internet nem era uma palavra. Foi em 1948, pelo pesquisador americano Alfred Kinsey, fundador do Instituto para Pesquisas sobre Sexo. Naquela época, ele descobriu que 1% da população dos Estados Unidos dizia não ter qualquer interesse em manter relações sexuais. Naquela época. E é na internet que a maior parte das discussões acontece. Nos grupos e nas comunidades do Facebook, os membros se apresentam, mostram links para quem chega sem entender, conversam, dão conselhos. Às vezes, a plataforma funciona também como um Tinder. “Onde está o meu ‘demi’ encantado?”, escreveu um membro. Entre as respostas estava: “Posto Ipiranga”, “Sei lá, a minha ainda não apareceu” e “Que pena que você mora em São Paulo”.
o assunto. Na página no Facebook, são mais de cinco mil curtidas. Desde que foi criado, no ano passado, o coletivo tem se esforçado para ir às ruas. Pena que, por enquanto, é só em São Paulo. “A gente, sempre que pode, faz encontros. Não só para falar de assexualidade, mas conversar sobre a vida, socializar, se conhecer para além da nossa sexualidade... é bom ter amigos que nos entendem”. Mesmo que ainda sejam poucos.
BANDEIRA
Num tópico de apresentações, cada um diz a idade, a categoria com que se identifica, a cidade onde vive e fala um pouquinho de si. São adolescentes, jovens adultos e pessoas de meia-idade. Nesses casos, internet é democrática. Em 2012, Olga Garcia publicou uma pesquisa sobre o comportamento de membros de comunidades assexuais do finado Orkut. Segundo ela, as práticas se repetem no Facebook. “É onde as pessoas conseguem conversar, se sentem acolhidas, na vida real não tem esse espaço”. E essa falta de espaço tem efeitos práticos. “Às vezes, por exemplo, a mulher não sente atração por homens, aí acha que é lésbica e entra numa relação homossexual. Depois, percebe que não era isso, ela apenas não sente atração. Veja como, sem muita informação, a descoberta pode demorar”. FoiparapreencheresseespaçovazioqueWalter,juntoaosamigosqueconheceu na internet, criou o coletivo Abrace, feito para espalhar algum conhecimento sobre
Até pouco tempo atrás, os assexuais não eram parte de um movimento integrado. A primeira Parada Assexual só aconteceu em 2015, lá em São Paulo, a maior capital do Brasil. No dia, foram 15 pessoas. Elas vestiam cores bem específicas: preto, cinza, branco e roxo – as cores da bandeira assexual. Hoje, num grupo já mais organizado, há quem clame que a assexualidade é também parte do movimento LGBT+, aberto a quem não segue os padrões da heteronormatividade, aquela ideia tão discutida depois do “menino veste azul e menina veste rosa”. “Eu acredito que os assexuais estarem nessa comunidade apenas fortalece a luta para o reconhecimento da diversidade humana”, opina Cup. Mas, de novo, não é tão simples. Entre os desinteressados em sexo pode haver héteros e, pasme, atéhomofóbicos.“Então,existearesistênciademuitosassexuaisquetambémsãohéterosdeseassociar com a comunidade por achar que o movimento LGBT+ é só sobre sexo”, conclui ele. Foi mais ou menos há cinco anos que a baiana Catiucha Melina, 38, descobriu a assexualidade. De início, acreditou piamente que estava doente. Depois passou a achar que eram os parceiros que não estavam funcionando. Até que, finalmente, entendeu. “Assim, eu não tenho interesse sexual, não sinto falta. Quando tenho uma relação, que é bem esporádico, eu gosto. Mas aquilo não me faz falta”. Depois de tanta pesquisa, chegou a uma conclusão: necessário é comer, é beber água. “O ato sexual não é algo fisiológico, você vive sem sexo normalmente. Mas a nossa sociedade é sexualizada, acham que não existe amor sem sexo”. Os estudos de Olga passam justamente por isso. No fim, depois de tantos termos, tantas cores e tantas idas ao médico, ela arrumou um jeito de simplificar. No consultório, sempre pergunta: “Não sentir falta de sexo lhe traz sofrimento?”. Se a resposta for sim, é um problema que precisa ser investigado e cuidado. Se não, sequer é um problema. Que comam bolo! «
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