Para além das incertezas sobre a condução da política nacional de Aids, iniciativas em Salvador minimizam o estigma que ainda existe em relação à síndrome
Diante da dor
Trabalho de acolhimento e cuidado na Caasah
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dos outros Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@grupoatarde.com.br Foto UENDEL GALTER editoria.fotografia11@grupoatarde.com.br
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o começo dos anos 1980, Conceição Macedo trabalhava como técnica de enfermagem no Hospital Geral Roberto Santos, uma referência no estado. Ela estava lá quando os primeiros pacientes apareceram infectados pelo vírus da imunodeficiência humana, o HIV, por volta de 1985, e também estava lá quando muitos delescomeçaramaserabandonadospelasfamílias.“Fui criando afinidade com eles por conta do abandono. A família internava o paciente e não voltava mais. Alguns estavam lá há meses e não se encontravam a família... por causa do preconceito, né?”. Quando já estavam bem e não podiam mais ficar no hospital, muitos ficavam sem casa. Alguns, lembra Conceição, acabavam na rua. Por conta própria, a técnica de enfermagem decidiu alugar dois quartos no Pelourinho, num daqueles casarões antigos, e abrigar dois pacientes. Um foi sozinho, outro levou a esposa e dez filhos, todos juntinhos naquele espaço miúdo. Ela passava por lá todos os dias, ajudava no que podia, incentivava que vivessem a vida. Tudo mudou quando um jornal da cidade publicou uma reportagem contando essa história. De uma horaparaoutra,umapencadegentebateunaportacom vontade de ajudar. “Saiu lá na matéria: ‘Anjo de luz acolhe pacientes com Aids no Pelourinho’. E botou meu telefone. Apareceu gente querendo ajudar e gente querendo ser ajudada”. A iniciativa, que não foi criada para ser grande, cresceu. Virou a Instituição Beneficente Conceição Macedo, com creche e apoio à população em situação de rua e profissionais do sexo. De abril para cá, o debate sobre a Política Nacional de Aids tem ganhado cada vez mais espaço. Começou quando o presidente da República, Jair Bolsonaro, vetou um projeto de lei que dispensa a reavaliação pericial de pessoas com HIV que se aposentaram por invalidez. Além dessa, outra decisão chamou a atenção: o Departamento de Aids do Ministério da Saúde se tornou uma coordenação, parte do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. A palavra “Aids” some. A pesquisadora Sandra Garrido, professora da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal da Bahia e autora do livro Política Nacional de Aids – a construção da resposta governamental à epidemia HIV/Aids no Brasil, explica que, por enquanto, esse “rebaixamento” do departamento ainda não trouxe consequências práticas – a mudança é mais simbólica. “O que tenho lido muito dos movimentos sociais é essa questão de sumir o nome da doença. E tem uma preocupação pelo montante de recursos destinados
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Padre Alfredo: “Prioridade absoluta é o tratamento”
ao programa, pelas questões relacionadas à discriminação, o estigma que a doença causa, é uma grande luta desde o início da epidemia”, comenta. Mas, de acordo com a pesquisadora, é necessário olhar a conjuntura. “O próprio presidente, em alguns momentos, tem uma posição de não ser favorável à oferta de medicamentos a pessoas que se contaminaram por uso de drogas injetáveis ou por ‘vadiagem, como ele disse’”, diz ela. Em 2010, quando era deputado federal, o presidente declarou ao programa CQC, da Rede Bandeirantes, que “pegar Aids por vadiagem não é problema do Estado”. Para Sandra, essa visão pode, de fato, nos levar a mudanças significativas na política de Aids. “Mas não só por conta da mudança do nome do departamento, pelo avanço do conservadorismo, mas pela questão orçamentária também”. Na Bahia, foram internadas 1.771 pessoas com HIV entre 2017 e 2019 – destas, 1.227 vivem na capital. Há queixas de falta de medicamentos em alguns centros distribuidores do país, mas ainda não há re-
latos do problema em Salvador. Talvez, só por enquanto. Em fevereiro, o Hospital Geral Roberto Santos, onde Conceição trabalhava, deixou de fornecer medicamentos para pacientes soropositivos e não oferece mais atendimento em infectologia. Algumas pessoas assistidas por Conceição sentiram a mudança. “Muitos já moravam ali pela região. Agora, vão ter que gastar com transporte, um custo a mais”, conta Conceição. Em nota, a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia informou que os pacientes foram encaminhados para outras unidades de atendimento, como Hospital Couto Maia, em Cajazeiras, e o Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), no Garcia.
ACOLHER No começo, Conceição tratava de pacientes com HIV em situação de vulnerabilidade: pessoas que estavam na rua, bebês infectados no parto, mães solo. Percebeu que muitas das crianças não tinham estruturaemcasa,alguémquesoubesseoupudessecuidar
FOTOS: JOÁ SOUZA / AG. A TARDE
delas.Eaí,jánofinaldosanos1980,criouumacreche, debaixo do viaduto da Praça da Sé. Lá, ficaram cinco anos. “Também era para ajudar as famílias, que precisavam trabalhar”. Conseguiu um espaço na Igreja de São Francisco, no Pelourinho. Lá, conheceu padre Alfredo, que se tornou gerente da instituição. As crianças, nem todas soropositivas, passam o dia inteiro no espaço, onde comem,estudam,leemebrincam.Vivemplenamentea infância e veem tia Conça, como a chamam, mais como mãe do que como tia. “Não tem democracia, não, os pais precisam se comprometer a deixar eles aqui. Senãovêm,agentevaiatrás,pergunta,fazvisita.Tem que trazer e tem que tomar amedicação também”, diz padre Alfredo. Para ser beneficiada pela instituição, é necessário que a pessoa seja encaminhada por entidades públicas, como o Hospital Geral Roberto Santos, o Hospital Geral do Estado ou o Cedap. “Mas se alguém bater na porta e pedir abrigo, ela deixa entrar, ela não se aguenta”, diz Alfredo. Ele conta um caso de um me-
FELIPE IRUATÃ / AG. A TARDE
Pacientes com HIV abandonados sensibilizaram Conceição Macedo
Sandra Garrido, autora do livro Política Nacional de Aids
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nino de 10 anos que apareceu pedindo ajuda. “Essa semana, Conceição está aqui toda sensibilizada. Chegou uma criança diagnosticada, sem mãe e sem pai, a irmã adolescente que trouxe. Ela disse: ‘Eu não vou abandonar essa criança’. Para a gente, a prioridade absoluta é o tratamento”. Conceição continua a história: “A mãe e o pai faleceram de HIV. Ele tem uma avó de 86 anos que está com ele e a irmã, sobrevivendo com aquele salário de aposentada. Eles precisam de transporte para pegar a medicação”. Além da creche, a instituição dá casa para quem não tem. Hoje, 29 famílias estão instaladas em casas espalhadas pela cidade, todas mantidas pelo instituto. “É uma luta para que a prefeitura reconheça isso como uma unidade de apoio. Em 29 casas, eu tenho mais de 60 crianças acolhidas. A gente trata as mães e as crianças”, diz padre Alfredo. “A ideia de Conça, que acho que é única no país, é cuidar da família. Às vezes, a mãe está debilitada, mas a criança não está. Você consegue, numa casa, abrigar a família, manter o núcleo familiar, garante o tratamento da mãe, a criança
Inês Dourado coordena o projeto PrEPARA Salvador
frequentaacreche, temalimentaçãoesaúdegarantida.Agentetentareinserir essa família no tecido social”. A equipe também acompanha 60 adolescentes e um grupo de 62 idosas em situação de vulnerabilidade, dez delas soropositivas. “E estão sobrevivendo”, comemora Conceição. Uma vez por mês, a enfermeira reúne travestis em situação de rua. “Elas têm os problemas delas e precisam conversar com alguém, mas não acham alguém para escutar”, diz ela. Ana*, 41 anos, chegou à instituição há seis anos, grávida, diagnosticada com HIV e dependente química: “Eu estava desamparada, tia Conça me abraçou. E, até hoje, ela tem me ajudado. Já não sou mais dependente química e eu atribuo isso à tia Conceição e ao padre Alfredo, que dão cestas básicas, gás, roupas”. Encontramos Ana na creche porque ela foi buscar a filha que, desde bebê, frequenta o espaço. Nenhuma mulher grávida acompanhada pela equipe de Conceição passou o vírus para o bebê na hora do parto. “Se algum dia eu não trago, é motivo de choro! Ela chama tia Conça de mãe”, conta. Ana, o marido e as duas filhas estão entre as 29 famílias que moram nas casas da instituição. Alémdessetrabalho,ainstituiçãodeConceiçãotambémdáapoioaprofissionais do sexo. Às quintas-feiras à noite e quartas pela manhã, as equipes vão até elas, fornecem camisinhas internas – as camisinhas femininas – e lubrificante. “É uma demanda delas, elas ficam esperando. Nas quinta-feira à noite, a gente dá 1.200 preservativos. É porque fecha o ciclo. Não adianta você fazer assistência se não faz prevenção”, completa o padre.
UENDEL GALTER / AG. A TARDE
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PREVENÇÃO Entre 2007 e 2017, os casos de jovens entre 15 entre e 24 anos infectados com o vírus da Aids aumentaram em 700%. A pesquisadora Inês Dourado, coordenadora do projeto PrEPARA Salvador, que atua na prevenção do HIV, explica que as razões para esse salto ainda não são claras. “A gente está conversando com o jovem para entender. Muitos dizem que não gostam de usar camisinha, não conseguem se adaptar, dizem que têm alergia”, diz ela. O PrEPARA Salvador é formado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual da Bahia. O grupo trabalha na prevenção do HIV entre jovens de 15 a 19 anos com o uso da pílula de profilaxia pré-exposição, a PrEP. O objetivo do projeto, financiado pela agência Unitaid, da Suíça, é demonstrar que a pílula é efetiva entre essas pessoas. “Dentro dessa população de 15 a 19 anos, o projeto é voltado para gays, homens que fazem sexo com homens, travestis e mulheres trans”, esclarece Inês. Para funcionar, a PrEP precisa ser tomada todos os dias. “São dois antivirais de alta potência combinados em um único comprimido, que deve ser tomado enquanto a pessoa tiver indicação de tomar. A PrEP não é para todo mundo, ela é indicada”, explica Inês. É como se faz com a pílula anticoncepcional, explica ela. “Se toma a pílula anticoncepcional para prevenir a gravidez, e se toma a PrEP para prevenir a contaminação pelo HIV”. De abril para cá, o grupo conseguiu levar 27 jovens a tomar o comprimido no Casarão da Diversidade, no centro da cidade, onde o projeto está instalado. “Funciona como uma unidade de saúde, mas de pesquisa, voltada apenas para o nosso público”. O objetivo é que, em dois anos, esse número chegue a 400. A PrEP já é disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas para adultos de grupos específicos: gays, homens que fazem sexo com homens, mulheres profissionais do sexo, casais sorodiscordantes – quando um tem HIV e outro não – e pessoas trans. Uma das maiores unidades de acolhimento para pessoas com HIV em Salvador é a Caasah – Casa de Apoio e Assistência do Portador do Vírus HIV Aids. Abrigapermanentementecriançaseadolescentesaté os 18 anos e acolhe adultos que estão em tratamento em outra casa. Paula* chegou lá criança, aos 3 anos, e hoje tem casa e família. “Mas eu nunca deixei de vir aqui na Caasah, porque eu sempre guardei como um lugar seguro para mim”. A vice-presidente da Caasah, Naiara Borges, explica que é importante que quem more ali veja o espaço como um lar. Ela, que trabalha lá há 26 anos, já vê.
A Caasah abriga crianças e adolescentes até os 18 anos
Para Naiara Borges, hoje o preconceito é menor, mas existe
“Passo mais tempo aqui com eles do que na minha casa. Dizem que eu não devo ficartãopróxima,masnãosoudesepararisso.Atéhojenãoentendocomootempo não me ensinou a separar. Estabelecer relação de afetividade é muito difícil”. Ela, que acompanhou muitos pacientes desde o nascimento, percebe que o preconceitohojeémenor,masaindaexiste.“Seumcolegadaescoladescobre,jásabe, né? É uma confusão”, explica. Ela, sempre que preciso, vai à escola conversar, seja com professor, seja com diretor, seja com quem cuida da merenda. Lembra que já teve caso de colégio que dava prato e copo de outra cor para quem era soropositivo. “Eles chegavam aqui e perguntavam: ‘Por que o copo do meu colega é azul e o meu é vermelho?’. Eu ia lá conversar. Isso, por exemplo, não acontece mais”. A doença foi descoberta há mais de 30 anos, mas o estigma ainda pode ser paralisante. Para Naiara, o medo que as pessoas têm de “aidéticos”, uma palavra tãonegativa,segundoela,éincompreensível.Bastaolharosorrisodascriançasque estão ali, com uma promessa de vida longa. “Se você pegar essa minha menina aí [Paula], ela vai contar o que viveu, ela tem histórias. Mas ela está fortalecida”. « * Nomes verdadeiros ocultados a pedido das fontes
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