Dois Relógios

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Dois relógios Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@grupoatarde.com.br Ilustrações TÚLIO CARAPIÁ

O conflito entre as conquistas de um passado recente e a atual orientação ao atendimento de pessoas com transtornos mentais

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té onde consegue lembrar, Marise Tavares, 65 anos, começou a morar em hospitais psiquiátricos aos 25. Chegou a viver por mais de uma década no Espaço Nelson Pires, na época em que ainda se chamava Sanatório São Paulo. Há quase 20 anos mora no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, numa das casinhas construídas para os pacientes que acabaram ficando por ali. Enquanto conversávamos,algunsinternoscaminhavamnaárea verde do hospital, tomavam sol na grama, e um deles tinha o cabelo cortado. “Quando a gente não tem mais família, acaba que faz uma família aqui”. Marise tem irmãos e irmãs, mas há tempos não ouve falar deles. “Se passar por mim, eu nem conheço”, conta. Tem também dois filhos, nascidos antes de a vida nos hospitais começar. Ela diz que não os vê há quase 10 anos. “O tratamento aqui é muito bom, não tenho o que falar, mas eu tô pensando em ir embora. Ver se minha família aparece e ir embora”. Hoje, o Juliano Moreira funciona como todo hospital que existe por aí: se um paciente chega doente, em crise, ele pode – ou não – ser internado temporariamente e depois recebe alta. Em média, cada internação dura até 30 dias. Mas nem sempre foi assim. Por um tempo, a instituição, aberta em 1874, funcionou mais como um asilo – e até levava isso no nome. Até 1936, o Juliano ficava em Brotas e se chamava Asylo São João de Deus, assim, com y mesmo. Era como uma casa, não um hospital, fundada pela Santa Casa de Misericórdia para abrigar aqueles não muito queridos pela sociedade: moradores de rua, pessoas que perturbam a ordem pública e, finalmente, quem tem doenças mentais. E isso era regra. O primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, o Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, nasceu em 1852, mas o primeiro medicamento para sintomas psicóticos surgiu só 100 anos depois, como conta o psiquiatra Antônio Freire, diretor do Juliano e professor da Universidade Federal da Bahia e da FaculdadeBahianadeMedicina.“Então,ohospitalpsiquiátrico surge, mas o viés médico não existia ainda. Não existia tratamento medicamentoso. A lógica era de exclusão, tirar esse indivíduo que estava na rua, xingando as pessoas, criando problema, tirar desse convívio e esconder. Mas isso foi mudando passo a passo, a história não dá saltos”. O Juliano Moreira começou a renascer em 1982, quando foi reformulado e reaberto em Narandiba, já mais com cara de hospital e menos de asilo. “A lógica não é mais asilar, é de um tratamento agudo”, diz Antônio. Mas, naquele tempo, a mudança estava ainda

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no começo. Foi só em abril de 2001 que o Congresso Nacional promulgou a lei federal 10.216, que reafirma os direitos e a proteção das pessoas “acometidas comtranstornomental”.Entreoutrasdiretrizes,incentiva tirá-las dos leitos dos hospitais psiquiátricos e encaminhá-las a tratamentos em regime aberto. Internações, se realmente necessárias, devem acontecer nos hospitais gerais. Quando a lei saiu, o diretor do Juliano era o psiquiatra e psicanalista Marcelo Veras, que ocupou o cargode2000a2007.E,elelembra,atransiçãonãofoi fácil: “Por um lado, nós encontrávamos um panorama relativamente mais favorável à reforma psiquiátrica para que tanto lutávamos. É preciso lembrar que a lei é de 2001, ou seja, saiu quando, eu tinha um ano no HospitalJulianoMoreira,masentreapromulgaçãode uma lei e a efetivação, a regulamentação do que essa lei propunha, havia uma distância enorme”. Segundo Marcelo, existia também uma resistência dentro das instituições, de pessoas que não viam a desospitalização como solução. “Mas também ainda tinha uma falta muito grande dos equipamentos substitutivos, como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Não adiantava apenas desospitalizar se não tinha para onde dirigir esses pacientes”. Hoje, o espaço é quase um complexo: tem hospital-dia, emergência especializada 24 horas e leitos de internação.Eparachegaràinternação,dizAntônio,não é tão simples. “É preciso que a pessoa apresente um risco claro de autoagressão, de agressão ao outro, de exposição social grave ou que não tenha mais condiçõesdesecuidareninguémquepossaajudar.Eagente está falando de um paciente que está psicótico”. Há três jeitos de chegar à internação: voluntariamente, quando, por exemplo, uma pessoa sabe que vai tentar cometer suicídio e pede ajuda; involuntariamente, quando o paciente não está em condições de decidir e a família é quem o leva ao hospital; e a compulsória, quando vira caso de Justiça. “A involuntária é a mais comum por aqui, porque atendemos pacientes em estados muito graves e que não têm condições de opinar naquele momento. A lógica do hospital psiquiátrico atual é atender pacientes gravemente adoecidos”. Nesse caso, o hospital precisa comunicar o acontecido ao Ministério Público. Mas, mesmo que agora já não se possa mais morar em qualquer hospital, ainda há os filhos do modelo antigo, que não têm mais para onde ir. Marise, junto com mais 11 pessoas, está entre eles. Antônio conta que, mesmo que os pacientes morem nas casas do hospital, não em leitos, viver ali está longe de ser o ideal. “Não é de interesse de ninguém

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que uma pessoa passe a vida em um hospital. Estamos tentando reconectar alguns pacientes às famílias. Os que já não têm mais podem ir para uma residência terapêutica, mas é algo que precisa ser feito com respeito às individualidades de cada pessoa”. Existem22residênciasterapêuticasnaBahia,construídas justamente para acolher esses que não têm a quem recorrer. Sete delas estão em Salvador. O objetivo é “contribuir com a desinstitucionalização dos moradores de hospitais psiquiátricos e de custódia, com permanência de dois anos ou mais ininterruptos”, explica a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia em nota. São mesmo moradias, devem estar dentro de comunidades e fora dos limites de hospitais gerais ou especializados. “É bom que o local seja o mais próximo do que a pessoa reconheça como lar. Por exemplo, um paciente era do Recôncavo baiano, perdeu toda a família e vive no hospital. Ele iria morar numa residência na mesma região, poderia até reencontrar alguém que

já conheceu, voltaria a ter contato com aquela comunidade”, explica Antônio. Enquanto não abrem vagas, eles esperam lá pelos lados do hospital mesmo. Mas esse ainda não é o caso de Marise: “Estamos tentando que ela retome o contato com a família, ela tem para onde ir”, conclui o psiquiatra.

NOVAS DIRETRIZES Cuidados com a saúde mental têm sido bastante discutidos no Brasil desde fevereiro, quando o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica lançando novas diretrizes sobre o tema. O texto era tão controverso que, depois de críticas de especialistas na área, foi excluído do site do Ministério da Saúde. Um dos pontos no documento trata da inclusão dos hospitais psiquiátricos nas redes de atenção psicossocial. Em 1986, quando o Caps nasceu, a ideia era simples: com o tempo, todos os pacientes psiquiátricos seriam atendidos num regime de “portas abertas”, nos Caps, inseridos na comunidade, e os hospitais psi-

quiátricos deixariam de existir. Se houvesse necessidade de internação, a pessoa iria para um hospital geral, que deveria ter leitos e equipes preparadas para esse tipo de atendimento. O Caps, coordenado pelas prefeituras, nasceu para ser um modelo substitutivo, uma alternativa aos hospitais especializados. A nota revoga tudo isso e cita os hospitais como um serviço que deve existir simultaneamente. Antônio Freire, que também trabalha no Caps, vê com bons olhoso projeto de modelo substitutivo,mas defende que, por agora, é preciso tempo e estratégia. “A internaçãosempre vaiexistir,sejanum hospital psiquiátrico, seja num hospital geral. O Caps trata da ‘porta para fora’, a gente trata da ‘porta para dentro’. Então, as internações ainda vão acontecer. O hospital geral é ótimo, tem profissionais de todas as áreas, cardiologista, psiquiatra, neurologista, é muito bom para o paciente. Mas ainda não há leitos suficientes. E as equipes precisam ser reeducadas, há preconceito com o paciente psiquiátrico”.

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HOTEL-FAZENDA A professora e bióloga Maria das Graças dos Santos, 60 anos, saiu de casa com o filho sob a promessa de ir a um hotel-fazenda. No trajeto, percebeu a lorota – estava era a caminho do Espaço Nelson Pires, hospital psiquiátrico privado no bairro do Santo Antônio Além do Carmo. É a segunda vez que é internada lá e, no final, até que não achou má ideia. “Na primeira vez, a experiência não foi muito boa porque eu não estava muito bem. Mas agora foi melhor. Eu me arrumei para ir ao hotel-fazenda, mas quando já estava chegando a Salvador, eu disse: já sei que hotel-fazenda é esse, é o Espaço Nelson Pires”, brinca. Entrar no hospital ativa alguma coisa na memória que nos faz lembrar as clínicas psiquiátricas descritas nos livros e nos filmes. Um portão alto de ferro nos leva a um casarão com móveis antigos – até onde conseguimos ver – e um jardim. Era lá que Maria nos esperava. Quando conversamos, ela dizia ter a impressão de estar lá há oito dias, mas não tinha certeza. Como mora em Tucano, no interior da Bahia, ela não frequenta o hospital-dia do Nelson Pires. Quando precisa de atendimento, remédios e atividades psicoterapêuticas, vai ao Caps da cidade. “Mas até que eu não estava indo muito, não”. De acordo com dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), existem 20 Caps espalhados por Salvador, usados por uma média de 9.400 usuários. Uma das unidades é 24h e acolhe pacientes à noite, caso indicado. Essa equipe atende, especificamente, usuários com transtornos mentais severos causados por uso abusivo de álcool e outras drogas. O objetivo do Caps é atender pessoas com transtornosmentaisgravesepersistentes,queprecisamde tratamento a longo prazo. Além de atividades multidisciplinares, atendimento psiquiátrico, psicológico e farmacêutico, as equipes das unidades, como conta o coordenador do Caps em Salvador, Allann Carneiro, também fazem visitas em domicílio. “As famílias avisamqueapessoaprecisadeatendimentoemcasa,ou quando um paciente fica muito tempo sem aparecer, as equipes fazem esse trabalho. É muito pactuado”. O Caps surgiu num tempo em que a luta antimanicomial crescia no país. A principal bandeira é a defesa de um tratamento aberto, comunitário, longe das instituições. Na opinião de Allann, a luta veio para frear as violências que aconteciam nos hospitais. “A assistência hospitalar já foi violenta, a gente encontra uma extensa literatura falando sobre o que acontecia com aquelas pessoas”. Quem contesta o texto do Ministério da Saúde argumenta que ele fere a lei de 2001. A preocupação é

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que, com a internação validada nas redes de atenção psicossocial, mais pessoas, especialmente as que estão pela rua, passem a ser internadas a torto e a direito. O passado voltaria a nos assombrar. “As instituições excluem o paciente do convívio, retira do espaço de vida. Muitos não precisariam desse tipo de intervenção, mas acabam sendo levados porque estavam na rua, como uma limpeza social”. Na opinião da advogada Vivian Pires, diretora do Espaço Nelson Pires, os dois serviços devem ser vistos como tratamentos complementares, não contraditórios. “Anotatrazàtonaaquestãodemanterosleitospsiquiátricosnopaís.NoBrasil,tem 0,1 leito psiquiátrico a cada mil habitantes, isso é completamente insuficiente”. Por isso, juridicamente falando, ela não enxerga as novas diretrizes como um retrocesso, mas um apoio ao que já é feito. “Humanizar a saúde mental não se trata de não ter leito psiquiátrico, se trata de dar um tratamento humanizado aos pacientes que precisam ser internados e não internar aqueles que não precisam”. Outro ponto citado pelo Ministério da Saúde é o financiamento de aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT), o eletrochoque, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Nelson Pires oferece o procedimento, que, segundo as normas do Conselho Federal de Medicina, deve ser feito com anestesia geral e em sala de cirurgia. Nesse


paciente passa o tempo todo calmo, deitado, é totalmente indolor. Se o hospital segue as normas, é um procedimento seguro e que salva vidas”, conclui ele.

PRIMEIRA CLASSE

caso, controvérsia nem tem tanto a ver com a eficácia do tratamento que provoca uma pequena convulsão e mexe com os circuitos do cérebro. O problema está nos modos de fazer. “É preciso desassociar o que é feito hoje com a imagem da camisa de força, com o paciente sofrendo, se debatendo”, diz Vivian. Em Salvador, uma sessão custa entre R$ 1.700 e R$ 3.500. Por enquanto, a única instituição que oferece o serviço gratuitamente é o Hospital Universitário Professor Edgard Santos, no Canela. Lá, há 15 leitos psiquiátricos e são feitas, em média, 70 sessões por mês, mas só em pacientes que não respondem mais aos remédios. “Ao longo da história, o procedimento sofreu uma evolução muito grande com o aperfeiçoamento da técnica, da máquina e da execução. E só pode ser feito com a autorização do paciente ou da família. Não é uma coisa tão banal como se está colocando. Do ponto de vista técnico, a energia empregada no ECT chega a ser um décimo da energia empregada num choque de ressuscitação cardíaca”, explica o psiquiatra Lúcio Botelho, diretor médico do Espaço Nelson Pires. Mas o medo de que o procedimento seja usado como punição está longe de ser infundado. “Historicamente, antes do advento da anestesia geral, era como se mostra em filmes mais grotescos, o paciente tendo convulsões vigorosas. Agora, o

Quem vê a fachada acha que o Holiste Psiquiatria é um hotel. Quem vê o lado de dentro acha mais ainda. Lá são três alas: a de pacientes pagantes, que têm quartos individuais; a dos convênios, com quartos duplos; e uma para idosos e pessoas com mobilidade afetada. O diretor do hospital, o psiquiatra Luiz Fernando Pedroso, prefere não dizer quanto custa a diária: “É muito caro”. Mas não se engane, funciona como os outros dois que visitamos: a ideia é que a pessoa fique lá por, no máximo, 30 dias. Por ser “caro”, o atendimento é personalizado. Há salão de beleza, grupos de terapia, banheiras de hidromassagem – na Ala A, dos pacientes pagantes –, academia e piscina. Na chegada, toda a surpresa foi para a piscina, a cadeira de sol e as internas que conversavam ali, se despedindo do verão. Os quartos também seguem o padrão hoteleiro. Numa visita guiada, o psicólogo Ueliton Pereira, diretor técnico, explica: “É para que a pessoa se sinta confortável. Não tem grades, temos espelhos, tem piscina… Os espelhos são blindados, para que uma pessoa com ideação suicida não consiga quebrar, mas é importante que pareça uma casa. Não queremos desconectar a pessoa do mundo”. Por isso, os familiares podem fazer visitas todos os dias e alguns pacientes têm permissão de usar celular e computador. “Tem gente que até trabalha pelo computador aqui, depende de cada caso”. Luiz Fernando já passou por dezenas de hospitais, aqui na cidade e em outros estados, e já tem resposta para quem defende o fechamento deles. “Existem hospitais bons e ruins, é isso. Existem os que têm grades, que amarram as pessoas, e existem os que fazem um tratamento humano. Você vê isso aqui e pensa que é luxo, mas não é luxo. Só são internadas pessoas em estado grave, 90% dos pacientes são tratados em consultório, internamento é o último recurso”. Mesmo que cada instituição, cada serviço, pense a saúde mental de um jeito diferente, uma ideia é comumatodoscomquemconversamosatéaqui:nãose pergunta diagnóstico. O psicólogo Danilo Cruz, que atende no Caps de São Caetano, resume bem: “Não existe uma depressão igual a outra, uma esquizofrenia igual a outra. Nosso trabalho é tirar os estigmas, evitar atitudes negativas. Fazemos aquilo que é preconizado pelo SUS, a promoção da integralidade, universalidade e equidade”. «

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