Atenção Plena

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O médico Brenno Soares, no Costa Azul: “Infelizmente, só vem quem não tem plano de saúde”

Atenção

PLENA

Texto BRUNA CASTELO BRANCO editoria.muito03@@grupoatarde.com.br FotoADILTON VENEGEROLES adilton@grupoatarde.com.br

A indubitável vocação de médicos que dedicam-se à saúde da família, prevenindo doenças e criando laços com comunidades

O

pai de Augusto Vidreira é médico de família. Morador do Lobato, no subúrbio de Salvador, ele já sabia desde os tempos da faculdade que era isso o que queria fazer: trabalhar na atenção básica, cuidar do bebê ao velho, estar na comunidade. Hoje, é professor de medicina de família ecomunidade, coordenador da residência da especialidade no município e um dos quatro médicos da Unidade de Saúde da Família (USF) de Ilha Amarela, a 10 minutos de casa. Quando se pensa em saúde da família, é difícil não lembrar das histórias que as avós e bisavós contam da época de criança, principalmente nas cidadezinhas do interior. Aquele tempo em que, numa emergência, os médicos atendiam nas casas dos pacientes. Para muitos, hospital nem era opção. O programa federal Estratégia de Saúde da Família (ESF), criado em 1994, veio como que para trazer essa figura de volta, mas numa forma mais contemporânea. Os profissionais da saúde da família atuam na atenção básica, ou seja, cuidam da doença antes que se torne uma emergência. Estima-se que 80% dos problemas de saúde da população podem ser resolvidos assim, no postinho perto de casa, não numa sala de hospital. “É evitar que a hipertensão e a diabetes, por exemplo, problemas muito comuns em Salvador, levem o paciente à emergência. São doenças que podem ser controladas”, diz Augusto. Em Salvador, são 272 equipes distribuídas em 87 USF, que atendem aproximadamente 960 mil pessoas. Cada equipe é formada por um médico, enfermeiro,

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técnicos de enfermagem, dentista e agentes comunitários de saúde. No fim, em tese, os hospitais e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ficam menos abarrotados, o que torna o serviço melhor e mais rápido. Emergências tratadas como emergências. De cara, o horário de funcionamento das USF espanta:desegundaàsexta,das8hàs17h.Maisparece uma repartição pública. Mas, quando se entende o objetivo do programa, o estranhamento logo passa. As unidades, afinal, não atendem emergências. Lá, as consultas são de rotina e funcionam com hora marcada. Só que, explica Augusto, mesmo que um paciente apareça sem avisar, será acolhido. “Às vezes, a pessoa pode não conseguir marcar, por isso temos o acolhimento. Pode ser que ele não seja atendido pela equipe de sempre, mas será atendido”. Criar laços com a comunidade é outro dos intentos do programa de Saúde da Família. A proximidade com os pacientes, suas famílias e a vizinhança, de acordo com o Ministério da Saúde, garante maior adesão aos tratamentos e intervenções propostas pelas equipes. Em Ilha Amarela, os afetos são visíveis. A cada passo de Augusto no corredor – sem exagero – alguém para, cumprimenta, dá um abraço, pede um

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Para Augusto Vidreira,dedicar-se à saúde da família “tem uma coisa de vocação”

conselho rápido, dá a mão. Mesmo na rua, conta ele, também reconhece o rosto e o nome dos pacientes mais frequentes. “Para mim, quando param para falar comigo na rua, no restaurante, na hora do almoço, não é uma invasão de privacidade, eu gosto, é um prazer. Mas tem gente que não gosta, o que é normal. É por isso que nem todos os médicos vão para a saúde da família, tem uma coisa de vocação”, conclui Augusto.

ESCOLHA Na turma da faculdade de 200 pessoas do clínico geral Brenno Soares, cinco ou seis decidiram trabalhar com saúde da família. Ele, que atua na USF Zulmira Barros, no bairro do Costa Azul, é um deles. Até hoje, já com oito anos de profissão, lida com a surpresa de quem não entende essa escolha – mesmo outros médicos. “Àsvezes,quandovocêestáemrodadeconversacomospróprioscolegas,ouaté com a família, vem a pergunta: ‘Qual a sua especialidade?’. Então, quando você fala que atua em saúde da família, que é generalista, a pessoa não entende. Os próprios colegas acham que trabalhar em posto de saúde, com comunidades carentes, atenção básica, é ser subdesenvolvido, como se não tivesse se desenvolvido na carreira”, comenta ele. Essa “fragmentação da medicina”, como diz Brenno, talvez explique o número reduzido de residentes em saúde da família e comunidade na Bahia. Das 59 vagas de residência aprovadas por edital da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), em 2018, apenas 13 foram ocupadas. O programa Mais Médicos, lançado em 2013, veio em auxílio aos municípios com a tarefa de preencher os espaços vazios, especialmente nas cidades do interior,


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territórios indígenas e quilombolas, lugares afamados pela escassez desses profissionais. Segundo o Ministério da Saúde, o programa atende cerca de 63 milhões de pessoas em todo o Brasil, com médicos estrangeiros e brasileiros formados em outros países. Em novembro do ano passado, a saída dos médicos cubanos do programa tornou aquela escassez mais dolorida. Na época, 285 cidades brasileiras ficaram sem médicos na atenção básica. Para tapar o buraco, o Ministério da Saúde abriu 8.517 vagas para brasileiros com salários de R$ 11.800. Dos que se inscreveram, 1.462 não se apresentaram nos postos de trabalho. Na Bahia, de acordo com a Sesab, ainda há 170 vagas abertas. Salvador não chegou a ser parte da catástrofe. Dos profissionais do Mais Médicos na cidade, apenas dois vieram de Cuba. E é importante não confundir: nem todos os médicos da Estratégia de Saúde da Família são do Mais Médicos. Antes de vir para a capital, Brenno trabalhou por dois anos numa unidade em Mairi, no interior do estado. Quando chegou, notou que a principal diferença entre as duas cidades é a cobertura. Lá, atendia quase 100% da população e via gente de todas as classes sociais, sem distinção. Aqui, o atendimento é mais segmentado. “Infelizmente, só vem quem não tem plano de saúde, a população mais carente”, diz ele. Acaba que isso culmina num cenário curioso: quem tem acesso à saúde privada é menos acompanhado pelo médico do que quem não tem. “Hoje em dia eu digo que é muito mais fácil você achar uma vacina atrasada em uma pessoa com plano de saúde do que em uma pessoa que reside numa área de USF. Porque tem a cobrança, a gente sempre pede o cartão de vacina, faz o acompanhamento, convive mais”, conclui.

A agente comunitária Sandra Almirante: elo entre médicos e moradores

O Programa de Saúde na Escola, que acontece uma vez por mês, reforça essa ideia de atendimento contínuo. O dentista Luciano Lima, também da unidade do Costa Azul, garante: “Todas as crianças são avaliadas por todos os profissionais da equipe. Esse ano, posso dizer que já examinei 100% das crianças da escola vinculada à unidade”.

DE CASA Quando se fala em atenção básica, cada partezinha do processo é indispensável. E tudo começa com o agente comunitário de saúde, quem conecta o médico à população. Para ser um agente, basta ter o ensino médio completo e morar na região acolhida pela USF. São eles que, de início, conhecem os problemas, médicos e pessoais, dos moradores da comunidade. Se alguém não pode ir à unidade, é o agente comunitário quem avisa e pede que o médico vá à casa do paciente. Eles abrem as portas. Sandra Almirante é agente comunitária há 16 anos. Ela trabalha na USF Estrada da Cocisa, em Paripe, e resume bem a função: “A gente é um elo, uma espécie de ponte entre a comunidade e a unidade de saúde. A gente detecta um problema e avisa à equipe,

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conversa com a família, orienta para ir ao médico”. Também levam informações rotineiras, como os dias certos de marcar consulta, o que evita aglomerações na porta da unidade. Nas visitas domiciliares das equipes de saúde, que acontecem uma vez por semana, os agentes comunitários estão lá, impreterivelmente. “Eles conhecem a gente, às vezes nos tornamos até um pouco que conselheiros, ouvintes. Nós chegamos lá, apresentamos aos médicos, passamos essa confiança”. O clínico Matheus Monteiro, do mesmo posto, lembra um caso que, sem o agente comunitário, poderia virar uma emergência das sérias. “Era um senhorquetinhasofridoumcortenopé,masnãoqueria vir para a unidade, não gostava muito de médico. O agente de saúde avisou e fomos lá. Era realmente um corte que poderia infeccionar, ele era diabético. Ele resistiu um pouco no início, mas depois foi amolecendo”.Amolecer,outramissãode quem escolheasaúde

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Matheus Monteiro atua em Paripe: “Sem essa relação próxima, não saberia continuar”

da família. Todas as USFs de Salvador ficam nas periferias e, por isso, há quem questione sobre a segurança de quem trabalha nelas. No último dezembro, 16 pessoas, entre servidores e pacientes, foram feitas reféns por mais de três horas no Centro de Saúde Osvaldo Caldas Campos, no bairro de Santa Cruz. “Foi uma coisa triste. Mas, aqui nessa comunidade, nunca ouvi falar de algum funcionário que tenha sido assaltado. As pessoas respeitam quando veem que é da área de saúde, não sinto medo”, diz Matheus. Conta que também já recebeu no consultório pessoas da região envolvidas com o crime. E, é claro, cumpriu o juramento de Hipócrates: atendeu quem precisava de atendimento. Mesmo com a distância que percorre todos os dias para chegar à unidade, Matheus não pensa em ir embora. Logo no início, quando era ainda um recém-chegado em Paripe, recebeu uma proposta para trabalhar em outro canto, mais perto de casa. Não aceitou. “Já estava apegado à equipe, conhecendo os pacientes, não tinha como sair daqui”, lembra. No fim do dia, ele conclui que são os afetos que valem a pena. “Sem essa relação próxima, que é muito gratificante, não saberia continuar. Já vi pessoas chorando por eu ter usado o estetoscópio com elas. Diziam: ‘Nenhum médico


nunca tinha me tratado assim’. E o que queremos é isso, estar presentes”.

SER HUMANO Cada consulta da médica Lívia Andrade, da USF Mãe Olga de Alaketu, no Vale do Matatu, dura quase uma hora. Sabemos disso porque, para falar com ela, esperamos até a última paciente ser atendida. Ela era Sara Santos, que passou a frequentar a unidade por insistência da mãe. “Tenho uma alergia, preciso acompanhar. Não conhecia aqui até a minha mãe me trazer. E eu gosto muito, não deixo de vir”, comenta. Lívia pede desculpas pela demora e explica: “Aqui é assim, converso com o paciente, e nem sempre só sobre doença. Eles vêm aqui, falam da vida, pedem conselho. Às vezes, é um problema em casa que gera um problema de saúde. Precisamos saber de tudo e, principalmente, saber ouvir”. Mas, Lívia lembra, nem sempre esse cuidado é bem visto por quem controla os números. “Há uma pressão por produtividade, mas não abro mão de fazer uma consulta completa, conhecer bem as pessoas”.

Mesmo que as Unidades de Saúde da Família não sejam mais novidade no Brasil, temos uma cultura da emergência ainda um tanto difícil de superar. “O brasileiro não tem esse hábito de ir ao médico regularmente, fazer consultas de rotina. Sóvai quando jáestá doente, com dor”, explica Lívia. E a situação se agrava quando falamos de homens. De acordo com o Centro de Referência em Saúde do Homem, 70% deles só entram nos consultórios acompanhados das mulheres ou filhos e 50% já chegam com doenças em estágio avançado. Assim, algumas unidades de Salvador realizam, mensalmente, o Sábado do Homem, dia em que os consultórios são abertos só para eles. “Muitos dizem que não podem ir em horário comercial, que estão sem tempo. Mas agora não tem desculpa”, brinca a enfermeira Carla Brito, também do Vale do Matatu. Funcionacomoqualqueroutrodia,comconsultas,pequenos procedimentos e muita, mas muita conversa. “É preciso informar a importância da prevenção, evitar eles irem ao médico em situações graves. E tem dado bastante certo, a unidade enche nesses dias”.

Esse hábito do brasileiro de não se cuidar fez com que, no começo, os usuários tomassem o espaço comoumaUPA.Muitoschegavamcheiodedoresequeixas, feridas profundas e necessidades que uma USF não é capaz de suprir. “O que podemos fazer aqui, fazemos, mas tivemos que ensinar as pessoas que aqui é diferente, é prevenção, não temos nem estrutura física para atendimentos de maior complexidade”, diz Carla. Mas, garante, hoje a população do entorno já entendebemadiferença:“Epercebemaimportância. Quem gosta de parar na emergência?”, brinca. Carla mostra, na mesa já cheia, uma pilha de presente que ganhou dos pacientes. Um carinho e cuidado por quem cuida tão bem. No mesmo dia, Matheus Monteiro aponta para uma lembrança que ganhou de aniversário, também um presente de paciente. O clínico Brenno Soares finda com uma certeza compartilhada por todos esses profissionais: “Sempre gostei de fazer atendimento clínico olhando o indivíduo como um todo, não como parte de um indivíduo, alguém fragmentado. Aqui não entra um coração, um fígado, um olho. Entra uma pessoa”. «

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