Casa da Memória

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O Panteon Pedro Calmon: prédio foi construído com doações

Casa da

memória Texto BRUNA CASTELO BRANCO bruna.araujo@grupoatarde.com.br Foto ADILTON VENEGEROLES adilton@grupoatarde.com.br

Com 124 anos, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia planeja ampliar suas instalações para dinamizar atividades e garantir a preservação do acervo

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os dias comuns, só se consegue entrar no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) pela porta dos fundos.Porquestõesdesegurança,a entradaprincipal,voltadaparaaAvenida Sete de Setembro, está sempre fechada. “Só abrimos as portas em datas festivas, como o 2 de Julho”, diz o administrador Eduardo de Castro, 70, atual presidente da instituição, aberta a pesquisadores, estudantes e curiosos. Perto do Gabinete Português de Leitura, na Avenida Joana Angélica, o IGHB pode passar despercebido. Diferentemente de alguns prédios históricos da cidade, como o Instituto Feminino e o Palacete das Artes, a estrutura externa do edifício não entrega a riqueza dopatrimônioculturalqueprotege–paradescobri-lo, basta passar pela porta, está (quase) tudo à vista. Quem chega esbarra na mesa de trabalho de Euclides da Cunha, a mesma que ele usou para se corresponder com O Estado de S.Paulo durante a Guerra de Canudos. Na sala, há gravuras do arquivo pessoal da família de Castro Alves, além de sofás e poltronas antigas. “Tudo o que temos foi doado. O instituto não

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compra objetos”, afirma Castro. Em meio aos artefatos – alguns armazenados, outros expostos –, os mais requisitados por quem visita a Casa são os cadernos do engenheiro, geógrafo e historiador baiano Teodoro Sampaio, que presidiu a instituição por 12 anos, de 1923 a 1937. “Como arquivista, não posso dizer que são os objetos mais valiosos. Tudo é valioso. O que tem um valor inestimável para uma pessoa pode não ter para outra”, diz Zita Alves, diretora do Arquivo Histórico. Entre as tantas histórias não oficiais sobre como as cadernetas foram parar lá, a mais contada é celebrada pelos funcionários como um milagre. Diz-se que os livrinhos estavam perdidos num convento, tomando o espaço das freiras, que ameaçavam jogá-los fora. Alguém levou o recado para o instituto, que conseguiu socorrer as anotações do engenheiro. Entre o que foi salvo estão um diário, desenhos técnicos de paisagens por onde passou, cenas cotidianas e retratos de pessoas. “Ele desenhava aqueles que encontrava pelo caminho. Além de mapear as cidades, mapeava seus cidadãos”, comenta Zita. Hoje, as cadernetas não são mais abertas ao público. “´É uma forma de preservá-las. O projeto é digitalizar tudo”. Além do governo do estado, que repassa verbas para a instituição por meio do Fundo de Cultura há 20 anos, a entidade cultural sobrevive por meio das mensalidades dos sócios e do aluguel de imóveis próprios. “Não sobra dinheiro para fazer muita coisa, como grandes reformas ou a restauração de todos os objetos”, lamenta o presidente. Num passeio pelo instituto, Eduardo de Castro faz questão de mostrar como as instalações são limpas e bem cuidadas, mas reclama de quadros desgastados pendurados nas paredes: “Mandei pendurar mesmo. Se ficar escondido, a gente não vê que precisa consertar. Tem que ficar exposto, para causar aflição e nos fazer correr atrás de uma forma de restaurá-los”. Desde 2015, o gestor planeja a construção de um anexo de 1.662 m² em quatro andares, já batizado de Consuelo Pondé de Sena em homenagem à antiga presidente. Com projeto já aprovado pela prefeitura de Salvador e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia (Iphan), falta ainda a captação de cerca de R$ 20 milhões pela Lei Rouanet – mas ainda não há previsão de quando a obra terá início. O novo prédio, de acordo com Castro, ocupará o espaço de uma casa em ruínas contígua ao atual edifício, de frente para a Rua Portão da Piedade. Para lá serão levadas todas as atividades administrativas, além de uma sala de pesquisa para a Biblioteca Ruy Barbosa, parte do instituto, já abarrotada e sem es-

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Acima, uma das cadernetas do engenheiro Teodoro Sampaio. Abaixo, Normando Reis, que pesquisa na biblioteca há mais de 20 anos

paço para tantos livros. “A ideia é que o prédio atual seja o Museu da História e da Geografia da Bahia, mais interativo. Se um jovem quiser participar da Batalha de Pirajá, ser um soldado, ele poderá fazer isso através de instalações multimídia”. Andando para a frente, o ambiente mais conhecido do instituto salta aos olhos, o Panteon Pedro Calmon. Além dos objetos históricos, como esculturas, móveis e quadros – alguns restaurados, outros, nem tanto –, a abóbada da Casa da Bahia talvez seja o que mais chama a atenção no ambiente. “Esse prédio foi construído especificamenteparaseroinstituto,apenascomdoações”,lembraCastro.Antesde ser transferido para a Avenida Sete, o IGHB, fundado por 37 homens em 1894, ficava no Terreiro de Jesus. “Naquele tempo, um dos prédios pegou fogo. Foi reconstruído, mas, por ser uma das artérias da cidade, o instituto veio para cá”. A inauguração do atual prédio foi no dia 2 de julho de 1923, centenário da Independência do Brasil na Bahia – o que faz da data uma das poucas capazes de abrir as portas da frente da instituição. “Somos os guardiões dos carros do Caboclo e da


À esquerda, mesa de Castro Alves; à direita, Brasão do Estado da Bahia

MARGARIDA NEIDE / AG. A TARDE

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LUCIANO CARCARÁ / AG. A TARDE

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Cabocla,símbolosmaioresdanossaindependência.É a nossa atribuição promover todas as festividades do 2 de Julho, a maior festa cívica espontânea do Brasil”, comenta Castro. No fim da festa, os carros normalmente voltam à garagem cobertos de bilhetes, pedidos, agradecimentos. Cumprindo o papel de fomentador do festejo, o IGHB guarda cada cartinha. “Há pedidos por namorado, marido, bens materiais...”.

CINCO MILHÕES DE PÁGINAS Há 22 anos, o historiador e escritor Normando Reis, 72, vai ao instituto pesquisar para seus livros. Já é conhecido por todos os funcionários e estima a Biblioteca Ruy Barbosa como a uma segunda casa. “Já

Edição de obra rara de Gaspar Barleus, de 1647, em que o humanista registra as realizações de Maurício de Nassau

sou tão experiente em pesquisa que algumas pessoas me pedem para pesquisar para elas. Com os anos, o olho vai acostumando, a gente vai pegando o jeito”, brinca. Quando chegamos, ele vasculhava uma edição de A TARDE em busca de informações sobre a fazenda Engenho d’Água, em São Francisco do Conde. “Todas as cidades deveriam ter um instituto para pesquisa. Se as prefeituras derem respaldo para a construção, estarei lá para apoiar”. Inaugurada há 124 anos, junto com o IGHB, a biblioteca tem um acervo com mais de 45 mil livros, dispostos em estantes montadas sob medida nos anos 1920. “Cada uma dessas obras foi doada. Recentemente, uma única pessoa doou 14 mil livros para o instituto. São tantos que ainda nem foram catalogados”, afirma Luiz Américo Lisboa, 51 anos, diretor da biblioteca e autor de livros como MPB em Textos: História e Crítica. Sem espaço nas prateleiras, algumas obras são armazenadas em caixas, escondidas do público e supervisionadas pelos funcionários. “O plano é levar algumas para o novo prédio, depois que for construído”, diz Lisboa.

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Depois uns minutos lá dentro, dá para se acostumar com o cheiro de papéis antigos e produtos de limpeza – mas com a aura encantada que parece envolver todo o espaço, não. “É uma biblioteca preciosa, muito preciosa, e que guarda a memória do pesquisador de História do Brasil. Não tenho nenhum receio em afirmar que a Bahia é precursora na pesquisa e na produção científica no país. O Instituto Geográfico e Histórico é uma testemunha dessa produção. E a biblioteca é maravilhosa, uma das mais bonitas que já vi em Salvador, assim como a do Instituto Feminino”, opina Ana Virgínia Pinheiro, bibliotecária responsável pelo acervo de obras raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Os livros da instituição podem ser consultados, mas nunca levados para casa. Para usar as obras que, juntas, somam cinco milhões de páginas, basta preencher uma ficha e pedir o título. “Mas também trabalho como uma bibliotecária de referência. Se a pessoa não souber exatamente o que precisa, ajudo a encontrar a obra certa”, explica Simone. Em 2017, 1.140 pessoas visitaram a Biblioteca Ruy Barbosa. De janeiro a abril deste ano, já foram 287. Embora qualquer pessoa possa consultar os livros, o acesso ao acervo é restrito. Antes de chegar ao leitor, a obra passa pela bibliotecária. “Tudo isso é para garantir a segurança, nunca passei por um roubo de livro. Minha mesa fica num local estratégico, não tem ninguém que entre e saia aqui que eu não veja”, brinca. Além da biblioteca, quem pesquisa na instituição conta com duas hemerotecas, que guardam o maior acervo de jornais da Bahia, com publicações que datam do ano de 1858. Entre elas estão os extintos Correio de Notícias, Diário da Bahia e Gazeta do Povo, além do A TARDE e outros jornais locais. A Hemeroteca I, que

abriga os jornais ainda em circulação, é como um esconderijo secreto. Para chegar a ela, no subsolo do prédio, é preciso abrir uma porta bem baixa que, de longe, mais parece uma parede. “O projeto é digitalizar os jornais e levar a hemeroteca para outro espaço com condições melhores”, diz o presidente do IGHB.

RARO, ÚNICO E PRECIOSO

Em estilo neoclássico, a Biblioteca Ruy Barbosa possui cerca de 45 mil livros

Desde o seu primeiro dia no instituto, Simone nuncaviuumaobrararaserdisponibilizada paraconsulta. “Só disponibilizamos se for algo imprescindível para a pesquisa. Nesses casos, é preciso justificar a necessidade”, afirma Luiz Américo Lisboa. “Tanto por questões de segurança quanto para preservar o livro”. Essa preocupação começou em 2007, depois que uma quadrilha roubou três obras da biblioteca: Viagem às Terras Goyanas, de Oscar Leal (1892), The New Brazil – Its Resources and Attractions (1907), de Marie Robinson Wright, e a edição de 1647 de Rerum per octennium in Brasília et alibi nuper gestarum sub praefectura, de Gaspar Barleus, uma obra rara. “Não existe livro raríssimo, todos são raros igualmente. Mas eu diria que a obra de Barleus é raríssima”, reflete Simo-

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ARQUIVO A TARDE

ne. Os livros foram recuperados pela Polícia Federal no Rio de Janeiro, resgatados em mãos pela presidente do instituto na época, Consuelo Pondé. Há obras raras espalhadas por diversas bibliotecas no país, mas o maior acervo está na Biblioteca Nacional, com 63 mil livros. “Para pensar num livro raro, existem três conceitos essenciais, o de raro, único e precioso. O raro é aquilo que ninguém questiona, como a primeira edição de Os Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões. É raro pela importância, pelo tempo decorrido desde que foi editado. Única é aquela obra que não tem muitos exemplares conhecidos. Não significa que só existe um, mas só há um único conhecido.Epreciosoaquiloquetemumvalorpessoal.Todo o acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia é precioso para a instituição”, explica Ana Virgínia. Para os bibliotecários, mexer em obras raras é como fazer uma cirurgia delicada. Para pegar o livro, é necessário usar equipamentos especiais, como luvas e máscara. “Muitas páginas estão desgastadas, então é preciso cuidado”, diz Simone. Depois de manusear as três edições de Barleus sobre o Brasil, ela mostra como ficaram as suas luvas: completamente amarelas. “São fungos. A proteção não é só para o livro, é para a gente também. Muitos profissionais ficam doentes por manusear livros sem proteção”, conta.

Em 1988, o A TARDE avaliou estrutura interna do IGHB: “Muito avariada”; à direita, a entrada atual na Avenida Joana Angélica

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UM PASSEIO NOS ANDARES SUPERIORES Além de um auditório com 180 lugares, o IGHB tem uma sala expositiva no primeiro andar. “É uma ala aberta, sem redomas, com entrada gratuita. As pessoas podem se aproximar, sentar – cuidadosamente! – em móveis de época. A ideia é incentivar e promover a interação, atrair o interesse de públicos mais jovens”, diz Jaime Nascimento, coordenador de cultura. Entre quadros pintados por artistas como Presciliano Silva, Vieira e Campos e Vienot e Morrisset, espalhados por todo o instituto, a Sala Expositiva Dom Pedro II expõe relíquias como armas, lanças indígenas, bonecas africanas, bandeiras e mobílias – muitas ainda sem identificação de quem fez, quando fez e por que fez. Além das atividades do museu e da biblioteca, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia promove, regularmente, cursos de curta duração, palestras, seminários e eventos, como lançamentos de livros. “A maioria dos cursos são gratuitos, a nossa ideiaénuncacobrar.Quandotrazemosumpalestrantedefora,cobramosumataxa simbólica, só para ajudar a pagar o professor”, afirma Jaime Nascimento. Antes de partirmos, Eduardo nos leva ao terraço, no telhado do prédio. Quando ainda não existiam os arranha-céus, o mirante tinha uma das vistas mais altas da cidade, com visibilidade para o mar em todos os ângulos. Lá em cima, o diretor do instituto conta como nasceu um dos seus sonhos. “Uma vez, um turista que veio aqui disse que nessa região deveria ser criado um circuito cultural a pé. Eu concordo com ele. Sairia do Mosteiro de São Bento, passando pelo IGHB, pela Praça da Piedade, Igreja de São Pedro, Igreja de São Raimundo, Palácio da Aclamação, Teatro Castro Alves e, voltando, iria pelo Instituto Feminino da Bahia, Convento de São Raimundo, Biblioteca Pública do Estado, Gabinete Português e, para terminar, o Convento da Piedade”, enumera. No fim, suspira: “Não sei se não fazem por questões de segurança. Mas vamos trabalhar para isso, vamos sonhar”. «

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