Entrevista com Aleixo Belov

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SALVADOR DOMINGO 19/8/2018


ABRE ASPAS n ALEIXO BELOV n VELEJADOR

«Muitas vezes

tive dúvida se conseguiria voltar para casa» Texto BRUNA CASTELO BRANCO bruna.araujo@grupoatarde.com.br Foto ADILTON VENEGEROLES adilton@grupoatarde.com.br

Depois de cinco voltas ao mundo e mais um punhado de viagens pelo mar, Aleixo Belov assegura: nunca se cansará de navegar. Aos 75 anos, o navegador, mergulhador, engenheiro e escritor ucraniano volta do Alasca, nos Estados Unidos, com centenas de fotos, um filme de mais de duas horas e 17 cadernos totalmente preenchidos. Num deles, escreveu: “Quando entramos nos canais, era noite e estava tudo nublado, o céu carregado de um cinza pesado, o mar cinza-escuro quase preto, as montanhas e as ilhas pareciam negras e envoltas em nuvens e neblina. O cenário era tão feio que passou a ser bonito por ser inusitado, e só vinha uma pergunta na cabeça: onde eu fui me meter? O que eu vim fazer aqui? Nem eu sabia o que vim fazer aqui, nem por que vim. Tinha medo que, de repente, a navegada por aqui não desse certo”. No Fraternidade, veleiro-escola construído pelo próprio Aleixo, viajaram mais 16 aprendizes. E há uma razão para carregar tanta gente: passar o conhecimento para frente, deixar um legado e “bulir na cabeça das pessoas”. Filho de russo com ucraniana, deixou a Europa ainda cedo, aos 7 anos. No Brasil, sem sequer uma moeda no bolso e mal sabendo o que era o português, mudou até de nome, de Alexey Dimitrievitch Belov para Aleixo. “Diziam que não existia Alexey aqui. Fiquei retado da vida, odiava o meu nome. Mas foi só até eu me dar bem. Depois, o nome ficou doce. Quando você chega lá, quanto mais estrambólico for seu o nome, melhor”. Quando diz “se dar bem”, não se refere apenas às viagens, mas aos sete livros publicados e à empresa Belov Engenharia Ltda, especializada em engenharia portuária e subaquática. Enquanto apresenta o Fraternidade, aponta para obras de arte trazidas do além-mar. “Faço questão de sempre trazer alguma coisa”. Com brandura, mostra a escultura de uma sereia vinda da Indonésia e, num segundo, como se psicografasse uma notícia dos céus, define o valor da vida: “Conhecer o outro nos muda, não saberia ser sem isso”.

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Em outras viagens, você passou por lugares como Polinésia Francesa, África do Sul, Madagascar, Índia, sul da Europa, entre outros – países quentes, um pouco mais parecidos com o Brasil. Como foi visitar o Alasca? Comecei pelos trópicos porque é mais fácil navegar, tem menos temporais, e eu tinha um barco pequeno [o Três Marias, construído por entre as décadas de 1970 e 1980, deu três voltas ao mundo]. Mas depois de construir o Fraternidade, que é um veleiro polar, falei: “Chega de trópicos”. Primeiro, fiz uma viagem para a Antártica com esse barco, levei nove pessoas comigo. Depois, quando resolvi viajar de novo, pensei: já conheci os trópicos, que é o meio, fui na Antártica, no sul, falta o quê? O Alasca. Andei por lá, pelas geleiras, o pessoal subiu montanhas... Todo mundo anda armado por causa dos ursos – dizem que eles atacam e acabam matando um de vez em quando. Mas o que eu reparei é que lá as pessoas são muito carinhosas com os estrangeiros. Quando fui a Paris pela primeira vez, era muito jovem, não tinha um amigo comigo. Quando encarava qualquer pessoa, ela virava o rosto. É assim. Europa, Paris... francês cansado de turismo. No Alasca, qualquer um que viesse na minha direção sorria. Foi muito bom, todo mundo sorria para mim, eu fiquei muito feliz. Conversei com o pessoal e perguntei: a vida é boa aqui? Disseram: “É boa… no verão. No inverno congela tudo”. “E o que vocês fazem?”, eu disse. “A gente não faz nada, espera o verão chegar”. Nos meses em que passa no Fraternidade, seu “planeta flutuante”, como diz no quinto livro, é você quem faz as leis. Como é, depois de tanto tempo, se readaptar ao mundo em terra firme? Eu já estou acostumado a ir e voltar. Tenho uma empresa, adoro a engenharia. Mal cheguei e já trabalhei o dia inteiro. Quando terminar essa entrevista, tenho uma reunião de trabalho. Então, estou totalmente adaptado a isso, quando estou viajando falo direto por telefone com a empresa, com meus sócios, com meus filhos… tenho cinco filhos, três netos. Estou sempre em comunicação com eles. As suas três primeiras voltas ao mundo foram solitárias. O que o incentivou a criar o veleiro-escola em 2010? Eu fui tão feliz nessas três primeiras viagens pe-

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«Se a natureza achar que eu mereço viver, ela vai me proteger, se ela achar que sou um lixo, vai me destruir, mas eu vou independente do que possa ocorrer»

uma semana, apareceram 150 candidatos, eu tive que escolher quem iria comigo. Eles me deram muito trabalho. O que mais eu me preocupava era se não teria um acidente. A pessoa poderia cair no mar, se machucar. Eu tive muita sorte, ninguém perdeu uma unha. Mas me deu um trabalho terrível, eu aproveitei muito menos porque passei mais tempo sendo babá de menino grande. É muito bom, traz uma realização, mas é estressante. Conviver 20 meses com as pessoas, o tempo todo… imagine ter uma tripulação que não é nem seu parente, nem seu amor, nada seu, e você acorda com eles, almoça, janta, dorme, trabalha junto. Tanto a gente fica de saco cheio da tripulação como a tripulação fica de saco cheio do comandante. Tem horas em que a gente diz que já chega e precisa voltar para casa. Dessa vez, para o Alasca, levei menos gente, treinei 17 pessoas. Sentiu falta de ficar sozinho? Sempre sinto. A gente trocava turno e tinha um horário meu, das 21h às 6h, em que todo mundo estava dormindo. Era uma maravilha, eu fazia de conta que estava só e aproveitava.

los trópicos, achei tão bom conhecer aqueles lugares todos que quando ganhei dinheiro, ao invés de comprar uma fazenda ou um bocado de apartamento para alugar, fui fazer um novo barco para chamar jovens brasileiros a velejar comigo. Então construí o Fraternidade, que levou cinco anos para ficar pronto. A quarta volta ao mundo já foi nesse veleiro-escola. De primeira, formei 26 alunos. Cada um fez a quarta parte de uma viagem, não deu a volta completa. Se todo mundo desse a volta, menos pessoas teriam essa experiência, já que o barco acomoda apenas 12. Quando fiz esse veleiro-escola, a ideia era mudar a vida de quem fosse comigo, abrir o horizonte para outras coisas. Sempre achei que alguém que fizesse pelo menos um quarto de volta ao mundo, nunca mais seria o mesmo.

Pensa em fazer outra viagem solitária? Aos 75 anos a pessoa já está meio fora da validade. O risco é muito maior, pode sentir alguma coisa, ter uma dificuldade. Tem muita gente que viaja nessa idade por já estar pouco ligando com o que pode acontecer, quer mais é viajar. Mas eu nem sei mais se faria, acho que talvez com uma pequena tripulação, duas ou três pessoas. No Três Marias, eu subi no meio do oceano duas vezes no mastro, lá na ponta, para consertar a luz de navegação. Hoje eu já não faço mais isso. Eu era tão forte… estraguei o joelho e engordei quase 10 kg nessa última viagem. De tanto andar pelos caminhos do mundo, gastei o joelho. Depois disso, parei de andar e engordei, o que piorou o joelho ainda mais. Espero superar logo esse problema.

Numa entrevista depois da primeira volta ao mundo com o veleiro-escola, você disse que não foi fácil viajar por tanto tempo com outras pessoas. Foi melhor nessa segunda vez? Quando estava sozinho, era eu e o mar, o amor entre mim e a natureza, ninguém para me perturbar. Na quarta volta ao mundo, resolvi dar esse presente para a juventude brasileira. Em

Quando você começou a viajar, entre 1980-81, ainda não havia celular e redes sociais, a comunicação era mais limitada. Como essas evoluções tecnológicas transformaram a sua rotina no veleiro? Você passou a se comunicar mais com a família? Antigamente, de vez em quando eu escrevia uma carta, de vez em quando recebia outra. A comunicação era muito difícil, mesmo por te-


lefone era difícil conseguir. Mas era assim mesmo, fazia parte você estar praticamente só. Agora é completamente diferente. Eu prefiro fazer navegação solitário, mas já estou com 75 anos. Com celular, falo com a família o tempo todo, em todo porto que chego. O que muda de uma viagem para a outra? As culturas, tipos de gente, a natureza. Você analisa quais são os sonhos das pessoas de diversos lugares do planeta. Você encontra alguém na viagem e ele abre o coração, lhe conta todos os problemas, o que pensa. Não diz para o vizinho, mas para você, que está de passagem. A natureza de todo lugar é interessante, a gente observa muito. As ondas do mar, as nuvens, as estrelas à noite, o clima, o vento que sopra o tempo todo, os peixes, as gaivotas. A luta pela sobrevivência das gaivotas é impressionante. Você acha que elas têm uma vida simples, mas voam sem parar porque, se pararem, morrem de fome. A luta é terrível, batalham o

tempo inteiro para sobreviver. Os peixes grandes comem os pequenos, com cabeça, rabo, com tudo. Minha filha, não existe vida fácil. Já chegou a passar por uma situação de alto risco? Muitas vezes eu tive dúvida se iria conseguir voltar para casa. Pode acontecer de errar a navegação, parar em cima de um recife e arrombar o barco. Os navios às vezes passam pertinho com uma velocidade retada, não prestam atenção se tem um barco menor ao lado. A pessoa pode ficar doente e não tem quem leve para o hospital. Aliás, nem tem hospital. Já fiquei doente, nada sério, mas já fiquei. Todos os remédios que já tomei na vida e acho importantes eu tenho a bordo. Você, quando sai, já sabe que escolheu esse caminho. Eu vou, não importa o resto, porque eu quero ir e acabou. Na minha primeira volta ao mundo não tinha rádio, balsa salva-vidas e nenhuma condição de me comunicar. Eu disse assim para mim: ‘Se a natureza achar que eu mereço viver, ela vai me

proteger, se ela achar que sou um lixo, vai me destruir, mas eu vou independente do que possa ocorrer’. Fui, e deu muito certo, nunca pensei em não ir. A sua primeira longa viagem pelo mar foi quando veio da Itália para o Brasil, aos 6 anos, em fuga dos destroços da Segunda Guerra Mundial na Europa. Você lembra alguma coisa dessa travessia? Eu me lembro de que a toda hora tocava uma sirene e os passageiros botavam o colete salva-vidas e iam para o convés. Depois, no alto-falante, alguém dizia: “Isso é só um treinamento”. Lembro de pegar um temporal, era muito vento, balançava muito. As aves marinhas, cansadas, tentavam sentar na ponta do mastro, mas como o navio chacoalhava, se chocavam contra ele e caíam no convés, feridas, com os olhos abertos, sem saber quem as atingiu. E me lembro também quando paramos na costa de um país da África. Apareceram canoas com os moradores da região, eles ti-

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LEONARDO PAPINI / DIVULGAÇÃO

«Esse barco reflete a minha alma porque aqui dentro tem tudo o que sempre quis que tivesse. Projetei cada detalhe, a mesa, o banco, tudo ficou como eu quis. Ele é uma extensão de mim»

nham tanta intimidade com a água. Fiquei impressionado, eu não sabia nadar naquela época, era muito pequeno. Eram quase como sapos, perfeitamente adaptados à água. Hoje eu entendo por que e como conseguiam fazer aquilo. Nasceram na beira do mar e viviam em harmonia perfeita com as águas. Chegou a voltar à Ucrânia depois disso tudo? Sim. Quando cheguei lá, tirei os sapatos e andei descalço para sentir a vibração da terra. Fui reconhecer a natureza que me produziu. Eu nasci na Ucrânia, minha mãe também, assim como minha avó, bisavó, tataravó. Todos os desejos que moram na minha alma foram forjados lá. Viemos para cá, passamos muita dificuldade. Nunca passamos fome, mas chegamos a ser despejados de casa... Fomos indo. Quando deu a primeira volta ao mundo, você tinha apenas 36 anos. Como foi fazer uma viagem tão longa, sozinho, e tão jovem? Foi maravilhoso. Quando chegava aos lugares

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A tripulação passou cerca de três meses viajando pelo Alasca

sozinho, conhecia gente. Amei tanto, você não imagina. Se você chega sozinha em Nova Iorque, ninguém repara. Se chega de veleiro numa pequena ilha, vira um evento. O que o levou a começar? Eu era mergulhador. Um dia, fui mergulhar em Porto Seguro quando lá só tinha uma pensão de três quartos. Tinha uns recifes cheios de peixes, uma coisa linda. E aí eu pensei: “O mundo deve ser todo bonito assim, eu quero conhecer o mundo”. Resolvi que a melhor maneira de viajar era com um barco, porque nele você mora, cozinha, dorme, acorda e é o seu meio de transporte. E pronto. Esse barco reflete a minha alma, porque aqui dentro tem tudo o que eu sempre quis que tivesse. Projetei cada detalhe, a mesa, o banco, tudo ficou como eu quis. Ele é uma extensão de mim. O cara que é cavaleiro vê o como cavalo parte dele. O guerreiro antigo tinha a espada como uma continuação de seu braço. Esse veleiro é as minhas pernas, que estão a cada dia mais fracas, mas o barco anda. Ainda boto outras pessoas para andar comigo. Já tem um próximo destino arranjado? Agora eu vou escrever, porque a minha viagem só acaba depois que eu a transformo em livro e filme, para que quem não viajou possa passear comigo pelas palavras e imagens. Para escrever um, leva mais de seis meses. Mas, se tiver saúde, pretendo viajar de novo. Para onde, ainda não sei. «


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